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O processo saúde-doença-cuidado e a lógica do trabalho do enfermeiro na UTI

Resumos

O presente estudo pretende conhecer a lógica da produção de saúde na UTI com base no discurso defendido pelo enfermeiro e na prática profissional que efetivamente é reconhecida pelos familiares acompanhantes dos pacientes internados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de orientação dialética, realizada com 7 enfermeiros e 5 familiares em uma UTI de adultos de um hospital universitário de Santa Catarina. O referencial teórico-filosófico baseou-se em leituras marxistas e gramscianas. Os resultados mostram que a lógica da produção de saúde na UTI está inserida em uma complexa teia que se move em um ritmo dialético de autonomia, dependência e co-responsabilização para o cuidado. Entendemos que essa realidade possa demonstrar a necessidade de repensar saberes e práticas profissionais para promover a constante reformulação e transformação do contexto assistencial de cuidados intensivos.

enfermagem; empatia; processo saúde-doença; trabalho


The present study aims to learn the health production logic in the ICU based on the discourse defended by nurses and on the professional practice that is recognized by the relatives accompanying the hospitalized patients. This is a qualitative and dialectic investigation performed with seven nurses and five relatives in an ICU for adults of a teaching hospital in Santa Catarina. The theoretical-philosophical referential was based on Marxist and Gramscians readings. The results show that the logic of the health production in the ICU is inserted in a dialectic rhythm of autonomy, dependence and co-responsibility for the care. We understand that this reality can demonstrate the need to rethink the knowledge and practices to promote the constant re-formularization and transformation of the assistant context of intensive care.

nursing; empathy; health-disease process; work


Este estudio pretende conocer la lógica de producción en salud en la UCI basado en lo que es expresado - defendido por el enfermero dentro de su práctica profesional, la cual es reconocida por los familiares que acompañan a los pacientes internados. Se trata de una investigación cualitativa con orientación dialéctica, realizada con 7 enfermeros y 5 familiares de una UCI de adultos dentro de un hospital universitario de Santa Catarina. El referencial teórico-filosófico escogido se basó en lecturas marxistas y gramscianas. Los resultados demuestran que la lógica de producción en salud en UCI se encuentra incluida dentro de una red compleja, la cual se da dentro de un ritmo dialéctico basado en autonomía, dependencia y co-responsabilidad para con el cuidado. Comprendemos que la realidad refleja la necesidad de repensar sobre el saber y las prácticas profesionales promoviendo la constante reformulación y transformación de los cuidados intensivos dentro del contexto asistencial.

enfermería; empatía; proceso salud-enfermedad; trabajo


ARTIGO ORIGINAL

O processo saúde-doença-cuidado e a lógica do trabalho do enfermeiro na UTI1 1 Extraído de Dissertação de Mestrado

Leandro Barbosa de PinhoI; Silvia Maria Azevedo dos SantosII

IEnfermeiro, Mestre em Enfermagem, Doutorando em Enfermagem Psiquiátrica na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: lbpinho@uol.com.br

IIEnfermeira, Professor Doutor do Departamento de Enfermagem, do Centro de Centro de Ciências da Saúde, da Universidade Federal de Santa Catarina, silvia@nfr.ufsc.br

RESUMO

O presente estudo pretende conhecer a lógica da produção de saúde na UTI com base no discurso defendido pelo enfermeiro e na prática profissional que efetivamente é reconhecida pelos familiares acompanhantes dos pacientes internados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de orientação dialética, realizada com 7 enfermeiros e 5 familiares em uma UTI de adultos de um hospital universitário de Santa Catarina. O referencial teórico-filosófico baseou-se em leituras marxistas e gramscianas. Os resultados mostram que a lógica da produção de saúde na UTI está inserida em uma complexa teia que se move em um ritmo dialético de autonomia, dependência e co-responsabilização para o cuidado. Entendemos que essa realidade possa demonstrar a necessidade de repensar saberes e práticas profissionais para promover a constante reformulação e transformação do contexto assistencial de cuidados intensivos.

Descritores: enfermagem; empatia; processo saúde-doença; trabalho

INTRODUÇÃO

O processo saúde-doença, ao longo da história, traz uma série de intrigantes questionamentos que nos fazem repensar nossos discursos e nossa prática profissional. Sempre que visualizamos a promoção de saúde, pensamos, também, na doença, sendo esses conceitos interdependentes, que, em um ritmo dialético, tendem a gerar aproximações e distanciamentos no trabalho dos profissionais de saúde.

As situações de saúde/doença foram sendo construídas e reconstruídas conforme os interesses da sociedade de cada época. As mudanças político-econômicas, a reorientação das finalidades do trabalho, a divisão de classes sociais e a crescente proliferação de doenças epidêmicas foram fatores que reformularam os conceitos acerca das condições de saúde e de doença, reorientando, também, as formas de intervenção(1-2).

A enfermagem acompanhou a evolução histórico-estrutural da saúde-doença no mundo, inclusive antes de sua profissionalização no século XIX, posicionando-se dentro de uma linha mais humanística, de vanguarda. Teve uma boa contribuição de áreas correlatas das ciências humanas, como a filosofia, a antropologia, a psicologia e a sociologia. A enfermagem seguiu nessa linha de formação, até mesmo como forma de tornar independente do saber médico tecnicista as suas ações de cuidado(3).

Nesse sentido, pensar nas concepções de saúde-doença-cuidado, na atualidade, é compreender que as estratégias de garantia das condições de saúde são um processo complexo, em que se mesclam as realidades do contexto social, as necessidades da equipe, do paciente, entre outros. Portanto, são, mais do que tudo, um conjunto de discursos, de práticas, de filosofias, de organização do trabalho e de pessoas com necessidades e individualidades.

O presente estudo pretende conhecer a lógica da produção de saúde na UTI, com base no discurso defendido pelo enfermeiro e na prática profissional que efetivamente é reconhecida pelos familiares acompanhantes. Ela está baseada na tese de que o cuidado de enfermagem pode revelar-se contraditório, refletindo-se em determinados momentos do contexto assistencial, bem como no discurso e na prática profissional do enfermeiro. Pensamos que a realidade apresentada pode possibilitar uma reflexão e a constante transformação do setting de cuidados intensivos.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de orientação dialética, realizada na unidade de terapia intensiva - UTI do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina. Para tanto, foi encaminhado um documento, juntamente com o projeto, para o Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, e recebemos o parecer favorável ao desenvolvimento do estudo.

A coleta de dados foi efetuada por meio da observação participante e das entrevistas semi-estruturadas. Para este estudo, selecionamos fragmentos das entrevistas semi-estruturadas aplicadas aos enfermeiros e aos familiares acompanhantes selecionados.

No total, participaram deste estudo 7 (sete) enfermeiros dos 8 (oito) que trabalham na UTI, segundo critérios anteriormente definidos, como o tipo de vínculo empregatício com o hospital, tempo de trabalho na unidade e sua disposição em participar do estudo.

Com relação aos familiares acompanhantes, estes foram selecionados durante as observações de campo na etapa de coleta de dados. Ao todo, foram entrevistados 05 (cinco) familiares, segundo os critérios de proximidade física ou afetiva com o paciente, sua disposição em participar da pesquisa e condições de comunicação e compreensão para colaborar no estudo.

Para a análise dos dados, construímos um roteiro específico para enfermeiros e outro para os familiares acompanhantes. Para a análise desses dados, fizemos leituras e releituras dos textos gerados pelas entrevistas, até chegar às categorias que mais apontassem o que estava sendo dito pelos informantes. Na etapa seguinte, quando já iniciávamos a fazer inferências e interpretações, construímos dois eixos de discussão, sendo, neste estudo, trabalhada a questão da lógica da produção de saúde e de cuidados na UTI.

Foi também garantido o anonimato dos sujeitos investigados, assim como respeitada a decisão de desistência por parte dos pesquisados, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, Resolução 196/96 do Ministério da Saúde e Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Para tanto, os enfermeiros foram identificados com a letra "E" seguida de sua ordem na entrevista (por exemplo, E2). Os familiares foram identificados com a letra "F".

Referencial Teórico-Filosófico

Acreditamos que a construção da enfermagem, como prática social, ultrapassa as relações entre os sujeitos, para a promoção do cuidado integral, relacional, intersubjetivo. Observamos essa construção como um conjunto de características complexas, intercalando as subjetividades, a política, a história e a vida social. Nesse sentido, valemo-nos de algumas contribuições de Karl Marx e Antonio Gramsci sobre as condições materiais da existência e sobre o trabalho, para embasar as discussões sobre os saberes e as práticas de saúde-doença-cuidado e a lógica da produção de saúde que é veiculada na UTI.

A história compreende uma sucessão de gerações, cada uma delas explorando os bens materiais, capitais, as forças produtivas das gerações precedentes e a natureza em que tudo isso se encontra. Trata-se de uma sucessão de discursos e de práticas transmitidos num ritmo dialético: na medida em que são radicalmente transformados, na sua sucessão, modificam as antigas circunstâncias, tornando-se radicalmente diferentes(4).

Caso visualizássemos o homem como um produto da História, poderíamos dizer que a História também é uma produção do homem, ambos em um processo dialético de reconhecimento e transformação. O homem é um ser em processo, mais precisamente o processo de suas próprias vontades e atitudes(5). Nesse sentido, entendemos que o homem, ao dominar a natureza, construindo a sua vida social, produz a si mesmo, re-visita a sua existência, a sua consciência, humanizando-se. As relações que esse homem estabelece com os meios de produção constroem a matéria, as relações humanas, sendo essas a base do movimento da vida e do coletivo. O trabalho se constitui no princípio básico pelo qual o homem produz/reproduz a sua história, fazendo-se co-partícipe do mundo e das relações que o permeiam: "Em suma, deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas (um processo), no qual, se a individualidade tem a máxima importância, não é todavia o único elemento a ser considerado... E mais: estas relações não são mecânicas. São ativas e conscientes, ou seja, correspondem a um grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem individual. Daí ser possível dizer que cada um transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central"(5).

Observamos que o processo saúde-doença-cuidado que viabiliza um conhecimento teórico-prático sobre a lógica da produção de saúde na UTI poderia tornar-se um dispositivo para a produção da vida no interior das relações sociais constituídas. O trabalho, nesse sentido, corresponde à condição básica e fundamental de toda a vida humana, capaz de modificar a natureza, bem como a si mesma perante ela(6). Assim, o discurso e a prática profissional que se desenvolvem dentro do setting de cuidados intensivos são parte de uma realidade preenchida de contradições, influenciando-as e sendo, da mesma forma, influenciados por elas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Entendemos que o trabalho da enfermagem contempla as condições das pessoas, do próprio ambiente de trabalho, das suas obrigações, assim como das necessidades, em um dado momento histórico. Acreditamos que o trabalho profissional, assumindo essas características, reúne-as na esfera do esforço social representado pela produção de subjetividades dos indivíduos nas condições oferecidas pelo contexto objetivo. A produção de vida material reside na produção dos meios que permitiriam satisfazer as necessidades do indivíduo aliadas às condições oferecidas pela natureza: "A produção da vida... surge-nos como uma relação dupla: por um lado como uma relação natural e, por outro, com uma relação social - social no sentido de ação conjugada de vários indivíduos, não importa em que condições, de que maneira e com que objetivo(4).

Observamos que o saber e a prática social da enfermagem, no que tange à produção de saúde na UTI, permeiam sua própria constituição a partir da sua formação como um grupo de pessoas que se inter-relacionam para implementar e gerenciar a atividade laborativa de promoção do cuidado. Os enfermeiros acreditam, em seus discursos, que a referida promoção do cuidado se dá no interior da constituição de uma equipe multiprofissional na UTI. Os relatos abaixo demonstram essa constatação:

Eu acho que o trabalho em equipe, acho que isso diferencia o trabalho de grupo, porque é mais coeso, um objetivo mais comum, o grupo se inter-relaciona melhor, acho que é uma facilidade grande [...] eu tive oportunidade de conhecer todos os turnos de trabalho, conhecendo cada funcionário, as dificuldades, todas as realidades. Eu acho que nem todos eles apresentam a mesma característica, tá? Tem uns que trabalham em grupo e outros que trabalham em equipe. Eu acho que o trabalho em equipe é um ajudando o outro, sabe? Então como a gente não trabalha com cuidado integral, é muito dividido, todos têm que ajudar. (E3)

... a equipe médica também, a maior parte a gente tem facilidades, uma boa relação, são poucos com os quais a gente tem dificuldades, mas com a grande maioria a gente interage bem, acho que existe bastante confiança. Os líderes, os chefes consultam muito a enfermagem [...] não tem muito estrelismo. (E4)

As transformações da sociedade moderna têm influenciado a saúde por ser esta parte daquela, tanto no que tange ao seu objeto de estudo - o processo saúde-doença-cuidado - quanto com um instrumental teórico-prático que permita a organização dos processos de trabalho e dos serviços. O setor de saúde necessita corresponder a uma multiplicidade de demandas, que carecem de um olhar diferenciado para proporcionar uma condição de vida mais saudável. Dentro de uma perspectiva de assistência integral, é importante que exista um diálogo interdisciplinar, buscando entender as relações entre os sujeitos e desses sujeitos com o meio em que vivem(7).

A UTI é um ambiente fechado, apresentando número reduzido de leitos e atendendo a uma parcela da população que inspira cuidados intensivos de saúde. A UTI representa um espaço físico limitante, cerceado pela gravidade dos casos e que exige um atendimento constante e contínuo. Assim, a equipe multiprofissional fica limitada ao relacionamento cotidiano, fazendo-se necessário haver uma política de bom relacionamento interpessoal dentro da equipe para se promover um convívio tranqüilo e um cuidado melhor(8).

Os acompanhantes e os pacientes atendidos parecem perceber que a movimentação de pessoas na unidade faz parte da estratégia para não particularizar o atendimento, em termos de áreas de especialização. A grande maioria faz referência à diversidade de profissionais que compõem a equipe de saúde que interage no sentido de promover o melhor cuidado possível no contexto assistencial. A fala a seguir sintetiza essa realidade:

... me chamou atenção que tem uma diversidade muito grande lá dentro: tem técnico, tem auxiliar, tem enfermeiro, tem médico, tem fisioterapeuta, tinha um pessoal da psicologia que perguntaram se a gente queria um acompanhamento, alguma coisa, que eles poderiam ajudar. Eu acho que eles tentam cercar de diversas maneiras, não só a parte física da pessoa... (F1)

Observamos na fala de F1 que a constituição de uma equipe de saúde na UTI trata-se de uma estratégia intervencionista não somente centrada no saber médico, mas com a proposta de cuidar do outro para promover a complementaridade das ações em saúde. Segundo F1, a visão multifocal do cuidado na UTI parece não reproduzir uma prática reducionista que é freqüente nas unidades de terapia intensiva e que dissocia corpo, mente e relações sociais. A intenção seria considerar o ser por inteiro, desde a sua constituição biológica, até as suas subjetividades, o seu sofrimento, as suas expectativas e, principalmente, os seus vínculos interpessoais.

A multiprofissionalidade no cuidado faz parte do processo de apropriação do objeto de trabalho, centrado em práticas distintas, porém com um objetivo em comum na esfera integral de assistência nos serviços de saúde. As práticas multiprofissionalizadas são apontadas como sendo uma estratégia privilegiada de aprimoramento do cuidado e de qualidade do atendimento. Todavia, as práticas centradas na atividade multiprofissional também possuem um componente limitante, quando se referem à própria reprodução e organização dos serviços de saúde, além das ações de cuidado centradas na atenção biomédica e fragmentária(9).

Sobre a organização do trabalho no Brasil, considera-se que esta tem uma relação direta com as transformações sociais implícitas e explícitas no contexto da produção. A herança fordista-taylorista* * A herança taylorista-fordista representa um padrão de produção na era capitalista, desenvolvido no século passado e que era centrado na produção em massa, na produção concentrada e verticalizada, além da execução das atividades com controle de tempo e de movimentos (10) de produtividade carrega, até hoje, um componente estrutural que se manifesta no controle dos modos de produção e da força operária, refletindo-se na presença/ausência de uma rotinização das atividades e de precariedade nas condições laborativas. Nesse sentido, os conceitos de "eficiência" e de "controle" seriam as regras de influência sobre a produção, quando esta passa a ser centrada na repetição de tarefas e não na introdução de discussões que gerariam mudanças organizacionais efetivas no contexto produtivo(10).

O taylorismo e o fordismo geraram uma lógica do processo produtivo centrado na atividade parcelar, ou seja, fragmentada em termos da existência de pólos concentrados e verticalizados. O fordismo ainda contribuiu para uma separação entre gerência, concepção, controle e execução, construindo uma cultura e um modo de viver específico, ajustado na reprodução do trabalho e na racionalidade da produção. Com relação à produção de saúde, compreende-se que essa realidade ainda permeia o cotidiano do trabalho dos profissionais que deveriam entendê-lo como uma complexidade, em que não se poderia ignorar a formação e a divisão social/técnica do trabalho, nem sintetizar as atividades às suas parcelas e fragmentos(11).

Os enfermeiros entendem que as relações estabelecidas entre as equipes, a instituição e o ambiente da UTI são importantes para buscar continuamente a "eficiência" no trabalho por meio da garantia de pessoal para desempenhar as funções de maneira satisfatória. Isso também pressupõe que elas sejam comprometidas com a realidade e que esta lhes permita serem autônomas na hora da tomada de decisão:

No papel de chefia, eu tento sempre estar mantendo a unidade com a quantidade satisfatória de materiais, de pessoal, prevendo a cobertura de escalas, de atestados, materiais bons, porque o HU trabalha com materiais bons [...] No papel da assistência, estar promovendo a qualidade chamando o pessoal pra trabalhar mesmo, mantendo uma boa relação com eles, porque a UTI é uma unidade fechada e os atritos têm que ser resolvidos [...] porque senão vira uma bola de neve. (E3)

... não há nenhuma restrição ao teu trabalho, de ordem nem médica, nem da chefia de enfermagem, de nada. Eu me sinto muito livre, isso é muito bom, uma autonomia enorme que eu tenho... tu não dependes de ninguém. A avaliação é tua, é tu que decides, se tu tens que fazer curativo, se não tens. Tu vais fazer já de acordo com a rotina pré-estabelecida, mas fora disso, é tu que decides. (E7)

A autonomia do enfermeiro para decidir sobre os cuidados a serem implementados tem uma importante influência para o andamento e o gerenciamento das atividades na UTI. As relações que se estabelecem entre os profissionais, neste setor, e a flexibilização da atividade de prescrição de enfermagem parecem potencializar as condições de promoção/recuperação da saúde das pessoas. Cabe ao enfermeiro, também, manter o interesse da equipe centrado na atividade cooperativa, como uma tentativa de co-responsabilização para a eficácia do cuidado.

Porém, nem sempre isso é verdadeiro, principalmente quando o que está em jogo são as relações entre as pessoas e a política institucional como um todo, além do (des) interesse que pode estar implícito ou explícito na atitude dos profissionais. Pode-se ver, em certos casos, alguns profissionais que interagem bem com seus colegas, ajudando-os nas atividades com os pacientes. Em outros, isso não se desvela, sendo percebido por alguns familiares acompanhantes:

Eu acho que eles não são muito integrados mesmo, tem tipo "grupinhos", assim, e têm aqueles que se empenham mais. A gente vê que tem uns que estão sempre mexendo com os pacientes, sempre fazendo alguma coisa, e outros não, ficam chamando pra tomar café [...] Não sei se é porque eu fico só uma hora, não sei se é por causa do horário deles, mas eu penso que tem uns que interagem mais e são mais dedicados [...] A gente sabe que dá um stress, que se quer dar uma saída, uma volta, mas pega mal. Porque fazer isso bem no horário da visita? É quando o familiar tem dúvidas, querem saber se o paciente está bem tratado, pega mal. Eu acho que eles não negligenciam, mas pega mal, parece coisa de funcionário público. (F5)

Os trabalhadores do hospital são contratados mediante a abertura de concurso público para o preenchimento de vagas. Normalmente, os editais de concurso são liberados de dois em dois anos, e as provas contemplam conhecimentos específicos e práticos. Após serem aprovados e empossados, são admitidos no serviço público pelo Regime Jurídico Único dos Servidores Federais (RJU - Lei 8112/1990) e regidos por esse sistema. O RJU vem sendo constantemente modificado por meio da edição de Medidas Provisórias (MP), sendo a MP 1595-14/1997 uma das que trouxe mudanças mais significativas, no que tange aos itens de nomeação e constituição dos concursos públicos. Por meio desse sistema, o funcionário passa a acumular vantagens pessoais, bem como obrigações diferenciadas no ambiente de trabalho.

O RJU admite o funcionário no serviço público, garantindo-lhe uma estabilidade empregatícia que pouco é vista no setor privado, após esse mesmo funcionário ser aprovado em avaliação de estágio probatório (normalmente dois anos). Depois dessa fase, ele é reconduzido ao cargo de origem para o qual foi contratado, mantendo emprego e salário vitalícios. Segundo o RJU, o servidor estável só poderá perder o cargo mediante sentença judicial finalizada ou de processo administrativo disciplinar, no qual lhe é assegurada ampla defesa(12).

É com relação a esse fato, em especial, que se concentra uma das maiores queixas dos enfermeiros e que tem conseqüências diretas na lógica da produção de saúde/cuidado na UTI. O RJU é claro no que diz respeito às penalidades, mas elas nem sempre são cumpridas e, quando cumpridas, são muito burocráticas, levando anos para serem efetivamente reconhecidas:

Em termos da equipe, claro, a gente tem faltas, atestados, em geral, e essas faltas se relacionam direto com a qualidade do cuidado e com a qualidade de satisfação do cliente. Porque a partir do momento que falta alguém, o restante da equipe tem que se organizar diferente e trabalhar mais, principalmente quando essa falta é uma justificativa não plausível com a opinião do pessoal, então o nível de insatisfação aumenta. Aí começam as fofocas, as discussões, as intrigas. (E6)

... as dificuldades do serviço público, por exemplo, o funcionário falta, não existe uma punição adequada pra isso, não é eficaz. Eu tenho dificuldades de me adaptar ao hospital, sabe? Poxa, o cara não veio trabalhar e dá uma desculpa. Aqui isso acontece freqüentemente e me deixa bastante chateada, prejudica a assistência. Isso é complicado, Leandro, o funcionário falta, falta, desconta, mas nem sempre tem um seguimento, no estágio probatório ainda tem como, mas se ela é efetiva não tem como. (E4)

... as dificuldades que a gente tem aqui são de ordem trabalhista. A maior dificuldade que a gente vê é o descontentamento do pessoal, uma em relação a salários, um tempão sem aumento, né? Fica ruim tu gerenciares uma pessoa descontente. (E7)

O setor público possui uma longa tradição em reformas administrativas desencadeadas, geralmente, no início de uma nova gestão política, como possibilidade de prover adequação da máquina pública aos planos de governo. As referidas reformas parecem marcar um processo de remodelamento sucessivo do Estado, tendo sido implementadas na Era Vargas, nos anos 30, e continuando, inclusive, no período da ditadura militar, para realinhar as estruturas administrativas para o exercício do poder centralizado e organizador dos interesses da sociedade. Além do aparelho administrativo, como, por exemplo, o Departamento de Administração do Serviço Público e os planos de carreiras, foram criados importantes instrumentos de viabilidade de políticas sociais da previdência social, trabalhista, econômica, fiscal, entre outras(13).

A partir da crise econômica internacional, na década de 70, houve uma tentativa de reestruturar a economia em curso, tornando-a mundialmente difundida e inserindo-a no processo de globalização. Esta, por sua vez, gerou efeitos no decorrer do período para estimular a concorrência entre os mercados, em um processo ascendente de acumulação de capital. Nessa fase, o Brasil, mais do que enfrentar uma dificuldade conjuntural, teve que lidar com as amarras da urbanização e da industrialização, além de tentar reverter a fragilização de sua economia pelas crises mundiais. No entanto, o país, em déficit crescente, acabou incapaz de realizar investimentos necessários para o seu crescimento, tanto no que tange à definição de políticas públicas, quanto ao funcionamento da máquina administrativa, tornando-se refém dos órgãos fomentadores internacionais para tal feito(14).

O processo de reestruturação da máquina pública seguiu, nos anos 90, uma expansão para a inserção do país no mercado externo, como uma nova forma de reorientar as esferas públicas e adaptá-las às tendências internacionais de uma nova economia política. Toda essa realidade veio acompanhada, na prática, de um profundo processo de privatização, aliado a uma flexibilização das relações de trabalho nem sempre conduzida com bom senso. A autonomia financeiro-administrativa alcançada pela gestão poderia romper com a estabilidade fornecida pelo RJU, possibilitando a contratação e as dispensas em benefício da maior eficiência. Mas foi no governo Collor que o descrédito no funcionalismo público esteve no seu ápice, o que neutralizou os próprios profissionais na busca de seus direitos e desvalorizou as reivindicações em busca de melhores salários e condições de trabalho(13).

Com relação ao hospital e às políticas de saúde, o hospital é conveniado com o SUS e os funcionários convivem, dia-a-dia, com a precariedade das condições de trabalho, além das questões de ordem trabalhista, que são muito burocráticas e que nem sempre correspondem à agilidade que parece prevalecer no setor privado de atendimento. Embora eles trabalhem em uma realidade assistencial em que tudo é providenciado para evitar a falta de fornecimento e não prejudicar a qualidade dos cuidados intensivos, as dificuldades no gerenciamento do cuidado de enfermagem aparentam ter uma estreita vinculação com as políticas estatais de burocratização do serviço público, como também com as políticas sociais que nem sempre contemplam as inquietações dos funcionários.

O processo de reestruturação do Estado e suas implicações na saúde tiveram, como marco teórico, a constituição do Sistema Único de Saúde. Promulgado com a Constituição de 1988, o SUS passou por constantes reformas, no que tange à questão do financiamento dos serviços e da descentralização da gestão. A ideologia que buscou integrar Estado e sociedade civil na conquista de um controle exercido por meio da mobilização de todos não seria fonte de combate às desigualdades, uma vez que as restrições orçamentárias para a intervenção pública e a oferta dos serviços destinaram uma parcela de financiamentos para políticas voltadas aos segmentos mais pobres da sociedade, como o programa de Agentes Comunitários de Saúde e o Programa de Saúde da Família(15).

A atividade do funcionalismo público é primordial para o funcionamento do Estado e para a redefinição das políticas públicas, para qualquer finalidade. Dentro da realidade da promoção de saúde nos serviços assistenciais, entendo que a práxis do enfermeiro está inserida em um locus social complexo, mediado pela estrutura estatal, pelas condições de trabalho, pela política econômica, inclusive pelas relações de poder que se estabelecem entre os próprios profissionais. Contudo, a possível "desmotivação" dos profissionais da UTI do hospital parece ter uma relação estreitamente vinculada às origens do funcionalismo público federal e de sua constante desacreditação pelos governos subseqüentes.

Ademais, acreditamos que esse contexto de "descrédito" no trabalho do funcionário público vem acompanhado pari passu das crescentes condições insalubres de trabalho, que se revelam na insuficiência de investimentos administrativos, bem como nas políticas de reajuste salarial que pouco contemplam, muitas vezes, o interesse dos trabalhadores, além das instabilidades na política econômica brasileira que interferem nesses interesses. Dentro do contexto de trabalho na UTI do hospital, um exemplo dessa preocupante realidade se concentra na luta pela adoção da jornada de 30 horas, como exposto a seguir:

... eu tenho cobrado as 30 horas porque, na verdade, embora não seja oficial, outras áreas fazem dentro da UTI e a gente que luta pelas 30 horas não está conseguindo fazer. Eu sou de cobrar mesmo, porque outras áreas que não são tão exigidas, como é a enfermagem em uma instituição hospitalar, fazem 30 horas [...] acho que tem má-vontade da gerência e a gerência atual está extremamente rígida nesse aspecto. Porque já existe um decreto, desde que a gente consiga se organizar. Assim é a vida, isso é política, enquanto a gente vê outros funcionários fazendo até menos e às vezes nem tão envolvidos diretamente com o doente [...] essa injustiça me incomoda muito. (E3)

O Estado seria o aparelho controlador dos modos de produção do homem, além de ser constituído de um aparato jurídico-ético-econômico que se manifesta na vida material, nas relações interpessoais, na política e na economia, inclusive coibindo manifestações por meio dos mecanismos de coerção social. Entretanto, o homem, por mais que sufocado pelas condições regulatórias promovidas pelo Estado, nunca deve deixar de lutar. Ele deve sempre relativizar o seu mundo, a sua história, buscando nela a sua filosofia de vida, para que possa encontrar a sua individualidade, a sua consciência ético-moral e a sua concepção de mundo(5).

Compreendemos que, por mais que se pense em um funcionalismo público desacreditado, além de desmotivado pelas constantes imposições do governo federal sobre a política de investimentos, de um plano de carreira que não vem contemplando a valorização do profissional, parece existir, na fala de E3, um sentimento mobilizatório que se traduz na busca constante de seus direitos e das suas vantagens. A fala de E3 parece ser uma tendência contra-ideológica à política de conformismo com a qual a enfermagem, ao longo de sua história, aprendeu a conviver - e a aceitar, pouco lutando, definitivamente, em prol da transformação da realidade. Tal sentimento de luta de E3 é importante como um mecanismo de enfrentamento da inércia e como uma alternativa para resgatar uma nova relação hegemônica dentro de uma prática política de envolvimento com as condições de dignidade do valor do trabalho, na esfera pública.

Nesse sentido, a equipe multiprofissional, podendo ser um meio de emancipação dos sujeitos que a formam e um instrumento de revitalização do processo de trabalho, precisa adotar uma linha de frente capaz de reconhecer o caminho da construção das práticas de saúde e de cuidado. Mesmo que a intenção de se constituir um ambiente seja positiva para com a esfera do objetivo de cuidar, não basta apenas pensarmos nas atividades parcelares da UTI como totalizadoras das ações em saúde. É importante que haja mobilização contínua e coletiva de todos os profissionais, já que, no processo de saúde-doença-cuidado, como se pôde perceber, também está envolvida a política, a organização institucional e as relações interprofissionais. A transformação do cuidado perpassa uma dialética intrigante, muitas vezes intermediada por um caminho tortuoso, mas deve-se lutar sempre por essa transformação, ressaltando o direito à dignidade da vida, às condições laborativas adequadas, aos direitos políticos, bem como ao valor do Ser humano, tanto cuidador, como o Ser cuidado, nessa complexidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pôde perceber, o trabalho e a lógica da produção de saúde na UTI estão intrincados em uma complexa teia em que estão envolvidas relações humanas, profissionais, institucionais e políticas, que, direta ou indiretamente, influenciam no cuidado prestado pela equipe de saúde a pacientes e familiares acompanhantes que vivenciam o processo saúde-doença na UTI.

Entendemos que as relações estabelecidas entre trabalhadores e instituição organizacional parecem influenciar, em maior ou menor grau, na qualidade do atendimento prestado, assim como no conhecimento do profissional acerca do que seja saúde e doença na UTI. Acreditamos que o desvelamento dessa realidade seja interessante no sentido de promover a constante reflexão e transformação do contexto assistencial de cuidados intensivos por parte da equipe de saúde e de familiares acompanhantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 21.3.2006

Aprovado em: 1º.9.2006

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  • 1
    Extraído de Dissertação de Mestrado
  • *
    A herança taylorista-fordista representa um padrão de produção na era capitalista, desenvolvido no século passado e que era centrado na produção em massa, na produção concentrada e verticalizada, além da execução das atividades com controle de tempo e de movimentos
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007

    Histórico

    • Aceito
      01 Set 2006
    • Recebido
      21 Mar 2006
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