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Aconselhamento em HIV/AIDS: análise à luz de Paulo Freire

Resumos

O estudo teve como objetivo investigar as estratégias utilizadas pelos profissionais de saúde no aconselhamento em HIV/AIDS. Trata-se de pesquisa com característica qualitativa, inspirada na teoria e prática de Paulo Freire. Como técnica de análise, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin. Para o grupo estudado, o aconselhamento ainda está centrado na cognição, mesmo que já se vislumbre outros conceitos que permeiam esse momento. As principais dificuldades do aconselhamento ocorrem em relação aos clientes e à instituição. As principais facilidades estão vinculadas à equipe que, segundo o grupo, tem bom relacionamento. O aconselhamento representa um momento de sofrimento, principalmente para o aconselhador por trazer à tona densas questões existenciais. Pode-se inferir que o aconselhamento é um momento especial, entretanto, não se configura ainda como um momento educativo. Para a obtenção desse fim propõe-se uma metodologia em aconselhamento, utilizando princípios e conceitos de Paulo Freire.

aconselhamento; sorodiagnóstico da AIDS; educação


The study aimed to investigate the strategies health professionals use in HIV/AIDS counseling. This study is a qualitative research, based on Paulo Freire's theory and practice. Bardin's content analysis was used as the analysis technique. For the studied group, the counseling is focused on cognition, although new concepts permeating this subject are emerging. The main difficulties in counseling are related to the clients and the institution. The main facility is related to the team, which according to the group has a good relationship. Counseling represents a moment of distress, especially because it brings up existential questions to the counselor. It can be inferred that counseling is a special moment, but it does not constitute an educational moment yet. To obtain this goal, a counseling methodology is proposed, based on Paulo Freire's principles and concepts.

counseling; AIDS serodiagnosis; education


La finalidad del estudio fue averiguar las estrategias utilizadas por profesionales de salud en el aconsejamiento en VIH/SIDA. Se trata de una investigación cualitativa, inspirada en la teoría y práctica de Paulo Freire. Como técnica de análisis, se utilizó el análisis de contenido de Bardin. Para el grupo estudiado, el aconsejamiento aún está centrado en la percepción, mismo que ya se vislumbren otros conceptos. Las principales dificultades del aconsejamiento ocurren con relación a los clientes y la institución. Las principales facilidades están vinculadas al equipo, que tiene buena relación según el grupo. Representa un momento de sufrimiento, principalmente para el aconsejador, por traer cuestiones existenciales. Puede deducirse por medio de este estudio que el aconsejamiento es un momento especial, aunque no se configura como un momento educativo. Para la obtención de este fin, proponemos una metodología de aconsejamiento, utilizando principios y conceptos de Paulo Freire.

aconsejar; serodiagnóstico del SIDA; educación


ARTIGO ORIGINAL

Aconselhamento em HIV/AIDS: análise à luz de Paulo Freire1 1 Trabalho extraído da Tese de Doutorado, financiada pelo FUNCAP

Karla Corrêa Lima MirandaI; Maria Grasiela Teixeira BarrosoII

IProfessor Adjunto da Universidade Estadual do Ceará, e mail: karlamiranda@terra.com.br

IIProfessor Emérito da Universidade Federal do Ceará, e-mail: grasiela@ufc.br

RESUMO

O estudo teve como objetivo investigar as estratégias utilizadas pelos profissionais de saúde no aconselhamento em HIV/AIDS. Trata-se de pesquisa com característica qualitativa, inspirada na teoria e prática de Paulo Freire. Como técnica de análise, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin. Para o grupo estudado, o aconselhamento ainda está centrado na cognição, mesmo que já se vislumbre outros conceitos que permeiam esse momento. As principais dificuldades do aconselhamento ocorrem em relação aos clientes e à instituição. As principais facilidades estão vinculadas à equipe que, segundo o grupo, tem bom relacionamento. O aconselhamento representa um momento de sofrimento, principalmente para o aconselhador por trazer à tona densas questões existenciais. Pode-se inferir que o aconselhamento é um momento especial, entretanto, não se configura ainda como um momento educativo. Para a obtenção desse fim propõe-se uma metodologia em aconselhamento, utilizando princípios e conceitos de Paulo Freire.

Descritores: aconselhamento; sorodiagnóstico da AIDS; educação

INTRODUÇÃO

O aconselhamento surgiu como estratégia elaborada pela equipe nacional do Ministério da Saúde para se trabalhar com HIV/AIDS, caracterizando-se por ser uma estratégia de prevenção a atuar no âmbito do indivíduo, ou seja, trabalha com a identificação do próprio risco e propicia reflexão sobre medidas preventivas viáveis para o indivíduo que pretenda submeter-se à sorologia anti-HIV(1).

Vários estudos epidemiológicos, realizados nos Estados Unidos e Inglaterra, duvidam da eficácia do aconselhamento, porquanto levam em conta apenas a utilização do preservativo e a adesão às consultas subseqüentes. Em contrapartida, estudos mais recentes evidenciam a importância e eficácia do aconselhamento como dispositivo preventivo, pois podem facilitar a diminuição de doenças sexualmente transmissíveis(2-4).

Consoante se percebe, os estudos em aconselhamento estão direcionados a verificar quantitativamente a eficácia do aconselhamento, motivos, dificuldades do usuário ou o perfil da clientela que utiliza os serviços de testagem. Entretanto, esses estudos chamam de eficácia a utilização de preservativos, a diminuição de incidência das doenças sexualmente transmissíveis, ou adesão e comparecimento às consultas previamente agendadas. Esses são dados importantes e podem contribuir para a diminuição de enfermidades, entretanto, não situa o aconselhamento como atividade educativa em uma perspectiva de transformação da pessoa.

Toda atividade educativa deve considerar a situação em que se encontra o sujeito. Nesse sentido, o profissional aconselhador tem de estabelecer um diálogo com vistas a conhecer a realidade existencial do aconselhando. É papel do aconselhador possibilitar a transformação de uma consciência ingênua para uma consciência-crítica, onde o ser humano se insere criticamente na história, assumindo uma posição de sujeito com possibilidade de transformar o mundo(5-6).

Ao se considerar o aconselhamento como um momento em que o cliente e o profissional se relacionam, trocam idéias e partilham conhecimentos e afetos, este estudo se justifica pelo fato de que nesse momento o profissional poderá fazer um trabalho de educação em saúde, percebendo questões existenciais, discutindo pontos educativos que levem à reflexão, à esperança de uma vida com melhor qualidade para a pessoa que procura apoio ao realizar o exame. Buscou-se, então, questionar como enfermeiras, assistentes sociais e psicólogas estão realizando o aconselhamento às pessoas que desejam submeter-se à sorologia anti-HIV; e como se está percebendo esse momento em um serviço especializado em HIV/AIDS.

Será que o aconselhamento que se realiza se configura como momento educativo, dialogal, estimulando a reflexão, a criticidade do sujeito?

Conforme se acredita aqui, a descoberta desse processo será fundamental para a avaliação crítica construtiva da equipe que faz o aconselhamento e, em especial, para o profissional refletir sobre esse momento de educação em saúde, melhorando a qualidade do seu atendimento, tornando esse aconselhamento mais reflexivo, minimizando os vários tipos de opressão presentes na vida desse sujeito que procura centros de testagem e aconselhamento sorológico (CTA).

DESENHO METODOLÓGICO

Considerou-se a abordagem qualitativa como um caminho para atingir os objetivos propostos pelo estudo, pois permite "incorporar a questão do significado e da intencionalidade"(7).

A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Fortaleza, capital do Ceará, localizada na Região Nordeste do Brasil, em um Serviço Ambulatorial Especializado em HIV/AIDS (SAE) do Hospital São José de Doenças Infecciosas.

Os sujeitos participantes foram constituídos por enfermeiras, assistentes sociais e psicólogas que realizam o aconselhamento pré e pós-teste em um serviço especializado em HIV/AIDS, perfazendo o total de dez depoentes.

Diante do material obtido neste estudo, a análise dos dados foi constituída em três etapas.

A primeira fase, configurada pela leitura, escolha e organização do material a ser analisado. A constituição do corpus foi definida em dez entrevistas, que correspondeu ao total dos sujeitos do estudo. Iniciou-se uma leitura mais superficial até uma mais aprofundada, com a finalidade de captar o conteúdo do texto e o contexto das falas. Na segunda fase, o corpus foi desmembrado, e as unidades de registro foram inventariadas. As unidades de registro encontradas nas falas, por meio de frases, foram se agrupando, segundo suas semelhanças e significados, identificadas, por sua vez, as categorias temáticas. Formou-se quinze subcategorias, agregadas em três grandes categorias(8). No terceiro momento, organizou-se as categorias, e foram interpretadas fazendo inferências à luz do referencial teórico de Paulo Freire.

As recomendações da Resolução 196, foram seguidas, aprovada na 59ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde, em 10 de outubro de 1996, em que foram aprovadas as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos em o todo território nacional brasileiro(9). Apresentou-se o projeto de pesquisa ao Comitê de Ética do Hospital São José, do qual se obtive parecer favorável à realização do estudo.

DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS

O grupo estudado foi constituído de dez profissionais de saúde, dos quais cinco eram enfermeiras, duas assistentes sociais e três psicólogas. Quanto à titulação, uma possui título de doutorado, uma diploma de mestrado, seis são especialistas e duas possuem diploma de graduação. O tempo de exercício da atividade profissional varia de 5 a 23 anos e o período de atuação especificamente em aconselhamento varia de um a treze anos. A maioria do grupo refere utilizar em média 30 minutos para efetivar o aconselhamento, apesar de duas entrevistadas afirmarem que levam 10 minutos, enquanto outra necessita de 1 hora. A maioria das informantes relata realizarem, por turno/atividade, de três a quatro aconselhamentos; apenas uma delas informou realizar oito aconselhamentos por turno.

Durante o processo de análise do material discursivo, identificou-se três categorias. A primeira, relacionada com o significado do aconselhamento para o grupo estudado, denominado, aqui, Pensar o aconselhamento. A outra categoria, respeitante à vivência da prática de aconselhamento pelo aconselhador, nominada Fazer o aconselhamento. E a terceira categoria caracterizada por sentimentos ligados à prática do aconselhamento, intitulada Sentir o aconselhamento.

Pensar o aconselhamento

Acredita-se no aconselhamento como atividade educativa. Para realizar esse momento, é necessário refletir sobre como é essa atividade pensada pelo grupo que a realiza. Que feições tem essa prática?

Para o grupo entrevistado, o aconselhamento é percebido principalmente como um momento de informação e orientação. Assim elas se posicionam.

Se presta informação para a pessoa, orientações específicas de um determinado assunto que tem caráter de prevenção [...]. É um momento entre o cliente e o profissional onde são esclarecidas as dúvida, são informados os pacientes sobre AIDS.

A palavra orientação aparece em todos os depoimentos do grupo entrevistado, evidenciando que aconselhamento, para elas, tem um foco na informação de forma significativa. Conforme se percebe nas falas reproduzidas, o aconselhamento desempenhado neste serviço tem a predominância informativa. Sabe-se da importância da informação e do conhecimento quanto às formas de transmissão, prevenção e história natural do agente etiológico, mas, a informação isoladamente não seria suficiente para o aconselhamento constituir uma atividade educativa transformadora.

O papel do educador não é apenas transmitir conteúdos. Os educadores não ensinam apenas conteúdos através da sua prática, também ensinam como pensar criticamente. "Se somos progressistas, então ensinar, para nós, não é depositar pacotes de conteúdo na consciência vazia dos educandos"(10).

É necessário pensar a educação como uma prática para além da informação, aguçando a criatividade, a curiosidade e a reflexão. É um momento de correr riscos, de intervir no mundo para transformá-lo. A educação deve ser algo que se movimenta, não é, está sendo, portanto, é dialógica. Deve estar em defesa dos oprimidos, por isso é a "favor de", e contra algo; por isso ela é política. A educação para Freire não é meramente instrução ou informação; a conscientização é seu primeiro objetivo(11).

Apesar de a informação estar centrada no discurso das entrevistadas, o apoio surge de forma relevante. Apoiar é estar junto do paciente, é acolhê-lo, ter empatia, ter disponibilidade para escutar sua história.

No pensamento freireano, educação, política e poder se interpenetram, pois só é possível trabalhar a favor do educando se se sabe quem ele é. Se se conhecer seus sonhos, seus desejos, frustrações e alegrias(12). Outro valor fundamental é a afetividade, a multiculturalidade, o contexto em que o sujeito está inserido, enfim, como aquela pessoa vem e o que ela traz em sua bagagem cognitiva e vivencial. Essas questões são fundamentais no aconselhamento numa perspectiva educativa, valorizando o suporte e apoio ao aconselhando(13).

Outras idéias trazidas por uma parte menor do grupo estudado foram a interação, a comunicação e a reflexão. O grupo acredita que no aconselhamento essas questões são importantes pois contribuem para o paciente revelar sua história. A partir dessa revelação, o aconselhador poderá intervir e orientar o aconselhando de forma mais segura.

A educação só tem sentido se entendida como momento de intervenção da realidade, na qual interpretação dos problemas provoque uma atitude que produza ação. Educação, por conseguinte, não se faz meramente com informações, sejam elas depositadas autoritariamente ou via repasse gentilmente comunicado.

Fazer o aconselhamento

Ter a experiência do aconselhamento para o grupo estudado possui caráter ambivalente. De um lado, existem fatores dificultadores e de outro os facilitadores. De acordo com a fala da depoente, a principal dificuldade, situada de forma bastante significativa, diz.

... o que dificulta é o básico (risos). É abrir e fechar essa porta, eu acho que corta totalmente [...] você cortou e você não consegue mais retornar, principalmente quando está trabalhando questão de sentimento. Dá uma cortada mesmo.

Pode-se referir o papel da instituição como garantidora de condições mínimas de trabalho, como propiciar ao profissional ambiente privativo, onde não haja interrupções. O aconselhamento constitui atividade diferenciada das demais atividades desempenhadas pelo profissional de saúde, pois é permeado por densas questões relacionadas à sexualidade, orientação sexual, histórias de sofrimento, abusos, dor. Nesse sentido, para dialogar sobre esses problemas, o profissional precisa de espaço adequado onde possa trabalhar sem interrupções. No planejamento de construção dessa unidade, os profissionais não foram sequer consultados sobre as necessidades individuais de trabalho. Tal fato dificulta a atuação do grupo cuja atividade de aconselhamento, por ser diferenciada e ter suas especificidades, requer estrutura física apropriada. Mesmo aspectos de cunho gerencial que podem ser resolvidos com o diálogo, como não interromper a profissional, por exemplo, não são respeitados. Cabe à instituição propiciar condições mínimas de segurança, acesso a treinamentos, suporte emocional, enfim, oferecer a esse profissional meios para a realização de sua atividade com o mínimo de dignidade.

Outra dificuldade relatada pelo grupo entrevistado diz respeito aos sujeitos aconselhados. Decorre, principalmente, do grau de cognição desse sujeito, do medo, tabus, preconceitos que ele introjeta ao se perceber possível portador do HIV. No diálogo, se repercutem essas interferências, que comprometem o estabelecimento de uma relação de confiança entre aconselhador e aconselhando em virtude de questões íntimas que podem ser trabalhadas. Assim é dito.

[...] que eu noto muito no caso do cliente é quando ele é uma pessoa que não tem a menor noção, analfabeto, não tem, não entende o que a gente tá falando, já chega muito doente, dificulta o aprendizado, ele assimilar alguma coisa.

Segundo se percebe pelas falas das entrevistadas, o grau cognitivo do aconselhando, sua concentração e interesse no que está sendo informado, a existência de doenças comprometedoras do equilíbrio mental são fatores citados como dificultadores na realização do aconselhamento. Conforme as entrevistadas, essas questões seriam obstáculos para uma orientação eficaz. Diante disso, pode-se inferir mais uma vez a importância atribuída à informação no aconselhamento pelo profissional.

Merece destacar, aqui, a percepção da depoente, segundo a qual o sujeito vem para o aconselhamento desprovido de tudo. Mas o fato dele não ter tido acesso à educação formal não significa que ele não tenha nenhum tipo de contribuição a dar. É fundamental o aconselhador romper com posturas pré-concebidas como, por exemplo, supor que o sujeito não pode oferecer nada, e que ele, aconselhador, vai proporcionar o conhecimento. Um dos legados mais importantes de Freire é reorganizar a relação educando e educador, mostrando que nessa relação ambos aprendem mutuamente. O educador vai facilitar ao educando o encontro de sua pergunta.

Em relação às facilidades na realização do aconselhamento, conforme ficou enfatizada, o principal facilitador é a integração com a equipe multidisciplinar, porquanto a união do grupo no sentido de ajudar o colega é muito importante ao se realizar aconselhamento para o grupo. Diz o discurso.

A equipe, eu particularmente sinto um entrosamento muito bom no que se refere a encaminhamento, ou quando a gente precisa, porque você não supre sozinha atender a necessidade daquele paciente, você conta muito com os colegas de trabalho.

Segundo expuseram as profissionais, a integração é um dos principais facilitadores. Estar numa equipe onde haja comunicação, relacionamento, escuta e diálogo é fundamental para a construção da abertura e da possibilidade de uma postura interdisciplinar, pois o homem é um ser de relações e está no mundo e com ele.

É necessário a defesa de uma postura ética interdisciplinar do profissional, enfatizando a coerência entre teoria e prática, sendo o papel do educador defender opções metodológicas a favor de projetos mais amplos orientados pela sua prática pedagógica(14).

Sentir o aconselhamento

Ao realizar o aconselhamento, o aconselhador sente desconforto em face da situação existencial do sujeito, ao qual muitas vezes remete a histórias de sofrimento, expropriação, abuso, subserviência. Todos esses problemas ouvidos pelo aconselhador geram vários sentimentos. Tais sentimentos desencadeados pela prática do aconselhamento no profissional podem ser desmembrados em dois tipos: positivos e negativos.

Os positivos ocorrem em virtude de o aconselhador poder ser um instrumento de ajuda e apoio para a pessoa que procura esse serviço, minimizando o sofrimento causado pela possibilidade de estar contaminado pelo HIV, ou estar com AIDS.

Os negativos são citados por todas as depoentes de forma mais intensa e significativa pelo fato de ser uma atividade na qual estão implicadas emoções, demandas pesadas e sofridas, morte, abandono. Todos esses problemas se tornam complicados para as profissionais, pois elas não encontram nas políticas públicas o devido apoio. Essas profissionais se sentem inseguras e desamparadas, como mostra o depoimento.

São sentimentos tão complexos. Por um lado bem, por poder dar um suporte a uma pessoa em um momento difícil, mas por outro lado, eu sofro muito. Em termos de sentimentos, porque a gente vai se sentindo limitada. O suporte que você dá naquele momento para aquela pessoa, mas eu fico pensado, pôxa! ela vai sair daqui o que ela vai fazer? [..] Porque hoje a gente entrega mais resultados positivos, antes quando a gente atendia demanda espontânea, a gente entregava negativos, muitos. Como agora a clientela está concentrada, a nossa tendência cada vez mais é atender e entregar exames positivos. Está lidando com pré e pós-teste com pessoas positivas ou doentes. Então, eu sofro. [...] São pessoas muito carentes, com histórias muito difíceis, e aí a gente sente.[...] eu sofro. Nesse sentido é doloroso.

Para não adoecer, o grupo utiliza estratégias no intuito de enfrentar essa situação descrita como pesada, dolorosa e sofrida, na maioria das vezes, vivenciada pelo profissional de forma negativa, pelo fato de o aconselhamento ser uma atividade intensamente relacionada a questões de sentimentos e emoções. O profissional desenvolve, então, mecanismos para enfrentar esses problemas sem adoecer e sem comprometer seu cotidiano.

Todas as depoentes utilizam alguma estratégia para enfrentar o sofrimento causado pela prática do aconselhamento. As formas vão desde leituras, lazer, busca espiritual até terapêutica. Essa busca, entretanto, se dá de maneira solitária, pois a instituição não se disponibiliza para realizar uma atividade contínua que faça parte da carga horária do profissional na tentativa de minimizar os "efeitos colaterais" do aconselhamento, isto é, a densidade e a tristeza provocadas por histórias de vidas tão sofridas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A AIDS ainda configura sério problema nas políticas e práticas de saúde pública e tem originado questões complexas, sofrimento e perdas. O aconselhamento surge como estratégia teórica e metodológica para auxiliar o profissional de saúde a trabalhar com essas questões suscitadas e dar apoio emocional, educativo e orientação na prevenção dessa patologia. Percebe-se, contudo, que essa estratégia estava sobremodo centrada na informação e na doença.

Nesse sentido, de acordo com o exposto, e consoante se observou, o aconselhamento ainda não se configura como um momento educativo na perspectiva freireana, por não ser dialogal, não estimular a consciência crítica para a intervenção da realidade e autonomia do sujeito. Identificou-se, porém, disposição e desejo de parte dos integrantes dessa equipe de tornar esse momento reflexivo e educativo.

Diante do evidenciado pelos dados, traz-se à cena a possibilidade de realizar um aconselhamento em HIV/AIDS com fundamento em Paulo Freire, que tenha como pressuposto a educação como um ato de conhecimento e intervenção da realidade e não como um acúmulo de informação. Ratifica-se, aqui, o argumento de que não é pretensão desta pesquisa formular um guia ou receita em aconselhamento. Interessa, aqui, apresentar colaboração para um momento tão significativo na práxis de educação em saúde.

Para tal, urge reorganizar a prática do aconselhamento. Que o aconselhador defenda o aconselhamento como um ato também político e se engaje na construção de um projeto educativo de aconselhamento, no qual, pelo diálogo amoroso, aconselhador e aconselhando possam construir juntos uma educação para a liberdade, denunciando as amarras e anunciando um projeto para autonomia da pessoa. O aconselhamento como ação educativa necessita sair da reprodução e partir para uma forma metodologicamente fundamentada como atividade educacional na perspectiva - como enfatizado há pouco - de uma educação para a transformação e autonomia da pessoa, propiciando ao aconselhador, pela curiosidade epistemológica, a passagem de uma consciência ingênua para uma consciência crítica, fomentando a leitura da realidade e a possibilidade da autonomia.

É fundamental, então, o aconselhador desenvolver algumas habilidades, chamadas virtudes, para favorecer a interação e a confiança do sujeito aconselhado, um aconselhamento que seja mediatizado pelo diálogo amoroso e problematizador com vistas à construção da palavra do outro. É pelo diálogo que se potencializa o sujeito na construção de sua pergunta e na busca da sua resposta. É pela generosidade que o aconselhador está aberto ao outro, sem julgamentos. É também pelo exercício de um pensamento crítico que se encoraja o sujeito a aguçar a curiosidade da descoberta do mundo para interpretá-lo, nele intervir, transformá-lo e transformar-se. É por meio da interdisciplinaridade que se pode enxergar com outros olhares a realidade, tornando-a mais rica e interessante. Não se pode deixar anestesiar pelo conformismo e determinismo que predominam nas instituições públicas, dificultando os projetos de renovação e mudança. Somente pela alegria e esperança é se rompe com a inércia das políticas das instituições públicas e se luta pelo sonho possível.

Para o aconselhamento se tornar um momento educativo, se faz necessário também o diálogo permanente entre Secretarias de Saúde, Programa de Saúde da Família, serviços domiciliares, educação continuada, organizações não-governamentais, escolas e bairros. Juntos poderão somar forças no intuito de fazer do aconselhamento um momento para além da informação, circunstância realmente educativa para a interpretação, intervenção e transformação do sujeito.

Tudo isso, no entanto, só será possível se as instituições normatizadoras do aconselhamento o entenderem na perspectiva educativa freireana, na qual o profissional disponha de tempo e de condições suficientes para cumprir essa atividade. Faz-se necessário que as instituições governamentais valorizem a educação para valorizar também o aconselhamento. Dessa forma, evitarão ser ele convertido em um "bate-papo" descomprometido e conduzido conforme a vontade do aconselhador.

Insiste-se, aqui, na idéia de que, somente na grande luta, em comunhão com todas essas instituições e em rede, poder-se-á construir esse sonho possível. É fundamental se pensar numa teoria e prática com "feições de beleza", para além da cognição, da ação e do afetivo, em que princípios antropológicos, políticos, epistemológicos, éticos e estéticos estejam articulados. Dessa forma, pode-se estar mais próximo de uma ação educativa para a liberdade e autonomia do sujeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 18.8.2005

Aprovado em: 13.92006

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  • 1
    Trabalho extraído da Tese de Doutorado, financiada pelo FUNCAP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Recebido
      18 Ago 2005
    • Aceito
      13 Set 2006
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