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O Centro de Atenção Psicossocial sob a ótica dos usuários

Resumos

O presente estudo tem por objetivo descrever o funcionamento de um centro de atenção psicossocial e apreender como os usuários atendidos por esse serviço percebem o processo terapêutico oferecido. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, com onze usuários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado no interior paulista. Os dados foram submetidos à Análise Temática, segundo Minayo. Os temas emergidos, a partir da análise dos dados, possibilitaram a configuração de três temas. No primeiro deles, o usuário percebe o tratamento, sob um enfoque organicista do cuidado, relatado por meio da valorização do profissional médico, na abordagem medicamentosa e o controle dos sintomas. O segundo tema traz a percepção do espaço do CAPS, enquanto cenário propiciador de trocas sociais. E o terceiro tema diz respeito ao processo terapêutico estar voltado à vida cotidiana dos usuários. Com base nesses dados, pôde-se refletir sobre os rumos dos novos dispositivos em saúde mental, os CAPS.

saúde mental; serviços comunitários de saúde mental; desinstitucionalização


The present study has as its aim to describe the daily work of a psychosocial care center and to aprehend how the users cared by such service experience the offered therapeutic process. Semi-structured interviews were carried out with eleven users of the Psychosocial Care Center, located in the countryside of São Paulo state. The data were submitted to Theme Analysis, based on Minayo. The themes which came from the data analysis, allowed the configuration of three topics. In the first one, the user experiences the treatment on an organicist focus of the care, assessed by the medical professional value, in the medicine-based approach and the symptom control. The second topic brings the perception of the space in CAPS as a helping scenario of social exchanges. And the third topic is about the therapeutic process as being towards the daily life of the users. Based in these data, we could reflect on the directions of the new facilities in mental health, the CAPS.

mental health; community mental health services; deinstitutionalization


El presente estudio tiene por objetivo describir el funcionamiento de un centro de atención psicosocial y aprender como los usuarios atendidos por este servicio perciben el proceso terapéutico ofrecido. Fueron realizadas entrevistas semi-estructuradas, con once usuarios de un Centro de Atención Psicosocial, ubicado en el interior paulista. Los datos fueron sometidos a Análisis Temática, según Minayo. Los temas emergidos a partir del análisis de los datos, posibilitaron la configuración de tres temas. En el primero de ellos, el usuario percibe el tratamiento sobre un enfoque organicista del cuidado, relatado por medio de la valorización del profesional médico, en el abordaje medicamentoso y el control de los síntomas. El segundo tema trae la percepción del espacio del "CAPS", mientras el panorama propiciador de cambios sociales. Y el tercer tema se refiere al proceso terapéutico estar dirigido a la vida cotidiana de los usuarios. Con base en estos datos, podemos ponderar sobre los rumbos de los nuevos dispositivos en salud mental, los "CAPS".

salud mental; servicios comunitarios de salud mental; desinstitucionalización


ARTIGO ORIGINAL

O centro de atenção psicossocial sob a ótica dos usuários1 1 Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado

Sandra Regina Rosolen SoaresI; Toyoko SaekiII

IEnfermeira, Mestranda, e-mail: san.soares@uol.com.br

IIEnfermeira, Orientador, Professor Doutor, e-mail: maryto@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

RESUMO

O presente estudo tem por objetivo descrever o funcionamento de um centro de atenção psicossocial e apreender como os usuários atendidos por esse serviço percebem o processo terapêutico oferecido. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, com onze usuários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado no interior paulista. Os dados foram submetidos à Análise Temática, segundo Minayo. Os temas emergidos, a partir da análise dos dados, possibilitaram a configuração de três temas. No primeiro deles, o usuário percebe o tratamento, sob um enfoque organicista do cuidado, relatado por meio da valorização do profissional médico, na abordagem medicamentosa e o controle dos sintomas. O segundo tema traz a percepção do espaço do CAPS, enquanto cenário propiciador de trocas sociais. E o terceiro tema diz respeito ao processo terapêutico estar voltado à vida cotidiana dos usuários. Com base nesses dados, pôde-se refletir sobre os rumos dos novos dispositivos em saúde mental, os CAPS.

Descritores: saúde mental; serviços comunitários de saúde mental; desinstitucionalização

INTRODUÇÃO

Após o golpe militar de 1964, a política oficial na área da saúde mental, baseava-se no investimento do aumento dos leitos psiquiátricos, multiplicando a rede privada contratada, no momento em que o mundo inteiro se movia em direção à desospitalização. Dessa forma, a internação psiquiátrica consolidou-se como, praticamente, a única alternativa de atenção em saúde mental no país, recurso de saúde administrado, majoritariamente, pela iniciativa privada, sem nenhum tipo de controle societário(1).

No final da década de 1970, a sociedade buscava alternativas mais adequadas, técnica e politicamente, para o tratamento do doente mental, pautadas pelo princípio da desinstitucionalização* * Entendido como um processo crítico-prático que reorienta instituições, saberes, estratégias em direção à existência-sofrimento ou, ainda, considerado também como construção, invenção de nova realidade (2). , em que os segmentos organizados da sociedade civil, incorporaram o movimento iniciado na Itália, conhecido como Rede de Alternativas à Psiquiatria, buscando formas de confrontar o modelo instituído no país. Em 1979 ocorreu a visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia e o I Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, realizado em São Paulo, que foram dois marcos históricos na discussão das Políticas de Saúde Mental no Brasil.

É nesse cenário que surge o Movimento da Reforma Psiquiátrica** ** Esse Movimento no Brasil adota os conceitos da Psiquiatria Democrática Italiana. O objetivo principal é humanizar o atendimento aos doentes mentais, melhorar as condições dos trabalhadores de saúde mental, criar uma rede de serviços extra-hospitalares, substitutiva ao hospital-manicômio, e rever saberes e práticas excludentes (3). que, baseando-se no processo de redemocratização do país, formulou críticas ao saber e às instituições psiquiátricas e, também, ao aparato manicomial.

Em contrapartida, o Estado, incorporando essas críticas ao seu aparelho, organizou a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em junho de 1987, como desdobramento da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Nesse mesmo ano, em Bauru (SP), aconteceu o II Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, ratificando as mudanças dos princípios ético-teóricos da assistência psiquiátrica e criando o Movimento da Luta Antimanicomial sob o lema Por uma sociedade sem manicômios.

A partir daí, o Movimento de Luta Antimanicomial formado, por vários atores sociais - os usuários, familiares, trabalhadores e intelectuais - sinalizou a necessidade de estratégia política de ação mais ampla, estabelecendo diálogo com a população sobre a loucura e seus aspectos, com o intuito de reconstruir as relações entre os loucos e a sociedade.

Influenciado pelo modelo de transformação italiano, o Movimento de Luta Antimanicomial apontou a desinstitucionalização como premissa fundamental na reorganização dos serviços e nas práticas de saúde mental. Assim, a questão norteadora não era a modernização das instituições, mas a criação de novos espaços, com outras abordagens.

No campo legislativo, a mobilização da sociedade civil, aliada à sociedade política, fez tramitar no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.657/89, do deputado federal Paulo Delgado, que discorre sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais (Hospitais-Dia, Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial - NAPS e CAPS, Lares Protegidos). Esse projeto, sancionado e tornado Lei sob o numero 10.216, em abril de 2001, amparado numa compreensão progressista de assistência, é um dispositivo utilizado pela sociedade organizada na busca da reforma da legislação psiquiátrica e consolida o processo de discussão sobre a doença mental e as instituições psiquiátricas.

Em 1992, realiza-se a II Conferência Nacional de Saúde Mental, contando com a participação de usuários, trabalhadores e prestadores de serviços, discutiram-se questões como a municipalização da assistência e a cidadania dos doentes mentais, ratificando a crítica ao modelo hospitalocêntrico no enfoque ético, técnico e político.

A Lei de n° 10.216/01, de abril de 2001, relaciona os direitos dos portadores de doença mental, reforçando a inclusão social do sujeito e regulamentando uma nova política de assistência psiquiátrica no país.

Em dezembro de 2001, aconteceu a III Conferência Nacional de Saúde Mental que, em seu Relatório Final, reafirmou as conquistas das conferências anteriores, da aprovação da Lei n° 10.216/01 e das portarias do Ministério da Saúde que regulam a assistência em saúde mental no Brasil. Assim, consolidou a estratégia de serviços comunitários (CAPS) como equipamentos prioritários de organização da atenção em saúde mental.

No sentido de regulamentação e reorganização institucional de novas práticas, também foi publicada a Portaria de n° 336/GM, de fevereiro de 2002, que estabelece a distinção entre os CAPS, classificando-os segundo sua complexidade e abrangência. Assim, os CAPS são definidos como serviços estratégicos de substituição ao hospital psiquiátrico.

Dessa maneira, os serviços abertos surgiram em contraponto às instituições fechadas, tendo como objetivos "romper com a tendência carcerária da ideologia manicomial; manter os usuários o menor tempo possível na instituição; estimular a permanência dos usuários no núcleo familiar e social; e viabilizar um projeto de vida compatível com as potencialidades de cada indivíduo"(4).

No decorrer dessa trajetória de desinstitucionalização, entretanto, frente à importância de seus acontecimentos e de suas inovações, apresentam-se os novos problemas. Um deles propõe que o fato de um serviço ser externo ou aberto não garante a sua característica não manicomial, cabendo pesquisar sobre a estrutura dos serviços, as ações dos profissionais frente à assistência ao doente mental para diagnosticar resquícios, ou não, manicomiais(5).

Nessa perspectiva, cabe destacar o CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira, na cidade de São Paulo, e o Núcleo de Atenção Psicossocial, em Santos, como precursores dessa modalidade de atenção em saúde mental.

Já está em funcionamento, atualmente, uma rede ampla de ofertas terapêuticas, objetivando a substituição do modelo hospitalocêntrico, tais como centros de atenção psicossocial, leitos psiquiátricos em hospitais gerais, centros de convivência, cooperativas de trabalho, residências terapêuticas, entre outros. De maneira geral, esses novos serviços se caracterizam pela utilização de um conjunto amplo e complexo de tecnologias terapêuticas e práticas psicossociais dirigidas a manter a pessoa na comunidade.

O compromisso ético em garantir aos portadores de transtornos mentais uma assistência de qualidade, baseada em pressupostos como a singularidade, o direito à saúde e vida digna tem impulsionado projetos inovadores, rompendo com o modelo de reclusão. Entre esses projetos, encontram-se os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) experiências em construção, atualmente espalhadas por todo o país e que devem se constituir em serviços inovadores, garantindo um "espaço de produção de novas práticas sociais para lidar com a loucura, o sofrimento psíquico, a experiência diversa; para a construção de novos conceitos, de novas formas de vida, de invenção de vida e saúde"(6).

Nesse contexto histórico, insere-se, também, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) "Espaço Vivo" de Botucatu, funcionando desde 2000. O serviço tem como uma de suas finalidades implementar os princípios da reforma psiquiátrica, alicerçando suas práticas no respeito às singularidades e à defesa da vida. Focaliza, nos pressupostos da Reabilitação Psicossocial, o eixo institucional norteador de suas intervenções não entendido como um conjunto de técnicas, mas como uma exigência ética(7).

Assim, este estudo tem como objetivo apreender como o processo terapêutico oferecido pelo CAPS "Espaço Vivo" é percebido pelos usuários atendidos no serviço.

PERCURSO METODOLÓGICO

Para a realização desta pesquisa, o método de investigação utilizado foi o estudo de caso, pois o mesmo pode proporcionar visão mais detalhada e focalizada do contexto estudado e por ser abordagem de pesquisa que tem como objetivo analisar profundamente uma unidade(8).

Esta pesquisa buscou a aproximação entre a vivência dos usuários em sofrimento psíquico e o seu entendimento sobre o tratamento oferecido em um serviço de saúde mental, no caso, o CAPS "Espaço Vivo". Assim, procura-se conhecer em profundidade o objeto estudado, não desconhecendo que essa aproximação faz-se de forma incompleta e suas conclusões são provisórias.

O estudo de caso favorecendo o conhecimento de uma realidade delimitada, entretanto, permite que, a partir de seus resultados, possam ser formuladas hipóteses para o encaminhamento de outras pesquisas(8).

Os onze usuários, de ambos os sexos, que participaram desta investigação, foram selecionados com base nos seguintes critérios: 1. estar inserido no CAPS "Espaço Vivo" e, no momento da coleta dos dados, freqüentar o serviço em regime semi-intensivo; 2. apresentar condições de comunicar-se e entendimento sobre a pesquisa e 3. haver consentimento, tanto do usuário como de seu responsável, conforme preconizado pela Resolução 199/96.

Esta pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética da Faculdade de Medicina - Unesp.

As entrevistas semi-estruturadas foram elaboradas a partir de roteiro com as principais questões a serem levantadas. Agendou-se previamente com os usuários e as entrevistas foram realizadas, individualmente, pela pesquisadora, no serviço. Os nomes dos usuários foram omitidos e substituídos pelos nomes dos principais personagens de uma peça teatral realizada pelo CAPS.

Após a coleta de dados, o material obtido foi submetido à Análise Temática, que "consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado"(9).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados foram agrupados por meio de três grandes temas emergidos dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa: a influência organicista no cuidado prestado pelo serviço; o CAPS enquanto cenário favorecedor da rede de relações sociais e, por fim, o trabalho terapêutico voltado à vida cotidiana do usuário.

No primeiro tema surgiram categorias como a valorização do profissional médico, a ênfase na terapêutica medicamentosa e a importância da abordagem terapêutica sobre os sintomas apresentados pelos usuários.

Essas questões nos remetem à discussão do caminho percorrido pela psiquiatria. A trajetória desse saber foi marcada por influências conceituais, alicerçadas em uma visão organicista da etiologia, no manejo dos sinais e sintomas e no prognóstico das doenças mentais, pontuando assim as suas ações.

Esses conceitos foram trazidos à prática psiquiátrica, a partir do século XX, uma vez que, durante o século anterior, o corpo humano, em seus detalhes, era praticamente desconhecido. Com o avanço da medicina científica, foi possível compreender os processos fisiológicos, atentando assim para partes cada vez menores da máquina humana(10).

No final da década de 1950, houve a introdução de diversos psicofármacos na terapêutica psiquiátrica como os antidepressivos tricíclicos, e os benzodiazepínicos, que foram "responsáveis indiretos pela integração da psiquiatria dentro da medicina interna"(11).

Esses conceitos, marcados por práticas tradicionais, ainda influenciam as ações profissionais nos novos equipamentos de saúde mental como, por exemplo, os CAPS(12).

E a doença mental, vista sob o enfoque organicista, provém da concepção de que "é algo que ocorre 'dentro' do espaço corporal. A subjetividade do indivíduo é descartada, operando-se uma redução que o transforma em objeto danificado"(13).

O relato, a seguir, exemplifica a noção da organicidade do sofrimento psíquico, indo ao encontro dos achados na literatura.

Então, o tratamento medicamentoso é assim, é lógico que a gente tem problema psíquico, mas que vêm de diferentes motivos, que é o próprio cérebro da pessoa, falta um líquido do cérebro. Eu não sei explicar direito, mas esses remédios combatem essa deficiência que você tem, essa doença [...]. O medicamento ajuda com o que a pessoa, a substituir a deficiência que a pessoa tem, no nível do cérebro, né, assim orgânica (Nero).

A fala acima demonstra a elaboração que um usuário tece a respeito de seu adoecimento. Pode-se perceber por esse relato, a influência da visão organicista, foi aqui colocada como carência cerebral. No caso, essa disfunção é apontada enquanto causadora dos problemas psíquicos.

Conseqüentemente, a opção pela abordagem medicamentosa é a mais indicada nessa situação, esperando que, com ela, os problemas sejam solucionados e a deficiência equacionada. Ou seja, para ele, a doença mental é percebida como deficiência, incapacidade e perda. E, para tal, cabem aos profissionais e instituições proverem meios de combater essas seqüelas.

Assim, o relato traduz a imagem de que estar doente é em essência uma perda: é perder capacidades, é perder laços afetivos; é perder. Isso demonstra que a doença implica em um estado de incapacidade estabelecido pelo perder e pela não valorização das relações e inter-relações entre o indivíduo e a sociedade.

O que chama a atenção é que, ainda nos dias atuais, esse discurso esteja arraigado e permeie as falas dos usuários, mesmo estando inseridos em novos serviços, mesmo em dispositivos institucionais inovadores e, teoricamente, constituídos por novas práticas.

Sendo assim, a doença mental, alojando-se no cérebro danificado, prevê que o tratamento oferecido deva se pautar nesse enfoque, o orgânico. Seguindo essa perspectiva, associam o tratamento ao profissional que consideram mais adequados às ações terapêuticas esperadas, buscando soluções para a doença mental.

Nesse caso, os médicos foram os profissionais mais valorizados para o manejo da terapêutica e na abordagem medicamentosa e, sob tal enfoque, para o tratamento oferecido pelo CAPS.

Assim, sob a abordagem orgânica, os profissionais são valorizados pois "somente o médico sabe o que é importante para a saúde do indivíduo, e só ele pode fazer qualquer coisa a respeito disso, porque todo o conhecimento acerca da saúde é racional, científico, baseado na observação objetiva de dados clínicos"(14).

Outro usuário ilustra essa situação, ao relatar.

[...] E também tem o psiquiatra que a gente conversa no CAPS e a cabeça da gente vai voltando no lugar, né (Mário).

Também aqui pôde-se verificar que chama a atenção a ênfase na organicidade do cuidado, estando muito presente nos discursos dos usuários. Entretanto, essa questão precisa ser melhor problematizada, uma vez que esse tipo de terapêutica deve fazer parte do processo terapêutico oferecido pelos equipamentos de saúde mental. Todavia, para os usuários desta pesquisa, a abordagem, aqui descrita, apresenta caráter de maior importância, remetendo a uma visão mais tradicional da psiquiatria.

A segunda categoria - 'o CAPS enquanto cenário favorecedor da rede de relações sociais' - foi estruturada a partir de como os usuários têm percebido e se utilizado do espaço do CAPS e como esse local tem se conformado às ações terapêuticas, nas relações usuário/serviço e usuário/profissional, bem como na formação do vínculo.

Os serviços abertos em saúde mental, nesse caso os CAPS, foram originados a partir de projetos inovadores que buscavam, na prática cotidiana, a ruptura com o modelo asilar. Dentre esses projetos, surgidos no final de 1980, destacam-se o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Prof. Luiz da Rocha Cerqueira, na cidade de São Paulo, os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) em Santos, SP, e CAPS "Nossa Casa" em São Lourenço do Sul, RS.

Dessa maneira, o trabalho desenvolvido em instituições, como os CAPS, pressupõe mais competência, disponibilidade e criatividade da equipe que o realizado pelo modelo de psiquiatria tradicional, em que as ações terapêuticas são predeterminadas e cristalizadas. E, o serviço de atenção psicossocial deve ser "espaço de produção de novas práticas sociais para lidar com a loucura, o sofrimento psíquico, a experiência diversa; para a construção de novos conceitos, de novas formas de vida, de invenção de vida e saúde"(6).

O CAPS "Espaço Vivo" também é cenário de contradições, conflitos, incertezas e negociações de usuários e equipe. Estão presentes cotidianamente reflexões e debates sobre o fazer e o como-fazer.

O relato de Camargo, a seguir, mostra a discussão, ainda atual, em torno da psiquiatria, seu papel na organização social e, sobretudo, sobre as instituições relacionadas na assistência psiquiátrica. Acredito que o discurso do usuário do CAPS pode também ser compartilhado por muitos outros usuários, familiares e trabalhadores, atores de um processo em movimento. Sob essa perspectiva, para Camargo.

O CAPS é uma proposta de desospitalização, né. Fora da sociedade ninguém sobrevive porque o ser humano, ele precisa das outras pessoas pra sobreviver. Então o CAPS seria legal se tivesse aqui o CAPS III também, se fosse suprimida as vagas, se fosse fechado o hospital psiquiátrico, né. Porque o hospital psiquiátrico teve uma utilidade em outras épocas, em regimes de governo que tinham outra mentalidade, mas nessa mentalidade democrática seria necessário que tivesse mais um CAPS para atender a demanda, né (Camargo).

Ainda, segundo o relato, o CAPS coloca-se em contraponto ao hospital, serviço funcionando à desospitalização. Na verdade, os CAPS originaram-se enquanto serviços intermediários ou, melhor dizendo, como instituições cuja complexidade intermediava os Hospitais Psiquiátricos e a comunidade, atendendo pacientes no momento da alta hospitalar, para a passagem à vida comunitária ou evitando a internação. O projeto CAPS aceita, ainda que de forma provisória, o hospital psiquiátrico.

Com relação à atuação dos profissionais, os entrevistados percebem nos trabalhadores uma postura de escuta e acolhimento do sofrimento. Esse papel é valorizado enquanto instrumento no processo terapêutico. Nas entrevistas, foi possível apreender vários relatos nesse sentido.

Que eu precisava, às vezes, desabafar e não conseguia, né. Apesar de me desabafar muito com outras pessoas, mas não era a mesma coisa de um profissional, né (Adelaide).

Vocês dando apoio pra mim na hora que eu mais precisei foi uma boa, naquela época. Agora eu estou bem melhor (Loucura).

Ajudou na atenção que eles dá pra mim, tudo dá pra mim [...]. Ah, na atenção, que eu 'se' sentia sozinha [...]. Eu tava precisando ficar junto com algumas pessoas, por não tá ainda com a minha irmã (Michele).

Os usuários relatam sentirem-se apoiados, atendidos e escutados e utilizam os encontros com os profissionais como espaços para o desabafo, para o alívio.

Michele credita a sua melhora no suporte que o serviço manteve, enquanto a sua rede social não estava fortalecida. Na época, sentia-se sozinha e utilizou o CAPS como um espaço de encontro e convivência.

Nas falas, os entrevistados não definem em quais atividades ou 'lugares' acontecem esses 'encontros', onde as trocas e as redes são estabelecidas. Sendo assim, pode-se pensar que os espaços têm sido permeáveis e oferecem suporte às necessidades dos usuários.

Os depoimentos trazidos mostram que os usuários têm utilizado o serviço como uma primeira aproximação, a relação estabelecida permanece na instância da atenção, do apoio. Entretanto, essa aproximação tem sido feita, gradualmente. No decorrer da pesquisa, foi possível encontrar relatos que demonstravam que o processo terapêutico tem caminhado para atender às necessidades dos usuários.

Enfim, o espaço do CAPS, conforma em oportunidade para agir novamente no mundo. Para os usuários, retirados dos processos produtivos e na diminuição ou, até mesmo, na ausência de vínculos sociais, a participação no serviço e a entrada em uma rede de solidariedade e apoio possibilita a retomada dos laços sociais em situação na qual esses laços são ainda mais necessários.

Na última categoria - 'trabalho terapêutico voltado à vida cotidiana do usuário' - foram abordadas as dificuldades e facilidades dos usuários em enfrentar os desafios da vida cotidiana e como as práticas terapêuticas oferecidas pelo serviço têm se conformado nessa direção. Assim, "Lidar com o cotidiano é sempre intervenção que exige um lidar com a concretude do homem, esse movimento de múltiplas relações. O cotidiano não é rotina, não é a simples repetição mecânica de ações que levam a um fazer por fazer. O cotidiano é o lugar onde buscamos exercer nossa atividade prática transformadora, é o social; é o contexto em que vivemos"(15) (grifo nosso).

A partir do contexto-cotidiano emergem no cuidado as situações conflituosas, os temores, as dificuldades, as habilidades, as situações concretas da vida. E, por meio delas, é que vão sendo costurados os fios do processo terapêutico. Assim, usuário e serviço trabalham juntos na busca das reais necessidades e desejos, no sentido do tratamento.

Nas falas dos usuários do CAPS "Espaço Vivo", foi possível apreender situações e acontecimentos vividos e enfrentados que contaram com o suporte do serviço. Por meio das entrevistas, surgiram relatos que apontam para práticas terapêuticas que têm apoiado o usuário a enfrentar as dificuldades no cotidiano.

Os dois depoimentos, a seguir, trazem a importância dessa temática, enquanto suporte para a melhora, na apropriação de si, no gerenciamento de sua vida.

[...] Desde as coisas mais simples, varrer, no fazer as coisas do dia-a-dia, até negócios. Obrigação, compromisso, horário, ajuda muito. Porque eu tava tendo dificuldades assim, em horários, eu tinha trocado o dia pela noite, eu não conseguia fazer o que eu faço aqui e já de dez meses pra cá, eu já tô conseguindo já. Não é de um dia pro outro. Mas eu já tô conseguindo ajudar a livrar a minha filha de um peso, uma responsabilidade muito forte pra ela (Adelaide).

Hoje eu consigo ir lá na cidade, comprar o que eu quero, eu... se tem uma conta, eu vou lá e pago a conta [...]. Agora lá em casa se tem uma cozinha, eu já vou arrumar a cozinha, já ajudo mais a minha filha, né, limpar uma casa, assim... o que eu posso eu tô fazendo. Eu acho que isso já me ajudou muito (Dementina).

Por meio das falas, pode-se perceber que o trabalho terapêutico se inicia sobre as dificuldades instaladas e relacionadas ao desempenho de atividades diárias. Nos relatos, é possível também apreender que o processo terapêutico - que começa nos aspectos do cuidado com o corpo - passa, a seguir, a aumentar a complexidade das intervenções, enfocando atividades do cotidiano, ainda em um espaço protegido, no caso o CAPS. Mais tarde, essas atividades são transpostas para os respectivos espaços reais, no contexto-cotidiano de cada um.

Os usuários entrevistados percebem o desenvolvimento de tarefas domésticas como alcance a patamares maiores de autonomia, e também como atividades importantes na relação com os familiares.

Assim, Adelaide relata que sua melhora também repercutiu na diminuição da "responsabilidade" que estava delegando para sua filha.

Já, Dementina percebe que sua melhora foi no sentido de dividir com a filha os encargos domésticos.

O trabalho terapêutico enfocado em ações no cotidiano do usuário é também valorizado como uma das ferramentas da reabilitação psicossocial. A centralidade nessa questão faz do serviço importante dispositivo inovador no cuidado em saúde mental e "as práticas da vida cotidiana são consideradas, nesse contexto, como componentes essenciais para a reabilitação psicossocial dos usuários. E, através dela, a conseqüente obtenção de cidadania. A diferenciação entre tratar pessoas com suas necessidades próprias, sua subjetividade aparece como um diferencial importante em relação à centralização no tratamento da doença"(16).

Analisando esses achados, pôde-se apreender que o serviço tem enfocado no seu trabalho as práticas cotidianas. O processo terapêutico está baseado em um cuidado responsável, valorizando as habilidades e dificuldades dos sujeitos e suas necessidades. O resultado do contrato terapêutico é percebido, pelos usuários, como a melhora na qualidade de vida e na autonomia. À medida que são valorizadas e trabalhadas essas questões, o serviço aproxima-se de pressupostos da reabilitação. Entretanto, ainda estão presentes, em cena, abordagens organicistas, como as já analisadas, anteriormente. A contradição aqui presente, pode ser inerente ao processo da construção diária de novos serviços, onde, cotidianamente, há dilemas e enfrentamentos no lidar com o sofrimento psíquico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo identificar e analisar o tratamento oferecido no Centro de Atenção Psicossocial "Espaço Vivo", sob a ótica dos usuários atendidos pelo serviço. Para o delineamento desta investigação, foi realizada pesquisa qualitativa. A partir dos dados colhidos foi possível apreender que o cuidado enfatizado sob a visão organicista, apresenta-se como ponto mais forte no processo terapêutico do serviço. Sob essa perspectiva, o médico ocupa lugar privilegiado no serviço, determinado pelo saber psiquiátrico. Assim, para os usuários entrevistados, são percebidos os instrumentos necessários para a execução desse trabalho: a utilização de psicofármacos para o alívio dos sintomas e a consulta médica.

O CAPS, entretanto, também tem oferecido abordagens caracterizadas no leque do "terapêutico", ou seja, guiadas pela singularidade, escuta e acolhimento. Nas falas dos entrevistados aparece, com freqüência, a postura acolhedora e de escuta presentes nos trabalhadores do serviço. Característica identificada como um estilo de trabalho e prática corrente do serviço: o relacionamento humano, o acolhimento, o respeito, o afeto e o apoio com que são tratados os usuários atendidos. Esses pressupostos que dão suporte às ações da instituição encontram eco na Reforma Psiquiátrica.

Os usuários percebem que, falar e ser escutado, traz alívio ao seu sofrimento, e o estabelecimento dessa relação se constitui em uma forma de ajuda.

Outro aspecto importante nas relações do usuário com o serviço foi a construção do vínculo. Os entrevistados apontam que os profissionais têm buscado "olhar" para o contexto de vida das pessoas atendidas, estabelecida mesmo na descontinuidade do tratamento. Já, a freqüência e continuidade do tratamento também são consideradas como maneiras de estabelecer o vínculo, fortalecendo a relação de confiança e ajuda.

Acredita-se que a realização das atividades de vida diária deva ser inserida como um dos primeiros objetivos a serem alcançados nos contratos de cuidados e, mais amplamente, em projetos de reabilitação psicossocial.

Transpostas essas primeiras necessidades, entretanto, é preciso que o enfoque amplie-se para a complexidade do sujeito que sofre, que alcance a concretude de sua vida, de suas relações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 5.8.2005

Aprovado em: 11.7.2006

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  • 1
    Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado
  • *
    Entendido como um processo crítico-prático que reorienta instituições, saberes, estratégias em direção à existência-sofrimento ou, ainda, considerado também como construção, invenção de nova realidade
    (2).
  • **
    Esse Movimento no Brasil adota os conceitos da Psiquiatria Democrática Italiana. O objetivo principal é humanizar o atendimento aos doentes mentais, melhorar as condições dos trabalhadores de saúde mental, criar uma rede de serviços extra-hospitalares, substitutiva ao hospital-manicômio, e rever saberes e práticas excludentes
    (3).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      11 Jul 2006
    • Recebido
      05 Ago 2005
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