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Hanseníase e sexualidade: convivendo com a diferença

Enfermedad de hansen y sexualidad: conviviendo con la diferença

Leprosy and sexuality: living with the difference

Resumos

O artigo baseia-se em pesquisa que analisou os efeitos sociais da hanseníase em homens e mulheres. Especificamente, este estudo tem por objetivo analisar aspectos da sexualidade dos portadores de hanseníase homens e mulheres, identificando seus efeitos no cotidiano familiar. Fizeram parte do estudo uma amostra de 10 homens e 10 mulheres com diagnóstico de hanseníase, matriculados em serviços de saúde que presta assistência específica. A metodologia é de natureza qualitativa, realizada através de entrevistas semi-estruturadas. A análise dos dados apontou para o fato de a doença ser percebida como motivo da desestrutura familiar, bem como algo que prejudica o relacionamento sexual entre os casais.

hanseníase; sexualidade e gênero


Este artículo se basa en una investigación que analisó los efectos sociales sobre la enfermedad de hansen, en hombres y mujeres. Específicamente este estudio tuvo como objetivo analizar aspectos de la sexualidad de los portadores de hansen, identificando sus efectos en el cotidiano de la familia. La muestra estavo conformada por 10 hombres y 10 mujeres con diagnóstico de hansen, inseritos en servicios de salud que prestan asistencia especifica. La metodologia es de naturaleza cuantitativa y se ejecutó usando entrevista semi estructurada. El análisis de los datos apuntó una tendencia hacia el hecho de que la enfermedad es percibida como un motivo de desestructuración familiar y también como algo que perjudica el relacionamiento sexual entre los parejas.

enfermedad de hansen; sexualidad; género


The present article is based on a research that analysed the social effects of leprosy in men and women, identifying the effects in their family life. 10 men and 10 women with leprosy registered in a specific health service were part of this study. The methodology was qualitative, through semi-structured interviews. Data analysis pointed out the fact of the disease perceived as a reason for family disorders and, also, impairing these subjects sexual relationships.

leprosy; sexuality; gender


Artigo Original

HANSENÍASE E SEXUALIDADE: CONVIVENDO COM A DIFERENÇA1 1 Trabalho financiado pelo Programa de Pequena Becas para Investigação em Aspectos Sociais e Econômicos em relação às Enfermidades Tropicais, do Laboratório de Ciências Sociais - Universidad Central de Venezuela TDR/UNDP/Banco Mundial/OMS; 2 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 3 Doutor em Saúde Pública, Pesquisador Adjunto e Coordenador dos Cursos de Mestrado e Doutorado do IFF/FIOCRUZ; 4 Psicóloga da UNFRAN 1 Trabalho financiado pelo Programa de Pequena Becas para Investigação em Aspectos Sociais e Econômicos em relação às Enfermidades Tropicais, do Laboratório de Ciências Sociais - Universidad Central de Venezuela TDR/UNDP/Banco Mundial/OMS; 2 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 3 Doutor em Saúde Pública, Pesquisador Adjunto e Coordenador dos Cursos de Mestrado e Doutorado do IFF/FIOCRUZ; 4 Psicóloga da UNFRAN

Maria Helena Pessini de Oliveira2 1 Trabalho financiado pelo Programa de Pequena Becas para Investigação em Aspectos Sociais e Econômicos em relação às Enfermidades Tropicais, do Laboratório de Ciências Sociais - Universidad Central de Venezuela TDR/UNDP/Banco Mundial/OMS; 2 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 3 Doutor em Saúde Pública, Pesquisador Adjunto e Coordenador dos Cursos de Mestrado e Doutorado do IFF/FIOCRUZ; 4 Psicóloga da UNFRAN

Romeu Gomes3 1 Trabalho financiado pelo Programa de Pequena Becas para Investigação em Aspectos Sociais e Econômicos em relação às Enfermidades Tropicais, do Laboratório de Ciências Sociais - Universidad Central de Venezuela TDR/UNDP/Banco Mundial/OMS; 2 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 3 Doutor em Saúde Pública, Pesquisador Adjunto e Coordenador dos Cursos de Mestrado e Doutorado do IFF/FIOCRUZ; 4 Psicóloga da UNFRAN

Camila Mariana de Oliveira4 1 Trabalho financiado pelo Programa de Pequena Becas para Investigação em Aspectos Sociais e Econômicos em relação às Enfermidades Tropicais, do Laboratório de Ciências Sociais - Universidad Central de Venezuela TDR/UNDP/Banco Mundial/OMS; 2 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 3 Doutor em Saúde Pública, Pesquisador Adjunto e Coordenador dos Cursos de Mestrado e Doutorado do IFF/FIOCRUZ; 4 Psicóloga da UNFRAN

O artigo baseia-se em pesquisa que analisou os efeitos sociais da hanseníase em homens e mulheres. Especificamente, este estudo tem por objetivo analisar aspectos da sexualidade dos portadores de hanseníase homens e mulheres, identificando seus efeitos no cotidiano familiar. Fizeram parte do estudo uma amostra de 10 homens e 10 mulheres com diagnóstico de hanseníase, matriculados em serviços de saúde que presta assistência específica. A metodologia é de natureza qualitativa, realizada através de entrevistas semi-estruturadas. A análise dos dados apontou para o fato de a doença ser percebida como motivo da desestrutura familiar, bem como algo que prejudica o relacionamento sexual entre os casais.

UNITERMOS: hanseníase, sexualidade e gênero

LEPROSY AND SEXUALITY: LIVING WITH THE DIFFERENCE

The present article is based on a research that analysed the social effects of leprosy in men and women, identifying the effects in their family life. 10 men and 10 women with leprosy registered in a specific health service were part of this study. The methodology was qualitative, through semi-structured interviews. Data analysis pointed out the fact of the disease perceived as a reason for family disorders and, also, impairing these subjects sexual relationships.

KEY WORDS: leprosy, sexuality, gender

ENFERMEDAD DE HANSEN Y SEXUALIDAD: CONVIVIENDO CON LA DIFERENÇA

Este artículo se basa en una investigación que analisó los efectos sociales sobre la enfermedad de hansen, en hombres y mujeres. Específicamente este estudio tuvo como objetivo analizar aspectos de la sexualidad de los portadores de hansen, identificando sus efectos en el cotidiano de la familia. La muestra estavo conformada por 10 hombres y 10 mujeres con diagnóstico de hansen, inseritos en servicios de salud que prestan asistencia especifica. La metodologia es de naturaleza cuantitativa y se ejecutó usando entrevista semi estructurada. El análisis de los datos apuntó una tendencia hacia el hecho de que la enfermedad es percibida como un motivo de desestructuración familiar y también como algo que perjudica el relacionamiento sexual entre los parejas.

TÉRMINOS CLAVES: enfermedad de hansen, sexualidad, género

INTRODUÇÃO

Este estudo baseia-se em pesquisa que analisou os efeitos sociais da hanseníase em homens e mulheres (OLIVEIRA, 1995). Aqui objetiva-se analisar aspectos da sexualidade dos portadores de hanseníase homens e mulheres, identificando seus efeitos no cotidiano familiar.

O pressuposto deste trabalho é que a hanseníase provoca efeitos diferentes entre os sexos e que a sexualidade é um fator desencadeante de mudanças no cotidiano dos seus portadores. Assim, procurou-se estudar como se dá a sexualidade na hanseníase, tendo como referencial a perspectiva de gênero.

Aspectos relacionados a gênero não podem ser desconsiderados na prevenção e na intervenção no campo da saúde. A própria Organização Mundial da Saúde, há alguns anos atrás, promoveu esse debate através de uma publicação científica (GOMEZ, 1993). A partir dessa perspectiva este trabalho se justifica na medida que traz uma reflexão que pode contribuir para a compreensão dos agravos acarretados pela doença, no campo da sexualidade de mulheres e homens hansenianos.

Com base nesse raciocínio, antes de se discutir hanseníase, faz-se necessário pontuar aspectos referentes a gênero. Gênero, segundo HEILBORN (1992), sob o ponto de vista antropológico, é a construção social abstrata da realidade, predominando as diferenças culturais do que é masculino e feminino sobre as diferenças biológicas.

GOMES (1996) ressalta que no gênero está implícita a idéia de relação, "seja entre iguais, seja entre desiguais". Assim, é a partir da perspectiva relacional que se compreende a construção do que é ser masculino e feminino.

Segundo GOMEZ (1993), essa expressão se refere a um conjunto de traços da personalidade, atitudes, sentimentos, valores, condutas e atividades que através do processo social, diferenciam o homem da mulher. Nesse enfoque, não se fica restrito apenas ao campo fisiológico, inclui também outras dimensões ligadas ao sexo, pré definidas pelos valores culturais e atribuídas ao homem e à mulher, estabelecendo relações entre si, fazendo emergir papéis, necessidades e acesso a recursos de acordo com diferenças pessoais.

BONILLA (1993) alude que sexo não muda, mas gênero é um conceito referente às diferenças sociais e culturais entre homens e mulheres, podendo variar segundo a história.

A HANSENÍASE ENQUANTO OBJETO DE ESTUDO

Segundo QUEIROZ & CARRASCO (1995), no Brasil, há mais de quinhentos mil portadores de hanseníase que se encontram predominantemente em idade produtiva. Para os autores, essa doença que no país apresenta a maior taxa de crescimento do mundo, influencia negativamente o trabalho, a formação da família e a integração social de seus portadores.

No Brasil do século XX, as autoridades da área de saúde passaram a utilizar a expressão "hanseníase" no lugar de "lepra", uma vez que esta última denominação se associa à idéia de doença terrível e incurável. Parece que essa medida, em parte, fez com que essa doença fosse vista como uma outra qualquer. Por outro lado, também parece ter ocorrido o fato de que, com a mudança de nome, algumas pessoas pensem que existem duas doenças. QUEIROZ & CARRASCO (1995), por exemplo, identificaram que 50% de seus entrevistados ou consideraram que a hanseníase e a lepra eram duas doenças, ou percebiam a lepra como um estágio mais avançado da hanseníase.

Apesar dos esforços no sentido de se reduzir a conotação negativa da doença, há ainda um conjunto de imagens e idéias acerca da hanseníase, representada pela sociedade, como uma doença estigmatizante, fazendo com que seus portadores ocultem seu problema a fim de não serem discriminados pela sociedade. Esse fato, associado às precárias condições sócio-econômicas, tem dificultado o trabalho da erradicação da doença prevista para o ano 2.000, segundo as intenções da Organização Mundial de Saúde - OMS.

Na experiência vivida no âmbito dos serviços de saúde, observa-se que a doença funciona como um fator desencadeante de outros problemas que se inicia antes mesmo do diagnóstico definitivo, em decorrência dos sinais dermatológicos e de manifestações neuríticas responsáveis pela diminuição da capacidade laboral. Na maioria das vezes, os indivíduos já buscaram o tratamento em farmácia e com outros médicos sem sucesso. No momento em que é revelado o nome da doença, costuma ocorrer um impacto nas pessoas do convívio familiar, e a intensidade deste se vincula conhecimentos anteriores adquiridos sobre a doença.

CLARO (1993) constatou que o impacto negativo, que a doença provoca, ocorre de uma forma mais intensa entre os pacientes com melhor situação sócio econômica, principalmente por conhecer a relação hanseníase e lepra. ROJAS et al. (1993) observam, ao abordarem características psicossociais da lepra, "que as pessoas mantêm diversas crenças e atitudes acerca da enfermidade, influenciadas em parte pelo nível educacional e seus antecedentes sócio culturais". Esses autores consideram ainda que quanto maior for o tempo da doença acompanhado de deformidades, maior será a probabilidade do doente desenvolver alterações psíquicas.

METODOLOGIA

Princípios e Procedimentos

A pesquisa que serviu de base a este estudo partiu de uma articulação entre as abordagens quantitativa e qualitativa, partilhando das idéias de MINAYO & SANCHES (1994) que entendem que essas abordagens se complementam na compreensão da realidade social.

Neste artigo, procurou-se recortar os dados qualitativos sobre a sexualidade no conjunto da investigação mencionada. Assim, trabalhou-se com uma dimensão que busca compreender os significados e a intencionalidade inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais (MINAYO, 1992).

Para isso, foi utilizada entrevista semi-estruturada, técnica que combina perguntas abertas e fechadas, onde os protagonistas puderam discorrer sobre o problema da investigação. O trabalho de campo foi realizado em 1994, na Unidade de Saúde do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, no Município de Ribeirão Preto (SP). Essa unidade presta regularmente atendimento aos pacientes matriculados no programa de controle e tratamento da hanseníase.

A análise das falas dos sujeitos estudados foi feita a partir de uma adaptação da proposta de MINAYO (1992), que contempla princípios da hermenêutica-dialética, onde se entende o texto, a fala, o depoimento como resultado de um processo social e um processo de conhecimento que, embora sejam produtos de múltiplas determinações, têm significados específicos.

Para entender os aspectos de gênero, as falas dos homens e das mulheres foram confrontadas, procurando-se apreender os pontos relevantes que permitiriam contextualizar o igual e o desigual dos indivíduos com hanseníase.

Com base em sucessivas leituras do material, buscou-se descobrir "os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido." (BARDIN, 1979, p. 105). Esses núcleos foram analisados através de contrapontos entre a fala e o seu contexto. Na pesquisa que deu origem a este trabalho (OLIVEIRA, 1995), os núcleos de sentido apontaram para a existência de vários temas, em torno do qual foram discutidos os resultados da investigação. Neste trabalho, focaliza-se mais especificamente os aspectos relacionados à temática Hanseníase e Sexualidade.

População Estudada

A população pesquisada pela investigação, da qual este estudo faz parte, era composta de uma amostra de 202 hansenianos, sendo 132 homens e 70 mulheres. Dentre esse conjunto, para um trabalho de abordagem qualitativa, foram selecionados ao acaso - independentemente da idade, do estado civil, da forma clínica da doença, da ocupação, da procedência e do tempo de tratamento - 10 homens e 10 mulheres em regime de tratamento. É esse conjunto de 20 pessoas que compõe a população deste estudo.

A média da idade dos homens era 38,5 anos e das mulheres era 47,4 anos. A maioria da amostra era composta por pessoas casadas, procedentes de Ribeirão Preto. As características pessoais da população de hanseniano masculino e feminino encontram-se distribuídos nos Quadros 1 e 2 que seguem.



Pelos dados apresentados, observa-se que o número de homens casados se aproxima ao das mulheres. Entretanto, entre as mulheres, há três que alegaram viver separadas dos seus maridos e uma, apesar da pouca idade, é viúva. O marido morreu em conseqüência da AIDS. Com relação aos homens, há três solteiros.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

No que se refere à relação entre Hanseníase e Sexualidade, o conjunto das entrevistas apontou para a existência de dois núcleos de sentido centrais. O primeiro sentido identificado nos depoimentos dos entrevistados relaciona-se à idéia da hanseníase enquanto motivo de separação das famílias. Já o segundo traz a hanseníase como algo que prejudica o relacionamento sexual entre os casais. Apesar de, em determinados momentos, haver uma justaposição desses núcleos de sentidos, a análise dos dados gira em torno de dois eixos de discussão: num predomina mais a idéia de separação causada pela doença e noutro a união dos casais continua, mas o relacionamento sexual fica prejudicado por conta da doença.

Por outro lado, sem desconsiderar que a doença em questão e o seu tratamento trazem conseqüências comuns a homens e a mulheres, a análise que se segue também procura destacar aspectos que se diferenciam por conta de questões de gênero. Em outras palavras, procura-se apontar que há momentos em que as diferenças de papéis sociais entre o ser homem e o ser mulher contribuem para a existência de vivências distintas no campo da sexualidade dos portadores de hanseníase.

A Hanseníase enquanto Motivo de Separação de Casais

O abandono aparece como preocupação em ambos os sexos. Entretanto, as mulheres expressam mais o medo de serem abandonadas pelos seus maridos e, para algumas, o fato de terem filhos parece acentuar mais essa preocupação. A exemplo disso, destaca-se o seguinte depoimento:

"Tenho medo de ser abandonada pelo meu marido, doente e ainda com filhos" (H, 50 anos)

Há um depoimento que associa aspectos relativos à etnia ao problema:

"Eu agüento porque se meu marido for embora, como vou fazer? Além de ser mulher, sou preta e tenho essa doença." (Y, 49 anos)

Esse depoimento aponta para o fato de que a associação entre ser mulher, ser negra e ser portadora de hanseníase faz com que as conseqüências da separação seja bastante problemática. Nessa associação atravessa uma idéia estruturante: a aparência física. Para essa mulher, além de sua aparência física, pela sua cor de pele, provocar preconceitos raciais, a doença também altera a sua aparência. Para uma mulher, que costuma sofrer influências de idéias acerca da aparência enquanto uma preocupação feminina, essa associação agrava o problema de não aceitação.

No caso de algumas mulheres, a separação não ficou no imaginário, foi concretizada. O principal motivo do rompimento dos vínculos entre elas e o marido foi a doença. Segundo elas, com o passar do tempo, os maridos passaram a evitá-las, agravando mais o problema com a ocorrência de reações provocadas pelo tratamento. As reações adversas provocam aparecimento de manchas, hansenomas, mal estar, febre, dores que impossibilitam as mulheres, muitas vezes, de desenvolverem suas atividades domésticas, o cuidado com os filhos e, até mesmo, o relacionamento sexual com seus maridos:

"Meu marido vivia brigando comigo, judiava de mim, bebia muito e acabou com tudo. Ele tinha amante e eu não sabia." (P, 48 anos)

"Essa doença estragou a nossa vida íntima. Tinha vergonha do meu corpo porque era todo manchado. Perdi a vontade." (T, 44 anos)

Além deste estudo, na literatura, há dados que apontam para o fato de a hanseníase contribuir para a ocorrência da separação em algumas famílias, sobretudo naquelas famílias onde o relacionamento conjugal já apresentava indícios de desavenças e num momento de "crise", desencadeado pela doença, acentuam-se os problemas, rompendo o relacionamento. A "crise", segundo MINZONI & VIETTA (1977), afeta o equilíbrio físico, emocional e social. A hanseníase por si só pode desencadear este comportamento. ROJAS et al. (1993) traz dados de estudo que mostrou que "o diagnóstico da enfermidade ocasiona problemas matrimoniais, motivo de separação".

A Hanseníase como Algo que Prejudica o Relacionamento Sexual

As mulheres casadas que não viveram separação relataram que seus maridos continuavam a se relacionar sexualmente com elas. Entretanto, algumas referiram que se sentiram inibidas em decorrência das transformações físicas provocadas pela doença ou da sua auto-rejeição. Em geral, neste estudo, as mulheres não se colocaram como beneficiadas pelo prazer na relação sexual, mas como objeto de satisfação do homem, como sendo mais um papel a ser cumprido pela mulher:

"Meu marido não estava nem aí me procurava para fazer sexo. Acho que o homem precisa descarregar porque se não faz mal. Eu sirvo e pronto. Casei para isso." (M, 49 anos)

"Mulher não precisa ter desejo, ela tem que servir sempre. Faço sexo quanto ele me procura por obrigação." (N, 41 anos)

"O nosso relacionamento sexual diminuiu muito. Antes era mais freqüente. Ele fala, deixe isso pra lá, vai se tratar primeiro." (V, 25 anos)

"Meu marido é um coitado. Faço sexo, mas não sinto vontade (...) Eu tenho muito preconceito, não sei como meu marido consegue fazer sexo. Faço por obrigação." (Y, 49 anos).

Por trás desses depoimentos, estão presentes as representações sociais de homem como ser ativo e mulher como ser passivo. No decorrer da socialização, ocorre a internalização de modelos culturais que fazem com que para os homens a identidade de gênero exija a sua identificação heterossexual ativa e a mulher passiva, ou seja, "o homem vai fazer e a mulher será feita". (GIFFIN, 1994, p. 151).

Ainda sobre papéis sexuais "ativo" e "passivo", culturalmente definidos, PARKER (1991) observa que a diferenciação entre atividade e passividade tem permeado a construção das noções brasileiras de masculinidade e feminilidade. Segundo o autor, tradicionalmente essa distinção atua como princípio organizador para um universo mais amplo de classificação sexual no cotidiano.

Percebe-se na fala de alguns entrevistados que a doença não é um empecilho para o coito, mas também percebe-se que a hanseníase, a exemplo do depoimento que se segue, pode agir como barreira para outras manifestações de afeto:

"Meu marido faz sexo, mas não beija ... " (Z, 33 anos)

Durante o coito, o homem deixa sair de dentro de si o sêmen que penetra na mulher portadora de hanseníase e no beijo há uma mistura de saliva e por isso o medo de contrair a doença. A fonte de transmissão da hanseníase é através de secreção eliminada pelas vias aéreas, daí a possível ligação da saliva como fonte da infecção da doença.

Interessante observar que algumas mulheres, apesar de não se separarem sexualmente de seus maridos, separam seus utensílios pessoais, a exemplo de garfos e toalhas, como medida de prevenir o contágio. Assim, essas mulheres separam o que lhes pertencem, uma vez que os utensílios fazem parte do ambiente doméstico que está sob seu domínio, mas não conseguem a separação dos corpos porque essa decisão nem sempre depende delas. Essas preocupações enquanto medida contra a transmissão da doença não fazem sentido para pessoas que estão em tratamento, uma vez que com a introdução da medicação o bacilo de Hansen não se transmite.

Os homens entrevistados também apontam a hanseníase como algo que prejudica a relação sexual com suas mulheres:

"A mulher cobra de mim, aí eu falo que é devido aos remédios fortes que eu tomo e que me enfraqueceram." (J, 52 anos)

Para alguns, o fato de não mais procurar o relacionamento sexual com as mulheres, pode gerar desconfianças por parte das mulheres, pensando que eles arrumaram outra:

"Minha mulher cobra de mim, fica brigando, fala que eu arrumei outra. Minha vida ficou um inverno. Essa doença acabou comigo." (D, 34 anos).

Também para o homem a doença gera um desconforto, uma vez que sente desejo, mas está fisicamente comprometido, impedindo a ereção do pênis para completar a ejaculação. Outros relataram que sentem dor na região dos testículos:

"Quando passava mal, meus caroços [testículos] ficavam doloridos." (J, 52 anos)

"... eu tinha aqui embaixo inchado [testículos], não fazia sexo, era muito duro mas foi passando agora já estou velho para essas coisas." (D, 37 anos)

ARRUDA (1988), num estudo sobre alterações testiculares, aponta que "a doença pode acometer o testículo em qualquer forma clínica, e que a alteração que ocorre no compartimento das células de Serloti, deve refletir não apenas uma explosão acentuada da linhagem germinativa, mas, também, uma ruptura da barreira hemato-testicular, possibilitando a auto agressão à gônada." Continuando, o autor relata que os pacientes informaram diminuição do libido, redução das relações sexuais e números de filhos, principalmente nos portadores da forma clínica virchowiana, fato este que merece ser melhor explorado.

Biologicamente, os homens podem, portando, sofrer agravos com o bacilo de Hansen. As alterações não ficam no campo da fantasia, mas são palpáveis, com efeitos diferentes daqueles que incidem sobre as mulheres. Os homens são reconhecidos como sujeitos ativos do ato sexual e a ausência de ereção, seja por dor na região dos testículos, seja por presença de edema, induz a sérios problemas porque realizam representações e desencadeiam outras, uma vez que nem sempre, ou quase nunca, são orientados quanto a esta mudança. E as orientações, quando são feitas, esbarram nas dificuldades de acesso em decorrência dos preconceitos sobre a sexualidade existentes nos indivíduos.

Problemas no campo da sexualidade de portadores de hanseníase também são referidos por outros estudos. FREITAS (1994) e ROJAS et al. (1993) encontraram, respectivamente, esses problemas em 50% e 40% em suas amostras.

CONCLUSÃO

Os dados analisados revelaram que os homens hansenianos vivenciam experiências diferentes das mulheres, principalmente no que diz respeito aos aspectos físicos, deixando-os impossibilitados de concluir satisfatoriamente o ato sexual, uma vez que eles não conseguem a ereção total do pênis. As mulheres apontaram a doença como a responsável pelo abandono dos seus maridos. As casadas, em geral, alegaram que seus maridos continuavam a procurá-las, mas faziam sexo só para satisfazer as necessidades dos seus parceiros.

Os serviços de saúde, dentro do possível, têm procurado desenvolver atividades assistenciais mais abrangentes nos programas de controle e tratamento da hanseníase. Entretanto, percebe-se que as orientações, na maioria das vezes, ficam centralizadas nas normas estabelecidas pelo programa. Os problemas socio-psicológico advindos dos efeitos da doença pouco são abordados, uma vez que as ações se voltam mais para a prevenção, a reabilitação e as reações colaterais da poliquimioterapia. O cumprimento regular da rotina de trabalho, aliado ao despreparo e motivação da equipe de saúde, nem sempre possibilita a exteriorização das preocupações dos portadores de hanseníase, aí incluídas as de ordem sexual.

A sexualidade dos portadores de hanseníase é, sem dúvida, afetada e pouco valorizada pela equipe de saúde que presta os cuidados, talvez por desconhecimento, ou por dificuldades, uma vez que falar sobre esse assunto, implica conhecer as suas limitações e seus problemas. Os profissionais de saúde também fazem parte de um contexto sócio-econômico e cultural, onde os conhecimentos e as práticas que se voltam para o processo saúde-doença ligado à sexualidade quase sempre esbarram em questões morais e sociais, dificultando assim as discussões sobre o assunto.

A sexualidade em geral e os problemas sexuais decorrentes da hanseníase devem fazer parte da formação e/ou atualização dos profissionais de saúde para que possam cuidar e orientar, de uma forma mais ampla, os portadores dessa doença. Faz-necessário também que esses profissionais fiquem atentos as relações de gênero que perpassam as experiências das pessoas acometidas pela doença. Nessas relações, os homens e as mulheres vivem problemas comuns, como é o exemplo do desconforto e, em alguns casos, são estigmatizados devido as suas aparências físicas causadas pela doença. Por outro lado, no relacionamento estabelecido entre homens e mulheres, como foi visto na análise dos resultados, convive-se com a diferença. Saber captar as diferenças que são socialmente construídas entre os papéis masculino e feminino é de fundamental importância para a promoção de ações educativas no campo da saúde, aí se incluindo aquelas direcionadas para a hanseníase.

Recebido em: 21.8.97

Aprovado em: 18.9.98

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  • 1
    Trabalho financiado pelo Programa de Pequena Becas para Investigação em Aspectos Sociais e Econômicos em relação às Enfermidades Tropicais, do Laboratório de Ciências Sociais - Universidad Central de Venezuela TDR/UNDP/Banco Mundial/OMS;
    2
    Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo;
    3
    Doutor em Saúde Pública, Pesquisador Adjunto e Coordenador dos Cursos de Mestrado e Doutorado do IFF/FIOCRUZ;
    4
    Psicóloga da UNFRAN
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 1999

    Histórico

    • Aceito
      18 Set 1998
    • Recebido
      21 Ago 1997
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