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Cuida-dor (d)eficiente: as representações sociais de familiares acerca do processo de cuidar

Resumos

Este estudo objetivou analisar os significados do cuidar para cuidadores/familiares que compartilham o cuidado domiciliar de pessoas com deficiências físicas, por lesão medular traumática. Tendo como referencial metodológico a teoria das Representações Sociais (RS), a análise dos discursos obtidos por meio de entrevistas abertas, realizadas junto a oito cuidadores, apontou dois eixos condutores dos significados: o processo de sofrimento vivido pelos sujeitos na prática do cuidar e as águas turbulentas que permeiam sofrimento. Esses eixos, caracterizados como Núcleo Central e Sistema Periférico das RS, respectivamente, compuseram-se de temas como a visão da deficiência, a afetividade, a religiosidade, as mudanças socioeconômicas e a (falta de) suporte técnico-institucional. Os resultados desvelam um cuida-dor (d)eficiente, voltado para o cuidar de uma pessoa também com deficiência, tida como inválida, e esse cuidar realizado com muito sofrimento e privações, alicerçado na culpa e na religiosidade, suportado por ambigüidade afetiva e marcado por desgastantes mudanças socioeconômicas e falta de suporte técnico-institucional, para uma prática que pressupõe tantas especificidades. As alternativas de transformações do cotidiano desses cuidadores sinalizam, principalmente, para uma simbiose de invalidez com o outro - o viver pela pessoa com deficiência - ou, ainda, para poucos, um esboço de retomada dos projetos pessoais de vida - o viver com a pessoa com deficiência.

enfermagem em reabilitação; pessoas portadoras de deficiência; traumatismos da medula espinhal; psicologia social


This study aimed to analyze what looking after physically disabled persons with spinal cord injury by trauma means to their caregivers and family members. The analysis of the testimony of eight caregivers, obtained in open interviews, which was methodologically based on the Social Representations Theory (SR), pointed out two main routes: coping with the suffering process in care practice and the troubled waters that permeate this suffering process. These two routes, characterized as SR Central Core and Peripheral System, respectively, consisted of themes like the way of looking at impairment, affectivity, religiosity, social-economical changes and (lack of) technical and institutional support. The results show a handicapped caregiver dedicated to look after someone who is physically disabled, considered incapacitated, and who leads his or her chores with distress and privations, based on guilt and religiosity, supported by ambiguous affection and affected by deteriorating social-economical changes and (lack of) technical and institutional support to practice an activity that implies so many peculiarities. The transformation alternatives of these caregivers' daily life principally lead to a symbiosis of disability with the patient - to live for the physically disabled - or yet, for a few, a sketch to restart personal life projects - to live with the physically disabled.

rehabilitation nursing; disabled persons; spinal cord injuries; social psychology


La finalidad de este estudio fue evaluar los significados del cuidar para cuidadores/familiares que comparten el cuidado domiciliar de minusválidos físicos por lesión medular traumática. Utilizando como referencial metodológico la teoría de las Representaciones Sociales (RS), el análisis de las entrevistas abiertas, realizadas a ocho cuidadores, apuntó dos ejes conductores de los significados: el proceso de sufrimiento vivido por las personas en la práctica del cuidar y el de las aguas turbulentas que atraviesan este sufrimiento. Estos ejes, caracterizados como Núcleo Central y Sistema Periférico de las RS, respectivamente, fueron compuestos de temas como la óptica que se tiene de la minusvalía, la afectividad, la religiosidad, los cambios socio-económicos y (la falta de) soporte técnico-institucional. Los resultados revelan un cuidador incapacitado volcado al cuidar de una persona también incapacitada, tenida como inválida, y este cuidar realizado con mucho sufrimiento y privaciones, fundamentado en la culpabilidad y en la religiosidad, sostenido por una ambigüedad afectiva y marcado por extenuantes cambios socio-económicos y falta de apoyo técnico-institucional, para una práctica que supone tantas especificidades. Las alternativas de transformación del cotidiano de esos cuidadores señalan, principalmente, para una simbiosis de invalidez con el otro - el vivir por el minusválido - o aún para unos pocos, un boceto de retomada de los proyectos personales de vida - el vivir con el minusválido.

enfermería en rehabilitación; personas con discapacidad; traumatismos de la medula espinal; psicología social


ARTIGO ORIGINAL

Cuida-dor (d)eficiente: as representações sociais de familiares acerca do processo de cuidar1 1 Trabalho Extraído da Dissertação de Mestrado

Cuida-dor (d)eficiente: las representaciones sociales de familiares acerca del proceso de cuidar

Gisele Regina de AzevedoI; Vera Lúcia Conceição de Gouveia SantosII

IEnfermeira Estomaterapeuta, Professor Assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Doutoranda em Enfermagem, e-mail: gr.azevedo@uol.com.br

IIEnfermeira Estomaterapeuta, Professor Doutor. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

RESUMO

Este estudo objetivou analisar os significados do cuidar para cuidadores/familiares que compartilham o cuidado domiciliar de pessoas com deficiências físicas, por lesão medular traumática. Tendo como referencial metodológico a teoria das Representações Sociais (RS), a análise dos discursos obtidos por meio de entrevistas abertas, realizadas junto a oito cuidadores, apontou dois eixos condutores dos significados: o processo de sofrimento vivido pelos sujeitos na prática do cuidar e as águas turbulentas que permeiam sofrimento. Esses eixos, caracterizados como Núcleo Central e Sistema Periférico das RS, respectivamente, compuseram-se de temas como a visão da deficiência, a afetividade, a religiosidade, as mudanças socioeconômicas e a (falta de) suporte técnico-institucional. Os resultados desvelam um cuida-dor (d)eficiente, voltado para o cuidar de uma pessoa também com deficiência, tida como inválida, e esse cuidar realizado com muito sofrimento e privações, alicerçado na culpa e na religiosidade, suportado por ambigüidade afetiva e marcado por desgastantes mudanças socioeconômicas e falta de suporte técnico-institucional, para uma prática que pressupõe tantas especificidades. As alternativas de transformações do cotidiano desses cuidadores sinalizam, principalmente, para uma simbiose de invalidez com o outro - o viver pela pessoa com deficiência - ou, ainda, para poucos, um esboço de retomada dos projetos pessoais de vida - o viver com a pessoa com deficiência.

Descritores: enfermagem em reabilitação, pessoas portadoras de deficiência, traumatismos da medula espinhal, psicologia social

RESUMEN

La finalidad de este estudio fue evaluar los significados del cuidar para cuidadores/familiares que comparten el cuidado domiciliar de minusválidos físicos por lesión medular traumática. Utilizando como referencial metodológico la teoría de las Representaciones Sociales (RS), el análisis de las entrevistas abiertas, realizadas a ocho cuidadores, apuntó dos ejes conductores de los significados: el proceso de sufrimiento vivido por las personas en la práctica del cuidar y el de las aguas turbulentas que atraviesan este sufrimiento. Estos ejes, caracterizados como Núcleo Central y Sistema Periférico de las RS, respectivamente, fueron compuestos de temas como la óptica que se tiene de la minusvalía, la afectividad, la religiosidad, los cambios socio-económicos y (la falta de) soporte técnico-institucional. Los resultados revelan un cuidador incapacitado volcado al cuidar de una persona también incapacitada, tenida como inválida, y este cuidar realizado con mucho sufrimiento y privaciones, fundamentado en la culpabilidad y en la religiosidad, sostenido por una ambigüedad afectiva y marcado por extenuantes cambios socio-económicos y falta de apoyo técnico-institucional, para una práctica que supone tantas especificidades. Las alternativas de transformación del cotidiano de esos cuidadores señalan, principalmente, para una simbiosis de invalidez con el otro - el vivir por el minusválido - o aún para unos pocos, un boceto de retomada de los proyectos personales de vida - el vivir con el minusválido.

Descriptores: enfermería en rehabilitación, personas con discapacidad, traumatismos de la medula espinal, psicología social

INTRODUÇÃO

Durante o desenvolvimento da consulta de enfermagem, no Ambulatório do Conjunto Hospitalar de Sorocaba (CHS), aos deficientes físicos por lesão medular traumática (LMT), com vistas, principalmente, à reeducação vésico-intestinal, à manutenção da integridade da pele, à retomada da atividade sexual e à prevenção de deformidades, recebe-se esses clientes, na maior parte das vezes, na companhia de seus cuidadores domiciliares, freqüentemente membros da família.

Esses atendimentos têm sido feitos semanalmente, sempre em sala reservada, com a presença do cuidador e do paciente, durante o período em que o paciente estiver no programa de reabilitação da referida instituição, ou seja, de 12 a 24 meses. O clima de descontração que então, freqüentemente, se estabelece diante da familiaridade que caracteriza uma relação profissional tão prolongada, possibilita que os momentos de orientação técnica transformem-se em verdadeiras sessões de desabafos, onde se vêem expostas as dores e sofrimentos que afligem as famílias atendidas. Esse sofrimento caracteriza principalmente as ocorrências da LMT, pela forma violenta e abrupta com que acontece e que invade a vida das pessoas e das famílias, potencializando as perdas e contribuindo para a maior intensidade emocional nas relações que se re-estabelecem.

Os relatos mais comuns dos cuidadores referem-se aos sentimentos de impotência diante de um futuro tão aflitivo e de incompetência para tarefas específicas e desgastantes, dirigidas para um "novo" familiar que, a cada dia, mostra-se mais estranho no convívio domiciliar; ambos envoltos numa crise desoladora, após a passagem do furacão que desorganizou a vida de todos.

Diante de pessoas aflitas por tantos desarranjos, embora de fundamental necessidade, a orientação e o acompanhamento dos pacientes desde uma fase precoce de pós-trauma, facilitadores de uma adaptação satisfatória às atividades diárias, é também imperioso o conhecimento acerca das relações que se estabelecem, se desenvolvem e se reorganizam entre cuidador e paciente. Ao compreender os questionamentos assinalados, é possível atingir resultados mais profícuos no programa de reabilitação vigente no CHS.

Assim, o estudo ora proposto busca compreender as representações sociais do cuidar para esses cuidadores o que, certamente, fornecerá subsídios para a assistência de enfermagem mais adequada e efetiva, não só junto ao paciente mas também junto ao cuidador, contribuindo para o sucesso da reabilitação e conseqüente melhoria da qualidade de vida dessa clientela.

REFERENCIAL TEÓRICO

A lesão medular é definida como toda a agressão da medula espinhal que pode levar a danos neurológicos, relacionados às funções motora, sensitiva, visceral, sexual e trófica e pode ter origem traumática por acidente automobilístico, ferimento por arma de fogo, mergulho em águas rasas e queda de altura ou, ainda, causas não traumáticas como tumores, processos infecciosos, alterações vasculares, malformações, processos degenerativos ou compressivos. Nesse universo, a literatura aponta, no país e fora dele, claramente, a expressividade do trauma relacionado ao aumento da violência urbana(1).

Dentre as manifestações físicas crônicas da LMT, salientam-se as disfunções vesicais e anais de origem neurológica, insuficiência respiratória, disfunção erétil e ejaculatória, hipotensão ortostática, disreflexia autonômica, hiperatividade reflexa medular, anidrose e/ou hiperidrose, além de outras alterações motoras e sensitivas que, em conjunto, comprometerão a mobilidade e a independência nas atividades da vida diária. As deficiências adquiridas estão associadas à situação de morte em vida, gerando um processo de luto pelas perdas que envolvem exatamente a imobilidade, a dependência, o isolamento, as incertezas e a dor(2).

O perfil das possíveis complicações físicas oriundas da LMT delineia outro perfil equivalente de problemas retratados pelo significativo distanciamento e isolamento social por constrangimento, rejeição, autodegradação, danos à auto-estima e ao autoconceito(3).

Essa problemática, no entanto, certamente não afeta apenas a pessoa com LMT, mas também sua família, os "outros significativos". Alguns autores(4-5) relatam que o estado psíquico vivido pela família também é de perda e de morte e, para que se torne possível receber o familiar "real", é necessária a vivência do luto pelo familiar "perdido"; e que esse processo pode ser vivido em fases simultâneas e coincidentes, ou não. A visualização de uma pessoa com LMT, com todas as conseqüências aqui mencionadas, traz à reflexão conceitos como deficiência* * Disponível em: http://hygeia.fsp.usp.br/~cbcd/CIF/WebHelp/cif.htm .

Complexidade do cuidar - o cuidado

Passada a fase de internação hospitalar da pessoa com LMT, cujas prioridades de atendimento pela equipe de saúde detêm-se no tratamento das conseqüências da lesão medular, da insuficiência respiratória, das alterações da sensibilidade tátil, da atonia muscular, da arreflexia tendinosa e cutânea, da vasodilatação paralítica, da anidrose, da arreflexia vesical, da disreflexia autonômica, da atonia intestinal, da disfunção erétil e ejaculatória e da amenorréia - que caracterizam a fase de choque medular(4) - o grande investimento familiar é para o atendimento domiciliário desse paciente. Os aspectos físicos desse cuidar, no domicílio, envolvem atividades específicas e complexas como a realização de posicionamentos e transferências adequados, reeducação vésico-intestinal, cuidados para a manutenção da integridade da pele, a prevenção e o tratamento de úlceras de pressão, a manutenção da capacidade respiratória e ventilatória nas pessoas com tetraplegia e a readaptação sexual do(a) cliente e seu parceiro(a).

A necessidade desses cuidados ocorre num momento bastante difícil, geralmente marcado pela memória da recente violência que arrastou o indivíduo para uma situação nova e desconhecida e que demanda enfrentamento, pautado em características pessoais e sociais permeadas pelos símbolos, perspectivas, referências de grupos e experiências passadas, presentes na história de vida individual(6). A autora apresenta uma clientela sobrevivente ao trauma que vivencia uma nova realidade, que envolve redimensionamento de limitações e possibilidades, compreendida pela complexa experiência do adulto que se depara com a mandatária reaprendizagem e re-articulação de novas formas de ser/fazer.

Essa mesma vivência mandatária também diz respeito àqueles que compõem o seu mundo de relações, particularmente aqueles que cuidam, impondo-se, a ambos, o desafio de uma nova ordem: a reinserção social(6).

Tal ordem constitui um processo extremamente dificultoso e doloroso à medida que ambos, pessoa com deficiência e cuidador, estarão envoltos em um emaranhado de sentimentos conflituosos, deparando-se com o desempenho de tarefas até então estranhas à sua realidade e que demandam recursos físicos/psíquicos/sociais/intelectuais/financeiros, dos quais muitas vezes não dispõem.

Na história humana, o cuidado está relacionado à sobrevivência, reflete-se na saúde e, conseqüentemente, na qualidade de vida(7). Alguns estudiosos(8) derivam a palavra cuidado do latim - cura, cuja forma mais antiga - coera - era usada num contexto de relações de amor e amizade, expressando atitudes de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pela pessoa amada, ou objeto de estimação. Outros, ainda, consideram-na como originária da palavra cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar, cujo sentido é o mesmo de cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e preocupação. A associação de ambas as origens permite significar o cuidado como desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato e surge à medida da importância do sujeito a ser cuidado para o outro - o cuidador. Por sua própria natureza, o cuidado inclui, pois, duas significações básicas, intimamente ligadas entre si. A primeira, essa atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para com o outro e a segunda, de preocupação e de inquietação, porque a pessoa que cuida se sente envolvida e afetivamente ligada ao outro. Assim, a etiologia da palavra já é reveladora de um conflito.

O cuidado é, ainda, um modo de ser-no-mundo, uma forma de existir e de co-existir, de estar presente, de navegar pela realidade e de relacionar-se com todas as coisas do mundo(8).

O cuidador

Apreende-se, então, que todo cuidado implica na existência de um cuidador, ou seja, aquele que cuida formal ou informalmente. O cuidador formal é aquele que tem uma formação específica para os cuidados que presta e, geralmente, é remunerado para tanto: enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, educadores sanitários. Já os cuidadores informais são aquelas pessoas que passam a cuidar e apreendem, pela prática - ensaio e erro - a melhor forma de auxiliar a pessoa necessitada(9).

Outros conceitos, ainda ligados ao cuidador, referem-se às características do cuidado prestado. Tem-se, assim, o cuidador primário, como aquele que assume diretamente a responsabilidade pelos cuidados fundamentais necessários; e os cuidadores secundários, identificados como pessoas que prestam auxílios eventuais, ou cuidados considerados menos importantes para a recuperação do indivíduo(9).

Enquanto o cuidador formal tem sua estrutura bem definida, através da formação profissional e da ligação institucional, o cuidador informal necessita ser "identificado", o que nem sempre é tarefa fácil, havendo algumas regras inerentes à dinâmica familiar para a definição do cuidador principal(9). Gênero, parentesco, proximidades física e afetiva são variáveis importantes para a determinação da pessoa que assumirá o papel de cuidar. Tal análise, de per se, pressupõe que o cuidador seja um membro da família ou, pelo menos, um afim. Na realidade, no entanto, a disponibilidade para o exercício dessas tarefas é o critério que geralmente se copia, emergindo arranjos domésticos, em função de atividades profissionais, escolares, religiosas que melhor acomodem a situação.

Estabelecido o cuidador domiciliar/informal, trata-se de defini-lo como um sujeito social que absorve tanto o saber popular quanto o científico - transmitido pelo discurso dos profissionais - somado aos sistemas de valores e de crenças compartilhados socialmente que, reunidos, constituem seu pensamento imaginário em torno do cuidado familiar. Esse pensamento está repleto de traços culturais do grupo social em que vive(9).

Assim, representações/significados sociais do cuidar somados à necessidade premente de cuidado do familiar e à ausência ou deficiência de uma rede de suporte formal, passam a determinar a escolha do cuidador, cujas tarefas dependem do tipo de morbidade e nível de dependência daquele que é cuidado. Vê-se, ainda, às voltas com o medo de não cuidar adequadamente, além da necessidade de redefinição dos projetos de vida e das relações pessoais e sociais(9).

Embora se possa depreender, a princípio, significados positivos e negativos que envolvem as relações cuidador-paciente, pelas características das pessoas com deficiências e todas as marcas sociais que se imprimem nesse cuidar, o objetivo aqui proposto é desvendar os significados e as representações do cuidar para os cuidadores de pessoas com deficiência física por LMT, com a finalidade de contribuir para o papel educador da equipe interdisciplinar, principalmente o enfermeiro, em sua atuação junto a esse binômio: cuidador-pessoa com deficiência.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Ao se definir o objetivo deste estudo, estabeleceu-se o método qualitativo à luz das Representações Sociais (RS) como aquele que permitiria, de maneira mais adequada, a compreensão dos significados do cuidado de pessoas com deficiência física por LMT, na ótica do cuidador.

Representar, em Psicologia Clássica, significa um processo ativo que implica em reconstruir o dado de um contexto de valores, reações, regras e associações onde a existência exterior leva a marca do psiquismo individual e social. A representação consiste na instância entre a percepção e o conceito e seu caráter de imagem. É um conteúdo mental concreto de um ato de pensamento que restitui, simbolicamente, algo ausente. Foi Moscovici que propôs uma interface entre os fenômenos individuais e coletivos, numa abordagem psicossocial, através das RS, como meio de pensar a subjetividade nas Ciências Sociais(10).

Com o objetivo de conhecer alguns aspectos do contexto em que vivem os sujeitos deste estudo e, tendo em vista que a pobreza, as condições de trabalho, a moradia, os costumes e práticas de saúde são fatores intervenientes no estado de bem-estar(11), apresenta-se aqui algumas informações que ajudam a desvelar aspectos desse cenário. Essas pessoas - cuidadores de pessoas com lesão medular traumática em atendimento no Ambulatório de Reabilitação do Conjunto Hospitalar de Sorocaba - constituíram a casuística deste estudo, principalmente diante do observado impacto consumptivo na trajetória de vida das famílias atendidas no CHS, além da relevância da epidemiologia do trauma no cenário brasileiro das lesões medulares(1).

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética do Centro de Ciências Médicas da PUC/SP, tendo sido aprovado, juntamente com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Para este estudo, as entrevistas foram realizadas na cidade de Sorocaba, SP, no próprio Ambulatório, na sala onde são feitos os atendimentos, com exceção de um cuidador que solicitou ser entrevistado em seu domicílio, por não poder se ausentar por longo tempo. Antes das entrevistas, os cuidadores eram orientados quanto aos objetivos e procedimentos utilizados na pesquisa e, somente após consentirem e assinarem o TCLE, iniciava-se a sua realização em ambiente privativo e com garantia de manutenção do sigilo quanto à identidade dos sujeitos.

Os discursos obtidos foram gravados em fita cassete e, posteriormente, transcritos, o que também era sempre precedido da anuência dos cuidadores. A gravação é um instrumento bastante pertinente nas pesquisas que utilizam os discursos como coleta de dados, sendo que possibilitam reviver o momento das falas, com todas as suas peculiaridades. Além da questão central norteadora "O que significa para você cuidar de ...?", utilizou-se ainda de algumas indagações secundárias no transcorrer das falas dos cuidadores, com o objetivo de direcioná-los em torno do tema central.

A utilização da linguagem como meio de obtenção dos dados constituiu opção fundamental no referencial metodológico, já que ela exerce a mediação entre o mundo e nós, à medida que permite a elaboração de RS, como o sentido pessoal que se atribui aos significados elaborados socialmente(12).

Os discursos então gravados e transcritos foram posteriormente submetidos à análise de conteúdo, através de sua leitura exaustiva, associada à audição das fitas, buscando identificar os temas recorrentes e as contradições que emergiam espontaneamente, o estilo lingüístico evidenciando metáforas, afirmações pela negação e pelo não-dito, formas verbais mais usadas e até o sentido dos erros gramaticais.

Essa análise inicial e repetitiva objetivou a detecção do Núcleo Central e elementos do sistema periférico das RS, conforme proposto por Jean Claude Abric, em 1976, em sua Teoria do Núcleo Central das RS(13). A Teoria do Núcleo Central das Representações Sociais baseia-se na afirmação de que a representação é organizada em torno de um núcleo central, acompanhado de um sistema periférico(13). Segundo o autor, o Núcleo Central determina a sua significação, sua estabilidade e sua organização interna. É um subconjunto da representação, composto de um ou mais elementos e cuja ausência destruiria a representação ou dar-lhe-ia significação totalmente diferente. Está ligado à memória coletiva e à história do grupo, definindo a sua homogeneidade e resistindo às mudanças, sendo fruto de determinismos históricos, simbólicos e sociais; constitui a sua parte abstrata. Já, o Sistema Periférico é a parte concreta e permite a adaptação da representação em contextos sociais variados, em contato com as contingências diárias. Possibilita a integração das experiências e histórias individuais dos sujeitos, dando suporte à heterogeneidade e às contradições do grupo.

UM MERGULHO NO CUIDADO DOMICILIAR: O PROCESSO DE SOFRIMENTO EM ÁGUAS TURBULENTAS

Assim, dos oito cuidadores, sete eram do sexo feminino, sendo uma irmã e seis esposas dos clientes, e o único homem era marido da paciente. A idade média era de 31 anos, dentro de uma faixa etária que variou de 21 a 46 anos, e todos eram casados. Constatou-se que a maioria dos cuidadores tem baixo nível de escolaridade, sendo um analfabeto, seis com o Ensino Fundamental incompleto e um tendo completado o Ensino Médio. Destaca-se ainda que, dos dois que trabalham, apenas um tem registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social, notando-se que todas as famílias vivem com a renda de, no máximo, dois salários mínimos/pessoa.

No estudo, visualizou-se como núcleo central das RS do cuidado para cuidadores de pessoas com LMT, o processo de sofrimento - no qual os sujeitos mergulham ao se depararem com o súbito processo de cuidar - envolto por um sistema periférico caracterizado pelas águas turbulentas - nas quais debatem-se e passam a enfrentar. O processo de sofrimento, constituído pela visão que o cuidador tem da deficiência, pelo papel da religiosidade em sua vida e pela influência da afetividade em suas relações, está imerso em águas turbulentas, que envolvem as mudanças socioeconômicas impostas pela instalação da deficiência e a (falta de) suporte técnico-institucional, as quais interferem no processo de cuidar. Os elementos ou temas constituintes do núcleo central e do sistema periférico das RS, bem como seus subtemas, estão apresentados na Tabela 1.

Analisando as falas dos cuidadores, o fio condutor das narrativas apontou para um dia-a-dia difícil, carregado de sofrimento e dor, permeado pela ambigüidade de sentimentos, determinante de muitos conflitos afetivos.

Abordando o Núcleo Central, aqui denominado processo de sofrimento, faz-se um mergulho em sua porção mais profunda.

Imergindo no processo de sofrimento dos cuidadores

O processo de sofrimento ancora-se em uma visão da deficiência pautada em representações/ações negativas, numa percepção estigmatizada, que pode ser observada repetidas vezes ao se estabelecerem associações da pessoa com deficiência com o estereótipo da invalidez, incompetência e dependência.

O estigma, que é definido como cicatriz, como aquilo que marca, denota claramente o processo de desqualificação do indivíduo. Esse "olhar" coloca-o no mundo dos excluídos, entendidos como "todos aqueles que são rejeitados de nossos mercados materiais ou simbólicos, e de nossos valores"(14). A naturalização do fenômeno da exclusão e o papel do estigma - já que existem valores e representações do mundo que acabam por excluir as pessoas - servem para explicitar a natureza da incidência dos mecanismos que promovem o ciclo de reprodução da exclusão, representado pela aceitação tanto em nível social, como do próprio excluído(15).

...(daí eu falei pra ele assim): Nunca vou jogar na sua cara que eu tenho um marido inválido, isso eu num vou... eu quero de você a sua felicidade, como cê era antes e agora, mais não porque aconteceu isso com você, esse acidente com você, que eu vou falar que você é um homem inválido, um homem infeliz, não...

Alguns autores(3,5), em suas pesquisas, corroboram a visão da pessoa com deficiência como um ser imprestável, inválido e incapaz para o autocuidado. Na relação de cuidado, essas significações trazem à tona uma identificação da pessoa com deficiência com o sentimento de desamparo próprio da infância. Não se trata mais, então, de cuidar de um adulto, mas de uma criança ou, o que é mais significativo, de um adulto transformado em criança. Uma criança fora de sua hora e de seu lugar, que perdeu, ou quase, sua autonomia. E que sofre.

Assim, há maridos com deficiências que se tornam crianças, filhos e irmãos, enquanto esposas cuidadoras transformam-se em mães, irmãs mais velhas e/ou gerenciadoras e empresárias, em uma evidente alteração de papéis sociais. As representações da deficiência re-significam as relações entre cuidador e pessoa com deficiência, pois conformam/deformam valores, atitudes, afetos e relações de poder, que são alicerces dos relacionamentos.

... ele era uma pessoa assim, pra mim era ... sabe? Um homem. Agora eu num sei se eu tô cuidando do meu marido ou cuidando duma criança.

Ainda na ótica do cuidador, o sofrimento que permeia o processo de cuidar é influenciado pela percepção do sofrimento do outro, para o qual a dependência - forte marca da deficiência - ao torná-lo incapaz de assumir a própria vida, gera sentimentos de agressividade e revolta.

É o que eu penso, eu acho que eu (se fosse deficiente), também ia querer fazer coisa que eu não podia fazer, eu ia pensar na maneira do hoje e do ontem, eu queria que o hoje fosse como o ontem, não queria ficar sentado, ao invés de correr, então eu penso assim, que nessa hora que a pessoa começa a pensar assim, dá muita coisa na cabeça, daí que vem a revolta, daí que vem o nervosismo, daí que vem a angústia, acho que começa daí...

Esse olhar renovado - mesmo que não desejado - do outro/deficiente faz emergir também valores ancorados na determinação histórica, simbólica e cultural, como o senso de dever e responsabilidade, segundo os quais é exatamente como se deve agir frente àqueles que necessitam de nós, especialmente quando estão dentro de nossa própria casa, de nossa própria família. Aguça-se, mais uma vez, a questão da mulher enquanto pessoa responsável pela criança, da maternalização conseqüente à infantilização e dos conflitos e contradições gerados por esse olhar.

Acho que, tem que, eu vivi com ele dez ano bom, tem que vivê com ele até o fim da minha vida, com ele do jeito que tá, né? Ou desse jeito ou pior. Mais tem que...

Ao se analisar o processo de sofrimento pelo qual passam os cuidadores de pessoas com deficiência por LMT, torna-se imperativo buscar compreender os afetos envolvidos nessas relações. Avaliando o impacto familiar da deficiência, pontua-se(5) a ambigüidade dos sentimentos, comparando-a com a luta de Hércules contra a cerva Cerenita** ** Mitos e lendas da Grécia Antiga. São Paulo, Melhoramentos-EDUSP, 1976. , que possuía pés de bronze, chifres de ouro, tamanho gigantesco e extrema delicadeza em todos os gestos. A associação entre polaridades muito fortes de sentimentos como amor/ódio, alegria/sofrimento, euforia/depressão, aceitação/rejeição é constante nos discursos dos cuidadores e evidencia dificuldades superadas ou maximizadas, em vários momentos do cuidar.

Amo ele a mesma coisa... e... ele era uma pessoa, assim, pra mim era... sabe? Um homem... O que que eu faço? Trocar toda hora, toda hora em casa, meu marido, toda hora, toda hora, sabe? Tem hora que eu num quero... num quero tá perto dele diretão, assim. Pra falá a verdade é medo, de um dia chegá e abusá... de abusá... e num querer mais, querer sair. Num quero nem pensá, mais tem hora que... Um pouco que ele saí..., um pouco... que eu vivesse... sabe? Quando eu saio de casa só um pouquinho, eu já fico com saudade dele. E quando eu tô trocando ele direto, eu num quero... eu quero um pouco saí... ele sair. Eu não, eu ficá em casa, mas já tenho medo de um dia, eu chegar a abusar, e eu num quero isso, eu num quero fazer isso (chorando muito). Chega, chega...

A autora(5), à luz de alguns estudos e partindo do pressuposto que toda situação nova, desconhecida, traz em seu bojo a ambigüidade, afirma que o fracasso em superá-la configura a passagem de uma situação crítica para a crise propriamente dita. Esse insucesso pode se dar tanto pela impossibilidade do indivíduo organizar-se frente a uma nova condição, como pela impossibilidade de modificar ou desestruturar uma situação antiga, agora revestida de novas características.

A ambivalência de sentimentos do cuidador é um dado relevante(9), freqüentemente presente e inerente à tarefa de cuidar, justificada pelo contraponto do desgaste físico e emocional - "estar no limite" - e da satisfação em realizar um dever.

Eu fico desgadelhada, aí, eu pra mim, eu não tenho quase nada de tempo, é mais, é cuidar dele, levanto às sete horas da manhã, fico, faço café, levo café pra ele na cama, é isso que eu faço..

Ah, um dia a gente se sente nervosa, né, porque em ver uma situação dessa, difícil, né? Os filhos, tudo. A gente se sente nervosa...

Desse modo, apesar da presença desses sentimentos contraditórios que ratificam a crise, pode-se dizer que o cuidado é alicerçado na afetividade, ressaltando-se que, evidentemente, a qualidade do vínculo afetivo pré-existente é determinante na elaboração da representação desse cuidar para ambos.

Somada ao desgaste físico e emocional, quando o controle e o poder são desesperadamente necessários ou desejados, a experiência da impotência - que acentua o "estar no limite" e a revolta - tem-se mostrado um dos estados de ânimo mais destrutivos conhecidos na humanidade(3).

Sábado passado eu chorei tanto por não ter um dom para curar as dores dela... Então me revolta muito. Às vezes eu vou cuidar dela e penso como a vida pode ser tão...

Essa impotência destrutiva contribui para a perda de identidade do cuidador, ao provocar transformações no cotidiano e papéis sociais e à medida que traz marcas para o próprio corpo-alma, representadas pela noção de incapacidade de ajuste permanente. Essa perda é fundamental para a retomada, ou o abandono de projetos pessoais.

A anulação dos desejos pessoais, dentre os quais a própria sexualidade, pode ser identificada nos discursos, mal disfarçada como uma aceitação do destino, novamente caracterizando a ambigüidade que se tornou a própria vida.

Às vezes é... sufocante...não é fácil, não... tem vezes que a gente pensa assim: até quando vai durar? Até quando a gente tem que suportar, principalmente eu, eu sou uma pessoa, que não tenho... sabe? Não converso com muitas pessoas, cê mesma não me vê conversar, não tem esse negócio de amizade, não tenho uma amiga que eu levo pra casa pra conversar...

"Estar no limite" implica considerar ainda o medo de que a expressão das próprias emoções possa aumentar o estresse da pessoa com deficiência, levando os cuidadores a suprimirem suas necessidades catárticas, com receio de serem o gatilho que retarda o processo de reabilitação.

São relevantes, ainda, a insegurança diante da violência vivida pela família e o medo de novas perdas, ou de não cuidar adequadamente, que aprofundam o sofrimento.

Que que eu vou fazer sozinha? Ai, meu Deus, como é que eu vou fazer (para cuidar)? Ai, meu Jesus!

O Brasil, país de maior população católica do mundo, possui repertório infindável de religiões que se oferecem à livre escolha de adeptos desejosos de respostas imediatas e simples para seus constrangimentos de vida, e de soluções sobrenaturais para problemas considerados fora de alcance das intervenções de profissionais e instituições que lidam com as coisas deste mundo(16).

Quando se fala de perdas e culpa, no contexto religioso das culturas ocidentais, os conflitos e a ambigüidade também se apresentam. O sentimento de culpa em relação à causalidade da deficiência do familiar está presente em todos os relatos.

Eu acho que fui inadimplente no acidente. Eu me vi dormindo, acordei e não parei. Eu sinto culpa, nem Deus me tira o sentimento...

Há, então, nas falas dos cuidadores, forte sentimento de culpa pela deficiência o qual, aliado à crença de que não se deve abandonar uma pessoa com deficiências à sua própria sorte - o senso de dever e responsabilidade - determina um cuidar que pode se apresentar como um ajuste de contas, um chamado à expiação da culpa - entendida como pecado - por sentimentos antigos re-descobertos e re-construídos a partir da memória(9).

A idéia constantemente verbalizada como "um carregar a cruz que Deus deu" remete à questão do castigo divino, pois, ambos, culpa e castigo, representam os riscos que se corre ao não se atenderem as exigências de Deus(17).

Eu tenho uma filha de uma, de uma outra moça, que hoje vai fazer dez anos... E não era o caso da gente ficar junto... Às vezes, eu até penso, assim, numa besteira, sabe? Deus tá me cobrando isso. Por que ... eu fui levar a moça a passar por uma humilhação muito grande, né? Deus tá me cobrando porque eu vou passar um apuro grande na vida pra podê pagar o meu erro aqui. É outro ditado: o que se faz na Terra, aqui se paga.

É importante observar que as motivações apresentadas pelos cuidadores baseiam-se numa crença que legitima esse universo simbólico: "é dando que se recebe" e, ainda a prática da promessa, característica religiosa entre o povo brasileiro: pagam-se as promessas com orações, romarias, penitências, oferendas, sacrifícios, frutos da terra, animais, dinheiro, de acordo com as várias religiões. Assim, os pedidos atendidos por Deus confirmam e concretizam a barganha e fomentam a e a esperança. Fé que se apresenta, muitas vezes, como o suporte para o enfrentamento das dificuldades e do sofrimento, amparando-os na provisão de forças para vencê-los.

...teve o acidente, a gravidade da lesão, muito alta, e... eu acredito que Ele me escutou quando eu pedi que Ele não tirasse ela de mim, deixasse que eu ia cuidar dela da maneira que fosse. Que ele permitisse que ela ficasse no mundo, mesmo.... da maneira que eu sabia que ela ia ficar, eu ia cuidar dela...

Lembrando que o propósito de todas as representações é transformar algo não familiar, ou a própria não-familiaridade, em familiar, tem-se agora os cuidadores motivados pela corrente mobilizadora da não-familiaridade - representada pelo cuidar específico, repentino e brusco de um familiar com deficiência física - sendo necessário encontrar um caminho que os oriente e as margens seguras que os ancorem nesse mar turbulento. Nesse momento, a teoria das RS proporciona a compreensão de um dos mecanismos de legitimação desse cuidar: a dedicação e o esforço no bem cuidar, objetivando a barganha pela cura da deficiência e/ou pela sustentação emocional para um cotidiano tão aflitivo que, embora transtorne, obriga à reconstrução, na tentativa de regularizar a harmonia do próprio psiquismo. A presença de Deus nos destinos do homem está pontuada de maneira direcionadora, em todos os discursos.

Essa ancoragem é dinâmica e apresenta mobilidade, que é característica das RS: enquanto a pessoa com deficiência for um ser desprovido de vontade própria e incapaz, na visão do cuidador, e esse se sentir culpado pela situação que gerou a deficiência, haverá empenho e dedicação em um cuidar que se apresenta permeado pela afetividade, sustentado pela fé e recompensado por Deus com a sustentação do sofrimento e com os progressos obtidos aos poucos no processo de reabilitação, graças ao cuidado primoroso: higiene, alimentação, mudanças de decúbito, curativos, medicamentos, exercícios e tantos outros; cuidado esse que irá proporcionar uma expiação à culpa, já que envolve tanto sofrimento(3,5,9,14-19). Não ocorre, certamente, um processo imediato de transformação nas relações cuidador/familiar dependente de cuidado, e sim uma percepção progressiva de si e do outro na forma de cada um se apresentar "aqui e agora"(9). Reafirma-se "este novo outro" pelo reconhecimento "desse novo outro" pelo outro, num processo de elaboração e re-significação do cuidar, pautado na transformação de algo não familiar em familiar, o que caracteriza a própria dinâmica dessas representações.

Assim, o cuidador vislumbra as margens dessas águas revoltosas, enquanto se debate com as mudanças socioeconômicas e a falta de suporte técnico-institucional, que são elementos do Sistema Periférico das RS e estão descritos a seguir.

Percorrendo as margens de águas turbulentas

Ser-no-mundo cuidador de um familiar com deficiência implica em conviver com outras transformações cotidianas, além daquelas que já se discutiu-se aqui, que, por si só, isto é, sem a consideração da deficiência e do sofrimento, trazem transtorno e privações. Essas transformações, aqui caracterizadas como mudanças socioeconômicas, representam a concretude das perdas diversas envolvidas na dedicação exclusiva ao cuidar, um dos papéis do Sistema Periférico das RS. Dessa forma, a família é pressionada para a assunção de encargos financeiros, com reações diversas, que se refletem em novos arranjos ou conflitos familiares.

As falas dos cuidadores desvelam uma dependência do próprio cuidador em relação aos familiares e amigos, numa significação que reproduz aquela da própria pessoa com deficiência.

...E tem que ser eu, né? Porque a família dele desprezou ele, o mês retrasado, que aconteceu um problema com o menino (filho da cuidadora e do deficiente), mandei pedir oitenta reais pro pai dele (do deficiente) ajudar, os pais dele, até hoje não apareceram em casa, e nem deram resposta, a única coisa que falaram é que tavam construindo casa e não podia vim agora, e depois diz que ia mandar recado, não mandou, então, é uma coisa que só tá eu e ele...

Nesse sentido, a necessidade da presença do cuidador ao lado da pessoa com deficiência redunda em perda da privacidade e de momentos de lazer, que contribuem para a desorganização psíquica e para a crise no decorrer do tempo.

O que eu ponho na minha cabeça é que eu quero cuidar bem dele, quero cuidar bem da minha filha, eu fico assim, tipo nervosa, porque a maioria do tempo eu passo com ele, eu quero passar um pouco de tempo com a minha filha e não dá, sabe? Hoje eu não tenho mais esse tempo, né? Então, isso pra mim faz muita falta, porque, é difícil, né? As horas passam e a gente fica o dia inteiro cuidando dele, e a gente fica de lado, faz aquilo que a gente gosta de fazer quando dá, e é assim, que eu vou levando.

Corroborando a ambigüidade que permeia as representações aqui apresentadas, destaca-se o significado positivo do cuidar na vida dos cuidadores, pois, ao mesmo tempo em que o desempenho de tarefas tão árduas os consome, a dedicação ao cuidar proporciona visibilidade e status social perante amigos, familiares e equipe profissional, que funcionam como retroalimentação para as intervenções de cuidador.

Porém, esse status dentro da família pode mostrar-se desencadeador de novos conflitos, reiterando a tão falada ambigüidade.

...o Dr. Valdenísio acha que ele tem ido melhor, e outro dia o Dr. Valdenísio falou pra ele assim, ele viu que a gente tá se elevando, mas ele falou pra mim, assim que, pra mim não, pra outras pessoas junto com ele, que se não fosse por mim, o (...) não tava aonde tá hoje, ele falou assim: Isso, ele tem que agradecer a mulherzinha que tem, senão ele não tava aonde ele tá agora.

Os recentes avanços na estruturação dos serviços públicos de saúde, que futuramente podem proporcionar suporte técnico ao cuidado domiciliar, ainda não constituem realidade para a maioria dos familiares que se vêem às voltas com a continuidade do processo de reabilitação no domicílio. Assim, o que se detecta nos discursos é a falta de decodificadores do universo reificado dessa especialidade, levando-os a encarar o desafio através da tática de erro e acerto(18-19).

...sexta-feira eu peguei, e arrumei a cadeira pra ele, nóis tentemo colocá ele na cadeira, eu levei ele no banheiro tudo, dei banho nele, até que foi bem melhor dá banho nele na cadeira, do que na cama, aí dei banho nele tudo, levei pra cama, troquei fralda, passei o ólinho nele aonde que tava vermelho a bunda dele tudo, daí ele até falou que a cadeira, no banheiro é um tipo de vaso, né, quando senta, aí ele conseguiu fazê cocô melhor, conseguiu, até urinar sozinho, assim fazendo força, né? Então, tá sendo bem mais fácil de cuidar dele agora, do que era, tá bem melhor...

Embora em muitos casos a pessoa com deficiência esteja fisicamente capaz para realizar diversas tarefas, já que o grau de dependência está relacionado às características da LMT, tais como nível e grau da lesão, muitas vezes o cuidador acaba assumindo uma sobrecarga que compromete o processo de independência de ambos, diante de aspectos psíquicos, afetivos, culturais e sociais que se interpõem como o maternalismo, os desajustes, as crises etc. A natureza e complexidade das tarefas a serem desempenhadas apresentam-se bastante variadas e nem sempre relacionadas com o prognóstico estabelecido, com base única nas alterações fisiológicas(18-19).

Bem, no início, era bem praticamente tudo, porque ele não sentava, não tinha o movimento nas mãos, tinha que dar comida, tinha que dar o banho por completo, uma pessoa sozinha não conseguia dar banho nele, ele desmaiava, tinha que pegar, e era tudo, tudo você tinha que fazer, como um bebê de quatro meses, cinco meses por aí.

O cuidador se faz cuidando, não há conhecimento prévio como se deva proceder, seja pela ausência de conhecimento e suporte oferecidos pela sociedade, seja pelo fato de que as relações cuidador/paciente são prenhes de histórias partilhadas(9).

É importante ressaltar aqui, que as duas estruturas propostas - o Núcleo Central e o Sistema Periférico - possuem mobilidade característica das RS, interceptando-se em diversos momentos, atenuando/reforçando o processo de sofrimento, numa ambigüidade tão reiterada e característica.

Singrando os mares do cuidar

Cabe agora buscar entender as alternativas encontradas pelos sujeitos deste estudo para solucionar as equações propostas pela vivência de um cotidiano tão penoso. O processo de sofrimento apresentou possibilidades de transformação do cotidiano dos sujeitos que permitiram assumir o leme e singrar mares às vezes mais turbulentos, outras vezes mais tranqüilos.

O mais profundo investimento trouxe marcas para o próprio corpo-alma, representadas pela noção de incapacidade de ajuste permanente, numa mobilização de sentimentos de impotência, constelando-se no cuidador o seu lado deficiente, de incapacidade, de finitude e de incompletude. Sob essa perspectiva, ao significar a sua intervenção, o cuidador gerou concretude à deficiência compartilhada de forma simbólica.

Apropriando-se da construção elaborada por alguns autores(20), e frente à análise dos discursos obtidos neste estudo, tem-se à frente um cuida-dor (d)eficiente, que vive num gradiente de simbiose com a pessoa com deficiência, mantendo abafadas as representações de si mesmo, mesclando a rejeição e a culpa com movimentos reacionais à assimilação dessa sobreposição que submete ambos à mesma ordem de incapacidade, num "voltar-se para dentro de si mesmo", próprio do viver pela pessoa com deficiência.

Há, em contrapartida, um grupo menor que, com grande dificuldade, tem buscado elaborar a situação de crise aqui referida, quer seja pela aceitação do fracasso ou pela denúncia da dificuldade, porém, ainda sem grandes esboços de reorganização e reaprendizagem. Essa frágil perspectiva leva à crença em uma redução do foco de realizações pessoais do cuidador para a figura da pessoa com deficiência, passando a viver com a pessoa com deficiência toda a pluralidade de significados e representações que essa relação possa empreender. A Figura 1 mostra o esquema representacional do cuidar para os cuidadores de pessoas com deficiência por LMT.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Frente às reflexões sobre o marcado processo de sofrimento do cuidar específico de indivíduos com LMT e algumas perspectivas para a sua superação, impõe-se a prioritária efetivação de preparo de profissionais e recursos materiais como forma de suporte técnico-institucional, preferencialmente vinculado a políticas públicas que visem o atendimento de tão complexas demandas do binômio cuidador-pessoa com deficiência, considerando-se todas as especificidades psíquicas, culturais e sociais aqui apresentadas.

Embora este estudo não tenha a pretensão de abranger a imensa gama de possibilidades da experiência de cuidar de pessoas com deficiência física no domicílio, avaliá-la à luz das RS permitiu às autoras a mobilização de sentimentos e emoções contidos numa teia de comportamentos racionais, elaborados ao longo da prática profissional já que, na continuidade do processo de reabilitação no domicílio, em muitos momentos, o enfermeiro com-partilha de fato o sofrimento dos sujeitos: cuidador e pessoa com deficiência.

Os resultados aqui expostos pretendem contribuir, então, para que não só o enfermeiro mas todos os profissionais de saúde que lidam com pessoas com LMT e seus cuidadores possam enfrentar o desafio de acolher tal sofrimento, expressando gestos de apoio, paciência e dedicação, numa forma de convívio humano tão complexa quanto intensa. Essa constitui, provavelmente, a tarefa mais difícil, pois não está prevista e demanda o uso de recursos que a academia não proporciona. Por outro lado, pode ser a mais gratificante, à medida que possibilite a reelaboração da prática profissional, conduzindo à conquista de um cuidar personalizado, como o caminho para o verdadeiro cuidar.

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Recebido em: 17.2.2004

Aprovado em: 3.7.2006

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  • 1
    Trabalho Extraído da Dissertação de Mestrado
  • *
    Disponível em:
  • **
    Mitos e lendas da Grécia Antiga. São Paulo, Melhoramentos-EDUSP, 1976.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Recebido
      17 Fev 2004
    • Aceito
      03 Jul 2006
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