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O trabalho da enfermeira no Peru: gênese e constituição social

El trabajo de la enfermera en Perú: génesis y constitucion social

Nurses work in Peru: genesis and social formation

Resumos

Trata-se do resgate histórico da gênese e constituição social do trabalho da enfermeira no Peru, buscando compreendê-lo de acordo com a situação social da mulher no contexto de uma sociedade androcêntrica organizada sob o modo de produção capitalista. Assim, constituída por influência da Escola Nightingale, a enfermagem peruana caracterizou-se por reproduzir funções sociais historicamente femininas, com um saber/fazer subordinado ao saber médico, predominantemente androcêntrico enquanto ideologia.

trabalho feminino; enfermagem; gênero


El articulo hace un rescate histórico de la génesis y constitución social del trabajo de la enfermera en Perú, buscando comprenderlo de acuerdo a la situación social de la mujer en el contexto de la sociedad androcéntrica peruana, notablemente organizada bajo el modo capitalista de producción. Así, constituido por influencia de la escuela nightingeliana, el ejercicio de la enfermería peruana es caracterizado por la reproducción de las funciones sociales históricamente femeninas, bajo un saber subalterno a la práctica y al conocimiento médico, también antrocéntrico en cuanto ideología.

mujer y trabajo; trabajo de enfermería; enfermería y género


The study aimed at reviewing the history of the genesis and social formation of nurses work in Peru in order to understand it according to women's social situation in the context of a masculine society organized under capitalism. Thus, nursing formation was influenced by the Nightingale School and the exercise of the Peruvian nurses was characterized by the reproduction of social functions that are historically feminine, with a knowledge and practice subordinated to medical knowledge, that is mainly directed by a masculine ideology.

women work; nursing work; gender and nursing


Artigo Original

O TRABALHO DA ENFERMEIRA NO PERU: GÊNESE E CONSTITUIÇÃO SOCIAL1 1 Trabalho apresentado como Comunicação Coordenada no 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem promovido pela Associação Brasileira de Enfermagem - Seção São Paulo. São Paulo, 1996; 2 Enfermeira. Doutor em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Nacional de Cajamarca (Peru); 3 Enfermeira. Professor Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Margarita Cerna Barba2 1 Trabalho apresentado como Comunicação Coordenada no 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem promovido pela Associação Brasileira de Enfermagem - Seção São Paulo. São Paulo, 1996; 2 Enfermeira. Doutor em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Nacional de Cajamarca (Peru); 3 Enfermeira. Professor Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Marina Violeta Estrada Perez de Martos2 1 Trabalho apresentado como Comunicação Coordenada no 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem promovido pela Associação Brasileira de Enfermagem - Seção São Paulo. São Paulo, 1996; 2 Enfermeira. Doutor em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Nacional de Cajamarca (Peru); 3 Enfermeira. Professor Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca3 1 Trabalho apresentado como Comunicação Coordenada no 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem promovido pela Associação Brasileira de Enfermagem - Seção São Paulo. São Paulo, 1996; 2 Enfermeira. Doutor em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Nacional de Cajamarca (Peru); 3 Enfermeira. Professor Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Trata-se do resgate histórico da gênese e constituição social do trabalho da enfermeira no Peru, buscando compreendê-lo de acordo com a situação social da mulher no contexto de uma sociedade androcêntrica organizada sob o modo de produção capitalista. Assim, constituída por influência da Escola Nightingale, a enfermagem peruana caracterizou-se por reproduzir funções sociais historicamente femininas, com um saber/fazer subordinado ao saber médico, predominantemente androcêntrico enquanto ideologia.

UNITERMOS: trabalho feminino, enfermagem, gênero

NURSES WORK IN PERU: GENESIS AND SOCIAL FORMATION

The study aimed at reviewing the history of the genesis and social formation of nurses work in Peru in order to understand it according to women's social situation in the context of a masculine society organized under capitalism. Thus, nursing formation was influenced by the Nightingale School and the exercise of the Peruvian nurses was characterized by the reproduction of social functions that are historically feminine, with a knowledge and practice subordinated to medical knowledge, that is mainly directed by a masculine ideology.

KEY WORDS: women work, nursing work, gender and nursing

EL TRABAJO DE LA ENFERMERA EN PERÚ: GÉNESIS Y CONSTITUCION SOCIAL

El articulo hace un rescate histórico de la génesis y constitución social del trabajo de la enfermera en Perú, buscando comprenderlo de acuerdo a la situación social de la mujer en el contexto de la sociedad androcéntrica peruana, notablemente organizada bajo el modo capitalista de producción. Así, constituido por influencia de la escuela nightingeliana, el ejercicio de la enfermería peruana es caracterizado por la reproducción de las funciones sociales históricamente femeninas, bajo un saber subalterno a la práctica y al conocimiento médico, también antrocéntrico en cuanto ideología.

TÉRMINOS CLAVES: mujer y trabajo, trabajo de enfermería, enfermería y género

A evolução da enfermagem no Peru relaciona-se às transformações ocorridas na sociedade peruana durante o seu percurso histórico. Isso explica a criação da primeira Escola para Enfermeiras de Nível Superior, vinculada à Clínica Anglo Americana na cidade de Lima, no ano de 1907, época em que o capitalismo começou a ser implantado no país, originando variadas mudanças sociais e econômicas que deram lugar a uma estrutura social determinante de novas necessidades de classe, acompanhada de uma progressiva agudização das relações contraditórias entre homens e mulheres, tanto no âmbito público pela maior participação da mulher no processo produtivo como no âmbito doméstico (privado) pela maior acumulação de trabalho para as mulheres (ZARATE, s/d).

O modelo de desenvolvimento sócio-econômico iniciado nesse momento denominado "desenvolvimento para fora" caracterizou-se pela centralização de poder e pela ênfase na exportação de matérias primas e na importação de outros produtos dos países desenvolvidos. Isto propiciou o desenvolvimento mais ou menos acelerado da indústria manufatureira centralizada nas cidades e portos localizados estrategicamente para a manutenção das relações comerciais do país com o exterior (UNIVERSIDAD..., 1994; QUIJANO, 1985).

Como conseqüência desse modelo de desenvolvimento observou-se a agudização da deterioração sócio-econômica das regiões interioranas, o que determinou movimentos migratórios da população rural para as zonas urbanas, em busca dos benefícios do desenvolvimento industrial. Tais fenômenos migratórios coincidiram com a crescente demanda de força de trabalho do setor industrial e comercial sem, no entanto, proporcionar as condições necessárias, os benefícios e os salários correspondentes, já que o interesse do capitalismo era só na acumulação. Isso ocasionou a deterioração das condições de vida da população trabalhadora expondo-a a inúmeros riscos à sua saúde como acidentes de trabalho e epidemias (PAREJA, 1986).

Como reação a isso observou-se uma forte pressão por parte dos trabalhadores reivindicando direitos relacionados aos salários e às condições de trabalho, aos quais a resposta do Estado resumiu-se a alguns benefícios de ordem social como a criação de hospitais de beneficiência para a atenção aos trabalhadores e a alguns grupos populares. Paralelamente à criação dos hospitais, foram criadas escolas para a formação de enfermeiras que deveriam constituir força de trabalho específica para tais instituições (UNIVERSIDAD..., 1994).

Assim, nos primeiros períodos da sua formação profissional, a enfermeira constituiu um agente necessário para o cumprimento dos objetivos do capitalismo, ajudando a manter sadios os trabalhadores objetivando maior produção e, portanto, maior acumulação através de uma medicina individual, curativa e hospitalar (BARONA et al., 1991).

Os hospitais foram o principal instrumento para a formação em enfermagem através das escolas que até a década de 60 visualizavam uma preparação eminentemente técnica e utilitária da enfermeira, desenvolvida em um período de 3 anos. Como cita PIZARRO (1982): "No início do presente século um dos sistemas adotados na nossa realidade para solucionar a problemática de saúde foi o desempenho de atividades de saúde por pessoal preparado na prática de algumas funções de enfermagem dentro de um centro hospitalar".

O preparo meramente técnico da enfermeira profissional revelou-se assim como determinante para a baixa valorização social do seu trabalho já que referir-se ao técnico naquele período, como no presente, significava necessariamente associá-lo com a habilidade em tarefas manuais que não necessariamente requeriam conhecimentos tidos como científicos que só eram veiculados em instituições de nível superior como a universidade.

Enquanto as escolas de enfermagem nasceram vinculadas aos hospitais e permaneceram dessa maneira até 1960, as universidades abriram suas portas para a formação do médico desde 1938. A enfermeira teve que esperar mais de 5 décadas a partir da criação da primeira escola para ter um preparo de nível universitário. Segundo PIZARRO (1981) só com a abertura dos programas acadêmicos de enfermagem nas universidades, em 1963, é que se abriu a possibilidade de constituição da profissão com um caráter acadêmico-científico, o que haveria de dar à enfermeira o status social correspondente.

Até a década de 50, no trabalho em saúde era nítida a separação entre o saber e o fazer, sendo o médico o principal responsável por esse trabalho. Tal investidura acadêmico-intelectual conferia-lhe também o domínio e o poder dentro da instituição. A enfermeira, com uma formação eminentemente técnica, baseada em qualidades femininas tidas como inatas, responsabilizava-se pelo cuidado físico e espiritual do paciente, assim como pela proteção do espaço onde ocorria o processo de cura. "Essa divisão - uma vez mais - reproduzia a divisão social do trabalho na atenção à saúde: as atividades tidas como 'mais manuais' foram as que passaram a ser atribuição da enfermeira" (CASTELLANOS & SALUM, 1990).

De lá para cá pouca coisa mudou se pensarmos em transformações efetivas em relação à caracterização do cuidado e da destinação do trabalho específico das profissionais de enfermagem para isso. A apropriação do saber prático, além de atribuir à enfermeira as funções manuais - de assistência - não lhe proporcionam poder de decisão no âmbito hospitalar. Ao contrário, determinam a subordinação e a desvalorização do seu trabalho, a despeito das diferenças na sua formação.

Para a compreensão de tal processo, há que se ter em conta que a diferenciação no direito à educação de nível universitário entre homens e mulheres no Peru, é resultado de padrões ideológico-culturais prevalentes na sociedade androcêntrica, válidos até o presente. A educação em geral e, sobretudo, a educação da mulher esteve sempre vinculada à sua situação e posição na sociedade, portanto é necessário reconhecer as condições de dominação e da cultura androcêntrica que a ela se impõem para compreender a sua situação social (CASTILLA, 1991).

"O Peru aparece ainda dentro do marco continental, como um baluarte patriarcal e tradicionalista no tratamento que dá à mulher em todos e em cada um dos padrões justapostos que convivem no desigual desenvolvimento da sua geografia e herança histórica" (Burga & Cathelat apud BUSTAMENTE, 1984).

MELO (1986) e PIRES (1989) a esse respeito citam que a dominação médico-enfermeira não é só o resultado da dominação homem-mulher que historicamente ocorreu nas sociedades, senão que é o resultado das relações de poder que se estabelecem pela propriedade exclusiva dos médicos dos conhecimentos valorizados como científicos, o que lhe dá o poder e o controle da instituição hospitalar. O preparo acadêmico da enfermeira orientada pelo modelo da Escola Nightingale criou ideologias que propiciaram e determinaram que a enfermeira fosse uma profissional acrítica, obediente e disciplinada, pouco valendo para transformar a situação de dominação de gênero vigente.

Criando condições objetivas, necessárias e exigidas pelo modelo social e econômico, tal formação baseada na visão idealista da profissão com base na vocação para o trabalho que requeria auto-sacrifício, dedicação, amor ao próximo etc, contribuiu para a manutenção da posição de submissão e subordinação da enfermeira. LOYOLA (1987); TEIXEIRA et al. (1988); PEREIRA (1991) e LERCH (1993) comentam que o requerido é que a enfermeira, na sua prática social, adote uma posição definida de submissão em relação aos grupos masculinos com os quais interatua e se relaciona. Isto é conseqüência da ênfase numa formação onde é dada importância preponderante às qualidades de obediência, abnegação, submissão para um trabalho semelhante ao de uma religiosa, condições essas concordes com a estrutura sócio-econômica, onde a enfermagem vai contribuir para diminuir as tensões sociais participando da recuperação da força de trabalho exclusivamente para a manutenção dos padrões de produtividade, sem atentar contra a lógica do sistema social.

No Peru, a gênese disso situa-se nos padrões ideológico-culturais familiares vigentes desde o colonialismo que geraram modelos socializadores diferenciados por sexo que foram replicados em todas as instâncias e colocaram a mulher em uma situação de subordinação e submissão ao homem. "A socialização diferenciada para homens e mulheres, os modelos de vida patriarcais que recebem meninos e meninas, assim como os processos educativos regulam comportamentos, (...) capacitam para o trabalho e geram a visão de que o trabalho da mulher constitui uma forma mais de cumprimento do trabalho doméstico" (CASTILLA, 1991).

Barrig, quando investiga a situação da mulher enfermeira nos anos de início do presente século, chega à conclusão de que "a mulher peruana do início do século foi vítima de uma educação deficiente e distorcida; uma escola para enfermeiras bastava para aplacar as aspirações de uma educação superior", onde eram ressaltadas e aproveitadas "as qualidades mais chamadas inatas da mulher" (Barrig apud BUSTAMANTE, 1984).

Assim, esse padrão de socialização foi o responsável pela destinação das mulheres para as profissões denominadas femininas como são a docência e a enfermagem nas quais geralmente se realizam atividades consideradas de projeção ou continuidade das atividades domésticas. "As ocupações que aglutinam a maior proporção de força de trabalho feminino são aquelas que poderiam catalogar-se como uma extensão da esfera reprodutiva doméstica no âmbito público: ensino, enfermagem" (DE LOS RIOS & GOMES, 1992).

A identificação da enfermagem como profissão feminina determina que a enfermeira seja vista como mulher antes de como profissional, com fortes repercussões para a valorização do seu trabalho. "A enfermagem historicamente vem sendo constituída de maneira quase exclusiva pelo sexo feminino e o papel que a enfermeira desempenha como mulher na esfera social é, em grande parte, responsável pela eleição da sua profissão" (GELBCKE, 1991).

Assim, "o doméstico, o cuidado, pouco reconhecido e pouco valorizado na nossa sociedade, vem sendo delegado e assumido historicamente pelas mulheres como trabalho próprio de mulher, próprio do gênero feminino, com uma aparente introjeção pelas próprias mulheres desse mesmo reconhecimento e valorização. O cuidado, a essência da enfermagem, também leva consigo um (sub)reconhecimento e uma desvalorização desse saber-fazer da enfermeira" (LERCH, 1993).

Em suma, as ideologias baseadas na diferenciação sexual determinam o lugar e a ocupação tanto do homem como da mulher dentro da sociedade. Baseiam-se em características estereotipadas e diferenciadas para ambos, como de fortaleza, agressividade, decisão e independência no caso do homem (responsável pelo trabalho produtivo) - que lhe proporcionam poder, domínio e conquista no âmbito público - e de debilidade, docilidade e dependência à mulher que lhe determinam uma posição de dominada e subordinada - responsável pelo trabalho reprodutivo - isto é, da produção e manutenção da espécie humana. A identificação de enfermagem como profissão de mulheres e como vocação religiosa, associada ao saber manual primordialmente prático, tem exercido uma influência decisiva na forma como ela vem se constituindo socialmente (MEYER, 1991; PEREIRA, 1991; CANALS, 1992).

MELO (1986); ALMEIDA & ROCHA (1989) e PIRES (1989) enfatizam as raízes históricas da predominância do sexo feminino em enfermagem. Já na Idade Média o cuidado do doente era realizado pelas mulheres no lar, bem como o cuidado das crianças e das parturientes, associando essas atividades ao trabalho doméstico. Mesmo depois do surgimento dos hospitais, as mulheres continuaram desempenhando um papel significativo no cuidado dos doentes. Isto é confirmado também por MC DERMIT (1984) e CANALS (1992) quando citam que a enfermagem é uma das ocupações nas quais se observa maior segregação por sexo. A imagem da enfermeira é confundida com a da mulher em casa e na sociedade e o cuidado dos doentes é considerado como prolongamento lógico das funções maternas que define o papel feminino no contexto tradicional.

Todo o exposto anteriormente levou ao surgimento de vários problemas para as enfermeiras no Peru.

No que tange à formação, continua baseada nos princípios da Escola Nightingale, com nítida ênfase aos aspectos moral, disciplinário e religioso, que conferem ao trabalho de enfermagem uma característica de auto-sacrificio e benevolência. Ressalte-se que a formação é ainda coadjuvada pela ideologia dos grupos dominantes, aos quais interessa manter a submissão e a subordinação das enfermeiras especialmente aos médicos a quem é dado todo o poder, inclusive formal de decisão nas diferentes instâncias do sistema de saúde.

A tendência é de continuar formando teórica, prática e atitudinalmente a enfermeira para desenvolver-se circunscrita a um espaço, cumprindo ordens médicas e subordinada a uma hierarquia de poder. O processo de profissionalização da enfermagem, criado pelo capitalismo e organizado segundo seus interesses para assegurar um serviço concentrado, disciplinado e disposto nos hospitais para recuperar a saúde da força de trabalho explorada, também determina a subvalorização do trabalho da enfermeira, visto como improdutivo e, como tal, condicionado para ser dependente do saber médico. "Historicamente a enfermeira se subordina ao trabalho institucionalizado, dependente do saber médico e desenvolvendo atividades com enfoques predominantemente curativos" (PUENTE et al., 1984).

Essa situação é perceptível em todos os âmbitos onde esta profissional atua, com limitadas oportunidades de exercer cargos decisórios, com discriminação salarial e outros problemas. "A discriminação da mulher não permite que a enfermeira, por ser mulher, entre outros aspectos, tome decisões sobre sua própria profissão (...) são os outros profissionais que tomam as decisões. Não há acesso ao nível de decisão" (PUENTE et al., 1984).

Por outro lado, a pouca valorização da enfermeira emerge também no âmbito dos organismos encarregados de regulamentar e amparar o seu trabalho, pois ao não contar com uma legislação peruana específica para a enfermagem, o seu exercício profissional está legislado pelas leis gerais de todo trabalhador (D.L. 728 e D.S. 004-93-TR) e pela Lei de Profissionais da Saúde (L.S. 23536) nitidamente discriminatórias e desvalorizadoras o que condiciona inclusive a baixa remuneração tanto nas instituições públicas como nas privadas, a despeito das prolongadas jornadas de trabalho. Essa situação obriga as enfermeiras a assumir várias jornadas de trabalho, além do doméstico, para obter uma qualidade de vida mais o menos aceitável. Igualmente, essa situação também obstaculiza a atualização de conhecimentos através da participação em eventos científicos ou em cursos de pós-graduação visando a transformação da qualidade do ensino, da assistência e da investigação. "No país se conta atualmente com aproximadamente 20.000 profissionais de enfermagem dos quais menos de 1% têm mestrado, apesar de estarem vinculados à docência universitária" (UNIVERSIDAD..., 1994).

A situação específica de marginalidade da enfermeira tem sido motivo de discussões em vários eventos científicos de enfermagem a partir do VII Congresso Nacional de Enfermagem, realizado em 1984 em Lima, onde foram ressaltados como prioritários os problemas relacionados com a divisão social e sexual do trabalho da enfermeira, tais como: jornadas extensas, baixos salários, dificuldades de acesso a cargos diretivos, limitadas oportunidades para participar de programas de especialização e/ou de atualização, subemprego, desemprego e outros, derivados das suas condições específicas de inserção no processo produtivo (SEMINARIO, 1984).

É importante ressaltar que tudo isto sucede muito freqüentemente ainda hoje, apesar dos delineamentos políticos considerados na Gestão Governamental 1990-1995 do Ministério da Saúde que se referem a: "Revalorização dos recursos humanos - impulsionar o desenvolvimento integral e interdisciplinário dos recursos humanos em saúde, com a participação das instituições formadoras e das instituições prestadoras de serviços, a fim de obter um pessoal motivado, capacitado, atualizado e socialmente comprometido com sua instituição e com a saúde da população; desenvolvimento científico e produção tecnológica - promover e facilitar a investigação científica nos diversos campos da saúde e o desenvolvimento da tecnologia, tanto de processo como de produto, adequada para o cumprimento das tarefas sanitárias. Essa política será levada adiante reorientando e redimensionado os organismos públicos descentralizados do setor" (PERU, MS., 1991).

À guisa de conclusão, o que se pretendeu com esse resgate histórico da situação social da enfermeira no Peru foi compreender as condições do trabalho de enfermagem, de acordo com a situação social da mulher, em especial no modo de produção capitalista. Viu-se que, constituído por influência da Escola Nightingale, a enfermagem peruana tem se caracterizado por reproduzir as funções sociais historicamente femininas, com um saber/fazer marcadamente subordinado ao saber/fazer médico, hegemonicamente masculino enquanto ideologia. Além disso, foram constatados diversos problemas no sistema social que corroboram essa situação, como por exemplo a falta de uma legislação específica que regulamente o exercício da enfermagem.

Além disso, o trabalho da enfermeira reflete a situação da mulher trabalhadora peruana que, a despeito das grandes e profundas mudanças históricas, continua determinado por padrões ideológico-culturais androcêntricos de uma sociedade predominantemente capitalista periférica e dependente.

As possibilidades visualizadas de ultrapassagem dessas contradições situam-se nas várias esferas do social, indo desde a necessidade de políticas sociais compatíveis com a situação da mulher trabalhadora em geral e da trabalhadora de enfermagem em particular, até a implementacão das mesmas, consoante as necessidades específicas de cada região do país, bem como de cada local específico de trabalho. Conclui-se, portanto que é necessário que toda essa problemática seja compreendida tanto na sua manifestação e articulação como em sua origem, para que se possam conceber e realizar ações que visem a superação dos problemas e se consiga assim uma melhor prática social nos serviços de saúde, instrumento necessário para garantir o direito de cidadania não só para a população em geral, como para as trabalhadoras de enfermagem, em particular.

Recebido em: 14.3.1999

Aprovado em: 22.10.1999

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  • 1
    Trabalho apresentado como Comunicação Coordenada no 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem promovido pela Associação Brasileira de Enfermagem - Seção São Paulo. São Paulo, 1996;
    2
    Enfermeira. Doutor em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Nacional de Cajamarca (Peru);
    3
    Enfermeira. Professor Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2000

    Histórico

    • Aceito
      22 Out 1999
    • Recebido
      14 Mar 1999
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