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A prática educativa dos agentes comunitários de saúde à luz da categoria práxis

Resumos

Este estudo teve como objetivos: analisar as concepções de educação em saúde que norteiam as práticas educativas dos agentes comunitários de saúde do Programa de Saúde da Família da Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã da cidade de São Paulo, e analisar o caráter dessas atividades educativas. A coleta de dados ocorreu por meio de grupos focais e entrevistas individuais com 39 agentes. Os procedimentos de análise seguiram as recomendações da análise temática, tendo a práxis como categoria de análise. Em relação à atividade teórica, componente da práxis, constatou-se que grande parte das concepções de educação em saúde se pautava na transmissão de informações normativas aprendidas com os técnicos de saúde. Essa atividade teórica acabou por guiar uma atividade prática característica da práxis reiterativa em que os agentes não participam do planejamento do processo de trabalho em saúde e não dominam o "objeto ideal", reproduzindo tarefas planejadas por outros.

educação em saúde; agente comunitário de saúde; programa saúde da família


This study aimed to: analyze the conceptions of health education that guide educational practices of community health agents in the Family Health Program of the Butantã Health Coordination, São Paulo, Brazil, and analyze the character of these educational activities. Data were collected through focus groups and in-depth semi-structured interviews with 39 agents. The analysis procedures followed the recommendations of thematic content analysis, and praxis was the analytical category. Regarding theoretical activity as a component of praxis, we found that most health education conceptions were based on the transmission of normative information learned from health technicians. This theoretical activity ended up guiding a practical activity typical of repetitive praxis, in which the agents do not participate in the health work planning process and do not dominate the "ideal object", reproducing tasks planned by others.

health education; community health agent; Family Health Program


Este estudio tuvo como objetivos: analizar las concepciones de educación en salud que orientan las prácticas educativas de los agentes comunitarios de salud en el Programa de Salud de la Familia de la Coordinación de Salud de la Alcaldía menor de Butantã en la ciudad de São Paulo, Brasil; y analizar el carácter de esas actividades educativas. La colecta de datos ocurrió por medio de grupos focales y entrevistas individuales con 39 agentes. Los procedimientos de análisis siguieron las recomendaciones del análisis temático, teniendo la praxis como categoría de análisis. En relación a la actividad teórica, componente de la praxis, se constató que gran parte de las concepciones de educación en salud se basaba en la transmisión de informaciones normativas aprendidas con los técnicos de salud. Esa actividad teórica acabó por guiar una actividad práctica característica de la praxis reiterativa, en que los agentes no participan del planeamiento del proceso de trabajo en salud y no dominan el "objeto ideal", reproduciendo tareas planeadas por otros.

educación en salud; agente comunitario de salud; programa salud de la familia


ARTIGO ORIGINAL

A prática educativa dos agentes comunitários de saúde à luz da categoria práxis

Carla Andrea TrapéI; Cássia Baldini SoaresII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem em Saúde Coletiva,. Técnica, e-mail: carlaens@usp.br

IIEnfermeira, Doutor em Educação, Docente, e-mail: cassiaso@usp.br. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

RESUMO

Este estudo teve como objetivos: analisar as concepções de educação em saúde que norteiam as práticas educativas dos agentes comunitários de saúde do Programa de Saúde da Família da Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã da cidade de São Paulo, e analisar o caráter dessas atividades educativas. A coleta de dados ocorreu por meio de grupos focais e entrevistas individuais com 39 agentes. Os procedimentos de análise seguiram as recomendações da análise temática, tendo a práxis como categoria de análise. Em relação à atividade teórica, componente da práxis, constatou-se que grande parte das concepções de educação em saúde se pautava na transmissão de informações normativas aprendidas com os técnicos de saúde. Essa atividade teórica acabou por guiar uma atividade prática característica da práxis reiterativa em que os agentes não participam do planejamento do processo de trabalho em saúde e não dominam o "objeto ideal", reproduzindo tarefas planejadas por outros.

Descritores: educação em saúde; agente comunitário de saúde; programa saúde da família

INTRODUÇÃO

O objeto do presente trabalho é a educação em saúde como prática social realizada pelo Agente Comunitário de Saúde (ACS), percebido como um agente de mudança diante da implantação do Programa de Saúde da Família (PSF). A educação em saúde constitui um dos instrumentos de intervenção, como preconiza e reconhece o Ministério da Saúde, por meio da Lei 10.507, que cria a profissão do ACS, caracterizando-se pelo exercício de atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS e sob supervisão do gestor local(1).

Neste trabalho parte-se de uma documentação sobre a figura do ACS no Estado de São Paulo, reunida a partir de 1981, com o Projeto de Expansão dos Serviços Básicos de Saúde e Saneamento em Área Rural (Projeto DEVALE), que integrava a rede do Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (PIASS)(2).

O PIASS, desenvolvido em meados da década de 70, configurou-se como um dos Programas de Extensão de Cobertura (PEC) em saúde mais expressivos. Pautado nas concepções da Medicina Comunitária dos Estados Unidos, o programa objetivava amenizar, por meio de ações focais, conflitos decorrentes das desigualdades sociais(3).

A ação comunitária buscava atuar nos problemas de saúde já instalados, restringindo-se as ações à esfera do consumo sem intervenções que alcançassem o mundo do trabalho. Baseava-se na participação da comunidade com a clara intenção de fornecer orientações preconizadas pelo pessoal da saúde, ficando a palavra final a cargo do técnico. Além disso, a participação da população era solicitada a fim de resolver problemas a partir de recursos locais, limitados em detrimento de transformações estruturais que viessem atender adequadamente às necessidades de saúde dos grupos sociais que conformam uma dada comunidade(3).

No final da década de 60, os programas de ação comunitária e o movimento da Medicina Comunitária foram trazidos para a América Latina e para o Brasil, principalmente por meio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e de fundações privadas norte-americanas(3).

A criação de projetos como esse estaria associada à resolução da ONU (Organização das Nações Unidas), na qual países ricos deveriam promover auxílio aos países pobres após a II Guerra Mundial, como estratégia para afastar o perigo da expansão das ideologias comunistas do leste europeu. Dessa forma, os EUA promoveram projetos de assistência técnica aos países da periferia do capitalismo, principalmente da América Latina, inclusive o Brasil, desenvolvendo inúmeras experiências que, a princípio, enfocaram regiões rurais e pequenas localidades e que foram tema de diversas pesquisas(4).

Esse princípio revigorou a partir da década de 70, com a crise do capitalismo, cuja resposta foi o projeto econômico, político e ideológico do neoliberalismo. Através do combate ao Estado de Bem-Estar Social, o capital globalizado ganhou a adesão de um Estado que oficializou modelos racionalizadores de assistência à saúde pública, com gastos mínimos, permitindo ao setor privado a exploração da saúde como mercadoria(5).

"Frente a esse quadro, é importante pensar os significados que estão sendo atribuídos crescentemente ao direito à saúde, em um cenário em que os arranjos entre o setor público e o setor privado nem sempre são pautados em uma racionalidade ética inclusiva, onde a miserabilidade e as situações denominadas de vulnerabilidade social definem o projeto privilegiado das políticas sociais (...). [e no qual] A forma de financiamento e operacionalização das políticas sanitárias aponta para a articulação público-privado, eximindo-se o Estado de seu papel de garantidor de direitos"(6).

Assim, o PSF acabou por se constituir em programa compensatório num contexto de transformação dos serviços públicos em Organizações Sociais(7), não sendo "difícil associar este modelo de atenção ao da medicina de família/comunitária. É evidente que, para oferecer o pacote mínimo essencial, médicos especialistas, mesmo nas especialidades básicas, são desnecessários, assim como investimentos na qualificação e modernização da rede de serviços (...)"(8).

Tomando por pressuposto que os ACS participam institucionalmente da concretização desse projeto e, portanto, podem estar desenvolvendo ações educativas focalizadas com a finalidade de responsabilizar indivíduo e família pela resolução de seus problemas de saúde, o presente trabalho teve como objetivos: analisar as concepções de educação, saúde e educação em saúde que norteiam as práticas educativas dos ACS; analisar o caráter das atividades educativas realizadas pelos ACS da Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

A práxis se apresenta como uma categoria de análise potente para explicar a conexão/discussão entre o conhecimento acumulado (experiência/capacitação para o trabalho/intencionalidade dos agentes comunitários de saúde como agentes do processo de trabalho em saúde) e a concretização desse projeto.

A práxis se refere à ação do homem que transforma a natureza, fundamentada na teoria que existe para guiar a ação, ou seja, "a práxis se nos apresenta como uma atividade material, transformadora e ajustada a objetivos. Fora dela, fica a atividade teórica que não se materializa, na medida em que é atividade espiritual pura. Mas por outro lado, não há práxis como atividade puramente material, isto é, sem a produção de finalidades e conhecimentos que caracterizam a atividade teórica"(9).

O que caracteriza a atividade propriamente humana é a consciência das ações, que são dirigidas para um objeto com a finalidade de transformá-lo, sendo que o resultado final tenta se aproximar do que foi idealizado. Dessa forma, a práxis, atividade prática material, guiada pela consciência (teoria) para transformar a natureza a partir de um projeto intencionalizado, diferencia-se da atividade geral(9).

A teoria pode se apresentar como atividade teórica na medida em que transforma percepções, concepções ou conceitos, ou seja quando há produção tanto de objetivos como de conhecimentos. Entretanto, a atividade teórica por si só não transforma a realidade, pois "sua atividade não se objetiva ou materializa"(9), característica imperativa da práxis e por isso não se pode falar em práxis teórica.

A atividade teórica se distingue da prática no objeto, finalidades, meios e instrumentos. Se o objeto da atividade prática é a natureza, a sociedade ou os homens, a finalidade é a transformação do mundo natural ou social, e o resultado é uma nova realidade material; na atividade teórica o objeto são as percepções, conceitos, teorias, representações e a finalidade é obter como produtos teorias que expliquem a realidade presente ou traçar finalidades que antecipem idealmente a transformação da realidade, sem que essa realmente se efetive(9).

Por outro lado, a forma como a consciência está presente na atividade prática do sujeito, configura diferentes níveis de práxis. Sendo assim, é possível distinguir a práxis criadora da práxis reiterativa. "A práxis se apresenta ou como práxis reiterativa, isto é, em conformidade com uma lei previamente traçada, e cuja execução se reproduz em múltiplos produtos que mostram características análogas, ou como práxis inovadora, criadora, cuja criação não se adapta plenamente a uma lei previamente traçada e culmina num produto novo e único"(9).

A práxis reiterativa propicia a multiplicação quantitativa de uma mudança qualitativa provocada pela práxis criadora. Como o homem não vive em eterno estado criador, já que ele só se vê obrigado a criar diante de alguma necessidade, ele repete enquanto não cria. Entretanto essa repetição precisa ser transitória, pois é criando que o homem transforma o mundo e transforma a si mesmo(9).

Devido à unidade entre a consciência que projeta e a mão que realiza o que foi projetado, na práxis criadora se apaga de certo modo a diferença entre trabalho manual e intelectual(9).

Historicamente, entretanto, esse caráter criador do trabalho representado pelo trabalho artesanal foi sendo substituído pelo trabalho mecanizado, devido às exigências de aumento da produção da sociedade capitalista. Como conseqüência do próprio desenvolvimento técnico, sobreveio a crescente divisão e especialização do trabalho. "[Assim], os traços característicos da práxis criadora desaparecem do trabalho (...) [do homem]. A atividade parcelada, unilateral e monótona do operário foi fixada previamente, sem que ele tivesse nenhuma participação nisso. Ou seja, não só se fixa por antecipação, e de forma acabada, a finalidade de sua atividade, o objeto ideal que há de realizar, como igualmente todos e cada um dos passos que ele dará também são determinados de antemão, sem possibilidade de desvios"(9).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Trata-se de pesquisa qualitativa de caráter exploratório. O estudo foi conduzido em Unidades Básicas de Saúde (UBS) da região sob a responsabilidade da Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã* * Denominação utilizada até o início de 2005, quando houve mudança de governo e conseqüente reestruturação das coordenadorias de saúde que passaram de 31 para 5. A Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã foi anexada à Coordenadoria de Saúde da Região Centro-Oeste. , que abrange o extremo oeste do município de São Paulo, congregando uma população de 359.656 habitantes, dispostos numa área geográfica de 56,1 km2, dividida em cinco Distritos Administrativos.

As unidades focalizadas nesta investigação - UBS Jardim Boa Vista com 36 ACS, UBS Vila Dalva com 30 ACS, UBS Jd. São Jorge com 36 ACS e Centro de Saúde Escola Butantã (CSEB) com 12 ACS - eram as únicas que contavam com ACS à época do estudo.

A população de estudo foi conformada então por todos os ACS da coordenadoria, sendo que, dos 114, 39 se propuseram a para participar da pesquisa. A coleta de dados foi realizada durante os meses de junho, julho e agosto de 2004, por meio de entrevistas individuais com dois agentes de cada serviço e em grupo - 1 grupo com 5 ACS da UBS Boa Vista, um grupo com 6 do CSEB, um, com 10 ACS da UBS São Jorge e outro grupo com 10 ACS da UBS Vila Dalva.

Obedecidos os preceitos éticos estipulados pela Resolução nº 196/96, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Prefeitura do Município de São Paulo. Os entrevistados assinaram termo de consentimento livre e esclarecido autorizando a pesquisa e a divulgação dos dados.

A entrevista em grupo foi selecionada a partir das considerações de especialistas em grupos focais que se valem de abordagem emancipatória(10). Nessa direção, realizou-se sensibilização dos ACS, solicitando que refletissem a respeito de situações vivenciadas na escola que tivessem tido algum significado em suas vidas. Os temas abordados, que constituem o recorte deste artigo, foram: concepção de educação, saúde e educação em saúde dos ACS, como se faz educação em saúde.

As entrevistas individuais foram conduzidas com agentes que não haviam participado da discussão em grupo, valendo-se de um roteiro semi-estruturado que abordou os seguintes temas: concepção de educação em saúde, descrição de ações educativas, descrição da supervisão da equipe.

As entrevistas individuais e discussões em grupo foram gravadas com o consentimento dos participantes e transcritas, procedendo-se, então à análise. A análise dos dados foi temática, de acordo com as seguintes etapas(11-12): captação das entrevistas individuais e em grupo; transcrição das entrevistas na íntegra pela própria pesquisadora ou com a ajuda de outra pessoa; realização de várias leituras de cada entrevista individual, ou em grupo, com a finalidade de apreendê-las e interpretá-las de forma mais próxima possível do que foi falado; fichamento das entrevistas, anotando-se na margem do texto os temas e subtemas de acordo com as questões e problemas previamente formulados e dos novos temas e sub-temas que foram emergindo ao longo das sucessivas leituras; fragmentação dos discursos num processo de construção de unidades de significação, ou temas, buscando perceber outras categorias empíricas e analíticas a partir dos relatos, com a finalidade de organizar e interpretar o seu conteúdo; análise do conteúdo a partir dos pressupostos teóricos e categorias de análise previamente estabelecidas e daquelas que surgiram a partir do material empírico.

Os serviços de saúde estão identificados pelas siglas UBS I, UBS II, UBS III e UBS IV, respeitando a ordem de realização dos grupos. As falas decorrentes das entrevistas individuais estão identificadas pela letra E e por um número que também diz respeito à ordem de realização das entrevistas, considerando o conjunto das unidades.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Atividade teórica: as concepções de educação em saúde dos agentes comunitários de saúde

A maior parte das falas dos agentes, tanto nos grupos focais como nas entrevistas individuais, permitiu perceber que a concepção de educação em saúde que permeia o trabalho é aquela pautada na transmissão de informações e de receitas para se adquirir saúde, caracterizando uma atividade prescritiva e normativa. Conseqüentemente, uma freqüência menor de discursos explicitaram a concepção de educação em saúde como resultado de uma construção pautada no respeito aos conhecimentos e experiências dos usuários, considerando seus saberes e percepções a respeito de sua saúde.

A educação em saúde, de caráter prescritivo, se configura em um processo de transmissão de receituários para conservar ou adquirir saúde. Os sujeitos do processo educativo são compreendidos como um "público-alvo" passivo, objeto que deve aceitar as orientações dos técnicos, detentores do conhecimento científico. Os ACS apresentam-se assim como pseudotécnicos, porque acabam por reproduzir essas orientações sem, na verdade, ter domínio sobre o conhecimento que as engendra.

Dentre as falas de educação em saúde de caráter prescritivo as mais freqüentes se enquadravam no tema "educar é fornecer informações focais sobre cuidar da saúde".

[Educar em saúde é] Falar de uma doença, falar como tratar uma doença, ser capaz de falar como a pessoa deve proceder, né? A pessoa doente, sei lá, a pessoa cardíaca você vai falar como essa pessoa deve proceder, orientar sobre determinadas doenças, né... (UBS I).

Outros temas como "educar é amedrontar os usuários para que previnam a doença" também se fizeram representar.

Essa pessoa não tomava remédio pra pressão, pra hipertensão, ela não fazia nada, ela não media a pressão dela, ela não tava nem aí e depois disso eu tive que meter medo nela, foi à base de ameaças, mas eu consegui... (risos). (UBS III)

O mesmo caráter prescritivo se reproduziu nos temas: "educar é promover mudança de hábitos", "educar em saúde é repetir várias vezes a informação", "educar em saúde é realizar um trabalho de convencimento".

Percebe-se, assim, que a concepção de educação em saúde gira em torno da finalidade de mudar comportamentos, quer por meio do instrumental de convencimento, que requer a transmissão repetida de informações, quer por meio de estratégias de amedrontamento.

Essa compreensão do trabalho educativo aproxima-se bastante da educação nos moldes dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS)(13), que se pauta por culpabilizar o indivíduo por ficar doente, cabendo a ele, portanto, a responsabilidade pelo controle da doença. Assim, busca-se melhorar a situação de vida das pessoas a partir de recursos individuais sem que se conteste a estrutura e a dinâmica do modo de produção, que engendram as raízes dos problemas de saúde.

Desse modo, a educação em saúde teria como objetivos: a) depurar, extrair dos indivíduos as crenças e idéias desfavoráveis ao comportamento esperado pelo conhecimento acadêmico hegemônico; b) normatizar, ordenar a vida dos indivíduos de acordo com padrões previamente estabelecidos sem considerar os conhecimentos e experiências anteriores dos sujeitos, bem como as diferenças de inserção social; c) legitimar as práticas e os conteúdos institucionais, cujo saber é o considerado válido(14).

Nessa perspectiva, a educação é praticada como delegação de responsabilidades para o indivíduo e como ação complementar à ação médica com a finalidade de baratear custos das políticas sociais. A maneira como a educação em saúde é conduzida acaba por atribuir à "ignorância" e à "falta de consciência" dos indivíduos a causa dos fracassos das ações em saúde(14).

Para superar essa "falta de consciência", muitas vezes, se recorre às estratégias de reforço de orientações e do controle sobre os corpos dos indivíduos(15) nos moldes da saúde pública campanhista(16). Muitas vezes se nega o saber popular e impõe-se o saber científico, desconsiderando-se a capacidade dos grupos sociais de reconhecerem seus problemas e agirem para transformar a realidade, cabendo ao técnico a normatização da vida(14).

Por outro lado, também deve-se estar atento para posturas que caracterizem o extremo oposto, o de considerar que apenas o saber popular é válido, adequando-se o profissional à "realidade cultural da comunidade", de forma acrítica, sem conflitos, o que pode servir de justificativa para a utilização de estratégias baratas a partir de recursos locais, minando a luta da população pela conquista de seus direitos(14).

Um outro ponto a ser abordado é que a educação em saúde, ao voltar-se para a prevenção e tratamento de doenças, responde aos interesses do capital que transforma as legítimas necessidades de saúde da população em mercadorias (indústria farmacêutica e de medicamentos). Evidencia-se, assim, um mecanismo contraditório, de um lado, a indústria médica e de medicamentos enfatiza a necessidade de que se consumam essas mercadorias para se ter saúde, de outro, aqueles que se encontram com dificuldades de reprodução social não conseguem ter acesso a essas mercadorias(14).

Na contramão desse conceito está a concepção de educação como construção coletiva do processo educativo em saúde que, no lugar de reproduzir a ideologia dominante, busca romper com "os modos de relações humanas pelos quais fomos programados para o trabalho e a vida (como se essa fosse a ordem natural do mundo) (...). [Dessa forma], se coloca a possibilidade de uma educação em saúde popular, na construção de um sujeito histórico que, reconhecendo-se como indivíduo genérico em desenvolvimento, é capaz de se apropriar do discurso que o conforma à situação de "assistido", "excluído", "despossuído" e de opor-se a ele, criando um novo discurso, onde se constitui como sujeito novo. Nesse processo, construído coletivamente, tomam parte profissionais e população (...)"(14).

Nessa perspectiva, verificaram-se nos grupos focais e nas entrevistas individuais as seguintes falas dos agentes comunitários: "educação em saúde é respeitar a cultura, a realidade e os limites do outro", "intervir na situação de vida", "discutir cidadania", "questionar padrões veiculados pela mídia", "possibilitar a participação da população no processo educativo", "orientar a respeito da utilização do serviço". Outro tema freqüente foi "mobilizar a população para a busca de direitos".

(...) eu tinha como visão de agente comunitário de saúde quando comecei que eu estaria agindo com as famílias para divulgar prevenção de saúde. Chegar lá: 'você tem que tomar tal medicação'. Essa era a minha visão como agente, quando eu assumi. Hoje, eu vejo, não, de uma maneira diferente que além de ir até lá e promover a saúde, eu tenho que ajudar essa comunidade a buscar os direitos que são oferecidos a ela (...). (UBS III).

Nessas falas verifica-se que a finalidade do processo educativo não se restringe à prevenção de doenças, mas amplia-se para a esfera dos direitos e da construção da cidadania, procurando discutir as raízes dos problemas de saúde nos moldes de um processo político e dialógico que possibilite a reflexão sobre a realidade social e a sua transformação(17). Entretanto, verifica-se que as falas concentram-se no âmbito da vida, do bairro, do consumo. Não se alcançam as relações entre saúde e trabalho que, na verdade, determinam as formas de viver.

De toda forma, nessa perspectiva, as experiências anteriores são consideradas e a população tem participação ativa no processo educativo nos moldes da educação emancipatória(18). Verifica-se também o caráter contra-ideológico dessa educação na medida em que contesta os padrões veiculados pela mídia com relação ao que "se deve fazer para se ter saúde".

Sendo assim, verifica-se que a atividade teórica (concepção de educação, de saúde e de educação em saúde), que guia a práxis dos ACS (atividade prática de transformação da realidade), apresenta caráter contraditório, ora se apresentando com características progressistas e transformadoras da ordem dominante, de contestação da realidade de desigualdade social, ora se apresentando com características predominantemente conservadoras, que respondem aos interesses do capital e reproduzem a ideologia dominante.

Práxis: o que fazem os agentes comunitários de saúde

O caráter da atividade prática dos agentes acompanhou a oscilação verificada na atividade teórica, por vezes, práxis criativa, por vezes, práxis reiterativa, com predomínio dessa, como pôde ser verificado nas atividades referidas pelos agentes, tanto nos grupos focais quanto nas entrevistas individuais em que relataram situações do cotidiano do trabalho.

As práticas que caracterizam uma práxis criativa se apresentaram nos temas: "fazer educação em saúde é ampliar a visão do serviço sobre as necessidades de saúde da população", "fazer educação em saúde é realizar ações intersetoriais", "fazer educação em saúde é ser referência para transformar a situação de saúde" e "fazer educação em saúde é ter liderança para transformar a realidade".

A gente (...) é a liderança lá da comunidade, porque a própria associação ela não participa de muitas coisas que estão acontecendo lá na região do Butantã...(...). Às vezes a gente está em reuniões que a associação de moradores às vezes nem sabe, e deveriam estar, que é importante, e não está (...). Eu vejo essa parte de liderança na comunidade na gente mesmo ... porque pelo que eu percebo, a gente corre atrás de meio ambiente, corre atrás da educação das crianças, corre atrás de adolescentes ... para melhorar a comunidade a gente vai atrás do zoonoses por causa dos ratos, da prefeitura, de tudo ... Tudo a gente vai atrás ... A associação só tem nome ...(UBS IV).

Aqui os agentes buscavam ampliar as práticas essencialmente curativas, buscando incluir estratégias que demonstrassem desagrado e contestação por referência à marginalidade em que vivem os moradores das áreas atendidas por eles. Assim, muitas vezes, resgataram seu papel de liderança em processos de mobilização, já que a maior parte dos agentes do estudo trazia no currículo alguma forma de engajamento em grupos e associações.

Ressalta-se que as transformações propostas atinham-se ao âmbito das condições de vida, não havendo falas que buscassem contestar efetivamente a estrutura da sociedade. Sendo assim, a práxis dos agentes não parece se constituir como uma atividade política, mas apenas produtiva. "A práxis produtiva é assim a práxis fundamental porque nela o homem não só produz um mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetos que satisfazem necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se plasmam neles finalidades ou projetos humanos, como também o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo (...). [Já] a práxis social é a atividade de grupos, ou classes sociais, que leva a transformar a organização e direção da sociedade, ou a realizar certas mudanças mediante a atividade do Estado. Essa forma de práxis é justamente a atividade política"(9).

Tal constatação revela-se coerente com a discussão apresentada por outros autores(19) que, ao analisarem o caráter do processo educativo de formação de auxiliares de enfermagem através do Projeto Larga Escala, também verificaram, por um lado, ênfase no caráter técnico das capacitações pedagógicas e, por outro, uma compreensão política limitada do processo educativo.

A práxis voltada para o plano da produção muitas vezes restringe-se à execução de tarefas, caracterizando uma práxis reiterativa que, no presente estudo, correspondeu às atividades práticas evidenciadas pelas falas nos grupos focais de que "fazer educação em saúde é ser os olhos do posto na comunidade", "fazer educação em saúde é uma missão de vida para ajudar o próximo", "fazer educação em saúde é ser 'tapa-buraco' para camuflar as limitações do serviço".

E atualmente nós somos tapa-buraco aqui no posto, tudo que tá precisando "vai fazer", entendeu? Precisa fazer um trabalho administrativo, fazer um envelope, do ATA que ganha duas vezes o que a gente ganha, nós estamos fazendo o trabalho dele, ele deixa a gente lá no balcão e vai passear, ler revista e você fica atendendo lá, se você fizer errado é 'porque o agente fez' (UBS I).

A práxis reiterativa também esteve bastante representada no relato das situações vivenciadas, verificando-se que as intervenções objetivavam prevenção e tratamento de doenças no âmbito individual ou familiar e mesmo as propostas de resolução de conflitos eram permeadas por ações de cunho moralizante, utilizando-se estratégias de convencimento e amedrontamento.

Dessa forma, grande parte das atividades dos agentes parece assumir caráter instrumental, conformando a práxis reiterativa em que o sujeito age sobre a realidade por meio da repetição de tarefas para adaptar-se a essa realidade. Além de suprir limitações do serviço, essas tarefas se resumem a atividades de "leva-e-traz" de informações da comunidade para a UBS e vice-versa, correspondendo s grande parte do trabalho do agente. Isso foi também constatado em outro trabalho(20), ao verificar que parte expressiva do trabalho dos agente se destina a "levar mensagens" como as datas de consultas para a população.

Constatou-se, ainda, que as atividades práticas também possuem características messiânicas, de ajuda ao próximo, explicitando o caráter ideológico da atividade teórica que a embasa. Verificou-se também a realização de práxis reiterativa quando os agentes não intencionalizam a finalidade do trabalho, conseqüência da divisão social e técnica, própria da alienação. Dessa forma, os agentes sentem-se impotentes ao tomar para si a responsabilidade de atender todas as demandas da comunidade. Sem saber como realizar o enfrentamento dessa situação, os ACS lançam mão de estratégias de convencimento e amedrontamento que condicionem a população a seguir suas orientações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se que tanto a práxis dos agentes quanto a atividade teórica que a embasa possuem características contraditórias, oscilando entre as características mais transformadoras e mais conservadoras, sendo que essas predominaram, representadas pelas concepções prescritivas de educação em saúde e pela práxis reiterativa.

No entanto, alguns agentes conseguem realizar a práxis criativa na medida em que iluminam suas práticas com concepções teóricas que ultrapassam o pólo técnico e que, por isso mesmo, extrapolam o caráter biomédico da saúde e fundamentam ações de transformação da realidade de saúde ainda que no âmbito do consumo.

A superação da práxis reiterativa na direção de uma práxis criadora dar-se-ia por meio da qualificação dos agentes - tanto por meio de formação em cursos quanto através das supervisões nos serviços. Por meio da qualificação se trabalharia as concepções de educação, saúde e educação em saúde, segundo o referencial da saúde coletiva, visando instrumentalizar os sujeitos para uma prática social circunstanciada pela realidade histórica propiciando sua contestação, pois, apesar da educação não se constituir como elemento estruturante das relações de produção, ela se manifesta como componente superestrutural capaz de instrumentalizar as classes subalternas para a compreensão dos determinantes do processo saúde-doença. Assim, a atividade prática deixaria de se constituir em mera repetição de tarefas, tornando-se princípio educativo na perspectiva de uma práxis transformadora.

Cabe ressaltar que a tarefa de qualificação dos agentes depende fundamentalmente da concretização do SUS em modelos de atenção que superem as armadilhas da alienação no trabalho, ou seja, a qualificação deve passar também pelo aperfeiçoamento daqueles que são os responsáveis pelo aprimoramento da força de trabalho em saúde em geral e dos agentes em particular. Dessa forma, a superação da práxis reiterativa na direção de uma práxis criadora dar-se-ia por meio da qualificação do trabalho de todos os trabalhadores de saúde, aperfeiçoando as concepções e o saber operante - de educação, saúde e educação em saúde, da perspectiva da saúde coletiva - que iluminam o recorte do objeto e instrumentalizam a prática, para apoiar, junto dos grupos sociais, o processo de transformação da realidade de saúde e de construção da cidadania plena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 22.12.2005

Aprovado em: 29.5.2006

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    Denominação utilizada até o início de 2005, quando houve mudança de governo e conseqüente reestruturação das coordenadorias de saúde que passaram de 31 para 5. A Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã foi anexada à Coordenadoria de Saúde da Região Centro-Oeste.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Recebido
      22 Dez 2005
    • Aceito
      29 Maio 2006
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