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Prática profissional e ética no contexto das políticas de saúde

Professional practice and ethics in the context of healthcare policies

Práctica profesional y ética en el contexto de las políticas de salud

Resumos

Foram estudadas práticas profissionais em saúde, no contexto das poilítcas sociais em um município paulista. Objetivou-se conhecer as influências dessas políticas nas práticas profissionais e na observância de princípios éticos e de preceitos legais do Sistema Único de Saúde. Foram entrevistados profissionais de saúde, responsáveis pela gestão do sistema de saúde do município, coordenação de instituições de saúde e chefias de unidades. Os entrevistados fizeram referências à gravidade da situação atual do sistema de saúde, manifestando percepção fatalista e visão mecanicista dos fatos, influenciadas pela concepção liberal. Como conseqüência, buscam soluções alternativas individuais, nem sempre lícitas ou éticas.

ética; política de saúde; prática profissional


This work addressed the professional practice in healthcare in the context of social policies in a municipality of São Paulo State, Brazil. It aimed at determining the influences of such policies on professional practices and on the observance of ethical principles and legal precepts established by the Unified Health System. Healthcare professionals responsible for the elaboration of health policies in the municipal district and for coordination of health institutions were interviewed. A fatalistic perception of the health system and a mechanicist vision of facts influenced by the liberal conception was verified. Thus, alternatives for solution of problems are looked at individually, not always in terms of law or ethics.

ethics; health policies; professional practice


Fueron estudiadas las prácticas profesionales en salud en el contexto de las políticas sociales en un municipio paulista. El objetivo fue conocer influencias de esas políticas en las prácticas profesionales y en la observación de principios éticos y de preceptos legales de el Sistema Único de Salud. Fueron entrevistados profesionales de salud responsables por la gestión del sistema de salud del municipio, coordinadores de instituciones de salud y jefes de unidades. Los entrevistados hicieron referencia a la gravedad de la situación actual del sistema de salud, manifestando una percepción fatalista y una visión mecanicista de los hechos, influenciadas por la concepción liberal. Como consecuencia, procuran soluciones alternativas individuales, ni siempre lícitas o éticas.

ética; políticas de salud; práctica profesional


Artigo Original

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE

Heloisa Wey Berti Mendes1 1 Professor do Curso de Graduação em Enfermagem; 2 Professor do Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu ¾ UNESP.

Antonio Luiz Caldas Júnior2 1 Professor do Curso de Graduação em Enfermagem; 2 Professor do Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu ¾ UNESP.

Foram estudadas práticas profissionais em saúde, no contexto das políticas sociais em um município paulista. Objetivou-se conhecer as influências dessas políticas nas práticas profissionais e na observância de princípios éticos e de preceitos legais do Sistema Único de Saúde. Foram entrevistados profissionais de saúde, responsáveis pela gestão do sistema de saúde do município, coordenação de instituições de saúde e chefias de unidades. Os entrevistados fizeram referências à gravidade da situação atual do sistema de saúde, manifestando percepção fatalista e visão mecanicista dos fatos, influenciadas pela concepção liberal. Como conseqüência, buscam soluções alternativas individuais, nem sempre lícitas ou éticas.

UNITERMOS: ética, política de saúde, prática profissional

PROFESSIONAL PRACTICE AND ETHICS IN THE CONTEXT OF HEALTHCARE POLICIES

This work addressed the professional practice in healthcare in the context of social policies in a municipality of São Paulo State, Brazil. It aimed at determining the influences of such policies on professional practices and on the observance of ethical principles and legal precepts established by the Unified Health System. Healthcare professionals responsible for the elaboration of health policies in the municipal district and for coordination of health institutions were interviewed. A fatalistic perception of the health system and a mechanicist vision of facts influenced by the liberal conception was verified. Thus, alternatives for solution of problems are looked at individually, not always in terms of law or ethics.

KEY WORDS: ethics, health policies, professional practice

PRÁCTICA PROFESIONAL Y ÉTICA EN EL CONTEXTO DE LAS POLÍTICAS DE SALUD

Fueron estudiadas las prácticas profesionales en salud en el contexto de las políticas sociales en un municipio paulista. El objetivo fue conocer influencias de esas políticas en las prácticas profesionales y en la observación de principios éticos y de preceptos legales de el Sistema Único de Salud. Fueron entrevistados profesionales de salud responsables por la gestión del sistema de salud del municipio, coordinadores de instituciones de salud y jefes de unidades. Los entrevistados hicieron referencia a la gravedad de la situación actual del sistema de salud, manifestando una percepción fatalista y una visión mecanicista de los hechos, influenciadas por la concepción liberal. Como consecuencia, procuran soluciones alternativas individuales, ni siempre lícitas o éticas.

TÉRMINOS CLAVES: ética, políticas de salud, práctica profesional

INTRODUÇÃO

São enfocados, neste estudo, o "Estado de Bem Estar Social" e o "Estado Liberal", suas relações com as políticas sociais e suas repercussões na assistência e práticas profissionais de saúde.

O Estado liberal tem suas origens no século XVIII, tendo surgido de um movimento contra o Estado absolutista e sua interferência sobre mercados livres. Alguns seguidores de Adam Smith propunham o laissez faire, laissez passer* * Laissez faire, laissez passer ¾ O Estado deveria ser apenas um guardião, concedendo total liberdade ao livre jogo do mercado (1) , rejeitando a proteção social e a intervenção do Estado nas atividades econômicas.

Essa orientação política e econômica é dominante nos séculos XVIII e XIX. Nesse período, acontecem importantes avanços da industrialização e da tecnologia, agudizam-se as lutas pelo domínio dos mercados mundiais, intensificando-se as contradições entre as grandes potências.

Opondo-se às injustiças oriundas da exploração da sociedade de classes, fortalecem-se as teorias socialistas e os sindicatos de trabalhadores passam a reivindicar leis protetoras de direitos sociais, direitos operários e modificações nas relações de trabalho. O resgate da economia vai se dar, não pela ação dos mercados, mas pela intervenção do Estado, inaugurando nova fase do capitalismo(1).

Desenvolve-se, assim, o chamado Welfare State** * Laissez faire, laissez passer ¾ O Estado deveria ser apenas um guardião, concedendo total liberdade ao livre jogo do mercado (1) . Dentre os economistas que fundamentam as políticas de bem-estar, destaca-se a grande contribuição de John Maynard Keynes. Suas idéias apontaram a saída para a depressão econômica nos países capitalistas(2).

Nos anos 70, o keynesianismo entrou em crise acusado de promover inflação. Instituiram-se medidas para impor limites ao papel do Estado sobre a economia como as privatizações, justificadas pela necessidade de redução do seu tamanho e transferência da responsabilidade pública para o mercado de seguros. Esse liberalismo, que surgiu como movimento organizado de reação nos anos 30, objetivando a manutenção de um capitalismo livre de regras, ressurgiu nos anos 70, como neoliberalismo(3-5).

Na área da saúde, essa ordem econômica neoliberal privilegiava modelos de assistência à saúde desenvolvidos pela iniciativa privada, prevalência dos interesses do complexo médico-industrial e médico-hospitalar, financiamentos e controles centralizados. As implicações políticas dessa visão, dentre outras, são as de que, necessariamente, o direito aos serviços de saúde e bem-estar social não existem e, portanto, não é função do Estado oferecê-los, pois pertencem ao âmbito da caridade e não da justiça.

Assim é que a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) vem sendo dificultada pelas restrições de financiamento do Sistema e pelo privilégio concedido aos modelos de saúde desenvolvidos pela iniciativa privada.

A aplicação do conceito de justiça em saúde impõe a garantia da justa distribuição eqüitativa e universal dos benefícios produzidos em saúde, não podendo esse princípio ser tributário de uma ética utilitarista que deva se submeter às leis de mercado.

Em síntese, as concepções de Estado determinam políticas sociais as quais têm implicações no comportamento das instituições e das práticas profissionais.

Considerando-se essa dimensão ética das políticas sociais, cabe a indagação sobre as repercussões que as políticas de Bem-Estar Social e as políticas liberais têm tido nas práticas dos profissionais de saúde, especialmente sobre seus deveres e responsabilidades no exercício das atividades assistenciais. Para responder a esta questão, foram estabelecidos os OBJETIVOS do presente trabalho:

- conhecer e analisar as características das práticas profissionais de saúde, em um município paulista e suas relações com as políticas de saúde, adotadas no Brasil, em anos recentes;

- conhecer e analisar a influência destas políticas e práticas no comportamento de profissionais, em especial quanto: à observância dos princípios éticos e dos preceitos legais do Sistema Único de Saúde; às relações dos profissionais com o sistema e os serviços de saúde; às relações entre profissionais e pacientes e as relações entre profissionais.

O CENÁRIO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE

O sistema de saúde no Brasil sempre foi um sistema limitado quanto ao acesso universal e igualitário. A partir de 1985, a exemplo do que ocorreu na maior parte do mundo capitalista, verifica-se o embate entre as concepções de Estado de Bem-Estar Social e de Estado liberal.

As políticas de Bem-Estar Social promoveram importantes avanços na elaboração da proposta de Reforma Sanitária, fundamentada no princípio da saúde como direito de todos e dever do Estado; a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, onde os princípios e diretrizes da Reforma Sanitária foram sistematizados e a promulgação da Constituição de 1988, quando passou a vigorar o SUS, o qual estabelecia como diretriz de organização o acesso universal, a eqüidade, o controle social, a gestão única, em cada nível de governo, e a responsabilidade do Estado pela saúde do cidadão.

Ainda no final dos anos 80, evidenciaram-se as iniciativas de reforma liberal do Estado brasileiro. Tais procedimentos tomaram corpo e se transformaram em meta dos governos subseqüentes, com especial intensidade na gestão de Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1994, inviabilizando o SUS pelas restrições ao seu financiamento.

MÉTODO

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina, de Botucatu-UNESP.

a) Cenário do estudo ¾ corresponde a um município, localizado na região centro-sul do estado de São Paulo, com população de cento de dez mil habitantes. Integra o Sistema Único de Saúde (SUS) na forma de "gestão plena da atenção básica", conforme critérios estabelecidos pelo SUS, na Norma Operacional Básica/96 (NOB-96). Conta com dez unidades básicas de saúde, sendo oito na região urbana, duas na rural e ainda um Ambulatório Regional de Especialidades ligado à Direção Regional de Saúde da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo que atende especialidades médicas.

No município, há dois hospitais privados, sendo um deles conveniado com o SUS, um hospital público psiquiátrico e um hospital público universitário.

b) Seleção dos sujeitos da pesquisa - os sujeitos escolhidos são os que detêm os seguintes atributos: responsabilidade pela elaboração da política de saúde no município; coordenação de instituições de saúde; chefia de unidades ambulatoriais e unidades especializadas submetidas a dilemas éticos mais intensos, como UTI, Pronto Socorro e Hemodiálise.

c) Entrevistas semi estruturadas - versando sobre características da instituição, opinião do entrevistado sobre estratégias adotadas pela instituição onde trabalha para efetivação do acesso universal, eqüidade e integralidade do atendimento, percepção do entrevistado sobre a atual política de saúde e sua opinião sobre a relação entre o setor público e o privado na saúde. Foram entrevistados 37 profissionais de saúde, segundo os critérios estabelecidos, com uso de gravador.

d) Operacionalização da análise das entrevistas - foi feita uma abordagem descritiva do material empírico, tendo sido realizadas leituras das entrevistas e destacados os trechos que faziam referência aos âmbitos temáticos, a despeito das entrevistas terem sido feitas por categoria profissional e tipo de serviço. De posse destas seleções, realizou-se um estudo qualitativo no sentido de construir uma análise dialética deste material, confrontando os diferentes âmbitos e as informações existentes sobre o cenário do sistema de saúde local e geral.

d.1. Ordenação dos dados - transcrição de gravações.

d.2. Classificação dos dados - através de leitura das entrevistas foram identificados quatro âmbitos temáticos e respectivos temas, a saber:

- relações entre usuários, serviços e sistema de saúde;

- relações entre profissionais de saúde e serviços de saúde;

- relações entre profissionais de saúde e usuários;

- relações entre profissionais de saúde e o sistema de saúde.

d.3. Discussão de cada tema - com apresentação de falas de entrevistados referentes ao assunto, procurando preservar a confidencialidade.

e) Análise final - estabelecimento de articulações entre os dados e os referenciais teóricos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A seguir serão apresentados os âmbitos temáticos com uma breve análise, acompanhada de pequenos recortes das entrevistas.

Relações entre usuários, serviços e sistema de saúde

Das relações entre usuários e serviços de saúde, destacam-se, alguns temas que dizem respeito aos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde e dos pressupostos éticos que devem presidir as práticas profissionais em saúde, quais sejam: acessibilidade, eqüidade, integralidade, beneficência e não maleficência, justiça e financiamento do sistema.

Os entrevistados apontam desigualdades de acesso aos serviços da rede básica de saúde por estarem mal estruturados assim como dificuldades de acesso aos serviços de atenção secundária e terciária, especialmente em algumas áreas, explicadas por uma sobrecarga, decorrente das deficiências da rede básica. Acho que o Pronto Socorro, na verdade, fica no meio de dois problemas sérios: Um problema é chamado de pré-porta, é o investimento de saúde em unidades básicas que é muito ruim (...). E o outro problema do PS é o pós-porta. (Médico-chefe de Hospital público).

Também é comentada a fragilidade do sistema de saúde que dá margem à expectativa de agravamento das condições de acessibilidade. No momento que um hospital aqui deixa de atender o SUS e tem todo o direito de deixar, (...) eu tenho que socorrer o outro hospital que passa a ser o único que vai atender o Sistema Único de Saúde. (Com a crise dos hospitais universitários) se o hospital reduzir um pouco o número de atendimento, aí, todo o sistema entra em terremoto e turbulência. (Gestor).

As dificuldades de acesso aos serviços assistenciais têm causado o agravamento de doenças pela impossibilidade de se proceder mais precocemente o diagnóstico e tratamento.

Verifica-se que o número de internações hospitalares vem diminuindo nos últimos anos. O hospital universitário vem apresentando elevadas taxas de ocupação de leitos devido a uma demanda de doentes cada vez mais graves, ficando impossibilitadas as internações por causas necessárias, porém não urgentes. Em contradição, é apontada a existência de leitos ociosos do SUS no hospital privado conveniado. Logo no começo, quando eu entrei aqui, todas as enfermarias do SUS eram cheias, e agora sempre têm vaga. (Gerente de Hospital privado).

A situação exige integração dos serviços e dos profissionais para estabelecimento de uma política de assistência à saúde no município que priorize o acesso da população aos serviços de saúde como direito de cidadania, observando-se esse preceito legal do SUS.

Entendendo eqüidade como o reconhecimento das diferenças que geram necessidades provocadas pela divisão social e o desejo de reduzí-las, observa-se, ao contrário, que os entrevistados apontam iniqüidades praticadas por profissionais de saúde, quando estes concedem privilégios aos indivíduos melhor posicionados socialmente ou que têm relações de parentesco e amizades quanto ao acesso a serviços diagnósticos, internações ou tempo de espera para atendimento. O que difere em relação à desigualdade de classe social é a rapidez no atendimento. O paciente que não tem condições econômicas, vai ser atendido da mesma maneira, só que com uma demora maior. (Enfermeiro-chefe de Hospital público).

Alguns entrevistados entendem que as diferenças se referem apenas ao tempo de espera mas que o tratamento é igualitário e, deste modo, consideram que o referencial de eqüidade é observado quanto à qualidade da assistência. Essa concepção de qualidade está relacionada apenas aos aspectos técnicos dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, desconsiderando-se as relações entre tempo de espera e qualidade da atenção e entre procedimentos técnicos e aspectos humanitários do atendimento.

A integralidade da assistência à saúde constitui um princípio do SUS, com a explicitação de que deve ser "entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso, em todos os níveis de complexidade do sistema"(6). Pelos depoimentos, verifica-se que os serviços de saúde do município estão atendendo uma demanda espontânea, de modo desarticulado e descontínuo, precariamente hierarquizado, recaindo sobre os serviços de maior complexidade a responsabilidade compensatória das deficiências de recursos dos demais. As cidades aí da região não têm condições econômicas de bancar um serviço de saúde adequado, mesmo no sentido primário e secundário e nós somos obrigados aqui a atender desde o primário até o terciário. (Gerente de Hospital público).

A visão global e dialética dos problemas de saúde da população da região encontra-se prejudicada. Este é um dos sintomas da crise da saúde pública. Trata-se de uma crise com ampla dimensão ética porque diz respeito ao bem-estar da população.

Embora o princípio da beneficência e não maleficência constitua a base moral dos direitos dos cidadãos(7), neste estudo, foi possível verificar que o mesmo pode estar comprometido por uma política social restritiva que faz importantes limitações financeiras para a assistência à saúde; pela necessidade de seleção de pacientes aos benefícios; por critérios inadequados de seleção de pacientes (cabendo aqui indagar se haveria possibilidade de concepção e estabelecimento de critérios justos de seleção de pessoas para esse tipo de beneficio) e pela precariedade das adaptações e improvisações decorrentes da escassez de recursos. Selecionam os que têm melhor prognóstico.(...) Não sei, se fosse o meu filho, eu não ia gostar. Não sei até que ponto essa criança que veio com uma parada, tem melhor prognóstico que a criança com uma patologia neurológica. (Enfermeiro-chefe).

Igualmente, os entrevistados apontam injustiças relacionadas à distribuição eqüitativa dos bens produzidos em saúde, tais como órteses e próteses, respiradores e até mesmo leito decente para morrer. Então, todos os contratos, inclusive de seguradoras de empresas concorrentes e tal, eles excluem órteses e próteses. (Representante de Entidade). Realmente, na sala de emergência tem paciente que fica em estado grave, no ventilador, por uma semana, internação na maca, esperando uma possibilidade de ir para uma cama e, às vezes, isso não acontece. Ou ele é internado na enfermaria (do Pronto Socorro) ou ele vai a óbito e fica sem a possibilidade de ser internado num leito decente. (Enfermeiro-chefe de Hospital público).

Observam-se profissionais de saúde que fazem concessões de privilégios, mediante certos tipos de recompensas, desrespeitando o direito das pessoas ao atendimento gratuito no serviço público. A outra questão hoje, que a gente tem, e eu acho que compromete muito, é a questão da cobrança por fora, a cobrança dupla, que a gente chama. Isso na área hospitalar do convênio com o SUS. Você sabe que há o atendimento e o médico cobra por fora. (Gestor).

Entretanto, não são mencionadas as atitudes ou medidas instituídas para evitar esses desvios. Os entrevistados denotam sentirem-se excluídos da condição de sujeitos do processo de transformação da realidade que vivenciam, mesmo encontrando-se nas posições de gestores, dirigentes de instituições e chefes de serviços.

As restrições ao financiamento do SUS têm repercutido de modo significativo sobre a assistência de saúde. No município, onde se desenvolveu este estudo, verifica-se que estas restrições promoveram: rompimento do convênio entre hospital privado e SUS; redução de internações devidas aos cortes orçamentários em hospital público; encaminhamento de doentes pelo hospital conveniado, motivado pelo pagamento insuficiente dos procedimentos, sobrecarregando o hospital universitário.

Os profissionais falam em falência do sistema, mostrando a percepção fatalista de que não há solução para o problema do financiamento. (...) a gente vive sempre no vermelho (...) Por mais que os administradores façam cálculos, etc, não adianta, nós estamos entrando num processo de inadimplência coletiva. (Gestor).

Deste modo, aderem às pressões das políticas liberais que insistem na redução de financiamentos para a saúde e na adoção de soluções alternativas como o atendimento de doentes particulares ou portadores de planos de assistência privada pelos serviços públicos, sob a justificativa de um suposto ressarcimento de gastos com o atendimento dos usuários do SUS.

Aderem, também, à ética utilitarista de adoção de um pacote de cuidados mínimos de saúde apenas para os indivíduos mais pobres, conforme recomenda o Banco Mundial(8).

Tais reduções interferem na capacidade de resolução dos serviços, em todos os níveis de assistência, conforme preconiza a Lei Orgânica da Saúde, artigo 7º - XII(6). Os profissionais entrevistados referem-se aos serviços que dirigem como sendo de boa qualidade, porém, quando discutem temas como eqüidade, justiça e condições de trabalho, apontam sérias deficiências em relação à qualidade do atendimento. As causas dessas ambigüidades parecem estar localizadas em concepções meramente técnicas sobre qualidade da assistência de saúde, sem levar em conta, nessas avaliações, os preceitos de acesso universal, beneficência e atendimento integral como critérios de qualidade.

Do exposto, observa-se que as relações entre usuários e os serviços de saúde encontram-se comprometidas em decorrência da fragilidade do sistema de saúde local; de dificuldades de acesso em todos os níveis de atenção; de iniqüidades geradas pela política de desfinanciamento do setor e, também, praticadas por profissionais de saúde.

Relações entre profissionais de saúde e serviços

Os entrevistados, de modo geral, falam da precariedade das suas condições de trabalho: Então, a gente passa um stress danado. (...) já tivemos algumas situações de não ter condições absolutamente nenhuma, nem área física, nem equipamentos, nem pessoal. (...) Eu próprio já sentei ao lado de gemelares com um respirador só no meio, botei o respirador em um e fiquei ambusando o outro a noite inteira, sentado no meio de gêmeos, até que às 4 ou 5 horas da manhã parou um e eu botei o respirador no outro. A gente não abandona, não deixa morrer, fica junto e quase morre junto. (Médico-chefe).

As estratégias de defesa, costumeiramente observadas para o enfrentamento desse tipo de situação estressante, são o absenteísmo, as brincadeiras e zombarias nas situações estressantes e as demonstrações de insensibilidade perante o sofrimento humano.

Os entrevistados mostram-se igualmente insatisfeitos quanto à remuneração de seu trabalho. Isto os têm levado a buscar soluções para melhoria de suas condições econômicas, as quais, muitas vezes, implicam em sobrecarga de trabalho, tendo sido citadas vinculação a vários empregos e aumento de jornadas de trabalho. Outros tomam decisões que significam recusa às atividades que remuneram mal, como o atendimento de doentes do SUS.

Enfim, são caminhos adotados para a resolução de problemas que pertencem ao âmbito da governabilidade de cada pessoa, não tendo sido referidas medidas de caráter coletivo que poderiam transformar essa realidade. Denota-se, assim, certa descrença em relação à capacidade coletiva de promover mudanças.

Foram ainda apontados aspectos comportamentais do relacionamento inter-pessoal que indicam relações assimétricas, caracterizadas por autoritarismo/submissão. São também referidos conflitos gerados pela disputa por cargos e por doentes lucrativos. ... A gente sabe de (unidade do serviço público) onde existem pessoas cobrando por fora e esses colegas complicam quem está trabalhando fora. (...) ele não cobra medicamento, não cobra exames, não cobra hotelaria, não cobra auxiliar, aí é uma concorrência desleal, tá? (Médico-chefe).

Cabe mencionar ainda que os programas de educação continuada não têm merecido a prioridade necessária, na área deste estudo. Experiências que favorecem a capacitação de trabalhadores da saúde, apontadas pelos entrevistados, são as de integração ensino-serviços, como as desenvolvidas pelo Projeto UNI*** * Laissez faire, laissez passer ¾ O Estado deveria ser apenas um guardião, concedendo total liberdade ao livre jogo do mercado (1) (9).

Em síntese, observou-se que as relações entre profissionais e serviços estão prejudicadas por condições de trabalho nem sempre adequadas, problemas de capacitação profissional, baixa remuneração, e de relacionamento conflituoso, que podem decorrer de limitações impostas à sua prática pelas políticas de contenção de custos, pelo modo como os serviços estão estruturados e concepções dos profissionais acerca do seu papel e dos demais, com repercussões na acessibilidade aos serviços e no atendimento igualitário e integral dos usuários.

Relações entre profissionais de saúde e usuários

O atendimento à saúde reflete as condições econômicas, sociais e políticas do país, reproduzindo desigualdades, individualismos e autoritarismo, particularmente, no contexto da assistência hospitalar. Observa-se, pelos depoimentos, o exercício de práticas autoritárias pelos profissionais de saúde e uma alienação aos determinantes sociais das doenças que os pacientes são portadores.

É uma prática geralmente vinculada aos conceitos de saúde predominantes, incluindo-se nestes, as concepções do Estado liberal, reproduzindo suas idéias e valores.

Os entrevistados falam de situações em que o respeito à autonomia dos usuários não é observado, podendo ocorrer coações ou represálias. Eu acho que o doente está numa condição tão inferiorizada com relação à saúde que ele não tem nem como se queixar, porque se ele se queixa, ele perde a última chance que ele tinha de ser atendido. (Enfermeiro-chefe).

Pelos depoimentos, verifica-se que a atenção tem privilegiado a doença e não o doente, com fragmentação das ações. Pode-se concluir que os programas de educação sanitária são muito tímidos e focalizados no auto-cuidado de alguns grupos específicos. As informações quanto ao potencial dos serviços, horários e locais de atendimento dos usuários, quando existentes, são apresentadas de modo inadequado ou muito precário.

Relações entre profissionais e sistema de saúde

As relações entre profissionais e o sistema de saúde são marcadas profundamente por sua percepção do caráter e função do Estado e pelos debates sobre as relações estado-sociedade. Assim, as percepções que os entrevistados têm do sistema de saúde são: o Estado não garante o direito à saúde; o direito à saúde encontra-se ameaçado; o sistema público de saúde está desacreditado; os serviços públicos de saúde só devem ser oferecidos aos mais pobres. Então, na realidade, é um contrato como qualquer outro, você só compra a carne se você pagar a carne. (...) Então, na realidade, o dilema que nós temos aqui dentro é o mesmo do açougueiro que não vende carne para você, do motorista do ônibus que não leva você porque você não tem dinheiro. Então, esse é um problema que não é nosso... (Médico-chefe de Hospital privado).

A forte influência da ideologia liberal sobre os profissionais acaba por propiciar posicionamentos contrários aos princípios do SUS, sob a argumentação de que é impossível para o país financiar uma assistência de saúde igualitária e universal. Assim, vai sendo disseminada a idéia de que a solução do problema pode ser conseguida adotando-se modelo semelhante ao sistema dos Estados Unidos, em que o Estado se restrinja auxiliar os que não podem ter acesso aos serviços privados.

A maioria dos entrevistados, diante da questão do uso do serviço público de saúde pelo setor privado, apresentou posições favoráveis, com diferenças nas justificativas e no modo de operacionalização, como as que se seguem: o usuário conveniado deve ter acomodações diferenciadas; a convivência dos dois tipos de atendimento, SUS e Convênios, é difícil, por isso as alas ou os prédios devem ser separados; agilizaria o atendimento; educaria os profissionais; melhoraria o atendimento dos mais pobres; possibilitaria mais recursos; manteria os bons profissionais nas instituições públicas; grande parte da população atendida pelo SUS poderia pagar pela assistência; o atendimento de particulares e conveniados já ocorre com privilégios sem que o serviço seja ressarcido por eles; a venda de serviços públicos se apresenta como solução imediata para a crise mas pode não ser uma solução apropriada a longo prazo.

As manifestações contrárias foram as seguintes: contrário à privatização da saúde a não ser que seja o único caminho para melhorar a qualidade; o doente conveniado poderá ter que pagar um preço muito alto por certos procedimentos; não acredita na possibilidade de obtenção significativa de recursos mediante o atendimento de conveniados; trata-se de uma questão complexa que poderá implicar em maiores dificuldades de acesso para a população que não pode pagar um plano de saúde; os convênios ameaçam os princípios de universalidade e eqüidade; os convênios são alternativas para garantir o padrão de vida dos que não querem perder nada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adoção, pelo governo brasileiro, de políticas sociais mais restritivas, com redução de financiamentos para a saúde, gerou o agravamento e a piora do sistema público, tendo implicações nas práticas de saúde, especialmente em relação à observância dos preceitos legais instituídos pelo SUS e à observância de princípios éticos de justiça, beneficência e respeito ao usuário.

Os profissionais mostram-se pessimistas em relação à perspectiva de melhoria do sistema. Entendem que universalidade, igualdade, justiça, e atendimento integral são condições ideais, mas que as possibilidades para conquistá-las são muito limitadas ou inexistentes.

A maioria dos depoentes faz referência à gravidade da situação atual do sistema de saúde e revela uma percepção fatalista, mediante o uso de expressões como: "é a falência do sistema", ou "é a falência da saúde pública".

Verifica-se, ainda, que os profissionais não se vêem como sujeitos de um processo de mudanças, demonstrando sentirem-se excluídos do sistema, mesmo estando desempenhando funções de coordenação e gerência dos serviços de saúde, como se observa nas falas do tipo "esse é um problema que não é nosso", ou "é um problema que não depende de você", ou "você vê que as coisas não dependem de você e você não sabe de quem dependem as coisas".

Estas percepções refletem uma visão da realidade à qual a vontade humana tem que se submeter. Esta é uma concepção da ideologia liberal, cujo referencial filosófico é o realismo mecanicista, segundo o qual a existência de todas as coisas se dá de modo fortuito e tudo se submete, de modo mecânico, a "leis naturais". Assim, todas as coisas, os fatos, as relações sociais, a economia, etc., desenvolvem-se independentemente da vontade humana, submetidas que estão ao sentido imanente de uma história "naturalizada"(10).

Procuram-se saídas alternativas individuais para a solução de problemas que passam a se configurar, também, como pertencentes à esfera individual. Para tais saídas, muitas vezes, são tomadas determinadas vias, ou alcançados certos destinos, nem sempre lícitos ou éticos.

Em síntese, observa-se o confronto entre as duas políticas presentes no setor, dentro do espaço da ordem capitalista: - a política de bem-estar social, exige garantias de direitos sociais; - a política liberal, faz restrições e, por conseguinte, nega tais direitos promovendo ambigüidades e contradições que assumem dimensões éticas. A reflexão ética deve preceder a formulação de políticas sociais para que sejam justas e considerem todos os seres humanos merecedores de direitos, entendendo o direito a saúde como de inequívoca responsabilidade do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Singer P. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis (RJ): Vozes; 1998.

2. Keynes JM. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda: inflação e deflação. 2ª ed. São Paulo (SP): Nova Cultural; 1985.

3. Bobbio N, Matteucci N, Pasquino G. Dicionário de política. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília; 1986.

4. Esping-Andersen G. As três economias políticas do Welfare State. Lua Nova 1991 setembro; 24:85-116.

5. Silva LGH. Neoliberalismo: inimigo da cidadania. 1998 [cited 1998 mar]; Available http://www.truenetrn.com.br/jurisnet/NEOLIB.htm.

6.Ministério da Saúde (BR). Assessoria de Comunicação Social. Lei Orgânica da Saúde. 2ª ed. Brasília (DF); 1991.

7. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais de Bioética. 3ª ed. São Paulo (SP): Loyola; 1996.

8. World Bank. Design, content and financing of an essential package of health services. [Online] 1999 [cited 1999 jun]; Available http://www worldbank.org/htm//extrd/hnp/health/hit_sucs/pack/htm.

9. Fundação UNI-Botucatu. Saúde & educação 1999 março; 2 (2) (caderno2).

10. Pereira L. Ensaios de sociologia do desenvolvimento. São Paulo (SP): Pioneira; 1970.

Recebido em: 23.12.1999

Aprovado em: 2.5.2001

** A expressão "Welfare State" em inglês é costumeiramente utilizada em textos publicados em língua portuguesa, sendo também empregada a expressão "Estado de Bem Estar Social"

*** Projeto UNI - Programa da Fundação W. K. Kellogg, destinado a reestruturação da formação de profissionais de saúde, por meio da integração entre serviços e comunidade(9)

  • 1. Singer P. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis (RJ): Vozes; 1998.
  • 2. Keynes JM. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda: inflação e deflação. 2ª ed. São Paulo (SP): Nova Cultural; 1985.
  • 3. Bobbio N, Matteucci N, Pasquino G. Dicionário de política. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília; 1986.
  • 4. Esping-Andersen G. As três economias políticas do Welfare State. Lua Nova 1991 setembro; 24:85-116.
  • 6.Ministério da Saúde (BR). Assessoria de Comunicação Social. Lei Orgânica da Saúde. 2ª ed. Brasília (DF); 1991.
  • 7. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais de Bioética. 3ª ed. São Paulo (SP): Loyola; 1996.
  • 9. Fundação UNI-Botucatu. Saúde & educação 1999 março; 2 (2) (caderno2).
  • 10. Pereira L. Ensaios de sociologia do desenvolvimento. São Paulo (SP): Pioneira; 1970.
  • 1
    Professor do Curso de Graduação em Enfermagem;
    2
    Professor do Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu ¾ UNESP.
  • *
    Laissez faire, laissez passer ¾ O Estado deveria ser apenas um guardião, concedendo total liberdade ao livre jogo do mercado
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2003
    • Data do Fascículo
      Maio 2001

    Histórico

    • Aceito
      02 Maio 2001
    • Recebido
      23 Dez 1999
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