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Fantasias sobre gravidez e maternidade relatadas por mulheres adultas férteis em hemodiálise, sudeste do Brasil: um estudo clínico-qualitativo

Resumos

Este artigo discute experiências com hemodiálise em termos dos significados que mulheres trouxeram aos diversos fenômenos associados. A insuficiência renal pode apresentar uma redução progressiva da função dos rins, na qual ambos ficaram afetados e tornaram-se incapazes de remover metabólitos do sangue. A vivência da hemodiálise está associada a importantes mecanismos psicossociais da adaptação. Este trabalho adotou um desenho clínico-qualitativo, realizado em serviços de nefrologia de dois hospitais gerais. O método incluiu amostra proposital de nove mulheres em hemodiálise, aplicando entrevistas semidirigidas de perguntas abertas. Após categorização das falas das entrevistadas, a interpretação utilizou abordagens psicodinâmicas. Concluiu-se que as mulheres observadas vivenciaram graus diferentes de desejos de gravidez e de tornarem-se mãe, agora desafiadas por doença limitante. Considerando o problema da adoção, além de simbolizar ato de generosidade, representaria solução para profunda demanda individual. A própria fantasia de adoção, embora pudesse não se tornar realidade, aumentaria a auto-estima destas mulheres.

falência renal; diálise renal; fantasia; pesquisa em enfermagem; pesquisa qualitativa


This article discusses hemodialysis experiences in terms of meanings women attribute to several associated phenomena. Renal insufficiency may present a progressive reduction in renal function, in which the kidneys are affected and become unable to remove metabolic material from the blood. Living with hemodialysis is associated to important psychosocial adaptation mechanisms. This clinical-qualitative study was performed in two general hospitals' nephrology service. The method included purposive sample of nine women in hemodialysis and a semi-directed interview with open-ended questions was applied. After categorizing interviewees' discourse, psychodynamic approaches were used for interpretation. It was concluded that the subjects experienced different degrees of desire to get pregnant and become mothers, now challenged by a limiting illness. Considering the adoption matter, besides symbolizing a generosity act, it would represent a solution to a deep individual demand. Fantasize about adoption, even if it does not become reality, may enhance these women's self-esteem.

kidney failure; renal dialysis; fantasy; nursing research; qualitative research


Este artículo discute experiencias con hemodiálisis a través de significados que pacientes dieron a fenómenos asociados. Insuficiencia renal crónica presenta reducción progresiva en la función renal. Cuando ambos riñones están afectados, hay incapacidad de remover los metabólicos de la sangre. Vivencias de hemodiálisis se asocian a importantes mecanismos de adaptación psicosocial. Este trabajo fue realizado en dos hospitales generales y adoptó un diseño clínico-cualitativo. La muestra fue intencional, con nueve mujeres en hemodiálisis, y fue utilizada entrevista semidirigida. Después de la categorización de discursos, la interpretación fue realizada de acuerdo con el marco psicodinámico. Las mujeres observadas presentaban diversos grados de deseos de embarazarse y ser madre, ahora desafiados por una enfermedad limitante. Considerando el problema de adopción, además de simbolizar un acto de generosidad, representaría solución de una demanda individual profunda. La fantasía de adopción en sí misma, aunque sin posibilidades de convertirse en realidad, aumentaría la autoestima de esas mujeres.

fallo renal; diálisis renal; fantasía; investigación en enfermería; investigación cualitativa


ARTIGO ORIGINAL

Fantasias sobre gravidez e maternidade relatadas por mulheres adultas férteis em hemodiálise, sudeste do Brasil: um estudo clínico-qualitativo1 1 Trabalho extraído do Programa de Iniciação Científica, Apresentados no 56° Congresso Brasileiro de Enfermagem, Out 2004, Gramado, RS, Brasil, Ganhador do Prêmio "Enfermeira Jane da Fonseca Proença"

Roberta de Carvalho Pinto NazarioI; Egberto Ribeiro TuratoII

IEnfermeira no Hospital Casa de Saúde Campinas, e-mail: rubi.rc@bol.com.br

IIDoutor, Professor, Faculdade de Ciências Médicas, e-mail: erturato@uol.com.br. Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa, Universidade Estadual de Campinas

RESUMO

Este artigo discute experiências com hemodiálise em termos dos significados que mulheres trouxeram aos diversos fenômenos associados. A insuficiência renal pode apresentar uma redução progressiva da função dos rins, na qual ambos ficaram afetados e tornaram-se incapazes de remover metabólitos do sangue. A vivência da hemodiálise está associada a importantes mecanismos psicossociais da adaptação. Este trabalho adotou um desenho clínico-qualitativo, realizado em serviços de nefrologia de dois hospitais gerais. O método incluiu amostra proposital de nove mulheres em hemodiálise, aplicando entrevistas semidirigidas de perguntas abertas. Após categorização das falas das entrevistadas, a interpretação utilizou abordagens psicodinâmicas. Concluiu-se que as mulheres observadas vivenciaram graus diferentes de desejos de gravidez e de tornarem-se mãe, agora desafiadas por doença limitante. Considerando o problema da adoção, além de simbolizar ato de generosidade, representaria solução para profunda demanda individual. A própria fantasia de adoção, embora pudesse não se tornar realidade, aumentaria a auto-estima destas mulheres.

Descritores: falência renal; diálise renal; fantasia; pesquisa em enfermagem; pesquisa qualitativa

QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

A insuficiência renal crônica requer hemodiálise, cirurgia ou mesmo transplante renal. É uma doença definida pela redução irreversível e progressiva da função renal, na qual os rins foram afetados de modo a tornaram-se incapazes de remover produtos metabólicos do sangue, bem como regular a composição eletrolítica do corpo e o equilíbrio ácido-base(1). De acordo com a Sociedade Americana de Nefrologia (ASN), em 2003 quase meio milhão de americanos sofreram de Doença Renal Terminal (DRT), tendo estado cerca de 80% em diálise ou requerendo transplante de rim. Estima-se que sessenta mil pacientes com DRT morrem a cada ano nos EUA, consistindo a nona dentre as dez causas principais de morte. Mais de 50% dos pacientes com DRT receberam diálise, sendo a diabetes e a hipertensão as duas causas principais da doença renal.

A ASN enfatiza que a diálise não é uma cura para esta doença, assim como salienta que seu processo de filtragem do sangue é laborioso, caro e requer dietas restritivas e limitações ao estilo de vida. Em termos epidemiológicos, a DRT ocorre mais comumente em afro-americanos, seguidos por americanos nativos, americanos asiáticos e, finalmente, caucasianos. Para melhor compreender a vivência das pessoas em hemodiálise é praticamente obrigatório considerar que este processo representa estar literalmente conectado a uma máquina, que filtra e remove seu sangue por três ou quatro horas ao dia, ao menos três vezes por semana, dispendendo muitos anos da vida(2).

De acordo com a Associação Americana de Enfermeiras em Nefrologia (ANNA), o papel da enfermagem nefrológica é avaliar todos os tipos de reações da doença renal nos indivíduos e diagnosticar/tratar suas respectivas respostas. Desta perspectiva, é necessário assistir e ajudar cada indivíduo a conseguir um nível melhor de funcionamento, através da prevenção da complicação renal e/ou a reabilitação do paciente. Para alcançar estes alvos, os clínicos deveriam buscar padrões elevados no cuidado ao paciente, que estão continuamente em atualização. Para a ANNA, a pesquisa é essencial para o avanço das ciências da enfermagem e, assim, novos conceitos devem ser desenvolvidos e testados para sustentar o crescimento e a melhoria continuada da enfermagem em nefrologia. Finalmente, concluem que a abordagem da equipe para o cuidado do paciente, bem como adotar uma comunicação interdisciplinar são essenciais à realização do mais alto nível do custo-efetividade atingível, assim como ao cuidado de qualidade ao paciente(3). Concordantemente, um estudo brasileiro que almejou contribuir para o conhecimento da atividade educativa do enfermeiro com os pacientes renais crônicos que se submetiam a tratamento hemodialítico, fornecendo-lhes melhora na qualidade de vida, usou um modelo paulofreiriano chamado educação conscientizadora(4).

Supõe-se que haja aproximadamente 35.000 pacientes com insuficiência renal crônica atualmente no Brasil, mantidos em programas de diálise, sendo mulheres em idade fértil a maioria grande deles. O tratamento dialítico e medicamentoso para estes pacientes apresentou um aumento espetacular nas últimas duas décadas, estendendo consideravelmente sua expectativa de vida e melhorando a qualidade desta. A gravidez bem sucedida tornou-se possível para o grupo de mulheres mantidas em terapia dialítica crônica. Vemos que as complicações clínico-obstétricas freqüentes significam baixo risco para as mães, embora alto risco para os bebês, ainda que a morte fetal seja rara(5).

Apesar do progresso do tratamento, as mulheres urêmicas apresentam capacidade reprodutiva baixa, quando comparadas com as normais. Esta diferença decorre principalmente da presença de anormalidades comuns nestas pacientes, tais como: alterações hormonais, transtornos menstruais e de ovulação, função sexual diminuída e fertilidade reduzida. Todos estes fatores são somados aos riscos após a concepção, incluindo o aumento da pressão sangüínea, anemia e alterações imunológicas. Estas condições culminam em uma não-indicação da gravidez, a conhecida "restrição á maternidade", e conseqüentemente uma gravidez é considerada um risco materno-fetal importante para o prognóstico de pacientes nefropatas.

A restrição para engravidar pode ser compreendida de diversas maneiras na ótica das pacientes nefropatas em idade fértil que estão sob tratamento de hemodiálise. Freqüentemente, observa-se que, a despeito das orientações referentes à contracepção e aos riscos que uma gravidez traz para estas mulheres, muitas delas engravidam. Conseqüentemente, isto sugere uma interferência dos fatores emocionais, dentre outros, apesar de uma consciência sobre os riscos que podem ameaçar suas vidas. Entretanto, o aconselhamento sobre o uso de métodos contraceptivos para estas pacientes parece insuficiente ou inadequado, resultando em muitos casos da gravidez durante o tratamento de hemodiálise(6).

A maternidade torna-se então uma questão ambivalente - consciente e inconscientemente - na vida destas mulheres férteis sob tratamento dialítico. Para elas, pensar neste assunto cria sentimentos que, freqüentemente, antagonizam seus desejos frente às restrições médicas impostas, atingindo profundamente o papel e/ou o instinto materno - colocado pela natureza e/ou pela cultura - e estando presentes, em maior ou menor intensidade, em cada mulher.

Apesar dos riscos da gravidez na diálise, não se deve esquecer que há mulheres determinadas a ter filhos por causa de suas fervorosas crenças religiosas, que as fazem acreditar que a divindade protege dos danos a elas mesmas e a seus bebês. Calcula-se que, a cada ano, uma em 200 mulheres em idade de ter filhos concebem enquanto estão em diálise. Quase metade delas resultam em um bebê felizmente sobrevivente, considerando aquelas gravidezes não opcionalmente interrompidas. Obviamente, esta situação não deveria gerar uma discussão meramente ética com membros da equipe de cuidados com a saúde, principalmente dentre aqueles que têm a opinião de que uma gravidez seria prejudicial(7).

PREMISSAS E OBJETIVOS

O presente projeto científico pertence à Linha da Pesquisa intitulada "Estudos Clínico-Qualitativos no Campo da Saúde", a qual levanta problemas relacionados ao processo saúde-doença, tal como vivenciados por pacientes, parentes ou mesmo profissionais de saúde. Dentro desta Linha, o tema da hemodiálise registra um estudo prévio que discutiu o relacionamento entre equipes do profissional de saúde e pacientes renais. O paper extraído deste primeiro projeto - uma tese de doutorado - concluiu que os pacientes desejavam que a equipe de saúde pudesse escutar suas preocupações mais cuidadosamente, pois estas vão além dos aspectos físicos, considerando que o cuidado clínico fornecido tinha focalizado fortemente os aspectos biológicos e procedimentos mecânicos dos pacientes(8).

O objetivo específico estabelecido para esta seqüente investigação foi o de conhecer e discutir fantasias, que as mulheres adultas na idade fértil, sob tratamento dialítico, teriam sobre uma eventual gravidez, assim como identificar e interpretar conflitos psicológicos relativos ao desejo e a uma real possibilidade de exercer o papel materno. Fantasia é aqui entendida como uma construção imaginária na qual o sujeito está presente, bem como representaria - de um modo parcialmente deformado devido a processos defensivos - a realização de um desejo. Os autores partiram do pressuposto de que as mulheres experienciam, sobretudo quando marcada pelos fenômenos biológicos de quem está em idade fértil, desejos e expectativas de gravidez - conscientemente ou não - manifestos em diferentes graus. Perante esta condição afetivo-existencial quando compreendida como universal, estar sob um tratamento médico drástico significaria, para as pacientes, ter fantasias mais vivamente presentes na mente e muito provavelmente acompanhadas por uma especial, mas não anormal, angústia.

RECURSOS METODOLÓGICOS

Se alguém quiser explicar cientificamente os fenômenos relacionados a transtornos do trato urinário, este é um assunto para investigadores em nefrologia clínica, fisiologia humana ou histopatologia renal. Mas se alguém quiser compreender o que a doença do rim significa para a vida diária de um paciente renal, então se torna um tema para investigadores qualitativos, que podem ser os psicólogos, os psicanalistas ou outros colegas das ciências humanas(9). Entretanto, é bem apropriado que os profissionais de saúde - eles mesmos - adotem os métodos qualitativos. Enfermeiros, por exemplo, trazem a grande vantagem de terem, devido à sua prática profissional, uma inerente atitude clínica e existencial que lhes levará a coletar dados ricamente e a derivar novos conhecimentos com elevada competência.

Por um lado, conhecendo o que as pessoas adoecidas imaginam sobre suas doenças, pode-se conduz uma mais harmoniosa relação enfermeiro-paciente. Por outro lado, é sempre indispensável conhecer o que as coisas, em geral, significam para as pessoas, porque os significados simbólicos têm uma crucial função estruturante na vida nos indivíduos. Em torno do que as coisas significam para si, elas então organizam suas vidas, incluindo aí os cuidados com a saúde de si próprias. Além disso, levou-se em conta que a propriedade central dos significados é sua sempre presente polissemia.

A partir destes princípios para alcançar os objetivos propostos, esta pesquisa elegeu o chamado método clínico-qualitativo, cuja definição é encontrada na literatura da metodologia nas ciências da saúde(10). Este método é entendido como uma particularização e um refinamento advindo dos métodos qualitativos genéricos, tais como desenvolvidos no interior das Ciências Humanas, tendo sido comprovado como adequado em pesquisas qualitativas conduzidas no campo da saúde. Sua construção metodológica abarca o estudo teórico - e o correspondente emprego em investigação - de um conjunto de técnicas e procedimentos, adequados para descrever e interpretar os sentidos e os significados dados a fenômenos relacionados à vida dos indivíduos, sejam pacientes ou quaisquer outros participantes do enquadre dos cuidados com a saúde (parentes, membros da equipe profissional ou da comunidade)(11). A ferramenta para o levantamento de dados foi a entrevista semidirigida de questões abertas, que busca obter uma desejada profundidade para as questões sob a investigação (aplicada pela primeira autora deste artigo). Para esta amostra, procurou-se intencionalmente mulheres que tinham informações e vivências no tema em foco, bem como características de boa expressividade verbal, a fim trazer dados, pelo menos para quatro funções: reformulação, redirecionamento, complementação e/ou clareamento pretendidos para exame das hipóteses iniciais(12).

Os seguintes critérios de inclusão/exclusão para a seleção das pacientes foram assim estabelecidos: (a) mulheres na idade fértil sob tratamento de hemodiálise; (b) condições médicas, emocionais e intelectuais para serem submetidas a uma entrevista de pesquisa clínico-psicológica; c) concordância de participação de acordo com o Termo do Consentimento Livre e Informado, como aprovado pelo Comitê de Ética da instituição. Finalmente, alguns critérios foram considerados não-excludentes, tais como: idade, origem, situação conjugal, composição da família, nível escolar, status socioeconômico e crenças/religião. Entretanto, para lidar corretamente com tais potenciais vieses, as variações destes dados foram consideradas para a discussão.

A amostra do estudo consistiu de nove mulheres em hemodiálise, que foi fechada pelo critério da saturação. O conjunto das entrevistas transcritas, formando o corpus, foi submetido à análise qualitativa de conteúdo: leituras flutuantes foram feitas pelos autores a fim de bem familiarizarem com todo o material informativo. Uma vez o procedimento de categorização tenha sido efetuado e os tópicos discutidos, os investigadores escolheram duas categorias apresentar-se neste paper.

Sabe-se que a análise qualitativa de um conjunto de entrevistas não permite definir suas categorias a partir de freqüências de certas citações, nem qualquer tipo de informação a partir de recursos da matematização. As questões, que ganham o status da categoria, são aquelas que respondem consistentemente ao objetivo inicial ou a outro assumido durante o trabalho de campo. Após as leituras/releituras visando esta escrita, as categorias definidas foram as seguintes: (1) qualidade de vida em hemodiálise, normalidade/normatividade, estigma e a gravidez; e (2) idéias de adoção como uma possibilidade de desempenhar o papel da maternidade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em termos de procedimentos da pesquisa de campo, a primeira fase consistiu do contato com a direção do Centro Integrado de Nefrologia da Unicamp, que consentiu com o desenvolvimento do projeto neste serviço. Devido às necessidades metodológicas de coletas de novas informações, a amostra foi estendida a outro hospital da cidade, uma instituição privada conveniada com o Serviço Único de Saúde, até que os dados tivessem alcançado tal ponto de saturação. As entrevistas foram feitas nos dias rotineiros de sessão da diálise, tendo ocorrido antes ou durante as sessões. O mesmo espaço das divisões de hemodiálise foi usado como setting para estas entrevistas psicológicas. Almejou-se, com a ajuda da equipe local de enfermagem, uma estratégia que garantisse a privacidade dos entrevistados, moldando uma relação empática e confidencial entre o sujeito-paciente e o investigador-entrevistador.

Qualidade de vida em hemodiálise, normalidade/normatividade, estigma e gravidez

As entrevistadas trouxeram genericamente diversas concepções que refletiram relevantes preocupações com as alterações e agravamentos de suas condições da saúde. A preocupação central pareceu ser sua qualidade de vida. Sabe-se muito bem que receber um diagnóstico de doença séria é um evento perturbador e capaz de mudar o curso da vida em muitos aspectos. Assim, uma vida complicada devido à hemodiálise, em princípio, é um fator "externo" que controlaria os desejos ligados ao corpo, como por exemplo, engravidar-se. Desejo foi aqui entendido como um forte sentimento que costuma mover para a realização de algo que estaria ao alcance, seja na realidade ou na imaginação. Isto pode também conduzir a romper os sentimentos do bem-estar individual, agora carregados por revolta e medo a algo inominado.

Ah, para mim era a pior coisa do mundo. Eu não tinha nenhuma idéia do que era a hemodiálise. Foi um desespero para mim… Então, eu notei que não era bem assim… No começo, eu não queria aceitar, e depois eu tive que ver que eu não tinha mais… O rim já havia parado! (Paciente 01)

Por sua vez, a adaptação emocional parece ocorrer de uma forma lenta e gradual face às limitações impostas pela doença, alcançando às vezes resignação, outras vezes tendo passado pela indignação.

Ah… Agora, eu tenho minha casa, e eu tenho minhas coisas para cuidar. Eu tenho meu filho, graças a Deus. Era o meu objetivo. Toda as mulheres têm o desejo de ser uma mãe. Assim, para mim, ter que fazer hemodiálise é difícil de encaixar em minha vida. As pessoas tornam-se incapazes de fazer muitas coisas, nem podem fazer uma viagem, nem podem comer tudo o que gostam, nem pensar em tomar líquidos. (Paciente 07)

Apesar da piora objetiva na qualidade de vida em certas mulheres, impõe-se uma discussão sobre a questão da normalidade versus normatividade, visto que as entrevistadas, contraditoriamente, acreditavam que tinham uma vida normal. Conseqüentemente, os profissionais de saúde devem considerar as diferenças conceituais entre tais condições diante de certas doenças. A partir de uma visão canguilheniana, a doença é uma anormalidade médica, mas pode expressar uma normatividade, que não considera entidades nosológicas como algo incompatível com o funcionamento normal da vida quotidiana. À luz da epistemologia da medicina, a saúde é mais do que normalidade; em simples termos, é normatividade(13).

Para a equipe de profissionais de saúde, a insuficiência renal crônica é uma anormalidade do ponto de vista médico-científico, mas há uma força vital psicossocial que resiste à doença, de acordo com uma normatividade estabelecida. As restrições impostas pelo tratamento foram percebidas como sendo múltiplas pelos sujeitos sob estudo; entretanto estas mulheres consideraram que, embora vivenciando os limites de suas atividades familiares e sociais, suas vidas eram praticamente normais.

Minha vida é boa, eu faço as tarefas domésticas e cuido das crianças… Nos dias que eu não sinto com coragem, eu não faço nada. Mas naqueles dias quando eu estou animada, trabalho duro em minhas coisas… A hemodiálises pode deixar-me fisicamente mal, você sabe, mas eu não sou preguiçosa…. (Paciente 05).

Paradoxalmente, um tratamento repleto de restrições e imposições na vida para obter resultados positivos ou - melhor considerando - permitir a uma maior sobrevida (continuação da vida sob circunstâncias tão adversas) para essas pacientes, leva-nos a refletir sobre certo estigma como um significativo evento sociológico para quem se submete a tais procedimentos. Ser doente é forjar uma nova identidade pessoal. Na dimensão social, há doenças que se transformam uma marca indelével. Desde a cultura da Grécia Antiga, quando já existia muito conhecimento sobre os recursos visuais, forjou-se o termo estigma para se aludir a sinais corporais designados a expor algo incomum ou mau sobre o status moral de quem os apresentava(14).

Os sinais eram infligidos no corpo e serviam para anunciar que o portador era um escravo, um criminoso ou um traidor: uma pessoa marcada a ser evitada, especialmente em lugares públicos. Durante a era cristã, entretanto, dois níveis de metáforas foram acrescentados ao significado inicial: um referia-se aos sinais corporais de uma graça divina que tomavam a forma de flores em erupção na pele; outro era uma menção médica a esta referência religiosa, considerada como sinais corporais de um distúrbio físico. Hoje em dia, estudiosos acreditam que esta palavra esteja empregada ainda em sentido semelhante ao sentido literal original, mas mais utilizada à própria desgraça do que a sua evidência corporal. Além disso, houve mudanças nos tipos de desgraças que causam preocupação. Apesar disso, os sociólogos reconhecem que há ainda pouco esforço para caracterizar as precondições estruturais do estigma, ou até para fornecer uma definição satisfatória sobre esta concepção.

No caso das mulheres "marcadas" pela hemodiálise, além dos estigmas/sinais corporais resultantes do tratamento, tal como a fistula arteriovenosa que carregam, há principalmente o estigma psicossocial devido a serem pessoas limitadas, em alguns sentidos, em levar uma vida normal - familiar, profissional ou social - como os outros. A gravidez, neste contexto, pode ser percebida como duplamente estigmatizante devido a ferir simbolicamente, de certo modo, um estereótipo imposto pela sociedade, de ser uma mulher de corpo saudável esperando pela maternidade.

Quando eu comecei fazer hemodiálise, minhas condições psicológicas estavam muito confusas. Eu usava somente blusas de mangas longas devido a fistula em meu braço. Mas comecei fazer tratamento psicológico. Um dia, eu interrompi a psicoterapia e disse a mim mesma: Viverei uma vida comum. (Paciente 02)

Idéias de adoção como uma possibilidade de desempenhar o papel da maternidade

A insuficiência renal crônica, suas restrições e riscos trazem conflitos às mulheres nefropáticas, relacionadas à maternidade à feminilidade, em especial para pacientes que não tiveram filhos previamente ao diagnóstico de sua doença(15). Em qualquer caso, a ambigüidade de sentimentos e pensamentos parece tornar uma regra psicológica muito além de inquietantes doenças.

Eu gostaria de ter filhos, mas ao mesmo tempo eu não gostaria de ter. Quando eu era uma criança, costumava dizer que eu não gostaria de ter. Assim, eu passei da idade que eu desejava ter filhos. Mas então tudo isso aconteceu. Tornou-se um assunto que eu não penso mais que e não me preocupa. (Paciente 02)

De um ponto de vista psicológico, a maternidade responde a certo desejo do ser humano de dar continuidade à vida, imortalizando a existência de quem gerou a vida e foi capaz de fazer história(16). As mulheres em hemodiálise, quando inquiridas sobre os significados de ser mãe, reproduziram o modelo psicocultural da maternidade em seus discursos

Ser uma mãe deve ser bom, certo? Eu penso que é o sonho de toda mulher… para construir uma família… sentir-se completamente realizada, não é? Eu penso que é que assim… (Paciente 05)

Tudo indica que tem havido uma intensa pressão sociocultural para casais criarem filhos, estabelecendo assim um núcleo familiar. As entrevistadas revelaram-se frente a certa pressão social, encobertas por metáforas, tais como "ser uma árvore sem frutas" ou "uma árvore seca", que são algumas expressões depreciativas para aquelas que, devido a alguma razão, não tinham constituído um grupo familiar socialmente determinado. Inseridas neste contexto, algumas mulheres tinham idealizado a adoção como uma possibilidade concreta de ter, de fato, o papel da maternidade, mas isento de riscos médicos para elas próprias e para as crianças.

A adoção, de acordo com a visão de algumas pacientes em tratamento dialítico, tinha começado ser uma questão relevante em suas mentes. Esta possibilidade, além de simbolizar um ato de generosidade, representaria uma solução frente a uma demanda psicológica pessoal.

Eu já pensei que, se eu casasse, eu adotaria uma criança. Mas eu já desiste da gravidez propriamente por causa do risco que eu corro, o bebê corre. Eu tratei este assunto com minha família e já falei sobre isso com eles. (Paciente 01)

Encontrou-se, nestes discursos, uma ambivalência de atitudes devido a um forte desejo à maternidade, ainda que não se revelasse de uma maneira clara. Pensamentos contrários implicam em um conflito psicológico, em parte causado por limitações reais do tratamento. Assim, cogitando a adoção de uma criança poderia representar boas condições de saúde mental. Fantasias de adoção por si próprias, mesmo que não se materializem, parecem melhorar a auto-estima das mulheres. Psicanaliticamente, imaginar é, pelo menos parcialmente, gratificante.

Finalmente, fortalecer a idéia de maternidade talvez seja sempre um sentimento real, mesmo para aquelas pacientes que já eram mães. A real restrição a uma nova gravidez parece fazê-las reviver o desejo de ser mãe uma vez mais.

Ah, depois de ter começado a diálise, o doutor disse que eu não poderia… E eu pus em minha cabeça que eu não poderia… embora eu realmente não quisesse uma outra criança, certo? Ocorre que meu plano era ter um casal de filhos e eu tive. Meu marido e eu não tivemos planos de ter crianças atualmente. Então, significa que a hemodiálise não me afetou demais, né? (Paciente 08).

CONCLUSÕES

As mulheres estudadas experienciaram graus diferentes de desejos de gravidez e de tornarem-se novamente mãe, estando claros ou não em suas consciências, agora desafiados pela condição real de uma doença crônica limitante, tal como é a insuficiência renal. Esta situação afetivo-existencial pode gerar uma angústia especial, mas não necessariamente anormal, que deve ser acolhida pela equipe dos profissionais de saúde. Há uma reconhecida pressão social para as mulheres no sentido de assumir o papel de mãe em nossa cultura. Estando inseridas neste contexto psicoantropológico, algumas entrevistadas idealizaram a adoção como uma possibilidade de desempenhar a maternidade, isentas dos riscos clínicos a si mesmas e aos filhos. A adoção, de acordo com visão de algumas pacientes sob o tratamento dialítico, havia passado a ser uma questão relevante em seus pensamentos. Esta possibilidade, além de simbolizar um ato de generosidade, representaria solução frente a uma profunda demanda individual. A fantasia da adoção por si mesma, embora não chegue a se realizar, pode aumentar a auto-estima dessas mulheres.

AGRADECIMENTOS

Nossa sincera gratidão às pacientes que colaboraram altruisticamente com esta investigação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 10.10.2005

Aprovado em: 13.9.2006

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    Trabalho extraído do Programa de Iniciação Científica, Apresentados no 56° Congresso Brasileiro de Enfermagem, Out 2004, Gramado, RS, Brasil, Ganhador do Prêmio "Enfermeira Jane da Fonseca Proença"
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Aceito
      13 Set 2006
    • Recebido
      10 Out 2005
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