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Mudando o foco: um estudo exploratório sobre uso de drogas e violência no trabalho entre mulheres das classes populares da cidade do Rio de Janeiro, Brasil

Cambiando el foco: un estudio exploratorio acerca del uso de drogas y violência en el trabalho de mujeres de las classes populares de Rio de Janeiro, Brasil

Resumos

Este é um estudo exploratório para o mapeamento de fatores envolvidos na relação entre uso de drogas lícitas e ilícitas e violência no trabalho, em um grupo de mulheres das classes populares da cidade do Rio de Janeiro. Para este estudo foi utilizada uma abordagem quantitativa descritiva e analítica, e também abordagem qualitativa a partir de entrevistas aprofundadas com mulheres que sofrem ou haviam sofrido situações de violência no trabalho, utilizando a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. Os resultados evidenciam situações sócio-demográficas e de trabalho que podem ser consideradas como possíveis fatores de risco para o consumo de drogas e violência no trabalho. A análise qualitativa mostrou a forma como este grupo de mulheres vê o fenômeno do uso de drogas e da violência no trabalho, ampliando a compreensão sobre estas questões e fornecendo subsídios conceituais e metodológicos para estudos adicionais sobre o tema.

mulheres; trabalho feminino; violência; transtornos relacionados ao uso de substâncias


La finalidad de este estudio exploratorio fue conocer los factores relacionados con el uso de drogas lícitas e ilícitas y la violencia en el trabajo en un grupo de mujeres de clases populares en la ciudad de Rio de Janeiro. Para este estudio se utilizó una aproximación cuantitativa descriptiva y analítica, además de una aproximación cualitativa a partir de entrevistas en profundidad con mujeres que sufren o habían sufrido situaciones de violencia en el trabajo. Se utilizó la metodología de análisis del discurso del sujeto colectivo. Los resultados evidencian situaciones sociodemográficas y de trabajo que pueden ser consideradas como posibles factores de riesgo para el consumo de drogas y violencia en el trabajo. El análisis cualitativo muestra como este grupo de mujeres percibe el fenómeno del uso de drogas y de violencia en el trabajo, ampliando la comprensión sobre estas cuestiones y dando aportes conceptuales y metodológicos para estudios adicionales sobre el tema.

mujeres; trabajo de mujeres; violencia; trastornos relacionados con substancias


This exploratory study aimed to investigate factors related to the use of illicit and licit drugs and workplace violence in a group of women from popular classes in the city of Rio de Janeiro. We used a descriptive and analytic quantitative approach was used, as well as a qualitative approach through in-depth interviews with women who suffered or were suffering workplace violence, using the collective subject discourse analysis methodology. The results showed sociodemographic and work situations that can be considered as possible risk factors for drug consumption and workplace violence. The qualitative analysis shows how this group perceives the phenomena of drug use and workplace violence, expanding the comprehension about these issues and providing conceptual and methodological elements for additional studies on this subject.

women; women; violence; substance-related disorders


ARTIGO ORIGINAL

Mudando o foco: um estudo exploratório sobre uso de drogas e violência no trabalho entre mulheres das classes populares da cidade do Rio de Janeiro, Brasil1 1 As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam a posição da organização onde trabalham ou de sua administração

Cambiando el foco: un estudio exploratorio acerca del uso de drogas y violência en el trabalho de mujeres de las classes populares de Rio de Janeiro, Brasil

Helena Maria Scherlowski Leal DavidI; Catherine CaufieldII

IDoutor em Saúde Pública, Professor Adjunto da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e-mail: helenad@uerj.br

IIDoutor em Estudos Sociológicos, Professor Assistente da Faculdade de Enfermagem da Universidade de Alberta, e-mail: c.caufield@ualberta.ca

RESUMO

Este é um estudo exploratório para o mapeamento de fatores envolvidos na relação entre uso de drogas lícitas e ilícitas e violência no trabalho, em um grupo de mulheres das classes populares da cidade do Rio de Janeiro. Para este estudo foi utilizada uma abordagem quantitativa descritiva e analítica, e também abordagem qualitativa a partir de entrevistas aprofundadas com mulheres que sofrem ou haviam sofrido situações de violência no trabalho, utilizando a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. Os resultados evidenciam situações sócio-demográficas e de trabalho que podem ser consideradas como possíveis fatores de risco para o consumo de drogas e violência no trabalho. A análise qualitativa mostrou a forma como este grupo de mulheres vê o fenômeno do uso de drogas e da violência no trabalho, ampliando a compreensão sobre estas questões e fornecendo subsídios conceituais e metodológicos para estudos adicionais sobre o tema.

Descritores: mulheres; trabalho feminino; violência; transtornos relacionados ao uso de substâncias

RESUMEN

La finalidad de este estudio exploratorio fue conocer los factores relacionados con el uso de drogas lícitas e ilícitas y la violencia en el trabajo en un grupo de mujeres de clases populares en la ciudad de Rio de Janeiro. Para este estudio se utilizó una aproximación cuantitativa descriptiva y analítica, además de una aproximación cualitativa a partir de entrevistas en profundidad con mujeres que sufren o habían sufrido situaciones de violencia en el trabajo. Se utilizó la metodología de análisis del discurso del sujeto colectivo. Los resultados evidencian situaciones sociodemográficas y de trabajo que pueden ser consideradas como posibles factores de riesgo para el consumo de drogas y violencia en el trabajo. El análisis cualitativo muestra como este grupo de mujeres percibe el fenómeno del uso de drogas y de violencia en el trabajo, ampliando la comprensión sobre estas cuestiones y dando aportes conceptuales y metodológicos para estudios adicionales sobre el tema.

Descriptores: mujeres; trabajo de mujeres; violencia; trastornos relacionados con substancias

INTRODUÇÃO

O processo de globalização não tem sido examinado apenas de uma perspectiva econômica. A reorientação das relações de mercado entre países acompanhou-se de mudanças sociais, sobretudo nos países em desenvolvimento. Tais mudanças devem-se, sobretudo, à crescente concentração de poder e capital nas mãos de poucos atores, levando à desigualdade entre o mundo dos ricos e o dos pobres. Em relação aos países latino-americanos, à inabilidade em controlar seus próprios fluxos de capital, agora submetidos ao capital internacional, segue-se a subordinação das suas questões políticas e sociais de modo a fazer as adaptações necessárias para a qualificação de suas necessidades de financiamento junto aos bancos internacionais. O assim denominado ajuste macroeconômico, ou ajuste estrutural provocou importante impacto nas políticas de bem estar social, entre estas, as de regulação das relações de trabalho. Flexibilização, sub-contratação, precarização das relações de trabalho e um crescente desemprego são problemas que afetam amplamente os países latinos(1).

Em relação à força de trabalho feminina, chama a atenção a sua participação crescente na economia nacional: somente entre 1985 e 1995, a força de trabalho feminina cresceu 63%, com um acréscimo de 12 milhões de trabalhadoras(2). As mudanças no trabalho feminino não são apenas numéricas: o perfil da mulher trabalhadora mudou, de jovens, solteiras e sem filhos, para a incorporação crescente de mulheres mais velhas, casadas e mães. Em uma sociedade patriarcal como a brasileira, isto não representou, no entanto, o compartilhamento das tarefas domésticas com os homens - a necessidade de conciliar papéis familiares e profissionais, e a dupla jornada de trabalho são a outra face do trabalho feminino. Mudanças na identidade feminina, trazidas pelo aumento na escolaridade e diminuição no número de filhos também trouxeram mudanças para o perfil da mulher trabalhadora. No entanto, estas mudanças não beneficiam de maneira igual a mulher brasileira - quem é pobre, de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, com filhos para criar e precisando trabalhar ainda não usufrui das conquistas feministas das últimas décadas.

As relações precárias de trabalho que se dão pelo sub-emprego, ou pelo trabalho por conta própria, ou ainda irregular, atingem mais a mulher que o homem no Brasil. Os salários femininos também são mais baixos que os masculinos, na mesma função. Em relação à taxa de desemprego, entre 1990 e 2002 esta ficou em 8.0 pontos percentuais para o Brasil(3). Temos, assim, um cenário que afeta significativamente a vida da mulher trabalhadora brasileira. Vale lembrar que, segundo o censo do IBGE de 2000, cerca de um quarto das famílias brasileiras é liderada financeiramente pela mulher.

Consumo de drogas por mulheres e violência

Tendo como pano-de-fundo este contexto econômico e sócio-político, alguns dados evidenciam que o uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas por parte da população feminina é uma questão que merece atenção: no Brasil, o consumo de drogas por mulheres triplicou entre 1993 e 1998. A relação entre uso de drogas e violência é muitas vezes mistificada. Trata-se de um fenômeno complexo, cuja análise deve necessariamente levar em conta variáveis sociais, étnicas, políticas e culturais(4).

O uso e abuso de álcool e drogas ilícitas é freqüente entre pessoas não violentas. No entanto, estas substâncias costumam estar presentes em muitas situações de violência - incluindo tanto agressores quanto vítimas. A conexão entre uso de substâncias e violência é complexa, e mais sugestiva do que conclusiva(5-6). Ainda assim, há evidências de uma crescente prevalência de violência associada ao abuso de drogas na América Latina. Aqui, a globalização do mercado agrava o problema, pela facilitação ao mercado de drogas, a diversificação das fontes de produção, e o aumento da demanda em diversos grupos populacionais, incluindo mulheres. Além destes, outros fatores contribuem, tais como as mudanças na estrutura familiar, no papel da mulher, de estilo de vida e de valores(5,7-8).

O uso de drogas ocorre em um ambiente econômico, social, legal, situacional e cultural que influencia potenciais comportamentos violentos(5,8). Drogas diferentes afetam de modo diferente os indivíduos, de acordo com características pessoais, idade, sexo, história e fatores culturais. Como exemplo, podemos citar os bem documentados efeitos da associação da ingestão de álcool com anfetaminas e cocaína(9).

Foi desenvolvido um modelo conceitual tripartite para classificar possíveis fatores envolvidos na relação droga-violência(10-11). Além da violência diretamente associada aos efeitos das drogas no sistema nervoso central (violência farmacológica) este modelo inclui a violência socialmente produzida em processos como a comercialização de drogas ilícitas (violência sistêmica), e a violência empregada para a obtenção de dinheiro para a compra de drogas (violência econômica compulsiva). Segundo este modelo, a violência sistêmica e a relacionada diretamente aos efeitos das substâncias são reportadas quase na totalidade em homens, e raramente em mulheres. Tanto para homens quanto para mulheres, o álcool é a substância com mais freqüência associada à violência farmacológica, e a cocaína e heroína as substâncias associadas à violência sistêmica.

Violência no trabalho

Nos Estados Unidos, o Centro de Controle de Doenças afirma que a violência no trabalho aumentou 300% na última década. Fatores de risco associados a agressões não fatais raramente têm sido documentados. Entretanto, alguns estudos têm demonstrado que fatores como gênero, inserção étnica, ocupação e abuso de álcool parecem estar fortemente associados às agressões no local de trabalho(12-13). Na América Latina existem poucas informações a respeito desta situação.

A declaração feita pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1993 e aceita pela OMS em 1996 conceitua violência contra a mulher como sendo qualquer agressão com base na diferença de gênero, capaz de resultar em dano físico, moral, sexual ou psicológico.

A violência doméstica tem sido o tipo de violência mais bem documentada em seus aspectos determinantes e condicionantes, e suas conseqüências do que a violência no trabalho feminino. Sobre a questão da relação entre o mundo do trabalho e a saúde da mulher também encontramos estudos, que, no entanto, não abordam especificamente a questão da violência no trabalho(14).

Além de haver ainda poucos estudos específicos sobre o tema no Brasil, o foco é também diferente: nos países norte-americanos, a preocupação centra nos parece ser a de caracterizar situações, ambientes e comportamentos de risco, e definir instrumentos informativos para a prevenção direta de acidentes e violências no trabalho. O trabalhador é que é visto como o principal agressor, sobretudo o homem jovem, portador de arma de fogo, com problemas de consumo de álcool, e problemas familiares. Há uma tendência em se focar o assunto do ponto de vista da vitimização do empregador ou patrão, e não do trabalhador.

Esta simplificação do risco de violência no trabalho não parece dar conta da complexidade do fenômeno. A discussão sobre a violência psicológica, que no Brasil tem sido também denominada de assédio moral no trabalho, tem ganhado espaço crescente em fóruns de debates trabalhistas, mas na área de saúde é, ao nosso ver, pouco conclusiva. Levando-se em conta a vulnerabilidade do gênero feminino para a questão da violência, e sua inserção inferiorizada no mundo do trabalho, em relação aos homens, é de suma importância conhecer melhor esta questão, e identificar as nuances relacionadas às diversas formas e situações de trabalho da mulher das classes populares, e as reais ou potenciais exposições à violência.

METODOLOGIA

Foi realizado um estudo quantitativo exploratório, com amostra não probabilística de 109 mulheres residentes em comunidades e bairros populares da cidade do Rio de Janeiro, durante os meses de fevereiro a maio de 2004, e, dentre estas, uma abordagem qualitativa com 10 mulheres, utilizando a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. O critério de inclusão foi o de ser mulher trabalhadora, com idade entre 18 e 60 anos, renda do trabalho até quatro salários mínimos regionais, e aceitar participar voluntariamente do estudo.

A estruturação de uma amostra intencional se deu em decorrência da dificuldade em completar a amostra probabilística aleatória previamente desenhada, devido às dificuldades de realização de entrevistas à noite, após o retorno das mulheres do seu trabalho, em função da situação de tensão social sofrida pela população da cidade do Rio de Janeiro devido à violência urbana, situação que se torna mais evidente nas comunidades e bairros populares. Este fato também ocorre em outras cidades latino-americanas, onde a sensação de temor generalizada toma conta da população de muitos centros urbanos.

Em estudos exploratórios, onde as informações necessárias para a construção da pesquisa estão sendo ainda conhecidas, a amostra intencional pode até mesmo ser mais útil que a aleatória, já que não há, neste momento, a intenção de se fazer inferências que possam ser consideradas como representativas da população como um todo, mas sim levantar algumas hipóteses e testar variáveis capazes de explicar melhor o fenômeno a ser estudado.

Para a coleta de dados quantitativos foram utilizados: um questionário sócio-demográfico e de situação de trabalho e questionário sobre violência no trabalho, ambos adaptados de material da Organização Internacional do Trabalho - OIT, e com a aquiescência da mesma; questionário de avaliação de consumo de álcool TWEAK, e tabela simples de identificação de consumo de drogas ilícitas e cigarro. O tempo-limite para a identificação de situações de violência no trabalho e de uso de substâncias foi de um ano antes, a contar da data da entrevista.

As entrevistas pessoais foram realizadas nos domicílios das mulheres, mediante aceite prévio das mesmas. Contatos anteriores com as lideranças comunitárias também foram feitos.

Para a análise dos dados foi utilizada estatística descritiva, para as freqüências e proporções de uso de álcool, cigarro e drogas ilícitas, e para as situações de violência física, psicológica e assédio sexual no trabalho. Para a identificação de fatores de risco e proteção, foi usada análise bivariada entre as variáveis sócio-demográficas e as de violência e uso de drogas. A verificação da associação entre variáveis que possam ser consideradas fatores de risco foi realizada pelo cálculo do odds ratio.

A análise das entrevistas aprofundadas, utilizando a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo, permitiu a construção de uma "fala coletiva" capaz de expressar algumas representações sociais importantes para a compreensão sobre a maneira como estas mulheres vêem e pensam sobre o uso de drogas e sobre a violência no trabalho.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados da análise quantitativa descritiva é discutido a seguir, estabelecendo também uma relação com algumas falas sociais obtidas abordagem qualitativa.

Sobre o consumo de drogas, o álcool foi a substância mais utilizada - 45% das mulheres da mostra faziam consumiam álcool. A análise dos escores do teste TWEAK evidenciou que os escores de 2 ou acima, associados à uma maior probabilidade de ter problemas com o uso do álcool, foram obtidos em 37 entrevistas, representando 75% das mulheres que afirmaram fazer uso de bebida alcoólica.

Em relação à identificação de possíveis fatores de risco, capazes de orientar estudos adicionais destacaram-se as seguintes variáveis:

- Estado civil: a média de escores do TWEAK entre as mulheres separadas foi ligeiramente maior (2,75) que entre as casadas (1,89) e as solteiras (1,75). Sobre esta questão, aspectos relacionados à subjetividade da mulher separada, que tem de assumir sozinha a chefia da família precisam ser mais bem compreendidos;

- Presença de companheiro ou marido - independente do estado civil relatado, 45% das mulheres viveram sozinhas no mês anterior à entrevista. Entre estas, o escore do teste TWEAK foi também ligeiramente superior ao obtido entre mulheres que viveram com marido ou companheiro. Não foi verificada probabilidade estatística (OR=1,00), no entanto.

- Filhos - nesta amostra, a mulher que possui filhos apresentou risco de consumo de álcool de um pouco maior que a não possui filhos (OR=1,52).

- Tipo de trabalho - manual, intelectual ou de relação: o trabalho de relação apresentou escores mais elevados de TWEAK em relação aos dois anteriores.

A escolaridade, religião e número de filhos foram fatores que não interferiram no consumo de álcool na amostra estudada. Algumas inferências estatísticas (analise bivariada e regressão logística entre variáveis) não evidenciaram relação estatística entre variáveis nesta amostra.

A diversidade na inserção religiosa é fator expressivo na freqüência de mulheres que consomem álcool: 81% destas são católicas, 13% protestantes, e 4% de outras religiões. As restrições morais ao uso do álcool pelas religiões e seitas protestantes, sobretudo as que se inserem no grupo denominado de neopentecostais, com grande penetração nos bairros periféricos urbanos brasileiros são bastante conhecidas.

O exame mais detalhado desta variável, a fim de especificar a ações de cada igreja ou seita quanto ao uso do álcool poderá apontar diferenças importantes. Vale lembrar que a distância entre o "ser" e o "estar", mais comum na religião católica, praticamente desaparece nas igrejas pentecostais, onde a militância é dimensão essencial. O "crente" traz no seu discurso a expressão da sua identidade principal. Todos os outros papéis sociais que possuem são secundários. A forte oposição a qualquer comportamento reconhecido como "católico" ou "da umbanda" inclui o estabelecimento de rígidas regras de vestuário, e a proibição do uso de bebidas e cigarro.

São conhecidos os efeitos benéficos da conversão religiosa, sobretudo nas denominações religiosas cristãs de orientação pentecostal, sobre os comportamentos indesejáveis, e que interferem negativamente na vida familiar: o sexual, e o uso de bebidas. Parece existir, assim, uma maior probabilidade, entre os de religião protestante, em tornar-se abstêmios. Vale lembrar que com freqüência, a conversão religiosa atinge somente a mulher, na família(15).

Em contraposição à postura contra o uso da bebida, encontramos, a partir da entrevistas aprofundadas, uma fala social que vê o uso do álcool, sobretudo da cerveja, como algo que não traz necessariamente problemas. As mulheres que consomem álcool o fazem geralmente no fim de semana, como forma de lazer ou incorporada a formas de lazer, e não atribuem efeitos negativos a isso. Algumas alegaram que o efeito do álcool é relaxante, e a relação com o trabalho que fazem é que beber serve para ajudar a relaxar no fim de semana, após uma semana dura de trabalho.

O uso do cigarro foi encontrado em 21% das mulheres, e não aparece associado numericamente a fatores sócio-demográficos ou de trabalho. Não foi reportado o uso de nenhuma droga ilícita.

A ocorrência de violência no trabalho, em suas três formas descritas no questionário, não apresenta variações expressivas nos escores do TWEAK conforme ocorram ou não no último ano antes da entrevista.

O uso do cigarro foi pesquisado apenas enquanto presente ou ausente, sem escores de quantidades ou tipo de cigarro. Na amostra investigada, 21% das mulheres afirmaram fazer uso de cigarro.

Nenhuma das variáveis sócio-demográficas puderam ser consideradas como possíveis fatores de risco para o uso do tabaco. Tampouco os fatores do ambiente e condições de trabalho puderam ser verificados neste sentido.

Não houve relato de uso de nenhum tipo de droga ilícita no período correspondente ao ano anterior ao da data da entrevista. Vale ressaltar que este tipo de pergunta nem sempre fornece resposta confiável, e que a negativa em assumir o uso de qualquer substância ilícita pode estar relacionada ao medo de haver algum tipo de investigação, em função da existência de uma política brasileira anti-drogas de caráter punitivo.

Dentre os 9 casos que relataram ter sofrido algum tipo de violência física, 3 identificaram clientes ou pacientes como os agressores, e 1 caso identificou um colega de trabalho. Duas mulheres não responderam a esta pergunta. Em relação a considerar este um incidente típico do local de trabalho, 3 consideraram que não, e 4 que sim. Novamente, 2 mulheres não responderam a esta pergunta.

Na sua grande maioria, este tipo de incidente ocorreu dentro do ambiente de trabalho (n=6). A reação ao ataque inclui a defesa física (n=3), pedir ao agressor para parar (n=2), e apenas uma mulher buscou ajuda de sua associação profissional. Quatro consideraram que o incidente poderia ter sido previsto, e 3 consideraram que não.

Entre as conseqüências imediatas para a saúde e o bem estar da mulher agredida, a maioria informou que ficou "super-alerta" após o ataque, em guarda contra a ocorrência de novo ataque. Quatro mulheres relataram ter sentido sensação de esforço e cansaço após o ataque, e evitaram falar deste, e apenas 2 informaram ter tido imagens repetidas do ocorrido.

Em apenas 2 casos houve alguma ação de investigação do ataque. As conseqüências para o agressor incluíram advertência verbal (n=1) e descontinuidade do cuidado (n= 1), e em 2 casos, não houve nenhuma conseqüência para o agressor. O patrão ou serviço ofereceu algum tipo de apoio a apenas uma mulher, e 5 relataram não ter recebido nenhum apoio.

A violência psicológica, ou abuso verbal foi a forma mais freqüente de violência no trabalho encontrada: 33% das mulheres trabalhadoras sofreram algum tipo de violência psicológica, que inclui o deboche, gritar, humilhar verbalmente, fazer do outro "bode expiatório" ou motivo de brincadeiras humilhantes. Longe de se constituir em evento isolado, a violência psicológica foi enfrentada por mais de uma vez pela maioria das mulheres agredidas - em 83% dos casos, a agressão ocorreu mais de uma vez, e em 20%, todo o tempo.

Quando comparamos estes dados com as falas sociais, verificamos que freqüentemente este tipo de violência foi atribuído à patroa, mais que ao patrão do sexo masculino. Isto pode ser explicado por ser a mulher quem historicamente assume o comando das atividades de manutenção do lar, incluindo a decisão sobre contratar e despedir as empregadas domésticas. Este parece ser um assunto sobre o qual os homens possuem pouca ou quase nenhuma governabilidade e interesse.

A reação da mulher a este tipo de agressão pode tomar rumos diversos: em contextos diferentes, uma mesma mulher pode reagir de forma submissa ou ativa, dependendo das relações prévias, das vantagens do trabalho, da situação de vida.

As que reagem demonstram, no seu discurso, possuírem uma noção, ainda que vaga, sobre seus direitos de cidadania e sobre a injustiça representada pela violência do patrão contra o empregado.

O medo do desemprego é fator preponderante, que faz com que muitas mulheres se calem ao enfrentar a violência no trabalho, sobretudo a violência psicológica, mais disfarçada, menos explícita. No entanto, nota-se em alguns discursos que o medo do desemprego não é capaz de fazer com que a mulher tolere indefinidamente a agressão. Depois de algum tempo, ela busca alternativas para escapar desta situação. Uma das mulheres afirmou que chegou a ficar desempregada para não tolerar as agressões verbais da patroa.

A possibilidade de prever este tipo de agressão não parece ser considerada: 21 mulheres acham que o incidente não poderia ter sido previsto. Acresce a isto o fato de que 88,8% dos incidentes ocorreram dentro do ambiente de trabalho, e apenas 3 casos fora deste.

A impunidade para este tipo de agressão é outra questão sugerida pelos dados: 75% das mulheres agredidas desconhecem quais foram as conseqüências para o agressor, e somente um caso foi reportado às autoridades policiais. De modo geral, isto sugere que as mulheres encaram este tipo de agressão como inevitável, e com poucas possibilidades de serem moral ou judicialmente ressarcidas.

Outro aspecto que deve ser levado em conta é o de que mulheres que trabalham, e que se inserem na faixa salarial estudada, entram com sua renda como suporte básico da renda familiar como um todo. O trabalho, mesmo em condições não ideais, e em um contexto social de desemprego acentuado, poderia atuar, neste caso, mais como fator de proteção do que de risco para o uso de drogas. Esta possibilidade foi reforçada pelos resultados da análise de conteúdo das entrevistas aprofundadas, onde duas mulheres relataram já terem sido usuárias de maconha, mas em períodos anteriores à maternidade e ao casamento.

Voltando à questão do uso do álcool, dentre as 10 mulheres entrevistadas para a abordagem qualitativa, 6 relataram fazer uso ocasional ou regular de álcool. Embora nos dados qualitativos a relação entre variáveis de trabalho e uso de álcool não fosse estabelecida, as falas sociais demonstram que algumas mulheres vêem o uso do álcool não como um problema em si, mas como um fator de relaxamento e lazer, sobretudo quando associado à companhia do marido ou companheiro.

O controle pessoal sobre a situação do uso de álcool é encarado como uma virtude, uma "fortaleza moral". O uso da bebida, referido como algo sob total controle, é então visto como uma opção e um direito, após a jornada ou a semana de trabalho.

A mulher que trabalha e contribui financeiramente para a manutenção do lar - sobretudo aquela que o sustenta sozinha - sente-se em situação de "liberdade": não deve nada a ninguém, nem deve prestar contas do seu comportamento. Se ela está, ou saiu de um relacionamento afetivo opressivo e controlador, a sua atitude em relação ao uso do álcool pode espelhar a afirmação do seu desejo de liberdade, como direito - muitas vezes duramente conquistado. A ruptura com o estereótipo histórico da "mulher comportada" pode incluir o uso do álcool como uma forma de transgressão, legalmente consentida. Esta é uma situação carregada de ambigüidade, na medida em que as mulheres das camadas populares são também o grupo em situação de maior vulnerabilidade para a violência doméstica por parte do companheiro.

CONCLUSÕES

A compreensão sobre as relações entre trabalho e uso de drogas ainda é insuficiente no Brasil, e este estudo aponta algumas questões que consideramos relevantes neste tipo de pesquisa.

Reforçando o que tem sido comentado na literatura, o consumo de álcool entre mulheres apresentou-se numericamente expressivo. Entretanto, o estabelecimento do o risco de abuso deve, ao nosso ver, levar em conta não apenas testes de escores do tipo do TWEAK, mas também o tipo de bebida consumida, e as condições do consumo. Trata-se de um problema complexo, e para o estabelecimento da participação da violência relacionada ao trabalho seriam necessárias identificar outras variáveis, não trabalhadas no presente estudo, tais como etnia, tipo de trabalho, condições laborais e grau de estresse relacionado ao trabalho.

Levando-se em conta os limites metodológicos para a obtenção de uma amostra probabilística randomizada de mulheres trabalhadoras em comunidades, este tipo de estudo deverá buscar alternativas para a definição da amostra, como por exemplo, a partir de abordagens dentro dos ambientes de trabalho. Neste sentido, o apoio de representações de trabalhadores - sindicatos e associações - poderá fornecer a legitimidade e a viabilidade operacional para a coleta de dados. A inclusão do grupo masculino poderá, também, auxiliar na identificação de questões específicas de gênero, a ampliar o escopo das análises.

Em relação ao uso de drogas lícitas, a utilização de ansiolíticos, barbitúricos e outras drogas similares, por trabalhadores, e sua relação com o trabalho, precisa ser mais bem compreendida. Da mesma forma, o uso do cigarro não deve ser compreendido apenas em termos de "sim" ou "não", mas também quanto ao tipo de cigarro, número consumido e tipo de relação estabelecida com o tabaco.

Por último, a possibilidade de investigar o uso de drogas em uma amostra de pessoas desempregadas poderá melhor situar o papel de estar empregado como fator que interfere no uso e abuso de substâncias.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Comissão Interamericana para o Controle de Abuso de Drogas/CICAD, ao Programa de Bolsas da OEA, ao Governo do Japão, a todos os docentes da Universidade de Alberta/Canadá, e aos onze representantes dos sete países da América Latina que participaram do "I Programa Internacional de Pesquisa" implementado na Universidade de Alberta/Canadá no ano de 2003-2004.

Recebido em: 3.2.2005

Aprovado em: 9.6.2005

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    As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam a posição da organização onde trabalham ou de sua administração
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Recebido
      03 Fev 2005
    • Aceito
      09 Jun 2005
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