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O papel de mulheres idosas consumidoras de calmantes alopáticos na popularização do uso destes medicamentos

El papel de mujeres adultas mayores consumidoras de calmantes alopáticos en la popularización del uso de estes medicamentos

The role of elderly female consumers of allopathic tranquilizers in the popularization of the use of these medicines

Resumos

O consumo de calmantes alopáticos (benzodiazepínicos) possui dimensão social e cultural, e não está restrito a uma relação entre médico e paciente. Objetivamos mostrar, portanto, que o consumo de calmantes é particularizado de acordo com os contextos social e cultural em que seus consumidores estão envolvidos. Buscamos então, utilizando abordagem qualitativa com entrevistas semi-estruturadas, as concepções sobre calmantes alopáticos de 18 mulheres idosas, pacientes psiquiátricas do Núcleo de Saúde Mental do Centro Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), da cidade de Ribeirão Preto-SP, Brasil, consumidoras de benzodiazepínicos há mais de um ano. Concluímos que o consumo de calmantes está envolvido em uma rede de relações sociais, enredando vizinhos, parentes e amigos. As mulheres entrevistadas mostraram ter autonomia e conhecimento sobre o uso dos calmantes, sentindo-se capazes de utilizar, indicar, oferecer, emprestar, ou não, esses medicamentos, de acordo com suas concepções.

calmantes; benzodiazepínicos; mulheres idosas; redes sociais


El consumo de calmantes alopáticos (benzodiazepinas) posee dimensión social y cultural, y no está restricto a una relación entre médico y paciente. Objetivamos mostrar, por tanto, que el consumo de calmantes es particularizado de acuerdo con los contextos social y cultural en que sus consumidores están envueltos. Investigamos entonces, utilizando aproximación cualitativa con entrevistas semi-estructuradas, las concepciones sobre calmantes alopáticos de 18 mujeres ancianas, pacientes psiquiátricas del Núcleo de Salud Mental del Centro de Salud Escuela de la Facultad de Medicina de Ribeirão Preto de la Universidad de São Paulo (FMRP-USP), ubicado en la ciudad de Ribeirão Preto-SP, Brasil, consumidoras de benzodiazepinas desde hace más de un año. Concluimos que el consumo de calmantes está involucrado en una red de relaciones sociales, enmarañando vecinos, parientes y amigos. Las mujeres entrevistadas mostraron tener autonomía y conocimiento sobre el uso de los calmantes, sintiéndose capaces de utilizar, indicar, ofrecer, prestar, o no, esos medicamentos, de acuerdo con sus concepciones.

calmantes; benzodiazepinas; mujeres adultas mayores; redes sociales


The consumption of allopathic tranquilizers (benzodiazepines) has social and cultural dimensions, not being restricted to a relation between physician and patient. Therefore, we aimed to show that the consumption of tranquilizers is particularized according to the social and cultural contexts their consumers are involved in. Using a qualitative approach with semistructured interviews, we search for conceptions about allopathic tranquilizers in 18 elderly women, psychiatric patients attended to in the Mental Health Centre of the Health Teaching Centre at the, University of São Paulo at Ribeirão Preto Medical School, (FMRP-USP), in the city of Ribeirão Preto (SP), Brazil, who were consumers of benzodiazepines for more than one year. We concluded that the consumption of tranquilizers is entangled in a network of social relations, including neighbors, relatives and friends. The interviewed women showed to have autonomy, feeling able to use, indicate, offer and lend, or not, these medicines, according to their conceptions.

tranquilizers; benzodiazepines; elderly women; social networks


ARTIGO ORIGINAL

O papel de mulheres idosas consumidoras de calmantes alopáticos na popularização do uso destes medicamentos

The role of elderly female consumers of allopathic tranquilizers in the popularization of the use of these medicines

El papel de mujeres adultas mayores consumidoras de calmantes alopáticos en la popularización del uso de estes medicamentos

Reginaldo Teixeira MendonçaI; Antonio Carlos Duarte de CarvalhoII

IMestre em Saúde na Comunidade pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

IIProfessor Doutor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

RESUMO

O consumo de calmantes alopáticos (benzodiazepínicos) possui dimensão social e cultural, e não está restrito a uma relação entre médico e paciente. Objetivamos mostrar, portanto, que o consumo de calmantes é particularizado de acordo com os contextos social e cultural em que seus consumidores estão envolvidos. Buscamos então, utilizando abordagem qualitativa com entrevistas semi-estruturadas, as concepções sobre calmantes alopáticos de 18 mulheres idosas, pacientes psiquiátricas do Núcleo de Saúde Mental do Centro Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), da cidade de Ribeirão Preto-SP, Brasil, consumidoras de benzodiazepínicos há mais de um ano. Concluímos que o consumo de calmantes está envolvido em uma rede de relações sociais, enredando vizinhos, parentes e amigos. As mulheres entrevistadas mostraram ter autonomia e conhecimento sobre o uso dos calmantes, sentindo-se capazes de utilizar, indicar, oferecer, emprestar, ou não, esses medicamentos, de acordo com suas concepções.

Descritores: calmantes; benzodiazepínicos; mulheres idosas; redes sociais

ABSTRACT

The consumption of allopathic tranquilizers (benzodiazepines) has social and cultural dimensions, not being restricted to a relation between physician and patient. Therefore, we aimed to show that the consumption of tranquilizers is particularized according to the social and cultural contexts their consumers are involved in. Using a qualitative approach with semistructured interviews, we search for conceptions about allopathic tranquilizers in 18 elderly women, psychiatric patients attended to in the Mental Health Centre of the Health Teaching Centre at the, University of São Paulo at Ribeirão Preto Medical School, (FMRP-USP), in the city of Ribeirão Preto (SP), Brazil, who were consumers of benzodiazepines for more than one year. We concluded that the consumption of tranquilizers is entangled in a network of social relations, including neighbors, relatives and friends. The interviewed women showed to have autonomy, feeling able to use, indicate, offer and lend, or not, these medicines, according to their conceptions.

Descriptors: tranquilizers; benzodiazepines; elderly women; social networks

RESUMEN

El consumo de calmantes alopáticos (benzodiazepinas) posee dimensión social y cultural, y no está restricto a una relación entre médico y paciente. Objetivamos mostrar, por tanto, que el consumo de calmantes es particularizado de acuerdo con los contextos social y cultural en que sus consumidores están envueltos. Investigamos entonces, utilizando aproximación cualitativa con entrevistas semi-estructuradas, las concepciones sobre calmantes alopáticos de 18 mujeres ancianas, pacientes psiquiátricas del Núcleo de Salud Mental del Centro de Salud Escuela de la Facultad de Medicina de Ribeirão Preto de la Universidad de São Paulo (FMRP-USP), ubicado en la ciudad de Ribeirão Preto-SP, Brasil, consumidoras de benzodiazepinas desde hace más de un año. Concluimos que el consumo de calmantes está involucrado en una red de relaciones sociales, enmarañando vecinos, parientes y amigos. Las mujeres entrevistadas mostraron tener autonomía y conocimiento sobre el uso de los calmantes, sintiéndose capaces de utilizar, indicar, ofrecer, prestar, o no, esos medicamentos, de acuerdo con sus concepciones.

Descriptores: calmantes; benzodiazepinas; mujeres adultas mayores; redes sociales

INTRODUÇÃO

Os calmantes alopáticos, medicamentos psicotrópicos ou psicofármacos (que agem sobre o sistema nervoso central), representados neste estudo pelo grupo farmacológico dos benzodiazepínicos, podem ser utilizados como sedativos, relaxantes musculares, hipnóticos, ansiolíticos ou anticonvulsivantes, sendo que os mais populares são diazepam, bromazepam e lorazepam.

Seu uso contínuo pode levar freqüentemente, sobretudo em idosos, a sedação excessiva, tremores, lentidão psicomotora, comprometimento cognitivo (como amnésia e diminuição da atenção) e dependência(1).

O consumo de benzodiazepínicos (calmantes alopáticos) não se restringe a uma interação entre médicos e pacientes, pois possui uma dimensão cultural e social. Os calmantes são concebidos dentro de um processo histórico, social e cultural em que estes são (re)significados por seus consumidores. E vários mecanismos podem interferir em suas percepções, tais como a propaganda da indústria farmacêutica, dos meios de comunicação, dos valores morais e estéticos, no sentido de difundir a concepção do que é ser normal(2-3).

Para contextualizar o consumo de calmantes de acordo com cada classe social temos que analisar suas marcas, seus valores, sua linguagem, as diferenças simbólicas, como somos produtores da realidade ao mesmo tempo em que somos produzidos por ela(4).

Quando dizemos "cultura", também nos referimos a um conjunto de símbolos que são construídos e constroem a realidade. Cultura é um conjunto de significados que as próprias pessoas constroem e se identificam e se prendem, permitindo aos indivíduos e a determinado grupo interpretar suas experiências e coordenar suas ações(5).

Assim, o calmante alopático ultrapassa sua relação de produto unicamente científico ou químico e ganha na sociedade novas representações e significados. O medicamento alopático participa do processo de cura proposto e imposto através de prescrições médicas, garantidor de domínio da medicina científica frente às terapias alternativas(6). Apesar de a medicina ter criado uma linguagem técnica, incompreensível aos doentes(7), os conceitos e conhecimentos médicos são disseminados na sociedade. O medicamento faz parte de um processo de socialização envolvendo diversos fatores, sociais, químicos e científicos(6).

Os medicamentos alopáticos compõem a forma de tratamento de enfermidades mais destacada no meio científico. Porém é escasso seu estudo no meio social, ficando mais concentrado ao plano biológico(6). Procuramos concentrar nosso estudo nas questões mais relevantes relacionadas ao consumo de calmantes, buscando compreender como o social e o cultural moldam a maneira de usá-los.

O posicionamento do médico e do paciente na estrutura social interfere no modo que o calmante é utilizado. O pertencer a uma classe social baixa pode levar a uma comunicação fragmentada e parcial(8). Termos médicos podem ser adaptados a termos conhecidos pelos pacientes, pela semelhança do som das palavras, apesar dos significados distintos(8). Estas diferenças sociais estão caracterizadas por diferenças simbólicas, os sujeitos da classe alta participam de um universo simbólico diferente daqueles da classe baixa, como melhores escolas, ambientes de luxo, etc. Isso irá favorecer o domínio de sua posição e de seu espaço(4). Assim, os termos médicos são transformados pelos pacientes de acordo sua realidade social e cultural(9).

Desse modo, os serviços de saúde contribuem para a formação de concepções de saúde e doença, fazendo com que indivíduos ou grupos sociais avaliem, escolham, recusem ou adiram a determinadas formas de tratamento(10). Logo, somente a disponibilidade de serviços de saúde não é suficiente para que sejam utilizados, devendo antes ser aceitos, sendo um dos motivos que explicam sua utilização.

A proximidade com os serviços de saúde pode levar a uma maior difusão do consumo por parte de seus consumidores, principalmente pelas mulheres idosas(11). Nota-se que as idas e vindas dos usuários pelos serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados, como farmácias, hospitais e postos de saúde, fazem com que haja uma fusão de conhecimentos, apesar de que, muitas vezes, um não compreenda o outro. Como analisamos as concepções de pacientes que fazem uso contínuo de calmantes alopáticos, cuja prescrição deve ser atualizada em no máximo dois meses, há maior freqüência de contatos com seus médicos para controle do uso destas medicações, contribuindo, assim, para a disseminação de conhecimentos sobre os calmantes. As mulheres usuárias de calmantes alopáticos possuem domínio sobre os medicamentos que tomam, utilizando ao seu bem-querer, medicando pessoas consideradas em mesmo contexto(3).

O uso de calmantes está envolvido pelas pessoas que circunvizinham o consumidor (familiares, amigos, vizinhos e terapeutas), repetindo ou criando novas maneiras de solucionarem questões relativas à saúde e à doença de acordo com o universo sociocultural do qual fazem parte, (re)produzindo conhecimentos médicos, através do uso da metáfora, uma forma rica de expressão de sua vida, da criatividade e da sensibilidade do doente e daqueles que o rodeiam, revelando o cotidiano, o senso comum, os significados das doenças e as práticas utilizadas para alcançar as curas(10).

METODOLOGIA

O local, o público e coleta dos dados

Investigamos, através de uma abordagem qualitativa, as concepções de 18 mulheres idosas sobre os calmantes alopáticos (benzodiazepínicos), consumidoras há mais de um ano, pacientes psiquiátricas do serviço ambulatorial do Núcleo de Saúde Mental do Centro Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Este serviço atende o público do Distrito Oeste da cidade de Ribeirão Preto-SP (cerca de 126.000 pessoas), oferecendo tratamentos semelhantes ao ambulatorial.

Foram analisados 1336 prontuários de pacientes atendidos nos últimos 3 meses para seleção dos entrevistados, verificando tempo de uso dos medicamentos, sexo, idade, diagnósticos médicos e a possibilidade de serem entrevistados (pacientes psicóticos e esquizofrênicos não foram entrevistados). Destes 170 (20% do total) eram mulheres e tinham idade igual ou superior a 60 anos, das quais 72 consumiam benzodiazepínicos (42,3% do total de mulheres idosas). Destas 72 mulheres, entrevistamos 18 (25%). Pelo fato de as prescrições destes calmantes não poderem ultrapassar dois meses de tratamento, supusemos que todos os pacientes em uso contínuo destes medicamentos estariam incluídos em nossa análise.

Estas mulheres eram pertencentes a classes sociais populares, moradoras de região periférica da cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo, Brasil, sendo mulheres em sua maioria aposentadas, donas-de-casa, lavadeiras de roupa, com ensino fundamental incompleto. As queixas mais destacadas em seus prontuários médicos foram depressão, ansiedade, insônia e nervosismo. A este quadro clínico soma-se o fato de serem pacientes idosas e viverem em processo de exclusão social, o que as fazem no momento da entrevista sentir-se importantes, entusiasmadas por serem ouvidas, e a reproduzir, conseqüentemente, um discurso extenso, fora do roteiro da entrevista, preocupadas com a capacidade de produzir um discurso correto (caracterizado pela dualidade entre o dito certo e o errado), e não em reproduzir a realidade(12). Devido a esta singularidade das pesquisas com idosas, elaboramos um roteiro de entrevistas condizente, valorizando a singularidade e a pluralidade das entrevistadas.

As entrevistas foram gravadas em fitas cassete, transcritas e analisadas. Foi realizada uma entrevista para cada usuária de benzodiazepínicos, durante os meses de janeiro a março de 2004, sendo utilizado nas transcrições nomes fictícios. O local das entrevistas foi o próprio Núcleo de Saúde Mental, mediante consentimento livre e esclarecido, e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Análise dos dados

Fizemos a análise dos dados procurando traduzir o contexto na qual fazem parte as pessoas entrevistadas, através da realidade mostrada pelas entrevistadas. Desse modo, analisamos as representações ou concepções sobre os calmantes alopáticos.

Como as mulheres entrevistadas são pacientes psiquiátricos, foi necessário abordar a interferência da psiquiatria nas concepções dadas aos medicamentos. Portanto, vimos como a psiquiatria contribui para as concepções dadas aos calmantes benzodiazepínicos. Devido à psiquiatria estar mais próxima do meio social, ela consegue se legitimar, interferindo na vida cotidiana e nas concepções sobre saúde e doença, assim como as pessoas interferem nos discursos dos médicos psiquiatras(13).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O calmante alopático mais utilizado por quatorze das entrevistadas foi o diazepam. Outros benzodiazepínicos utilizados foram: alprazolam, clonazepam, bromazepam e lorazepam. O principal motivo de o diazepam ser mais consumido está em sua distribuição gratuita pelo Centro de Saúde Escola, sendo padronizado e de menor custo comparado a outros benzodiazepínicos.

Em nossa pesquisa, nos deparamos com um grande conhecimento dos pacientes em relação aos nomes dos medicamentos, devido à trajetória de anos de convivência com diversos médicos, com diversos medicamentos, distinguindo quais são considerados melhores ou piores (de acordo com as entrevistadas a média de tempo de uso foi de 16 anos): Faz uns 15 anos, por aí ou mais, uns 16 anos até. (...).usei vários remédios, mas não me lembro todos agora (...). Diempax (diazepam), Fronta (alprazoam), Lorax (lorazepam). Mas, eu não me dei bem com o Lorax, parei ... (Beatriz, 62 anos).

Como os benzodiazepínicos são de uso contínuo, adquiridos somente através de receita médica, as mulheres estão freqüentemente em contato com médicos psiquiatras. Assim, é com base nesse contexto, que os calmantes são avaliados constantemente pelas pessoas entrevistadas. Além disso, muitas pacientes utilizam vários medicamentos e se consultam com vários outros médicos de outras especialidades.

O controle sobre o uso dos medicamentos está acima das ordens médicas, sendo o conhecimento sobre os medicamentos um motivo de orgulho por parte dos pacientes, por ter autonomia sobre os medicamentos(14). Os horários e as quantidades de comprimidos são alterados em nome do controle, da autonomia sobre a terapia. São as entrevistadas que pedem para o médico fornecer o medicamento, aumentar a dose, retirar os calmantes. Quando isto não ocorre, a busca por calmantes acontece através das redes de relações sociais.

Eu vim aqui, falei pra ele, o doutor, pra ele aumentar a dose pra mim num chorar, né, que eu ia ficar seca. Daí ele falou: "quem num chora quando uma filha casa é porque não tem amor na filha". Aí uma amiga da filha minha, falou: "eu tenho um remédio", o nome do remédio é...(...) (Orinalva, 62 anos).

Os medicamentos têm que passar muitas vezes por testes, sendo tomados com desconfiança, aceitos de maneira suspeita. A idade pode contribuir para a automedicação, pois supõem que já conhecem os efeitos dos medicamentos, tirando-os muitas vezes de contextos anteriormente cabíveis e aplicando-os em outros, interagindo com outros medicamentos, com outras doenças que tenham sintomas semelhantes aos de doenças anteriores. Assim, o remédio precisa de aprovação, podendo essa aprovação estar ligada aos conhecimentos empíricos promovidos através do tempo: o médico às vezes me passa a receita e eu fico meio desconfiada, não tomo, eu começo de uma metadinha... (Orlinda, 60 anos).

Diversos fatores podem contribuir para o uso de medicamentos de modo distinto do prescrito pela medicina. Nem sempre a comunicação entre médico e paciente é feita de forma coerente e, por exemplo, uma prescrição pode ser entendida de forma errônea. A este respeito, podemos observar as dificuldades de compreender o que o médico fala ou escreve: Porque uma vez eu entendi mal a letra do médico, eu tava tomando... (Fabiana, 60 anos). Devemos considerar que, em grande parte, o uso inadequado dos medicamentos é também causado por erros de prescrição médica. Nos Estados Unidos, 56% dos erros no uso de medicamentos são causados por prescrições de profissionais de saúde. E cerca de um milhão de pacientes por ano são vítimas de algum efeito adverso causado por medicamentos administrados por profissionais de saúde, e destes pacientes, 140 000 morrem(15).

A doença, além de fenômeno individual, é também social(10,16). Nesse sentido, podemos concluir que as concepções sobre doença e saúde interferem no tratamento, no uso de medicamentos, o que leva a interagir com o tratamento as pessoas que estão próximas ao doente, como parentes, amigos, vizinhos, dando conselhos, opiniões e sugestões sobre os medicamentos que o paciente está fazendo uso, até mesmo receitando outros medicamentos.

Algumas entrevistadas possuem ou convivem com pessoas próximas, como marido, filhos, irmãos ou vizinhos, que tomam calmantes ou medicamentos psicotrópicos: Irmão e irmã, eu tenho um irmão que toma, dois irmão que toma e duas irmã que tomam e minha filha (Claudete, 61 anos). Essa convivência pode estar contribuindo para maior conhecimento sobre calmantes, fazendo surgir concepções sobre os mesmos, o que interfere na maneira de usá-los, sendo freqüentemente emprestados: (...) se ela precisar, coitada, se ela não dorme acho que pode emprestar, né? (Sabrina, 68 anos). Ocorre também a indicação do médico para a aquisição de receitas: Às vezes eu falo pra minha filha, né, às vezes ela tá nervosa, agitada, eu falo: "ué, vocês tem que fazer igual mãe de vocês, procurar um psiquiatra que eles vão te dar remédio que é muito bom" (Eupídia, 64 anos).

A rede de relações sociais, formada pelas pessoas que circundam o ambiente das entrevistadas numa interação comunicativa, relacionada ao uso de calmantes, é visível, conhecendo o porquê e o quê o outro consome. É através dessas relações que se conhecem os efeitos dos medicamentos. Porém, mostra-se que o empréstimo e a prescrição de medicamentos entre as pessoas são enfraquecidos pelo individualismo e não pela consciência dos efeitos nocivos que os calmantes podem causar. É bom lembrar que os calmantes benzodiazepínicos são medicamentos ditos controlados, sendo fornecida a prescrição com número limitado de comprimidos e adquiridos apenas através de prescrição.

Num sei te explicar. Teve gente que já quis me dar remédio. Teve gente que já quis o meu também. Eu falei "que num posso te dar que este remédio é controlado, esse remédio é meu e se te dar vai me fazer falta", falei assim "vai buscar receita", mandei ela vir aqui (Constância, 60 anos).

Desse modo, a indicação, empréstimo de calmantes para outras pessoas é justificada através dos mesmos motivos que elas concebem para seu uso. O porquê de seu consumo é a insônia, os problemas familiares, sociais. Assim, a automedicação com calmantes é expandida, o modo de usar os calmantes vai além das prescrições médicas para determinados pacientes. No entanto, não devemos descartar que o cruzamento de várias informações podem levar a um conhecimento confuso e incoerente de tratamentos(10).

O Diazepam é bom pras pessoas, as pessoas que num dormem, tem insônia. O meu filho, ele bebe muita cerveja, ele tem problema de beber muita cerveja. E ele tem muito problema familiar. Já tem oito filhos com 6 mulheres, tem que pagar pensão, muita criança. Ele tem dificuldade na vida dele demais, então, tem noite que ele não dorme de pensar na vida. Aí, ele vai lá em casa e busca o Diazepam. Eu pego e dou pra ele, e ele dorme com o Diazepam, se sente bem. Eu falei pra ele:."vai no médico, pede o Diazepam, que eu num posso tá te dando Diazepam que faz falta pra mim" (Ivone, 71 anos).

A forma de adesão ao tratamento recebe influência do profissional médico, pois, segundo a maioria das pacientes, os médicos lhes falam para tomar meio comprimido, um quarto, para ir diminuindo: Só que ele (psiquiatra) falou pra mim, que não faz bem tomando sempre, que era pra mim passar pra um quarto e ir parando. Tentar ir parando (Orlinda, 60 anos ). Para estes pacientes não há um tratamento médico coerente e determinado e quase sempre o paciente é levado a decidir como tomar seus calmantes. Podemos observar, através da fala das entrevistadas, que os médicos induzem-nas a ter uma autonomia equivocada sobre seus tratamentos, o que conseqüentemente favorece a automedicação. Desse modo, os problemas sociais, familiares, econômicos e as concepções sobre os calmantes acabam ditando a maneira de usar ou não as prescrições médicas. Além disso, o uso incorreto pode aumentar a prevalência de pessoas dependentes e a dependência ditar também a maneira de usar os calmantes. A liberdade que o médico oferece ao paciente de querer ou não parar de tomar o medicamento pode levar ao uso errôneo, de se tentar interromper o uso sem a devida assistência, pois: Eu acho que eu tenho tido pouca explicação dos médicos (Eupídia, 64 anos).

A autonomia do paciente pode estar sendo influenciada pela fala do médico, e as informações sobre calmantes podem estar incompletas ou ser mal compreendidas pelas pacientes. Adicionalmente, há tendência induzida de o paciente se culpar por ser dependente dos calmantes e por não deixar de consumí-los: Aí o Dr. Fábio disse pra eu continuar tomando meio e eu tô nesse meio. Eu tento não tomar mais, mas é difícil...só quando eu tô com muitos problemas (Orlinda, 60 anos).

O fato de não estar se sentindo bem devido aos efeitos dos medicamentos é muitas vezes generalizado, quase sempre pelas redes de relações sociais, pela vizinhança, pelos parentes. Isso pode levar a empréstimos, informações e concepções sobre os calmantes. Há o conhecimento de que se pode dar o medicamento para as pessoas avaliadas por aquele que já o está tomando. Porém, aquela pessoa pode ser que esteja tomando outros medicamentos que possam interagir com o emprestado.

Oh, eu acho que se a gente puder ficar sem ele é muito melhor. Por exemplo, a minha vizinha toma Lexotan, dois por dia de 6 miligramas. Eu falei para ela: "meu médico tá tirando o meu, eu tô diminuindo, eu tô sentindo tão bem, porque você não faz o mesmo, ao invés de tomar dois, toma um, compra de 3 miligramas, aí você vai diminuindo". Eu dou conselho para a pessoa não tomar (...).Já pediu, só que o dela é de seis miligramas, só que ao invés deu dá dois eu dou quatro, né, porque ela (vizinha) toma dois de uma vez. Eu nunca fico sem, porque tomo só um quarto. Já pediu sim, mas não foi só ela não (...). Ela pedi pra mim emprestado, às vezes. Eu nem quero de volta, porque o dela é o de seis miligramas. Eu nem quero, eu falo: "num precisa me dar não" (Beatriz, 62 anos).

Porém, nem sempre deixar que o outro saiba que está consumindo um calmante ou fazendo tratamento psiquiátrico é conveniente, fazendo com que seu uso fique individualizado. Para uma das pacientes (Teodora), o consumo de calmantes pode ter conseqüências para seus usuários, pois podem sofrer discriminações, o que restringe uma rede de comunicações sobre os calmantes. O consumo de calmantes pode produzir socialmente a exclusão, seu consumo deve ser dissimulado. O fato de freqüentar um psiquiatra é motivo para não arrumar emprego ou ser despedida, ou ficar sem comunicação com vizinhos, amigos, parentes: Mas, eu num contava que tomava calmante, eu num falava que tratava com psiquiatra porque se falar aí a patroa não dá emprego, porque se essa pessoa trata com psiquiatra e bebe calmante, a pessoa já fica meia assim. (Teodora, 61 anos). Desse modo, as consumidoras de calmantes constroem suas redes de relações sociais ao mesmo tempo em que estas redes a constroem, estabelecendo o modo como usam os calmantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O consumo de calmantes alopáticos não está relacionado apenas à relação médico/paciente, mas engloba o contexto no qual o paciente está inserido, o que foi possível analisar através do modo como estes medicamentos são consumidos e disseminados através do conhecimento de suas usuárias. Assim, o controle sobre medicamentos psicotrópicos como os benzodiazepínicos deve ir além da clínica, por programas eficientes de vigilância sobre o abuso ou o uso incorreto.

Observamos que através do tempo de uso, os efeitos dos calmantes são conhecidos e, assim, suas usuárias avaliam outras pessoas, ditando se devem ou não tomar seus medicamentos. Desse modo, o poder das prescrições médicas perde sua validade frente à imposição de saberes popularizados do uso dos calmantes. O controle médico passa a ser de domínio público. Além disso, o envelhecimento contribui para esta autonomia frente às terapias medicamentosas, indicando a necessidade de uma maior atenção sobre questões relacionadas ao envelhecimento e sobre o modo que estão consumindo seus medicamentos.

Como as mulheres apresentam-se como as maiores consumidoras de serviços de saúde e de medicamentos, sendo isto intensificado pelo envelhecimento, podemos constatar que existe um sinergismo entre envelhecimento, gênero e psiquiatria, contribuindo para que se transformem em "especialistas populares" sobre terapias medicamentosas, popularizando o uso de calmantes alopáticos. Assim, o consumo de calmantes alopáticos é particularizado de acordo com os contextos social e cultural em que os pacientes estão envolvidos.

Recebido em: 29.8.2005

Aprovado em: 8.11.2005

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005

Histórico

  • Aceito
    08 Nov 2005
  • Recebido
    29 Ago 2005
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