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Auto-estima de mulheres que sofreram violência

Resumos

Estudo qualitativo que mostra resultados de oficinas de auto-estima realizadas com usuárias (mulheres que foram violentadas sexualmente) e profissionais da área da saúde, com o objetivo de elevar a auto-estima dessas mulheres e sensibilizar os profissionais que as atendem. Foram utilizadas técnicas da PNL, que possibilitaram trazer à tona experiências vividas, contribuindo para uma releitura e minimização dos fatores causais da baixa auto-estima. Nas oficinas foram abordados temas como: o nojo, medo e fruto do estupro; imagem e local; morte; vingança; apoio e solidariedade; violência doméstica e o mau atendimento às vítimas. As histórias foram transcritas e analisadas, mantendo a fidelidade dos conteúdos. Responderam pela baixa auto-estima experiências vivenciadas no lar e junto a pessoas pelas quais se nutria afeição e admiração, e aquelas advindas principalmente da violência sofrida. As avaliações apontaram as oficinas como oportunidade de reflexão, retomada da vida normal e reconstrução da auto-estima, tanto para as vítimas da violência como para os profissionais da saúde que as atendem.

auto-imagem; mulheres; violência; estupro


This qualitative study shows the results of workshops held with health workers and public health users (raped women), aimed at raising these women's self-esteem and creating awareness among health workers who attend them. Neuro-Linguistic Programming techniques were used to bring back life experiences, which contributed to a re-reading and to minimize causal factors of low self-esteem. Themes like repugnance, fear and the fruit of rape; image and place; death; revenge; support and solidarity; domestic violence and bad care delivery to victims were addressed during the meetings. The stories were transcribed and analyzed, preserving content fidelity. Experiences lived at home and with loved and admired people, and mainly experiences resulting from the rape were responsible for the low self-esteem. The evaluations indicated the workshops as an opportunity to reflect, to return to normal life and to reconstruct self-esteem, for the raped women as well for the health workers who deliver care to them.

self concept; women; violence; rape


Este estudio cualitativo muestra resultados de oficinas de autoestima realizadas con usuarias (mujeres que sufrieron violencia sexual) y profesionales de instituciones de salud, con objeto de elevar la autoestima de esas mujeres y sensibilizar los profesionales que las asisten. Con las técnicas de la Programación Neurolinguística, surgieron experiencias vividas, favoreciendo nueva lectura y minimización de los factores causales de la baja autoestima. En los encuentros, fueron tratados temas como: asco, miedo y el fruto de la violación; imagen y local; muerte; venganza; apoyo y solidariedad; violación domestica y la mala atención a las victimas. Las historias fueron copiadas y analizadas, manteniendo la fidelidad del contenido. La responsabilidad por este problema de baja autoestima vino de experiencias negativas vividas en el hogar y con personas de nuestro circulo de afecto e admiración, principalmente las que surgieron con la violación. Las evaluaciones mostraron que las oficinas constituyen un medio de reflexión, retorno de la vida normal y reconstrucción de la autoestima, tanto para las victimas de violencia sexual como para los profesionales que las asisten.

autoimagen; mujeres; violencia; violación


ARTIGO ORIGINAL

Auto-estima de mulheres que sofreram violência

Lucila Amaral Carneiro ViannaI; Graziela Fernanda Teodoro BomfimII; Gisele ChiconeIII

IProfessor Titular da Escola Paulista de Medicina, e-mail: lvianna@reitoria.epm.br

IIEnfermeira do Hospital São Paulo. Universidade Federal de São Paulo

IIIEnfermeira do Hospital São Luiz

RESUMO

Estudo qualitativo mostrando resultados de oficinas de auto-estima realizadas com usuárias (mulheres que foram violentadas sexualmente) e profissionais da área da saúde, com o objetivo de elevar a auto-estima dessas mulheres e sensibilizar os profissionais que as atendem. Foram utilizadas técnicas da Programação Neurolingüística (PNL), que possibilitaram trazer à tona experiências vividas, contribuindo para uma releitura e minimização dos fatores causais da baixa auto-estima. Nas oficinas foram abordados temas como: o nojo, medo e fruto do estupro; imagem e local; morte; vingança; apoio e solidariedade; violência doméstica e o mau atendimento às vítimas. As histórias foram transcritas e analisadas, mantendo a fidelidade dos conteúdos. Responderam pela baixa auto-estima experiências vivenciadas no lar e junto a pessoas pelas quais se nutria afeição e admiração, e aquelas advindas principalmente da violência sofrida. As avaliações apontaram as oficinas como oportunidade de reflexão, retomada da vida normal e reconstrução da auto-estima, tanto para as vítimas da violência como para os profissionais da saúde que as atendem.

Descritores: auto imagem; mulheres; violência; estupro

INTRODUÇÃO

Este projeto nasceu da percepção e da experiência da pesquisadora e seu grupo de pesquisa ao assistir mulheres nas unidades básicas de saúde e ao promover oficinas de auto-estima com alunos, funcionários e clientes. Os resultados dessas pesquisas permitem afirmar que o impacto das condições sociais sobre a saúde das mulheres está estreitamente ligado à discriminação e à repressão sexual, ou à violência sexual; esses estudos também apontaram a baixa auto-estima como fator primordial desencadeado pelas situações de exclusão, abandono e privação e de ameaça vivenciadas nas relações, com conseqüências negativas na qualidade de vida(1-2).

Segundo a hierarquia de Maslow, nós, seres humanos, após a satisfação das necessidades fisiológicas, temos necessidades de segurança relacionadas ao abrigo e à proteção ao nosso físico, família, lar e comunidade; em seguida vêm as necessidades de estima relacionadas ao egoamor próprio, auto-estima, auto-respeito, confiança-necessidade de reconhecimento, apreciação e admiração(3). A satisfação das necessidades de auto-estima leva o indivíduo a se sentir confiante (no seu valor, força, capacidade e adequação), mais útil e necessário ao mundo. A não satisfação produz no indivíduo sentimentos de inferioridade, fraqueza e impotência. A persistência desses sentimentos desencadeará fracassos na sua trajetória ou processos patológicos variados(4). As necessidades básicas estão entrelaçadas e o bem-estar depende da segurança: quanto mais seguros nos sentimos no ambiente em que estamos circunscritos, nossa auto-estima estará sendo alimentada pela confiança e respeito e, consequentemente, mantendo-se elevada.

Acidentes e violência decorrem da ação ou da omissão humana, vinculada a certos condicionantes, incluindo-se os aspectos sociais, que causam dano à saúde e estariam no grupo das "Causas Externas" que englobam as causas acidentais: trânsito, trabalho, quedas, envenenamentos, afogamentos, entre outras; e, causas intencionais: agressões e lesões autoprovocadas. Se, por um lado, os acidentes se apresentam numa curva diretamente proporcional ao desenvolvimento tecnológico e urbano, a violência aumenta na história humana, e está diretamente ligada às questões comportamentais e situacionais dos indivíduos(5).

É fundamental ter clareza que a diferença entre os gêneros é o elemento que vai organizar todas as desigualdades entre homens e mulheres nos espaços público e privado, rompendo com a argumentação tradicional que tenta explicar a diferença masculina e feminina pela maternidade e que repousa nos valores domésticos para a mulher. No entanto, insistir na diferença enquanto essência feminina é manter a relação de poder entre os gêneros. A mulher vem conquistando, cada vez mais, seus direitos nas últimas décadas, porém, permanecem ainda relações desiguais entre os sexos, dando origem a sérios problemas, sendo o mais grave deles a morte por assassinato, muitas vezes resultante da violência sexual contra a mulher(1).

O processo de aquisição da identidade feminina, que a psicologia tem identificado como enigma da feminilidade e, dentro desse campo, a dependência tem sido uma das questões mais debatidas pelo movimento feminista, tendo sido identificada como um dos maiores obstáculos para o avanço das mulheres. As coisas parecem mais claras quando nos referimos à dependência econômica, ou às condições de vida necessárias para desfrutar de autonomia. Porém, o terreno se torna movediço quando aparece a realidade da dependência afetiva(6).

As autoras questionam: a auto-estima das mulheres tem relação com sua dependência/independência financeira e/ou afetiva? O homem pode se considerar tão superior à mulher e por isso violentá-la sexualmente?

O conceito de dependência costuma incluir diferentes tipos de fenômenos, entre eles aquele que significa submissão, ou seja, a incapacidade da mulher se manter, condicionando-a em função do outro; e a dependência que faz com que a mulher se ajuste ao que outra pessoa espera dela por medo do abandono. Por outro lado, a dependência pode advir da necessidade que se tem de outra pessoa para cobrir as carências afetivas. Enquanto a dependência é uma trava para a libertação das mulheres, a carência é inerente à condição do ser social. Ou seja, a necessidade afetiva não pode ser confundida com a ausência da autonomia que tem posto as mulheres numa relação de submissão no espaço público e privado(1).

As autoras compreendem que, para se conseguir a autonomia e a independência são necessárias a satisfação das necessidades afetivas e vitais em geral. Dessa maneira, o problema das mulheres está radicado no fato em que são educadas para que outros e outras dependam delas, relegando suas necessidades afetivas a segundo plano. É exatamente aqui que acontece a vivência do vazio interior como sensação de carência e confusão que as faz se sentirem débeis, fracas e tender a estar compulsivamente dependendo de outra pessoa.

Por violência contra a mulher se entende todo agravo causado pelo homem, que tenha ou pode ter como resultado um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, inclusive as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária da liberdade, tanto se produzidas na vida pública quanto na vida privada(1).

Vem se agravando a incidência de violência sexual, ou seja, do estupro* * Estupro: constranger a mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça contra as mulheres, que deixa seqüelas físicas e psicológicas e as vítimas ficam mais vulneráveis a outros tipos de violência, à prostituição, ao uso de drogas, às doenças sexualmente transmissíveis, às doenças ginecológicas, aos distúrbios sexuais, à depressão e ao suicídio.

O abuso sexual ainda está ligado a outros problemas comportamentais como uso excessivo de álcool e outras drogas e sexo desprotegido com multiplicidade de parceiros(7-8). Tornando-se fundamental a articulação entre as áreas da saúde, educação e segurança, sugerindo ações conjugadas entre as três esferas institucionais e os grupos organizados de mulheres que trabalham contra a violência, ou seja, a implantação de programas que visem a sensibilização dos profissionais das áreas envolvidas com a questão.

No Brasil, os crimes sexuais ainda são pouco denunciados e o número real de casos é muito superior ao que chega ao conhecimento da Polícia e do Judiciário. O Ministério da Saúde reconhece que menos de 10% dos casos de violência sexual são notificados na Delegacia. O cenário de violência sexual no país tem graves repercussões para a saúde pública e os direitos humanos das mulheres e adolescentes, apontando para a necessidade de redução das barreiras administrativas e culturais existentes para o pleno acesso aos serviços de saúde(9).

A maioria dos serviços de saúde carece de profissionais treinados no reconhecimento dos sinais da violência. Esse diagnóstico requer um grupo de apoio, que extrapola os serviços de saúde, para que os problemas identificados sejam resolvidos e os traumas resultantes desse tipo de violência sejam mais facilmente superados. Além disso, cabe ao setor da saúde acolher as vítimas, buscando minimizar a dor e evitar outros agravos. Justifica-se o desenvolvimento das oficinas de auto-estima, que vêm fortificar as mulheres e ajudá-las a se desvencilhar do trauma sofrido. Como exemplo de trabalho conjunto de diversos profissionais da área da saúde, pode ser citado o que vem sendo desenvolvido na Casa de Apoio à Mulher Professor Domingos Deláscio, desde 1999.

Foi construído o objeto deste estudo como sendo a melhoria da auto-estima das mulheres, por meio de oficinas que complementariam a assistência recebida na Casa, além de focalizar algumas premissas interligadas, ou seja, a submissão, a violência doméstica e, em particular, a violência sexual que tem contribuído para a deterioração da qualidade de vida e saúde de grande parte das mulheres brasileiras. Assim, esse estudo teve como objetivo apresentar a oficina como ferramenta para auxiliar as mulheres na reconstrução de sua auto-estima e sensibilizar os profissionais da área da saúde.

METODOLOGIA

A realização desta pesquisa foi precedida pela apreciação e aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo e as participantes inscritas foram informadas do objetivo e que sua participação seria voluntária.

Este estudo é de natureza qualitativa, porque se propõe a trabalhar com pessoas, com atores sociais em relação e com grupos específicos (usuárias de serviços de saúde e profissionais da área da saúde), e "... esses sujeitos de investigação, primeiramente, são construídos teoricamente enquanto componentes do objeto de estudo"(10). É, portanto, nesse caminho que foram utilizados instrumentos da pesquisa qualitativa para responder pelo objetivo proposto, para analisar o processo de auto-estima, lançando mão da interdisciplinaridade entre os diferentes campos de saberes (transversalizados pelas relações de gênero), utilizando a história de vida. Essa modalidade, que nasce basicamente com a contribuição da Antropologia, da Sociologia e da Comunicação, permite aprofundar o estudo do fenômeno e compreender a complexidade dos fatores que intervêm na "cultura da baixa auto-estima", principalmente entre as mulheres que sofreram violência; construindo entre elas e as pesquisadoras relação de confiança em que expõem sua situação e suas experiências de vida, possibilitando assim a reflexão e a expectativa de mudança de comportamento em relação à própria auto-estima. Há, ainda, a referência teórico-metodológica das relações de intersubjetividade que permeiam todos os sujeitos sociais que dela participaram, bem como a relação entre as pesquisadoras e os sujeitos.

Enfim, acredita-se que a validade deste estudo está na sua capacidade de dar concretude ao objeto abstrato em todas as suas dimensões, neste caso, por meio das diferentes oficinas de trabalho, dos grupos focais e do processo de avaliação qualitativa.

São relatados resultados de cinco grupos de mulheres (oficinas), cada um com cinco a seis encontros, iniciados com mulheres que sofreram violência e que procuraram ajuda na Casa de Saúde da Mulher Prof. Dr. Domingos Deláscio da Unifesp. Em cada grupo, participaram, ainda, cinco funcionárias que normalmente recebem e prestam assistência às mulheres, levando à sensibilização das profissionais.

Partindo da premissa de que, tradicionalmente, em nossa cultura, os meninos recebem desde cedo mais estímulos positivos que as meninas, o que vai refletir na formação da sua personalidade e na construção da sua auto-estima, lançou-se mão de Soeiro que afirma "se ficarmos muito tempo sem estímulos positivos das nossas platéias, se não ouvirmos o som dos aplausos por um bom período, certamente nos sentiremos mal. A tendência é para nos deprimirmos e ficarmos inseguros quanto à nossa capacidade. As platéias hostis ou indiferentes causam um estrago bastante grande na nossa auto-estima"(11).

O mesmo autor ofereceu subsídios que levaram ao uso das técnicas de dramatização, a partir do psicodrama para as oficinas com as participantes no entendimento da própria realidade para que encontrassem melhores respostas às novas situações(11). Além disso, as oficinas basearam-se nos princípios da Programação Neurolingüística (PNL)(12-13) que compreende três idéias:

- "neuro", que reconhece todos os comportamentos a partir dos processos neurológicos da visão, audição, olfato, paladar, tato e sensação, pois o mundo é percebido através dos cinco sentidos, "compreensão da informação antes da ação";

- "lingüística", ou seja, a linguagem para ordenar pensamentos e comportamentos e a comunicação entre os indivíduos;

- "programação", referente à organização de idéias e ações para produzir resultados.

Finalmente a PNL adota atitude de curiosidade e fascinação em vez de partir de pressupostos, trazendo de volta a experiência subjetiva e expressando a natureza da experiência interior(12).

Estratégias da dramatização e da linha da vida foram usadas para que as mulheres pudessem trazer as suas experiências desde a infância, refletindo sobre elas, possibilitando releitura que permitisse a elaboração de novos conceitos sobre sua condição de ser mulher.

Assim foram estabelecidos módulos de:

- auto-ajuda para levantamento de problemas pelas próprias mulheres, que não necessariamente deveriam estar ligados à violência sofrida;

- emersão da alta auto-estima como um dos elementos necessários para o exercício da cidadania;

- avaliação por meio das experiências vividas pelas participantes e narradas nas oficinas.

Foram utilizados jogos de aproximação com os componentes de cada grupo, jogos de palavras, narrativa da história de vida utilizando argila, desenho e recortes de jornais e revistas, trocas de informações sobre a identidade e sentimentos de cada participante e exercícios para maior objetividade e valorização pessoal.

A reflexão e a ação das pesquisadoras foram subsidiadas por bibliografias sobre a temática, sobre grupos de psicodrama e dramatização(11,14), sobre a PNL(12-13), além da participação em grupos de psicodrama e PNL.

Todas as avaliações do grupo de pesquisa e das mulheres foram gravadas, transcritas e analisadas pelo grupo de pesquisa, para que não houvesse distorção das falas e para que cada grupo pudesse corrigir as falhas e acertar as diferenças entre si. Foram realizadas sessões de grupos focais com os profissionais da Casa Domingos Deláscio, envolvidos no atendimento às mulheres. As situações foram descritas, reeditadas e analisadas a partir do quadro de análise pré-estabelecido pelas pesquisadoras, a partir das respostas surgidas. A seguir, as histórias de vida foram recontadas, no sentido de ordená-las, segundo a seqüência das categorias do quadro de análise, porém, mantendo a fidedignidade das características do conteúdo de cada história de vida.

Buscou-se compreender as semelhanças e as diferenças das experiências de vida com as participantes das oficinas por meio da análise das histórias de vida, que teve como base um trabalho onde os depoimentos vivos organizavam a experiência da participante(15). Fundamentada numa lógica interna que responde as principais questões da pesquisa, foram utilizadas palavras-chave das participantes, que possibilitaram o encadeamento do processo investigado, no caso desta pesquisa, a baixa auto-estima.

RESULTADOS

Sobre as mulheres

As mulheres que participaram das oficinas de auto-estima apresentavam estatura e compleição física dentro do padrão das mulheres brasileiras (em torno de 1,60m e 55 quilos), tinham aparência agradável e se vestiam de maneira discreta, não chamando atenção nem se mostrando de maneira sensual. Curiosamente, a maioria delas tinha pele clara e cabelos escuros e longos, que estavam soltos por ocasião do agravo; eram moças comuns que trabalhavam e/ou estudavam, uma delas apresentava leve deficiência mental.

Os exercícios de PNL ajudaram as participantes das oficinas de auto-estima a exporem sobre o porquê e quais situações que as incomodavam e, com isso, encarar aspectos que ainda não tinham sido relatados, enfrentando e minimizando problemas ao invés de fugir deles, sendo possível destacar alguns sentimentos expressos a seguir, assim como as falas para melhor análise do conteúdo.

- O nojo, o medo e o fruto do estupro

Após todo o trauma sofrido na situação de estupro, observou-se que a segunda grande ameaça, além do medo que envolve a situação em si e a probabilidade de adquirir doenças, é o medo de ter gerado uma criança fruto do acontecimento traumático, que não vai ser visto como um filho e sim como algo que sempre relembra e reitera a agressão, o sentimento de impotência e nojo em relação ao agressor, assim como qualquer objeto que possa lembrar o fato, como nos seguintes relatos.

... fico em pânico cada vez que vou fazer exame de HIV.

... graças a Deus não engravidei, porque não agüentaria ficar com aquela coisa.

... fiquei com tanto nojo da minha roupa que joguei fora.

- Imagem e local

Como em todo trauma sofrido, e no caso do estupro em particular, associa-se algum detalhe da cena, que a mente passa a rejeitar em outras pessoas, em outras ocasiões, em outros lugares e que, na maioria das vezes, se torna difícil identificá-lo e minimizá-lo sem ajuda técnica.

... tenho horror a homem grande e moren.

... não posso ver homem com camisa xadrez.

... não posso ver jardineiro (no condomínio fechado em que mora, informaram que havia sido um jardineiro).

... procuro sempre estar atenta quando estou no ponto de ônibus, olhando para os lados, reparando em quem se aproxima.

... ando pelo meio da rua, não passo mais junto do muro que pode ter um portão e me arrastaram para dentro.

A vítima tende a generalizar, utilizando na sua narrativa quantificadores universais como "todos" e "sempre", que devem e podem ser trabalhados, limitando-se àquela situação vivida(13).

- Medo da morte

Sem dúvida, o medo da morte é o grande responsável pela falta de reação das mulheres violentadas, e também a situação que mais as faz lembrar da agressão. O medo pode inibir reações que poderiam até mesmo evitar a violência sofrida(16).

... foi horrível: aquele homem me segurava e me ameaçava o tempo todo com uma faca.

... estava voltando para casa, quando o fulano me pegou pelo braço e me ameaçando com a faca me arrastou para um terreno baldio.

- O prazer da vingança

Essa realmente é uma chave para se trabalhar o trauma do estupro: de um modo geral, as mulheres deixaram transparecer até uma certa satisfação ao saber do "fim" que foi dado ao estuprador.

... meu patrão disse que já deu sumiço no cara.

... fiquei aliviada quando fui dar queixa e o policial disse: se nós pegarmos, ele morre.

- Apoio e solidariedade

As vítimas estavam sensíveis às demonstrações de apoio e solidariedade que receberam, e demonstraram que passaram a valorizar mais as atitudes positivas das pessoas para com elas(3).

... meu pai é muito ocupado, mas depois do que aconteceu ele saía mais cedo do escritório e passava as tardes ao meu lado, segurando minha mão e dizendo: pode dormir que estou aqui. Foi o melhor que podia acontecer.

...quando saiu o resultado dos exames e não deu nada, foi muito bom, e com a ajuda do meu "gatinho" (namorado) consegui superar a crise, a revolta e a depressão que sentia.

... foi muito importante cada sorriso, cada palavra dita por MO (funcionária da recepção da casa de Saúde Dr. Domingos Deláscio) no momento da angústia e do trauma, foi o mais confortante e marcante, não só para mim, mas para todas as outras meninas que chegaram aqui à procura de ajuda.

O trauma não só pode ser curado, mas com orientação e apoio apropriados, pode ser transformador(16). O trauma tem potencial para ser uma das forças mais significativas para o despertar e a evolução psicológica, social e espiritual. O modo como se lida com o trauma influencia, em muito, a qualidade de vida.

O último relato fala ainda sobre a importância do acolhimento adequado às mulheres que sofreram violências, o que justifica novamente a importância do desenvolvimento das oficinas também com os profissionais da saúde que atendem as vítimas, como forma de sensibilização e conscientização.

- O estupro dentro de casa

Num dos casos de violência causado por familiar, foi explícito o sentimento da jovem de que a família a via como culpada, por provocar o indivíduo. Nesse caso, a melhoria da auto-estima demandou um trabalho mais árduo e ao mesmo tempo delicado, pois não se pôde contar com o apoio familiar, pelo contrário. A superação do trauma foi trabalhada como desafio. Além de estarem vulneráveis à violência nas ruas, de um modo geral, as mulheres sofrem a opressão doméstica e são, muitas vezes, vítimas da agressão velada, molestação e/ou abuso de familiares e amigos, o que, além de causar um trauma, poderá permanecer por vários anos, ainda deixa a dúvida da culpa(1).

- Mau atendimento

Infelizmente a maioria dos hospitais e profissionais ainda não estão preparados para o atendimento a essas pacientes.

... o atendimento foi outro estupro, Fiquei numa maca no corredor, chorando, toda machucada e dolorida, e a médica veio com aquilo (especulo) e dizia fica quieta que eu preciso te examinar e coletar material para exame.

A violência doméstica e/ou sexual, enfatizando o estupro como uma constante em todas as culturas, e sendo o mais incidentes, quando relacionado ao uso excessivo de álcool e outras drogas(1), leva todos os profissionais envolvidos a encararem o desafio de recriar a linguagem da saúde, redimensionando o espaço da doença e das pessoas, que vivem cada uma a sua historia em diferentes contextos, com diferentes necessidades, porém, com iguais direitos de opinar sobre a forma como querem ser tratadas e ajudadas na situação vivida.

Sobre as oficinas

Nas oficinas foi possível observar que essas mulheres, da mesma maneira que os alunos de graduação de enfermagem, fruto de pesquisa anterior(3), responderam pela baixa auto-estima, experiências vivenciadas no lar e causadas pelos irmãos, pais e por pessoa pela qual se nutria afeição e admiração na infância. Foram evidenciadas aquelas lembranças negativas advindas da violência sofrida.

Foi possível notar que a compreensão e a aceitação por parte do namorado, marido, companheiro e todo apoio dos familiares foram facilitadores na retomada da vida normal e reconstrução da auto-estima para essas mulheres.

As avaliações individuais apontaram as oficinas como oportunidade para reflexão, mudanças de atitude e a perspectiva de novos caminhos. Um dos pontos positivos desta pesquisa foi a oportunidade de preparar três mulheres atendidas na casa de Saúde da Mulher da Unifesp que estavam motivadas a serem multiplicadoras das Oficinas de Auto-estima em suas comunidades.

Quanto às funcionárias, a situação mais marcante foi a partir do desabafo de uma delas numa das sessões, que disse estar solicitando transferência para outro serviço por não agüentar mais tanto sofrimento. Diante dessa afirmação, as mulheres participantes do grupo contestaram tal atitude convencendo-a de sua importância no acolhimento das vítimas na Casa, num momento tão desalentador.

Acredita-se que esta pesquisa, com as oficinas de auto-estima, deva continuar para o aprimoramento do método de avaliação da auto-estima antes e após cada ciclo, ou seja, no tocante à "minimização do fantasma" da situação do estupro, além de oferecer subsídios para outros grupos de apoio às mulheres que sofreram violências como forma de ajudá-las a enfrentar melhor a situação e também como forma de preparo aos profissionais que lidam com essas mulheres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em: 18.4.2005

Aprovado em: 3.7.2006

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  • *
    Estupro: constranger a mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Aceito
      03 Jul 2006
    • Recebido
      18 Abr 2005
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