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"Às vezes eles vão...": compreendendo qualidade de vida e promoção da saúde sob a ótica de uma mãe de pré-adolescentes

“Sometimes they go...”: understanding quality of life and health promotion according to a mother of preadolescents

“Algunas veces ellos van…”: comprendiendo la calidad de vida y promoción de la salud, la percepción de una madre de preadolescentes

Resumos

Uma pesquisa multicéntrica com mães pré-adolescentes foi realizada no Brasil, Argentina e Chile. Foi utilizada a etnografia enfocada como método de pesquisa. Dessa pesquisa realizada em um bairro de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, apresenta-se estudo de caso de uma mãe. Os achados apresentam as percepções de uma mãe de pré-adolescentes sobre qualidade de vida e promoção da saúde antes e imediatamente após o primeiro uso de droga ilícita por um de seus filhos. Observou-se mudança na ênfase dos fatores promotores de saúde, inicialmente com ênfase no controle das companhias dos filhos e posteriormente no reforço dos laços afetivos.

adolescente; mães; promoção da saúde; qualidade de vida


A multicenter research was conducted with mothers of preadolescents in Brazil, Argentina and Chile, using focused ethnography. From this research in Florianópolis, Santa Catarina, Brazil, a case study of one mother is presented. The findings show the perceptions of quality of life and health promotion before and after the first use of an illicit drug by her 11-year-old son. The emphasis of health promotion changed from the social network control to reinforcement of affective bonds.

adolescent; mothers; health promotion; quality of life


Se realizó una investigación multicéntrica con madres de preadolescentes en Brasil, Argentina y Chile, utilizándose la etnografía enfocada. De esta investigación realizada en Florianopolis, Santa Catarina, Brasil, se presenta un estudio de caso de una madre. Los resultados muestran las percepciones de esta madre acerca de la calidad de vida y promoción de la salud antes e después del primer uso de droga ilícita por su hijo. El énfasis en los factores de promoción de la salud modificó del control en cuanto a las compañías del hijo hacía el énfasis en los lazos afectivos con el hijo.

adolescente; madres; promoción de la salud; calidad de vida


ARTIGO ORIGINAL

"Às vezes eles vão...": compreendendo qualidade de vida e promoção da saúde sob a ótica de uma mãe de pré-adolescentes1 1 As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam a posição da organização onde trabalham ou de sua administração

“Sometimes they go...”: understanding quality of life and health promotion according to a mother of preadolescents

“Algunas veces ellos van…”: comprendiendo la calidad de vida y promoción de la salud, la percepción de una madre de preadolescentes

Maria do Horto Fontoura Cartana

Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Uma pesquisa multicéntrica com mães pré-adolescentes foi realizada no Brasil, Argentina e Chile. Foi utilizada a etnografia enfocada como método de pesquisa. Dessa pesquisa realizada em um bairro de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, apresenta-se estudo de caso de uma mãe. Os achados apresentam as percepções de uma mãe de pré-adolescentes sobre qualidade de vida e promoção da saúde antes e imediatamente após o primeiro uso de droga ilícita por um de seus filhos. Observou-se mudança na ênfase dos fatores promotores de saúde, inicialmente com ênfase no controle das companhias dos filhos e posteriormente no reforço dos laços afetivos.

Descritores: adolescente; mães; promoção da saúde; qualidade de vida

ABSTRACT

A multicenter research was conducted with mothers of preadolescents in Brazil, Argentina and Chile, using focused ethnography. From this research in Florianópolis, Santa Catarina, Brazil, a case study of one mother is presented. The findings show the perceptions of quality of life and health promotion before and after the first use of an illicit drug by her 11-year-old son. The emphasis of health promotion changed from the social network control to reinforcement of affective bonds.

Descriptors: adolescent; mothers; health promotion; quality of life

RESUMEN

Se realizó una investigación multicéntrica con madres de preadolescentes en Brasil, Argentina y Chile, utilizándose la etnografía enfocada. De esta investigación realizada en Florianopolis, Santa Catarina, Brasil, se presenta un estudio de caso de una madre. Los resultados muestran las percepciones de esta madre acerca de la calidad de vida y promoción de la salud antes e después del primer uso de droga ilícita por su hijo. El énfasis en los factores de promoción de la salud modificó del control en cuanto a las compañías del hijo hacía el énfasis en los lazos afectivos con el hijo.

Descriptores: adolescente; madres; promoción de la salud; calidad de vida

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A enfermagem vem construindo de maneira progressiva sua liderança na sociedade contemporânea. As características de nossa profissão de ser constituída de elevado contingente numérico, de procurar a formação técnica associada à ênfase no aspecto humanístico e de buscar o desenvolvimento da consciência crítica, situam-na em um patamar privilegiado para agir na eficiente e eficazmente na transformação da sociedade. A liderança que vem sendo construída tem se evidenciado, entre outras situações, no investimento de organismos internacionais em capacitações de enfermeiras para finalidades específicas, como é o caso da CICAD/OEA.

Essa comissão, entre outras iniciativas visando a redução da demanda de drogas, promoveu o I Programa Internacional em Investigação Aplicada ao Estudo do Fenômeno das Drogas para Enfermeiras da América Latina realizado na Universidade de Alberta, Canadá, em 2003.

Como um dos resultados desse Programa organizou-se a pesquisa multicêntrica denominada "Promoção de saúde e qualidade de vida entre mães de pré-adolescentes na Argentina, Brasil e Chile, um estudo etnográfico enfocado". Essa pesquisa foi fundamentada na constatação(1) de que a pré-adolescência, a idade entre 9 e 13 anos, é um período crítico do desenvolvimento da pessoa, no qual as crianças têm potencialidade tanto para comportamentos sadios quanto para comportamentos de risco que tendem a manter-se na idade adulta, e nessa etapa de desenvolvimento as mães desempenham um papel importante no sentido de promover a saúde.

A pré-adolescência vem sendo menos enfatizada nas pesquisas e na literatura do que a adolescência, embora sejam anos marcados por mudanças e desenvolvimentos marcantes, de ordem física, cognitiva e psicossocial(1).

O papel da mãe como recurso nas questões de saúde da família vem sendo estudada(2-4), porém esses estudos centram-se em situações de doença, privação ou risco social. O presente estudo tem o propósito de explorar crenças, valores e práticas entre mães de pré-adolescentes sadios.

A pesquisa foi organizada para ser conduzida simultaneamente no Chile, Argentina e em dois locais do Brasil, correspondentes à origem das quatro enfermeiras envolvidas. O desafio de construção de pesquisa multicêntrica foi decisivo na escolha da metodologia de investigação. Tratava-se não de investigar o mesmo fenômeno em quatro realidades diferentes entre si, buscando suas similaridades. Ao contrário, visava-se compreender as diferenças culturais existentes entre os contextos selecionados por cada uma das pesquisadoras.

O projeto construído coletivamente foi submetido primeiramente à aprovação do Comitê de Ética da Universidade de Alberta, Canadá e posteriormente aos comitês de ética de cada uma das instituições às quais as pesquisadoras estavam ligadas. As coletas de dados, as análises e escrita dos achados foram conduzidas de maneira independente por cada pesquisadora, embora todas se guiassem pelo mesmo método e técnicas de pesquisa.

Esse artigo se refere à pesquisa desenvolvida em um bairro do Município de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. O bairro selecionado caracteriza-se por ser composto predominantemente por famílias de renda baixa, suas residências se localizam em encostas de morros, muitas vezes com dificuldade de acesso. Muitas residências não são servidas por saneamento básico, particularmente quanto ao destino do esgoto, que é lançado diretamente nos riachos que deságuam no mar. É uma área de invasão, que se desenvolveu intensamente nos últimos 10 anos e hoje conta com serviços urbanos como transporte coletivo e coleta de lixo. Faz parte da área de abrangência de um Centro de Saúde Municipal, onde há equipes do Programa de Saúde da Família e outros serviços de saúde comunitária.

Uma importante característica desse bairro é o recente aumento de episódios de violência ligados ao tráfico de drogas, particularmente assassinatos e tiroteios, realidade com a qual as famílias moradoras convivem cotidianamente.

Neste bairro realizei a pesquisa planejada, com as dez mães de pré-adolescentes previstas. Entretanto opto por relatar aqui o caso de uma das mães informantes. Essa opção se deve à situação particular vivenciada enquanto a pesquisa estava se desenvolvendo: durante a coleta de dados um dos filhos, um menino pré-adolescente, experimentou pela primeira vez fumar maconha. Os achados desse processo, por sua peculiaridade e oportunidade de compreensão do processo por que passam as mães de pré-adolescentes nessa situação, são interessantes e podem contribuir para a compreensão da promoção de saúde e qualidade de vida conforme percebidas pelas mães.

MÉTODO

Conforme a proposta multicêntrica, construída em conjunto na Universidade de Alberta, as técnicas de pesquisa selecionadas para conduzir a etnografia enfocada foram observação participante, entrevistas semi-estruturadas, genograma e fotografias do cotidiano da família.

Após obter a aprovação pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, iniciei os contactos visando a seleção das informantes, mulheres moradoras do bairro selecionado para a realização da pesquisa, mães de pré-adolescentes. De acordo com a proposta metodológica iniciei a pesquisa mantendo contato com o Centro de Saúde e o presidente da Associação de Moradores, explicando os objetivos e metodologia a serem utilizadas e solicitando sua ajuda para identificar possíveis informantes - mães de pré-adolescentes (meninos ou meninas) que fossem saudáveis e que morassem no bairro.

A família da Sra. 1 foi a primeira a ser indicada para fazer parte da pesquisa. Foram realizadas três entrevistas em sua residência. Na primeira foi apresentada a proposta de trabalho, explicado e assinado o termo de consentimento livre e esclarecido, e iniciada a coleta de dados com a elaboração conjunta do genograma. Na segunda ida à casa (uma semana após a primeira) foi realizada a segunda entrevista e explicado o funcionamento da máquina para que fossem tiradas fotografias do que ela julgasse ser atividades de promoção de saúde realizadas com os filhos pre-adolescentes. No terceiro e último contato, já com as fotografias reveladas, a Sra. 1 descreveu as fotografias e falou sobre promoção de saúde. Entre a segunda e a terceira visitas o filho pré-adolescente fumou maconha juntamente com um primo. Além disso, a Sra. 1 descobriu que esse menino também vinha participando de pequenos roubos em bares da vizinhança.

RESULTADOS

O contexto

O primeiro contato com a família 1 aconteceu em um final de tarde de um dia chuvoso. Eu havia marcado mais uma entrevista com o presidente da associação de moradores do bairro e estava esperando por ele, no ginásio de esportes da comunidade. Essa senhora, aparentando quarenta anos, se dirigiu à mim perguntando se eu era a pessoa que queria fazer uma pesquisa com famílias saudáveis.

Respondi que sim, nos apresentamos, e ela me convidou a ir à sua casa naquele mesmo momento. Nos dirigimos então a uma viela, próxima dali. Embora já tivesse passado várias vezes por aquela região nunca havia reparado que, entre uma casa e outra, existia uma pequena entrada, denominada "servidão". A servidão onde se localiza a casa da mãe 1 (as mães formam designadas por números, conforme aceitavam fazer parte da pesquisa) é muito estreita e íngreme, de modo que as casas ficam realmente próximas umas das outras. Quase não há quintais ou jardins.

A casa é de alvenaria, e durante as entrevistas costumávamos ficar na pequena cozinha que também funciona como sala de estar e jantar. Além desse cômodo há dois quartos e um banheiro. Possuem água tratada, a coleta de lixo é realizada três vezes por semana (na rua geral) e o ônibus passa a duas quadras da residência. A característica mais impressionante da casa é ficar praticamente sobre um córrego parcialmente canalizado, de onde se sente o cheiro intenso de esgoto. Ao ser questionada sobre as condições da moradia, a mãe 1 refere que está muito satisfeita, uma vez que sua residência anterior tinha condições muito piores, inclusive sendo inundada quando havia muita chuva. Na mesma servidão onde se localiza a casa moram vários irmãos e irmãs do casal, e os moradores se referem ao local como um "condomínio".

As pessoas

A família 1 é constituída pelo casal (38 e 36 anos) e três filhos (14, 11 e 11 anos). O mais velho e o mais jovem, ambos meninos, são filhos do casal, enquanto que a menina é sobrinha da mãe, e foi adotada informalmente por eles, em um processo comum em famílias brasileiras dessa casse social, designado por "pegar para criar".

Na primeira entrevista, conforme o planejado, elaborei juntamente com a mãe, o pai e as três crianças, presentes à entrevista, o genograma da família. Ficou claro, segundo o genograma, que a menina adotada é parte integrante da família.

O casal é responsável pelo aporte financeiro da família. A senhora 1 não tem emprego regular, trabalhando como diarista ou faxineira esporadicamente. No período de coleta de dados tinha trabalho dois dias por semana. O senhor 1 (marido) tem emprego regular, em firma de segurança e aos finais de semana faz trabalho extra como segurança particular, para aumentar o rendimento da família. Em relação ao atendimento das necessidades materiais, a Sra. 1 se expressa assim: (...) a vida aqui de casa pra mim é boa. Porque, graças a deus, não falta nada pra eles.

Os filhos estudam em escola pública (gratuita), em séries compatíveis com sua idade. A família 1 mantém boa relação com os vizinhos, a maioria deles integrantes da mesma família extendida (irmãos e irmãs do casal com seus filhos e filhas). Os filhos dessas famílias brincam, vão à escola e jogam juntos, o que tive oportunidade de presenciar durante as entrevistas. Os pais também mantém bom relacionamento com os vizinhos, segundo seus depoimentos.

A qualidade de vida

A Sra. 1 refere-se à qualidade de sua vida e da vida da família como boa. A possibilidade conseguir a satisfação das necessidades na família, mesmo com esforço, aparece como um aspecto importante nessa classificação, particularmente em relação aos filhos, como expresso nos trechos seguintes: Acho que a vida pra nós é boa ... não no lado financeiro, porque esse não ta bom prá ninguém, mas não falta nada pra eles. Quando eles querem uma coisa, a gente explica e, mostra: Ó filho, esse mês não dá, mas o mês que vem a mãe vai se esforçar e ver se consegue. E eles não reclamam, não fazem cara feia, eles entendem: Ah mãe, não tem problema (...), e quando der a gente vai lá e compra.

Entre os fatores que contribuem para a construção dessa vida boa destaca-se a alegria, referida freqüentemente pela mãe e observada pela pesquisadora durante as entrevistas. Havia sempre muita conversa, risadas e brincadeiras entre os membros da família no momento das visitas. Os trechos a seguir são exemplos desse achado: ... a gente aqui é muito brincalhão. A agente acaba rindo das próprias desgraças (...). Serve pra gente rir amanhã... os problemas de hoje são pra gente rir amanhã. Se eu simpatizar com a pessoa, eu pego no pé, faço aquela brincadeira sadia.

Outro importante fator na construção da vida boa é a qualidade do relacionamento entre os componentes da família. Há uma forte ligação afetiva entre a família como um todo, refletida nas frases a seguir: (...) nós nos damos pra eles se dão pra nós. Por isso a vida é boa. Atenção pra eles não falta e nem deles pra nós.

A mãe 1 fez questão de destacar que a afeição não exclui o que a denomina "puxadas", ou seja, repreensões, castigos físicos ocasionais, ou negação de alguma coisa que os filhos apreciem, quando julgam que os filhos extrapolam certos limites. Embora ambos os pais realizam essas ações, os castigos físicos são mais aplicados pelo pai. Esses aspectos aparecem nos fragmentos seguintes: A hora que tem que dar uma puxada boa, a gente dá, porque tem hora que é obrigado a puxar. (...) aí ele apanhou, apanhou mesmo, porque o pai não sabia o que fazia.

Os castigos físicos e a afeição são coerentes na percepção da mãe 1. Fazem parte da qualidade de vida que constroem para os filhos. Tanto o pai quanto a mãe referiram-se mais de uma vez ao orgulho que sentem em relação à educação que proporcionam aos filhos, como na citação a seguir: Eu sempre digo pro pessoal que meus filhos valem ouro. A gente fica orgulhoso de ver que está levando eles pro bom caminho, por um rumo certo.

Segundo os achados acima, observa-se que qualidade de vida é um construto composto principalmente por aspectos não concretos, como a alegria, o relacionamento familiar de boa qualidade e a percepção de que está proporcionando uma boa educação aos filhos, segundo a percepção da mãe da família 1.

A promoção da saúde e os riscos da sociedade

A mãe 1 vê a sociedade atual com riscos intensos para seus filhos. Entre esses se destacam as companhias, vistas como risco porque podem levar ao uso de drogas, uma preocupação expressa nas entrevistas, e que pode ser vista a seguir: As companhias a gente fica de olho. Não é qualquer pessoa que eles podem se relacionar.

A preocupação com as companhias dos três filhos tomou grande parte do tempo das entrevistas. Houve interesse em mostrar detalhadamente como eram realizadas as atividades diárias envolvendo essa questão, como as seguintes: Aqui em casa os nossos filhos têm uma regra: eles saem de casa e vão pro colégio, do colégio pra casa. Se eles querem jogar bola, a gente tem que saber com quem eles tão brincando. Com os primos [brincar] tudo bem, mas isso não quer dizer que a gente não vai lá dar uma olhada, pra saber se são realmente os primos, pra saber se não tem junto pessoas que a gente não sabe quem é. A gente conhece todos aqui nas redondezas (...) se são pessoas que a gente sabe que são pessoas boas a gente deixa se relacionar. Mas também se a gente vê que aquela pessoa boa ta envolvida com uma pessoa ruim a gente fica com o pé atrás.

Outra ameaça percebida é a violência. Essa é uma ameaça mais remota, localizada em outras cidades ou regiões do país. Para proteger os filhos da violência utilizam-se de conversa a partir de documentários e programas de televisão que abordam o tema. A dinâmica, explicada pela mãe é a seguinte: A gente assiste muito ao [nome do programa], que mostra a violência no Rio e em São Paulo; então eles sentam junto e vão vendo o que tá acontecendo, a realidade. A gente mostra e comenta. Tem que ser comentado, saber por que morreu, porque tava envolvido com droga, tudo isso aí a gente conversa, a gente comenta com eles. A pior coisa que tem é você ver a coisa e esconder dos filhos.

A conversa é descrita como uma das principais formas de proteger os filhos. Assuntos como sexo, doenças, conflitos entre irmãos e desempenho escolar foram exemplos citados de assuntos discutidos em família. As expressões a seguir exemplificam essas situações: A gente aqui, nós falamos sobre sexo, órgão disso, órgão daquilo, falamos tudo abertamente. Tem hora que eles perguntam cada coisa..., mas a gente se afirma, respira fundo, vai e explica. Tudo a gente fala, aqui na mesa, na frente da menina. E também a gente mostra: olha, filho, o teu amiguinho lá ta tirando boa nota.

Quando indagada a respeito de quem ajudava nesse processo, a mãe 1 responde que apenas ela e o marido desempenham esse papel. Ao discorrer sobre a dinâmica da orientação aos filhos, destaca a importância da comunicação e apoio mútuo entre o casal: Não escondo nada, nada dele. E ele também. Outra coisa que a gente costuma fazer desde quando eles eram pequenos é o seguinte: se eu chamasse atenção, mas a atenção que eu estou chamando é errada, ele não chama a minha atenção na frente deles, ele chama a atenção depois. Eles [filhos]vêem que não adiante eles aprontarem lá fora e eu proteger (...) Nem uma vez, porque senão sempre que eles fizerem alguma coisa eles vão me procurar porque sabem que eu vou proteger.

A promoção de saúde para a mãe 1 está centrada no controle das companhias dos filhos, da manutenção do diálogo com os filhos e é responsabilidade dos pais.

Às vezes eles vão...

Como as entrevistas eram marcadas por telefone, ao agendá-las me identificava e conversava brevemente com a mãe 1 sobre assuntos gerais. Para o agendamento da última visita, houve uma perceptível mudança na forma como a conversa se desenvolveu. A Sra.1 era normalmente receptiva e agradável ao falar no telefone, mas naquele dia estava apenas respondendo às perguntas por monossílabos. Primeiramente pensei que havia decidido não participar mais da pesquisa, e perguntei diretamente isso a ela, ao que respondeu que não, e esclareceu estar passando por um momento difícil. Depois sugeri adiar a entrevista para a próxima semana, mas ela afirmou que gostaria muito que nos encontrássemos, porque estava precisando desabafar. Assim, ao me dirigir para a terceira entrevista, embora não soubesse do que se tratava, já sabia que alguma coisa tinha acontecido.

Ao chegar na residência, notei que a Sra. 1 estava com a fisionomia abatida e ela me recebeu dizendo que não havia dormido nada naquela noite. Como não respondeu quando perguntei o que havia acontecido, sugeri que víssemos as fotos que havia tirado. Ela aceitou e iniciamos a examinar a primeira foto, que mostrava os cinco componentes da família em frente a casa, todos abraçados e sorrindo. A respeito da fotografia pronunciou-se assim: Eu gostei muito dessa foto porque não dá pra perceber que no domingo nós passamos por aquele momento de aflição, dor e tudo. Aqui representa que nós não esmorecemos, ficamos juntos, sempre mantendo o sorriso, por mais difícil que fosse.

A partir dessa primeira expressão, iniciou a contar o fato que explicava seu abatimento: seu filho de 11 anos havia fumado um cigarro de maconha, juntamente com um primo. A partir desse primeiro desabafo a sra. 1 discorre sobre sua percepção dos fatos, as explicações e as conseqüências percebidas.

Recordando o acontecido, a Sra. 1 relata que um de seus sobrinhos (filho da irmã do marido), com dezessete anos, vinha progressivamente abusando de drogas (maconha e cocaína), praticando pequenos furtos e ultimamente tinha sido visto portando arma de fogo. Seu marido tinha uma excelente relação com o sobrinho, e a pedido da mãe desse, foi aconselhar o adolescente. Durante a conversa descobriu que seu próprio filho de onze anos também havia fumado maconha. Reconstituindo os fatos, a sra. 1 expressa-se da seguinte forma: Daí o [marido] pegou e chamou o [filho], na frente do primo. Daí ele pegou e disse: É, pai, eu fumei uma vez só. Eu só peguei, fiz assim [gesto de levar o cigarro aos lábios] e já entreguei pra ele e não usei mais.

Além de fumar maconha, a Sra. 1 e seu marido também vieram a saber na mesma ocasião que o filho havia pegado biscoitos em um bar da vizinhança sem pagar pelo produto, e que seus outros dois filhos não só sabiam como compartilharam o produto do roubo.

Antes de contar as suas reações, a Sra. 1 conta como o marido reagiu: Aí a coisa se complicou, porque o pai se mata de trabalhar, e a revolta foi tanta que ele [marido] começou a jogar os biscoitos que a gente tinha em casa em cima dele [filho]. Ele deu uma surra e depois ficou com o coração na mão, ele [marido] foi pros cantos, pro banheiro, chorar.

Prosseguindo, fala de seus próprios sentimentos: (...) era uma dor tão grande, que a gente não tem como explica. Foi um choque. Eu deixei [o filho apanhar do pai] porque sabia que aquilo era necessário, mas na hora quilo me doía.

Quando solicitada a falar sobre o que percebia como sendo o motivo do comportamento do filho em usar droga e roubar, a Sra. 1 apresenta dois motivos. Em primeiro lugar, estão as características do pré-adolescente envolvido, que são diferentes dos demais filhos. Ele é mais tímido, é uma criança que dificilmente te diz não. Ele é o mais fraquinho. Eles [quem incentiva o uso de drogas] não tentam os que têm mais decisão, porque eles dizem: Não, não vou, e pronto. Ele [filho] é muito curioso, ele sempre tem que estar por dentro de tudo, ele quer saber de tudo sem pensar muito nas conseqüências.

Também é apontado pela mãe como causa do comportamento de risco do filho uma possível situação de crise pessoal, algum desentendimento na escola, alguma tristeza própria da idade, que passou desapercebida pela mãe.

Já com respeito às causas percebidas por ela para o sobrinho estar envolvido em comportamentos de risco são menos claras, o que pode ser observado na expressão: Eu não sei que resposta dar. As pessoas dizem que é porque ele teve muito problema, o pai abandonou... mas eu também nunca levei muito pra esse lado, porque eu fui criada no meio de problemas, meu pai era alcoólatra, e nunca conheci maconha. Na idade do [filho] ele era uma criança ótima, um guri doce, você via que tinha uma doçura ali.Eu acho que um erro[da mãe do sobrinho] veio quando eles começam a pedir coisas que ela não pode dar e ela dava. Fez o que pode e o que não pode pra dar. Mas o que adiante ter um carro zero se não tem carinho, se não tem amor, se quando precisa não tem pra onde ir?

Após o fato, os três filhos recebem castigos. O menino de onze anos, além de receber castigo físico, foi levado ao bar pelos pais e teve de contar o que havia feito, pagar pelos biscoitos, pedir desculpas e prometer que não repetiria o fato. Os três filhos ficaram de castigo durante uma semana, somente estudando. O filho mais velho e a irmã foram castigados dessa forma por ter conhecimento dos fatos e não ajudar o irmão, contando aos pais.

Segundo a percepção da mãe, a reação do filho de onze anos aos castigos foi principalmente de alívio. Ela atribui esse alívio ao fato dos pais terem descoberto e tomado providências para impedir o uso da droga e o roubo. Expressa-se assim: Ele chegou pra nós e disse: mãe, pai, parece que tiraram um peso de cima de mim. Eu acho que ele queria contar, mas a coisa ia cada vez se complicando mais e ele ficou com medo da nossa reação, porque não é uma reação boa, né?

Os fatos provocaram diversas reflexões da mãe, pontuadas ao longo da entrevista. Nessas reflexões destaca-se o papel atribuído por ela à expressão do amor ao filho como forma de evitar novos comportamentos de risco. Algumas expressões são transcritas a seguir: Depois, parando e pensando a gente vai colocando as coisinhas no lugar. Não vou deixar de amar ele porque ele provou um cigarrinho de maconha. Por eu amar ele é que eu vou tirar ele desse meio. E assim, se amanhã ele errar de novo, se eu puder ajudar eu vou ajudar. Quando a gente sabe das coisas dá aquela revolta, aquela agonia, tu não sabe o que fazer. Mas tem mesmo que puxar, abraçar, beijar. Ele tem que se sentir aconchegado dentro de casa. Eu acho que é isso que vai realmente afastar mesmo ele desse caminho, e trazer ele de volta. Com carinho, com beijo, com conversa. Eu tenho que mostrar pra ele o valor que ele tem, o peso do que ele fez aqui dentro de casa. Se eu começar a ficar jogando na cara dele, falando o tempo todo: tu fez errado, tu roubou, eu tô influenciando ele a voltar prá lá. Daí eu tenho que fazer isso: abraçar, beijar, amar, amar, amar. É o que nós fizemos. Ele não deixou de ser respeitado por causa disso, de maneira nenhuma.

As falas da mãe após a constatação do comportamento de risco do pré-adolescente demonstram uma clara mudança de ênfase no que considera ser agora a promoção de saúde. Se anteriormente centrava suas ações no controle das companhias, agora age principalmente no reforço dos laços afetivos com o filho.

DISCUSSÃO

Os achados desse estudo trazem algumas contribuições sobre a compreensão de mães sobre qualidade de vida e promoção de saúde de pré-adolescentes.

Uma primeira contribuição é que o conceito de qualidade de vida está menos centrado nos aspectos materiais da vida cotidiana. Na percepção da mulher informante dessa pesquisa, qualidade de vida é constituída da alegria, do relacionamento familiar de boa qualidade e a percepção de que está proporcionando uma boa educação aos filhos. Tais elementos utilizados na avaliação são sentimentos, e não inclui aspectos materiais da qualidade de vida, usualmente encontrados na literatura(5-6).

Um outro achado é que a promoção da saúde não é realizada de maneira sempre igual, mas sim varia conforme a situação vivida pelo pré-adolescente. Em um primeiro momento, quando desconhecia a existência do comportamento de risco, a mãe enfatiza o cuidado com as companhias. Porém, quando descobre que o próprio sobrinho estava fornecendo e estimulando seu filho ao uso de droga e roubo, altera esta ênfase, para reforçar o afeto. Essa mudança não foi encontrada na literatura consultada.

A percepção da mãe a respeito dos motivos que levaram o filho ao comportamento de risco também é importante. Sua descrição do filho como fraquinho pode ser entendida como baixa assertividade o que corrobora achados de pesquisa(7). Por outro lado, há indícios de que esse aspecto, bem como a auto-estima são fatores protetores que poderão ser fortalecidos em programas educacionais a estudantes de 12 e 13 anos(8).

A contínua e intensa auto-reflexão sobre os fatos que foi feita pela mãe 1, demonstrada nas diversas falas sobre o ocorrido com o filho pré-adolescente indica a sua preocupação com o seu bem-estar, e vem ao encontro de pesquisa que compara o suporte dos pais com o do grupo de iguais em relação ao uso de substâncias psicoativas(7).

A busca pela melhor maneira de promover a saúde, mesmo quando a criança já apresentou comportamentos de risco é um indício de que ela acredita que seja possível transcender os problemas. Por outro lado, observou-se que os comportamentos apresentados pelos filhos (uso de substância psicoativa, roubo e acobertamento por parte dos irmãos) foram todos considerados ruins, porém de natureza diferente, e para cada um deles foram aplicados castigos específicos.

Finalmente é necessário destacar a importância atribuída pela mãe 1 às entrevistas de pesquisa. Ao contrário do que poderia ser esperado, ela manteve e mesmo solicitou a realização da entrevista no auge da crise familiar. Ao considerar isso, dois aspectos se destacam. Em primeiro lugar, o que é referido por um autor(9) como entrevistas de pesquisa que são mais terapêuticas que entrevistas terapêuticas. A metodologia empregada foi decisiva para que esse resultado aparecesse. Demonstrar interesse em tudo quanto se relacionasse com as crianças, com a dinâmica familiar e com aspectos do cotidiano da família pode ter precipitado o surgimento desse dado inesperado. Em segundo lugar, indica uma grave lacuna nos serviços de saúde quanto ao atendimento às necessidades das mães quanto a aconselhamento e orientação sobre como proceder em situações dessa natureza, já que em nenhum momento foram referidos como possível fonte de apoio na situação de crise.

RECOMENDAÇÕES

O estudo permite esboçar algumas recomendações a respeito do tema. A primeira delas diz respeito à necessidade de que os serviços de saúde reconheçam a pré-adolescência como uma fase crítica para a aquisição de comportamentos sadios na idade adulta. Os serviços voltados à população adolescente já existentes em alguns contextos poderiam facilmente expandir sua abrangência para incluir essa população em atividades de promoção da saúde.

Outra recomendação refere-se ao reconhecimento de que nessa fase as mães ainda são elementos essenciais no processo de promoção de saúde de seus filhos. Há necessidade de serviços de acompanhamento, suporte e aconselhamento para que essas mães desempenhem de maneira eficaz esse processo. A experiência de acompanhamento dessa mãe desperta questionamentos sobre a magnitude do número de mães que passaram e passam por experiências semelhantes, de maneira solitária e desassistida.

Finalmente, destaca-se com esse estudo mais uma possibilidade de expansão do campo de atuação da enfermeira, dialogando e refletindo junto com as mães formas possíveis para viver essa etapa. Grupos de convivência, clubes de mães, associações de moradores, e outras tantas formas de organização já existentes poderiam ser âmbitos de trabalhos da enfermagem na promoção da saúde com mães de pré-adolescentes.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Comissão Interamericana para o Controle de Abuso de Drogas/CICAD, ao Programa de Bolsas da OEA, ao Governo do Japão, a todos os docentes da Universidade de Alberta/Canadá, e aos onze representantes dos sete países da América Latina que participaram do "I Programa Internacional de Pesquisa" implementado na Universidade de Alberta/Canadá no ano de 2003-2004.

Recebido em: 12.9.2005

Aprovado em: 23.11.2005

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  • 1
    As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam a posição da organização onde trabalham ou de sua administração
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      23 Nov 2005
    • Recebido
      12 Set 2005
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