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O cuidado humano: reflexão ética acerca dos portadores do HIV/AIDS

El cuidado humano: un reflexion ético acerca de los portadores en VIH/SIDA

Human care: an ethical reflexion on HIV/AIDS patients

Resumos

Refletir sobre a importância da ética no cuidado humano e sua relação com o portador do HIV/AIDS é o objetivo deste estudo. O estudo envolve uma metodologia descritivo-reflexiva, identificando os principais conceitos sobre a ética no cuidado humano e a ética no cuidado do portador do HIV/AIDS. Estando a necessidade do cuidado em evidência nos nossos dias, pensadores atuais relacionam o cuidado como a essência humana e presente na ética. E com o surgimento da Aids, por se tratar de uma doença que até então não tem cura, que tem caráter epidêmico e mobiliza a sociedade para as preocupações com a privacidade e a confidencialidade vieram à tona, com a necessidade de reforçar os aspectos éticos, visando uma melhor qualidade de vida para os portadores da infecção. O pensamento ético segue a evolução científica e tecnológica que acontece no mundo. Diante de nossas reflexões, percebemos que a ética faz parte da nossa sociedade e que é imprescindível o cuidar humano atrelado à ética.

síndrome de imunodeficiência adquirida; HIV; enfermagem; ética


Reflejamos sobre la importancia de la ética en el cuidado humano y su relación con el portador del VIH/SIDA. Se usa una metodología descriptivo-reflexiva, identificando los conceptos principales de la ética en el cuidado humano y la ética en el cuidado al portador del VIH/SIDA. Ante la evidente necesidad de cuidado hoy día, los pensadores actuales presentan el cuidado como la esencia humana presente en la ética. Y el aparecimiento de la SIDA, una epidemia que hasta ahora no tiene cura, moviliza la sociedad para las preocupaciones con la privacidad y la confidencialidad, con la necesidad de reforzar los aspectos éticos, buscando una calidad de vida mejor para los portadores de la infección. El pensamiento ético sigue la evolución científica y tecnológica que pasa en el mundo. Ante nuestras reflexiones, notamos que la ética hace parte de nuestra sociedad y que es indispensable el cuidar humano vinculado a la ética.

síndrome de inmunodeficiencia adquirida; VIH; enfermería; ética


This descriptive-reflexive study reflects on the importance of ethics in human care and its relation with HIV/AIDS patients, identifying the main concepts of ethics in human care and ethics in care for HIV/AIDS patients. Considering the clear need for care nowadays, current ideas present care as the human essence which is present in ethics. The emergence of Aids, an epidemic that cannot be cured yet, mobilizes society to concerns about privacy and confidentiality, including the need to reinforce ethical aspects, with a view to a better life quality for its patients. Ethical thinking is in line with scientific and technological evolution all over the world. In view of our reflections, we understood that ethics is part of our society and that human care needs to be linked up with ethics.

acquired immunodeficiency syndrome; HIV; nursing; ethics


ARTIGO DE REVISÃO

O cuidado humano: reflexão ética acerca dos portadores do HIV/AIDS

Human care: an ethical reflexion on HIV/AIDS patients

El cuidado humano: un reflexion ético acerca de los portadores en VIH/SIDA

Patrícia Neyva da Costa PinheiroI; Neiva Francenely Cunha VieiraII; Maria Lúcia Duarte PereiraIII; Maria Grasiela Teixeira BarrosoIV

IEnfermeira, Doutoranda em Enfermagem, Integrante do Projeto de Pesquisa: Educação em Saúde no Contexto da Promoção Humana - uma investigação na Enfermagem, e-mail: neyva.pinheiro@ig.com.br

IIEnfermeira, Mestre em Educação, PhD pela Universidade de Briston, Integrante do Projeto de Pesquisa Educação em Saúde no Contexto da Promoção Humana - uma investigação em enfermagem

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Docente da Universidade Estadual do Ceará

IVEnfermeira, Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Ceará, Coordenador do Projeto de Pesquisa: Educação em Saúde no Contexto da Promoção Humana - uma investigação na Enfermagem. Apoio CNPq - processo 551326/2002/62

RESUMO

Refletir sobre a importância da ética no cuidado humano e sua relação com o portador do HIV/AIDS é o objetivo deste estudo. O estudo envolve uma metodologia descritivo-reflexiva, identificando os principais conceitos sobre a ética no cuidado humano e a ética no cuidado do portador do HIV/AIDS. Estando a necessidade do cuidado em evidência nos nossos dias, pensadores atuais relacionam o cuidado como a essência humana e presente na ética. E com o surgimento da Aids, por se tratar de uma doença que até então não tem cura, que tem caráter epidêmico e mobiliza a sociedade para as preocupações com a privacidade e a confidencialidade vieram à tona, com a necessidade de reforçar os aspectos éticos, visando uma melhor qualidade de vida para os portadores da infecção. O pensamento ético segue a evolução científica e tecnológica que acontece no mundo. Diante de nossas reflexões, percebemos que a ética faz parte da nossa sociedade e que é imprescindível o cuidar humano atrelado à ética.

Descritores: síndrome de imunodeficiência adquirida; HIV; enfermagem; ética

ABSTRACT

This descriptive-reflexive study reflects on the importance of ethics in human care and its relation with HIV/AIDS patients, identifying the main concepts of ethics in human care and ethics in care for HIV/AIDS patients. Considering the clear need for care nowadays, current ideas present care as the human essence which is present in ethics. The emergence of Aids, an epidemic that cannot be cured yet, mobilizes society to concerns about privacy and confidentiality, including the need to reinforce ethical aspects, with a view to a better life quality for its patients. Ethical thinking is in line with scientific and technological evolution all over the world. In view of our reflections, we understood that ethics is part of our society and that human care needs to be linked up with ethics.

Descriptors: acquired immunodeficiency syndrome; HIV; nursing; ethics

RESUMEN

Reflejamos sobre la importancia de la ética en el cuidado humano y su relación con el portador del VIH/SIDA. Se usa una metodología descriptivo-reflexiva, identificando los conceptos principales de la ética en el cuidado humano y la ética en el cuidado al portador del VIH/SIDA. Ante la evidente necesidad de cuidado hoy día, los pensadores actuales presentan el cuidado como la esencia humana presente en la ética. Y el aparecimiento de la SIDA, una epidemia que hasta ahora no tiene cura, moviliza la sociedad para las preocupaciones con la privacidad y la confidencialidad, con la necesidad de reforzar los aspectos éticos, buscando una calidad de vida mejor para los portadores de la infección. El pensamiento ético sigue la evolución científica y tecnológica que pasa en el mundo. Ante nuestras reflexiones, notamos que la ética hace parte de nuestra sociedad y que es indispensable el cuidar humano vinculado a la ética.

Descriptores: síndrome de inmunodeficiencia adquirida; VIH; enfermería; ética

INTRODUÇÃO

O cuidado como prática fundamental na área da saúde é uma palavra que vem assumindo significados diversos, com o passar do tempo. No latim, significa cura e essa, de acordo como era escrita na antigüidade, tinha sentido de amor e amizade. Outros relacionam a palavra cuidado com cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e de preocupação. Seja qual for o significado, o cuidado faz parte do ser humano e tudo que tem vida clama por cuidado. Na realidade, o cuidado é o sustentáculo da criatividade, da liberdade e da inteligência humana, tão importante para a humanidade, que é preciso que cada um de nós venha a desenvolver a afetividade para com os outros, que possa perceber suas necessidades, para que a construção de um mundo melhor não seja apenas utopia(1).

É fundamental, principalmente para os trabalhadores da área da saúde, perceber o cuidado na sua dimensão mais ampla, que tem como princípio uma forma de viver plenamente e não apenas como uma execução de tarefas para promover o conforto de alguém(2).

O cuidado humano deve ser resgatado, pois esse é considerado como ética mínima e universal, surgindo da consciência coletiva, em momentos críticos. Ao comentar a importância do cuidado, é mister discorrer sobre a experiência de Florence Nithingale, pioneira na enfermagem científica no mundo que, com um grupo de colegas, "parte de Londres para um hospital militar na Turquia, onde se travava a guerra da Criméia. Imbuída da idéia do cuidado, consegue reduzir, em dois meses, a mortalidade de 42 para 2%"(3).

Ao se cuidar do outro, passa-se a respeitá-lo e a vê-lo na sua individualidade, sendo imprescindível o conhecimento acerca da ética e da moral, princípios que propiciam uma nova razão, instrumental, emocional e espiritual.

E, por falar em ética, o seu grande mistério consiste na predominância de sentimentos e atitudes voltadas para o amor verdadeiro ao próximo; desde que a compaixão viva dentro de cada um, o bem e a dor do outro passam a ser encontrados no coração de quem acredita nesses princípios(4).

Tendo em vista que o cuidar de pessoas com a síndrome da imunodeficiência adquirida passa a fazer parte do dia-a-dia de muitos profissionais da área da saúde, é preciso resgatar a verdadeira essência desse cuidado, para possibilitar maior amorosidade entre os seres humanos e, com isso, desvelar um mundo com mais valor, valor esse presente nos preceitos éticos necessários para se viver em comunidade e, nessa vida em comunidade, é preciso que exista a solidariedade, qualidade essencial para se enxergar as necessidades do outro, principalmente, se esse é portador de uma doença estigmatizada como a AIDS.

A AIDS trouxe à tona questões éticas imprescindíveis para preservar o ser humano. Vale ressaltar que, inicialmente, adotaram-se Propostas e Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Biomédica Envolvendo Seres Humanos (CIOM/MS 1982 e 1993), incorporando a Declaração de Helsinque, que foi adotada, em muitos países, inclusive no Brasil, como referencial ético. A partir dessa iniciativa, foram se institucionalizando normas éticas de pesquisa com seres humanos, contidas na Resolução 196-96(5).

Diante desse panorama atual, em que se deparar com a síndrome da imunodeficiência adquirida favorecendo o adoecer e o morrer de muitos portadores do vírus que, em alguns momentos de suas trajetórias, necessitam dos cuidados dos profissionais da área da saúde, que vivenciam, junto a esses pacientes, situações delicadas que trazem à tona as questões éticas, essa tríade presente nos nossos dias faz com que se reflita criticamente sobre como cuidar eticamente desses pacientes.

Com o intuito de contribuir para o despertar do pensamento crítico envolvendo a temática em questão e conscientes da importância dessas reflexões para o cuidado ético do paciente soropositivo, objetiva-se, neste trabalho, refletir sobre a importância da ética no cuidado humano e sua relação com o portador do HIV/AIDS.

Para desenvolver o presente estudo optou-se por metodologia descritivo-reflexiva embasada na literatura pertinente sobre o assunto, trazendo as idéias de autores contemporâneos como Leonardo Boff, Vera Regina Waldow, Paulo Freire e muitos outros que se preocupam com uma vida mais digna para os seres humanos e com uma sociedade mais justa para todos. A partir dos achados serão apresentadas as discussões em duas temáticas: a ética no cuidado humano e a ética no cuidado ao portador do HIV.

A ÉTICA NO CUIDADO HUMANO

A palavra ética, de origem grega, significa caráter, hábito ou moradia. Essa palavra não tem a mesma conotação em todos os povos e populações, portanto, requer maior compreensão por parte de quem a emprega. Surgindo na Grécia, no seio da polis, foi oriunda de inquietações sobre a vida com dignidade, apesar das inúmeras dificuldades.

O desafio atual é repensar o modo de ser egoísta que a sociedade atual cultiva no íntimo de cada cidadão e trabalhar formas que levem os homens a atuarem na dimensão da coletividade, preservando valores universais humanos e as microrrealidades históricas, fazendo com que seja preservada a biodiversidade, com que se reconheçam as especificidades locais e respeitadas as diferenças de gênero, raça, religião e outras mais(6).

O pensar no outro e a solidariedade vêm à tona com a quebra da ética tradicional, oriunda de uma sociedade fortemente individualizada e centrada nas comunidades religiosa, familiar, cívica e nacional(7). Essa mudança de paradigma no cenário da ética leva a repensar as ações éticas no cotidiano.

Ao se reportar à vida diária, depara-se com várias atitudes "sem ética", seja na formação de jovens e adultos, confrontando com um sucateamento nas escolas públicas e mercantilização do ensino particular; seja na prática profissional, por meio de pessoas que usam suas profissões para outros fins e não aquilo que realmente se propõem; seja, até mesmo, com os familiares, quando não são assistidos como deveriam ser. Os conflitos entre o que é certo e errado e a sobrevivência num mundo, onde se tem o slogan "o mundo é dos mais espertos", fazem parte daqueles que acreditam na verdade e na vida com dignidade.

O cidadão, no sentido preciso da palavra, deve ter dignidade, e essa implica em ter as mínimas condições para sobreviver. Há mendigos e pessoas mutiladas nas ruas a pedir ajuda para "ter o que comer"; em contrapartida, mansões são construídas e carros importados são comprados; essa desigualdade social, exacerbada, é um mal para a sociedade e a prova de que se está sendo negligente no cuidado com a população. Quando se reflete sobre tal fato, há indignação, mas também acostuma-se e o cenário continua, permanecendo a injustiça social e a falta de compromisso com o próximo.

O século XX, marcado por profundas desigualdades sociais, encontrando-se disparidade social gritante, em que os menos favorecidos vivem sem as mínimas condições para uma vida com dignidade e não só os seres humanos sofrem com essas injustiças, mas também a natureza que é destruída e degradada sem o menor respeito, havendo desgaste ecológico. Toda essa falta de respeito com a vida é oriunda da falta de ética da civilização, que visa a ambição, a competição selvagem, a exploração social da natureza e dos seres humanos, que continuam sendo estimulados(8).

Portanto, percebe-se que, com a evolução, o homem tem sido beneficiado com o desenvolvimento do mundo moderno, em contrapartida, a miséria, a criminalidade e a destruição ambiental vem tomando proporções crescentes no decorrer dos anos. Há o paradoxo entre as forças do mundo moderno voltado para valores como a hostilidade, o ódio, a violência, a desonestidade, o medo e a necessidade de uma vida com mais solidariedade, afetividade, amor, paz, respeito e esperança(2).

Infelizmente o ser humano durante a sua existência apresenta ambigüidades em relação às suas práticas voltadas tanto para o cuidado como para a falta de cuidado representado nas guerras e nas lutas pelo poder, levando o ser humano a esquecer dos seus semelhantes em prol dos seus próprios interesses(2).

Não existe o cuidado com a população e com isso há o retorno, os ricos temem assaltos, seqüestros e outros agravos; e os pobres temem a falta de teto, de comida e de afeto. Não há cuidado conosco mesmos, vive-se com a síndrome de stress e não há tempo para a vida. Não se cuida do planeta e, dentre os gritos de alerta, a natureza apresenta a sua camada de ozônio, que diminui, e com isso aumenta o câncer de pele, a água que, cada vez mais, fica escassa e insalubre, o mar que, ao ser contaminado, se torna impróprio para o banho, a terra que, de tanto ser explorada, fica improdutiva. Toda a falta de cuidado gera desequilíbrio, tanto no mundo quanto nas pessoas que, pela falta de amor, usam seus corpos para obter prazer momentâneo, que pode resultar numa doença sexualmente transmissível.

Tudo que tem vida merece respeito, por isso se deve cuidar, cuidar de vidas, do País e do planeta. Deve-se acordar para a importância do cuidado humano, antes que as conseqüências sejam mais danosas ainda.

O cuidado tem como base o respeito e o amor ao próximo, e tendo a consciência de que as ações são norteadas pelos conhecimentos adquiridos, Paulo Freire relata que a ética não é algo abstrato, mas concreto e está presente na capacidade de se indignar com as injustiças que acontecem no mundo e ao nosso redor(9).

O cuidar eticamente do outro é uma atitude que leva à reflexão, principalmente quando se reporta ao dia-a-dia do cuidar de pacientes com HIV/AIDS, pessoas estigmatizadas e discriminadas. Mesmo conhecendo as formas de contágio, as pessoas temem o simples fato de tocar o outro, talvez por causa da sociedade conservadora e autoritária, que deixa à margem determinados grupos, introjeta-se tais valores, sendo difícil mudá-los, apesar dos conhecimentos adquiridos(10).

É preciso, repensar a forma de educar, pois, para que o cuidado humano seja implementado, principalmente para aqueles que estão vivenciando um processo de morbidade, é necessário a conscientização como valor e imperativo moral, sensibilização e conseqüente exercício. O cuidado humano é um processo de empoderamento, de crescimento e de realização da humanidade(2).

Ao cuidar de um paciente é preciso que o profissional o veja como um ser humano, com suas necessidades básicas afetadas, encontrando-se fragilizado, portanto, merecendo mais respeito e atenção(11). É importante que os profissionais exercitem o autocuidado desses pacientes com o objetivo de incentivarem sua

autonomia e sua auto-estima.

Muitos pacientes passam por situações de despersonalização, que os levam a se sentirem desvalorizados, fato que infringe os preceitos éticos que norteiam a prática do cuidado. Tendo em vista o cuidar, como um valor profissional e pessoal, é extremamente necessário que existam padrões normativos para nortear as ações e as atitudes em relação àquelas a quem se cuida(2).

A atitude ética do profissional para com o paciente está presente cada vez que ele reconhece seus clientes como pessoas iguais a ele, que precisam ser ouvidas e compreendidas para que exista a interação e, por conseguinte, o cuidado efetivo(11).

As enfermidades crônicas precisam de atenção especial, pois o cuidador deve estar preparado para acompanhar seu cliente nas diferentes fases de manifestação da doença(12).

Alguns pesquisadores, ao desenvolverem estudos acerca do cuidado de pacientes com HIV/AIDS, dissertam sobre a complexidade de se cuidar dessas pessoas, tendo em vista o temor do contágio e o foco centrado na sua própria preservação, chegando, muitas vezes à falta de cuidado(10).

Outros estudiosos levam a pensar acerca da essência humana e suas atitudes, muitas vezes inconseqüentes como, por exemplo, a infidelidade masculina atrelada à falta de cuidado com a sua saúde e provavelmente com a de sua esposa e filhos, levando a possível contaminação pelo HIV(13).

Tendo em vista situações do cotidiano, percebe-se que a falta de cuidado e o cuidado incorreto (se intencionais), são agravos à pessoa humana e estão diretamente relacionadas à falta de ética, já que, quando se refere ao sentido dessa palavra, pode-se fazer uma analogia com o cuidado de si e do outro. O cuidado com tudo que tem vida traz o dever de refletir sobre todos os atos; portanto, deve-se cuidar dos deveres e das conseqüências dos atos. Os cuidados são definidos por deveres e pela avaliação das conseqüências(14).

Estando a necessidade do cuidado em evidência nos dias de hoje, pensadores atuais relacionam o cuidado como a essência humana e presente na ética; sendo o cuidado o responsável pela sintropia, e a falta desse a causa da entropia; portanto, percebe-se que o cuidado "funda a primeira atitude ética fundamental, capaz de salvaguardar a terra como um sistema vivo e complexo, proteger a vida, garantir os direitos dos seres humanos e de todas as criaturas, a convivência em solidariedade, compreensão, compaixão e amor"(15).

Em concordância com esse pensamento, é sabido que o ser humano, desde os seus primórdios, busca resolver seus problemas em meio às situações complexas e, no confronto com o ambiente pré-histórico, emergiram atitudes voltadas para o cuidado e, a partir de então, percebe-se nas diferentes culturas as diversas formas de cuidar, e atualmente se confirma, através da sociedade contemporânea, a importância que tem o cuidado na vida do ser humano(16).

ÉTICA NA ASSISTÊNCIA AO PORTADOR DO HIV/AIDS

A ética também tem o significado de "morada humana", ou seja, o ético significa tudo aquilo que ajuda a tornar melhor o ambiente de morada saudável. A ética existe como referência para os seres humanos em sociedade e que esses sejam cada vez mais humanos e capazes de enxergar as necessidades do outro, mesmo que esse tenha uma doença estigmatizada pela sociedade.

Por ser considerada um dos princípios reguladores do desenvolvimento histórico-cultural da humanidade a ética vem à tona com o advento da AIDS que, por se tratar de doença que até o momento não tem cura, que tem caráter epidêmico e mobiliza a sociedade, originou uma revolução em todos os sentidos, principalmente na discussão ética sobre pesquisa, pois a pesquisa é a maneira confiável para descoberta da evolução da infecção pelo HIV, vacinas e tratamento eficazes para as doenças oportunistas, o que proporciona melhor qualidade de vida aos portadores da infecção. Esse espaço de diálogo mostra que o pensamento ético segue a evolução científica e tecnológica que acontece no mundo.

Apesar da divulgação da pandemia e dos trabalhos envolvendo o assunto, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, conta-se com mais de 20 milhões de pessoas mortas pelo HIV e outras mais de 3,7 milhões de pessoas convivendo com o vírus em todo o mundo. Desse total há mais de 1,6 milhões de pessoas que estão vivendo com o vírus da AIDS na América Latina(17).

A AIDS considerada, atualmente, como doença crônica, conta com estudos para a descoberta da vacina, entretanto essas não oferecem proteção total, pois é necessário que exista trabalho educacional intenso para que a prevenção realmente se efetive e com o intuito de que a educação seja uma constante na luta conta essa pandemia as pesquisas em diferentes áreas do conhecimento vêm sendo incentivadas(18).

Para o desenvolvimento das pesquisas, é necessário, na mais das vezes, que os portadores do vírus

possam se dispor para contribuir com esses estudos, sendo a ética imprescindível nesse contexto, apesar da força de diferentes segmentos, como indústrias farmacêuticas multinacionais, profissionais de saúde com interesse científico, portadores e agências financiadoras; faz-se necessário um debate mais cuidadoso acerca dos aspectos éticos na pesquisa, uma vez que há grande quantidade de interessados envolvidos no processo.

Os avanços científicos têm trazido grandes vantagens para o homem, mas podem se tornar catastróficos se utilizados indevidamente, comprometendo a vida e os princípios da humanidade. Também, percebe-se que, quando se fala sobre a AIDS e os avanços da ciência, existem vários pensamentos - como a atribuição da doença à vontade divina - que podem influenciar o tratamento de muitos portadores. Entretanto, não se deve ultrapassar a ética, pois a decisão de cada cidadão deve ser respeitada(19).

A AIDS trouxe à tona pontos éticos bastante delicados, pois surge a necessidade de balancear os direitos e as necessidades do indivíduo e o bem público. Em meio a essas questões, há as preocupações com a privacidade e a confidencialidade, já que o pesquisador entra na vida particular e na intimidade dessas pessoas(20).

No Brasil, a partir da Resolução N. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, sobre pesquisas envolvendo seres humanos, foram criados os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e a exigência de aprovação de um protocolo de pesquisa, que corresponde a um conjunto de documentos, muitas vezes compreendido como burocracia e perda de tempo pelos pesquisadores, porém "esta burocracia tem sua legitimidade, quando mantida dentro de seus devidos limites e quando está a serviço da cientificidade e da eticidade do projeto de pesquisa"(21).

A partir da Resolução, anteriormente citada, a ética da pesquisa implica em: "a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia). Nesse sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade; b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos; c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não-maleficiência); d) relevância social da pesquisa, com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade)"(21).

Dentre esses documentos, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é compreendido como exercício da cidadania do sujeito da pesquisa, porque é um direito fundamental do ser humano. A garantia da cidadania deve ser vista como indicadora de qualidade e está relacionada a questões referentes à autonomia, privacidade, sigilo e anonimato.

A informação verdadeira é imprescindível para que o indivíduo possa se manifestar de forma esclarecida acerca das ações da pesquisa, que poderão alterar sua integridade física e/ou psíquica. Devendo ser adaptada a cada caso, levando em consideração o seu estado psicológico, suas condições sociais e culturais.

Consentir é um ato de decisão, que deve ser livre e isento de coação física, psíquica ou moral. Um elemento importante no consentimento é a temporalidade, também assegurada nos direitos do paciente e também na Res. N. 196/96 no item IV.1a, que fala sobre "a liberdade do sujeito de se recusar a participar ou retirar o seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado". Portanto, o consentimento não é imutável, pode ser modificado ou revogado a qualquer momento, por decisão livre e esclarecida, sem que sejam imputadas sanções morais ou administrativas ao paciente (sujeito da pesquisa).

O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, além de ser um texto jurídico, é um instrumento utilizado com o objetivo de facilitar a comunicação entre o pesquisador e o pesquisado, no intuito de firmar uma parceria entre seres humanos autônomos. A proposta é envolver o sujeito da pesquisa num processo, através do qual toma conhecimento do propósito do pesquisador, à luz desse conhecimento decide livremente participar ou não da pesquisa, tendo o conhecimento pleno dos riscos e benefícios decorrentes de sua participação. Isso não significa que seja um termo de isenção de responsabilidade do pesquisador contra processos de imperícia, imprudência e negligência, mas, sim, de garantir que o pesquisador aja eticamente, para proteger o sujeito da pesquisa na sua dignidade e integridade(21).

Vale ressaltar que a preocupação com as pessoas que são soropositivas para o HIV, também propiciou a elaboração de medidas voltadas para preservar os direitos dessas pessoas através da elaboração da Declaração de compromisso sobre o HIV/SIDA.

Assim, o que se deve fazer são iniciativas para uma mudança de postura dos pesquisadores, uma vez que mantêm, ainda, resíduos evidentes das relações dos profissionais de saúde para com os pacientes, fundamentadas, principalmente no poder autoritarista de muitos dos profissionais que cuidam e no paternalismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dessas reflexões, faz-se necessário a inserção da ética no cotidiano, norteando as atividades, seja realizando ações voltadas para o cuidado de pacientes soropositivos, seja no ensino ou nas pesquisas, pois a consciência ética na sociedade torna as pessoas e trabalhadores melhores.

Considerando, então, a ética um espaço multidisciplinar que envolve a área da saúde, os pesquisadores devem se apropriar dessa reflexão ética, para nortear o desenvolvimento de suas pesquisas, que tem o intuito de favorecer uma vida com mais qualidade.

A globalização e as mudanças no mundo atual geraram vários agravos à população, em contrapartida incentivou a propagação do conhecimento e das necessidades de um repensar que valorize o cuidado e a ética para com o ser humano e tudo que tem vida.

Ao se reportar à ética voltada para o cuidado do portador do HIV/AIDS, constata-se a importância do cuidar ético dessas pessoas, tendo em vista as suas particularidades e a sua estigmatização, por parte da sociedade. Por entrar em questões muito particulares e muito polêmicas, criou-se o código de ética para esses pacientes, com o intuito de respeitá-los e pôr em prática o cuidado ético.

Recebido em: 23.8.2004

Aprovado em: 20.6.2005

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2005

Histórico

  • Aceito
    20 Jun 2005
  • Recebido
    23 Ago 2004
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