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O significado das crenças religiosas para um grupo de pacientes oncológicos em reabilitação

Resumos

Este estudo exploratório teve o objetivo de identificar como a religião influencia a sobrevivência de um grupo de pacientes oncológicos. Consistiu em estudo de caso etnográfico, com a participação de seis laringectomizados, de ambos os sexos, na faixa etária de 51 a 72 anos, operados de dois a cinco anos. Os dados foram coletados por entrevistas semi-estruturadas e analisados segundo os conceitos de cultura e religião. Sintetizou-se os resultados em três categorias descritivas: a representação moral do câncer, as crenças religiosas na trajetória do câncer e a negociação com a religião para a sobrevivência. O significado que emerge - "a expectativa por uma segunda chance" - enfatiza a importância da religião como parte das redes de apoio que se articulam com o enfrentamento do estigma do câncer, com a expectativa da cura e com as formas de organizar a vida cotidiana, na sobrevivência.

neoplasias; oncologia; religião; cultura; sobrevivência; reabilitação


The objective of this exploratory study was to identify how religion influences the survival of a group of cancer patients. The study consisted of an ethnographic case with the participation of six laryngectomized male and female patients between 51 and 72 years old, who had been operated on two to five years earlier. Data were collected by semistructured interviews and analyzed on the basis of the concepts of culture and religion. The results were synthesized into three descriptive categories: the moral representation of cancer, religious beliefs about the cancer trajectory, and negotiation with religion for survival. These categories give rise to the meaning "the hope for a second chance", which emphasizes the importance of religion as part of the support networks that articulate with the patient's coping with the stigma of cancer, with the hope for cure, and with the ways of organizing everyday life, during survival.

neoplasms; medical oncology; religion; culture; survival; rehabilitation


La finalidad de este estudio exploratorio fue identificar cómo la religión influencia la supervivencia de un grupo de pacientes oncológicos. Consistió en un estudio de caso etnográfico con la participación de seis laringectomizados, de ambos sexos, con edad de 51 a 72 años, que habían sido operados de dos a cinco años antes. Los datos fueron recogidos por entrevistas semi-estructuradas y analizados según los conceptos de cultura y religión. Sintetizamos los resultados en tres categorias descriptivas: la representación moral del cáncer, las creencias religiosas en el trayecto del cáncer y la negociación con la religión por la supervivencia. El significado que resulta - "la expectativa por una segunda oportunidad" - enfatiza la importancia de la religión como parte de las redes de apoyo que se encadenan con la conciliación con el estigma del cáncer, con la expectativa de cura y con las formas de arreglar la vida cotidiana, en la supervivenvia.

neoplasmas; oncologia médica; religion; cultura; supervivencia; rehabilitación


ARTIGO ORIGINAL

O significado das crenças religiosas para um grupo de pacientes oncológicos em reabilitação1 1 Trabalho Apresentado no XX Simpósio de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo, subvencionado pelo CNPq, processo nº 520604/96-2

Verônica Vrban AquinoI; Márcia Maria Fontão ZagoII

IAluna do Curso de Graduação, bolsista de iniciação científica

IIOrientador, Professor Associado, email: mmfzago@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

RESUMO

Este estudo exploratório teve o objetivo de identificar como a religião influencia a sobrevivência de um grupo de pacientes oncológicos. Consistiu em estudo de caso etnográfico, com a participação de seis laringectomizados, de ambos os sexos, na faixa etária de 51 a 72 anos, operados de dois a cinco anos. Os dados foram coletados por entrevistas semi-estruturadas e analisados segundo os conceitos de cultura e religião. Sintetizou-se os resultados em três categorias descritivas: a representação moral do câncer, as crenças religiosas na trajetória do câncer e a negociação com a religião para a sobrevivência. O significado que emerge - "a expectativa por uma segunda chance" - enfatiza a importância da religião como parte das redes de apoio que se articulam com o enfrentamento do estigma do câncer, com a expectativa da cura e com as formas de organizar a vida cotidiana, na sobrevivência.

Descritores: neoplasias; oncologia; religião; cultura; sobrevivência; reabilitação

INTRODUÇÃO

Na sociedade ocidental, o simbolismo construído sobre o câncer é de uma doença que invade o corpo, incurável, misteriosa, que gera sofrimento e perdas. Embora os progressos dos meios diagnósticos e das terapêuticas tenham ampliado a sobrevivência dos pacientes, o simbolismo persiste.

O cuidado com os pacientes com câncer ocorre por meio da reabilitação, isto é, processo de cuidado contínuo e individualizado, buscando desenvolver e maximizar as capacidades dos indivíduos, dentro das limitações impostas pela doença e pelo tratamento(1). A finalidade da reabilitação é promover a sobrevivência do paciente, com qualidade de vida. A sobrevivência ao câncer refere-se ao período que se inicia com a revelação do diagnóstico e se prolonga indefinidamente após os tratamentos(2).

No acompanhamento dos participantes do Grupo de Assistência à Reabilitação do Laringectomizado (GARPO) observou-se que os pacientes expunham as suas crenças religiosas. Os seus relatos motivaram a retomada de estudo anterior, quando foi apreendido o significado de ser laringectomizado. Para aqueles sujeitos, a prática religiosa era uma estratégia de recuperação das forças perdidas com a doença e os tratamentos realizados(3), o que levou a este estudo, com o objetivo de identificar como a religião influencia a sobrevivência de um grupo de pacientes oncológicos, na abordagem interpretativa-cultural.

OS PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: CULTURA, RELIGIÃO E ESTUDO DE CASO ETNOGRÁFICO

Cultura é conceituada como uma rede de significados transmitidos historicamente, por meio dos quais os homens desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. Como construção social, ela fornece um modo de ver o mundo, vivenciá-lo cognitiva e emocionalmente, influenciando suas atitudes em relação à saúde e a doença. A experiência do câncer é um processo que desafia a pessoa e, para tanto, ela busca algo com o qual possa enfrentar esses desafios. Por isso, a religião é descrita como estratégia valorizada na cultura ocidental para lidar com a doença e suas terapêuticas(4).

O estudo de caso etnográfico(5-6), tradicionalmente inserido na pesquisa antropológica, foi a estratégia metodológica selecionada por reconhecer a singularidade individual, em profundidade, unificar a experiência religiosa de sobreviventes do câncer e representar os seus pontos de vista.

Participaram do estudo seis laringectomizados totais, operados num período de dois a cinco anos, que não apresentavam complicações fisiológicas, que se comunicavam pela voz esofágica, prótese vocal ou laringe eletrônica e que concordaram em participar, assinando o Termo de Consentimento Informado.

Três dos participantes eram do sexo masculino e três do sexo feminino, na faixa etária de 51 a 72 anos. Três eram casados, dois eram viúvos e um solteiro; dois aposentaram-se antes da cirurgia, dois após a cirurgia e dois ainda trabalhavam.

Os dados foram coletados durante e após as reuniões mensais do GARPO e no domicílio dos pacientes, por meio de observações e entrevistas semi-estruturadas, orientadas pela questão: como a fé religiosa ajuda a lidar com a sua condição? As entrevistas foram gravadas e transcritas, com a permissão dos sujeitos. Em média, foram realizadas três entrevistas com cada informante, num período de oito meses, com duração média de 20 minutos.

A análise dos dados foi realizada em duas etapas. Na primeira, construiu-se categorias descritivas por meio da leitura sucessiva do material, que descrevem os conteúdos ou sentidos dados ao tema. Na segunda, construiu-se categorias analíticas, tendo como base o referencial teórico, que forneceram o significado da religião como estratégia de enfrentamento para a sobrevivência do paciente oncológico(5-6).

O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP. Os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e seus nomes foram trocados por letras para preservar suas identidades.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As categorias descritivas foram classificadas em: a representação moral do câncer, as crenças religiosas na trajetória terapêutica do câncer e a negociação com a religião pela sobrevivência. Essas categorias descrevem os sentidos que os participantes do estudo dão para a crença religiosa como estratégia para a sobrevivência ao câncer.

As categorias foram integradas, com base no conceito antropológico da religião e nas características socioculturais dos participantes, dando origem ao significado "a expectativa por uma segunda chance".

A representação moral do câncer

Nos grupos sociais populares, a conotação moral/religiosa do câncer, como doença punitiva e fatal, é reafirmada pelos participantes, independente do sexo e da faixa etária.

Deus escolhe pessoas fortes para essa experiência de doença. Não é castigo. Deus experimenta as pessoas, pois, algumas vezes, precisam ser moldadas, transformadas. Deus tira um bem do mal! (B, sexo feminino, 51 anos). Hoje, depois de todo sofrimento, acho que a minha vida não era boa não! Acho que não fiz as coisas certas. Acho que estou pagando pelo que eu fui! Essa doença faz a gente pensar na vida, o que foi certo e errado... Fumar e beber não foram as causas; é outra coisa, é a vida descontrolada... (D, sexo masculino, 62 anos).

Essa conotação é característica do cristianismo ocidental que transmite a noção de pessoa sujeita às forças do destino divino, numa relação de punição e redenção(7). Nessa abordagem, a interpretação religiosa da saúde-doença carrega o entendimento de que o mundo tem uma ordem no campo do sagrado-profano. Ao assumir a submissão a Deus e a aceitação das situações caóticas da vida, é possível que o sagrado submeta o profano. Desse modo, a entidade divina domina a vida dos homens, o imprevisível - a doença - torna-se previsto, o acaso é explicado, a fatalidade cede espaço à segurança oferecida pela divina providência(8).

A experiência da doença crônica e das suas terapias pressupõe uma ponte simbólica que une o corpo, a visão de si mesmo e a sociedade. Essa rede inter-relaciona os processos, os significados e os relacionamentos, de modo que o mundo social é ligado à experiência pessoal. Este mundo é definido pelo que é de interesse para as pessoas e os grupos sociais(9-10).

As crenças religiosas na trajetória terapêutica do câncer

Antes do início da doença, os sujeitos afirmaram suas crenças e comportamentos religiosos.

Eu sempre fui católica, mas, antes da operação, eu só orava sozinha (C, sexo feminino, 56 anos). Antes eu era católico, como todo mundo! Não ia à Igreja, não conversava com Deus (D, sexo masculino, 62 anos). Eu seguia a religião católica, freqüentava a igreja todos os domingos, antes da cirurgia. Mas eu não rezava o terço (A, sexo feminino, 51 anos). Sou católico. Não vou à Igreja, não pratico, mas sou católico (E, sexo masculino, 72 anos).

A vida religiosa dos participantes foi expressa com mais ênfase entre as mulheres e de forma mais resguardada entre os homens, sempre com a conotação de serem cristãos para não fugirem à norma social do seu grupo social.

Foi durante os exames diagnósticos que a estratégia religiosa foi buscada para fornecer uma explicação para o inevitável.

Fui na procissão, entrei na igreja e encontrei o terço. Aí, eu falei para Deus me mostrar o caminho. O médico ainda não tinha falado que era câncer! Eu encontrei o terço e comecei a rezar. Quando o médico falou que eu tinha um tumor e que era maligno, foi incrível! Parecia que eu já estava esperando por aquilo... (A, sexo feminino, 51 anos).

Na busca por apoio religioso para a sua aflição, um participante viveu uma situação não imaginada.

Uma semana antes de operar, eu fui à igreja e falei com o pastor. Fui lá porque era perto da minha casa e já conhecia a religião da televisão. Ele falou que se tenho fé viva em Jesus, era para não operar, que ele (Jesus) ia me operar sem fazer a cirurgia. Aí, a minha sobrinha falou: "Não vai nessa não! Você vai perder a cirurgia que já está marcada e aí vai ter que esperar". Eu já tava muito ruim e pensei: vou operar! Pra mim, Jesus é o médico dos médicos (D, sexo masculino, 62 anos).

Nesse relato, a proposta de cura religiosa, pelo pastor, trouxe-lhe conflito, porém, a intervenção da família ajudou-o a se decidir pelo tratamento médico.

O discurso do sofrimento pelo câncer acaba dando uma identidade social aos pacientes oncológicos, que ao mesmo tempo evoca significados de força e fraqueza, vulnerabilidade e determinação, resignação e coragem. Essa forma de interpretar a doença grave é considerada uma representação proveniente do senso comum, entre diferentes grupos sociais(11). Nessa condição, as pessoas voltam-se a Deus, pela primeira vez, ou mais freqüentemente e intensamente do que antes, pois, Deus sempre ajuda.

Compreende-se que o uso freqüente de expressões - se Deus quiser, Deus vai me ajudar, eu peço e agradeço a Deus - entre os participantes são cotidianas, aprendidas no contexto familiar e encerram informações para a compreensão da influência da religião. Porém, elas não se referem à dimensão do orgânico, é uma linguagem para a relação do indivíduo com a sociedade, devido à imagem estigmatizada e profana da doença.

Assim, buscar apoio na religião, por meio de práticas rituais ou pela invocação a Deus, na situação de caos da doença, é uma estratégia acessível, pois, o contexto popular urbano disponibiliza vários serviços religiosos, que são usados efetivamente pelos indivíduos, influenciados pelos membros da sua rede de apoio(11).

A negociação com a religião pela sobrevivência ao câncer

A partir do diagnóstico e da cirurgia realizada, a sobrevivência é sempre desafiada pela possibilidade da recidiva da doença. Embora os participantes estivessem num período de boas condições físicas e de reabilitação psicossocial, o medo da recidiva é constante, pois, nas reuniões grupais de apoio há comentários sobre um outro paciente que não está nas mesmas condições. Nesse contexto, a crença religiosa supre suas necessidades emocionais de terem uma expectativa no futuro.

Acredito que Deus tira um bem de um mal. É importante que as pessoas não se entreguem à morte, Jesus dá muita força (B, sexo feminino, 54 anos). Eu creio muito em Deus. Se você crê nele, você pode passar dificuldades, mas ele te ajuda a superar... (C, sexo feminino, 56 anos). Claro que eu mudei! Depois de tudo isso, a gente se apega mais em Deus. Quando a gente está bem, a gente esquece de Deus! Acho que Deus é um só, independente da religião. Pelo tipo de operação que eu fiz... Se você tiver força e fé em Deus, ele vai te ajudar! (F, sexo masculino, 53 anos). Não vou à igreja, não pratico, mas sou católico. Eu sempre rezei e continuo... Ajudou, porque eu pedi pra Deus para melhorar, para ir tudo bem e foi tudo normal, Graças a Deus! (E, sexo masculino, 72 anos).

A busca pelo apoio religioso envolve toda a rede social do paciente e da comunidade, como exposto nas narrativas a seguir.

Já fui em várias igrejas, os amigos convidam, um chama e vamos lá fazer oração... eles tão sempre ajudando a gente... (F, sexo masculino, 53 anos). Já fui em várias igrejas, os amigos convidam, um chama e vamos lá fazer oração... eles tão sempre ajudando a gente. Quando operei, os meus irmãos pediram para a irmandade me ajudar, pra orar por mim. A Igreja toda me ajudou, os irmãos oraram por mim... Quando eu saí do hospital eu fui à igreja, fui na Universal, depois na Igreja Internacional da Graça de Deus, aonde minha irmã vai, agora estou na Congregação Cristã do Brasil. Deus é um só, só muda as Igrejas. O que vale é você estar no caminho dele. Se você tem fé, você alcança! (D, sexo masculino, 62 anos). A minha esposa ajudou fazendo orações, pedindo na igreja, rezando pra mim (E, sexo masculino, 72 anos).

A maioria dos sujeitos relata acolhimento e preocupação dos companheiros de religião em fazer preces no momento de agravo da doença, aproximando a religião ao contexto de doença. A família e as práticas religiosas são partes de redes sociais que fornecem apoio, principalmente, cognitivo, normativo e afetivo(7).

Há vários estudos que evidenciam a influência da religião no lidar com a doença grave, como o câncer. Alguns autores apontaram que os pacientes com crenças religiosas têm uma reabilitação com senso de esperança e satisfação com a vida, com níveis menores de depressão. Por isso, a fé religiosa é reconhecida como uma estratégia de negociação para a sobrevivência ao câncer, numa concepção teológica, principalmente entre grupos de classes populares, independente do sexo e da faixa etária(11-14), pois, o poder atribuído ao divino possibilita a satisfação das necessidades que escapam do controle do ser humano, evitando sentimentos de medo do futuro.

Significado: A expectativa por uma segunda chance

Quando os pacientes articulam a doença com o desígnio religioso, a ação individual é conciliada com o sentido do sagrado e adquire atributos de superioridade moral ou espiritual que impedem a separação da sua condição de saúde antes e após o tratamento.

Todos os participantes expuseram a crença mágico-religiosa de que a divindade pode controlar as piores situações da doença.

Deus me ajudou a aceitar bem... Deus quando fecha uma porta abre uma janela. Graças a Deus estou bem. Hoje eu saio, eu vou pagar contas, faço faxina. Foi milagre de Deus! Achava que minha vida ia acabar! Faz quatro anos que eu operei... Ah, só pode ser ajuda de Deus! (A, sexo feminino, 51 anos). Depois de tudo isso, Deus ensina tudo... A gente perde o medo da morte. Eu falei para Maria, mãe de Deus: agora não vou mais segurar a sua mão, vou deitar no teu colo e deixar você fazer a sua vontade! (B, sexo feminino, 54 anos). Deus não pune ninguém. Ele me ajudou porque, quando eu operei, eu falei: eu vou morrer! Quando acordei, falei: nossa, meu Deus, eu estou aqui ainda! Muito obrigada! Você precisa agradecer... Muitas vezes eu peço perdão a Deus pelos meus erros e ele me perdoa (C, sexo feminino, 56 anos). Eu pensei: eu não sou nada, eu vou seguir o caminho da Igreja. Quero que Jesus me proteja em todo sentido. Tem dia que eu acordo com falta de ar por causa do enfisema, que é grave, que não tem remédio. Então, eu penso: Deus sofreu mais do que eu e venceu!!! Eu tenho certeza que se não fosse ele... eu não tinha nem conseguido aprender a falar. Eu tenho certeza que devo tudo a Deus! A qualquer momento eu posso ficar curado. Eu faço a minha parte... (D, sexo masculino, 62 anos). É porque eu tenho vontade, não me entrego. Quem não tem Deus no corpo, na mente, não vai pra frente de jeito nenhum (E, sexo masculino, 53 anos). A religião ensina a gente a ter paciência, a esperar... se entregar à doença é pior. Então, tem que fazer um esforço, não é fácil... (F, sexo masculino, 53 anos).

Na cultura popular há duas imagens do câncer: o diagnóstico é uma sentença de morte que leva ao medo; a compreensão de que o diagnóstico e as terapêuticas do câncer levam a uma transformação - uma segunda chance de vida.

A busca religiosa não deve ser entendida como uma forma de fugir da realidade, mas como uma perspectiva de futuro para o sofrimento pelo câncer. Essa visão ajuda a compreender porquê as religiões oferecem resultados de eficácia simbólica, em relação ao bem-estar e autocontrole. Culturalmente, a religião desempenha várias funções: criar uma identidade de coesão entre as pessoas, ganhar novas energias na luta pela sobrevivência e reforçar uma resistência cultural que, por si só, reforça também a busca da religião como solução, como foi narrado pelos participantes do estudo(15).

Embora alguns pacientes tenham percorrido várias instituições religiosas, a forma de se referirem aos temas de fé é característica do sistema religioso católico. No catolicismo popular, a cura tem vários aspectos em comum com todas as terapias religiosas: a crença na eficácia mágica, o círculo gravitacional energético do grupo de crentes que partilham as mesmas expectativas, e o sentido de ordenamento social a partir da intervenção milagrosa(12). A religião remete ao sistema das mediações religiosas; a fé implica um valor central que se tem, que é a experiência ou adesão pessoal ao sagrado, que se expressa no sistema religioso. Apreende-se que os participantes seguem uma religião popular, como a católica, por conveniência ou tradição, não pela convicção do conhecimento da sua doutrina. Por isso, a forma de praticar a fé religiosa é específica para cada um. Todos os participantes referem participar de alguns cultos ou rituais, como a oração coletiva ou individual. Apesar do envolvimento pessoal ser parcial, ele é suficiente para dar o sentido de participação de um sistema religioso, apagando as discriminações da vida profana do câncer(11).

A aparente facilidade com que as participantes se movimentaram entre diferentes cultos sugere que as práticas sociais são desvinculadas dos projetos das diferentes denominações religiosas. Isso significa que os modelos que se usa para entender o universo religioso das pessoas devem permitir problematizar as relações entre os símbolos de uma religião e a prática de seus adeptos. Trata-se de abordar a religião sob a perspectiva da experiência religiosa, isto é, das formas pelas quais seus símbolos são vivenciados e continuamente ganham novos significados, por meio de processos interativos entre indivíduos e grupos(11).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, apreende-se que os sobreviventes do câncer vivem uma condição de identidade de transição, devido ao tempo de pós-operatório e as boas condições fisiológicas e emocionais, isto é, socialmente não são normais - devido às seqüelas - mas, simbolicamente são seres humanos com diferenças. Isso cria-lhes ambigüidade e incertezas quanto à identidade, aumentando a necessidade de ater-se à tradição cultural das crenças e práticas religiosas é uma condição humana essencial. Assim, os participantes, representantes da classe popular da sociedade, da faixa etária acima de 50 anos, exprimem as condutas que consideram adequadas à situação do adoecer e sobreviver ao câncer, a partir de representações cognitivas, independentemente do sexo dos sujeitos.

A espiritualidade é uma construção da personalidade de cada ser humano - uma expressão da sua identidade e propósito, à luz da sua história, experiência e aspiração. É por isso que a religião produz alívio ao sofrimento, na medida em que permite mudança na perspectiva subjetiva pela qual o paciente e a comunidade percebem o contexto da doença grave. Devido às significações do câncer, o doente redireciona sua atenção a novos aspectos de sua experiência ou a perceber essa experiência sob uma nova ótica. O alívio do sofrimento, a sobrevivência e a cura consistiriam não no retorno ao estado anterior à doença, mas na inserção da pessoa a um novo contexto de experiência - o da segunda chance de vida, pela sobrevivência. Nessa nova chance, a adesão religiosa, segundo a construção cultural do grupo social, é mais verbal do que formal ou sistemática, combinando diversas das crenças e práticas religiosas disponíveis, com apoio da rede social.

Uma das dificuldades dos profissionais de saúde, que apóiam a reabilitação e a sobrevivência do paciente oncológico, é a compreensão da forma como ele encara sua vida após a doença. É possível que a relação que os profissionais estabelecem com a população seja pautada na cobrança de uma busca de sobrevivência racional e eficiente, porém, incongruente com a abordagem compreensiva da doença, como um processo de construção sociocultural. Nos últimos anos, a espiritualidade e a religião, na experiência do câncer, têm sido reconhecidas de maneira crescente, pois, ao invés das explicações reducionistas da medicina, os sistemas religiosos oferecem uma explicação à doença que a insere no contexto sociocultural do paciente.

Por isso, os profissionais de saúde estão cada vez mais atentos à necessidade de levar em conta a religiosidade dos sobreviventes de câncer quando planejam e executam a atenção à saúde, para manter uma relação de confiança e de respeito com esses pacientes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 16.9.2005

Aprovado em: 12.3.2006

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  • 1
    Trabalho Apresentado no XX Simpósio de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo, subvencionado pelo CNPq, processo nº 520604/96-2
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Recebido
      16 Set 2005
    • Aceito
      12 Mar 2006
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