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Estudo das famílias de crianças e adolescentes, vítimas de violência, que sofreram intervenção da justiça

Resumos

Objetivo do estudo: conhecer a trajetória e a percepção da família acerca dos acontecimentos ligados à intervenção da justiça na violência cometida; quantificar e analisar os processos forenses no período de 2000 a 2005, caracterizando situações de violência na família e de revitimização. O referencial utilizado é o do contexto ecológico do desenvolvimento humano. A metodologia é quantiqualitativa. Os instrumentos são análise de processos, preenchimento dos mapas censitários, elaboração de genograma e ecomapa. A análise inspirou-se na hermenêutica dialética. Os resultados apontam 1.766 processos judiciais de infância e juventude, dos quais 8,21% são de violência na família. Emergiram três categorias empíricas Não tive que apresenta a infância na qual a negação é elemento construtivo de interações, perversamente engendradas nos universos econômico, político e institucional. Não ajuda e Não vira nada, expressam um Poder Judiciário com pouca capacidade de entender a sociedade e seus conflitos. Na rua traz cotidianos singulares de exclusão social.

família; violência doméstica; maus-tratos infantis; adolescente


The goal of this study was to track the steps of families that committed some kind of violence against their children and faced judicial intervention, as well as to explore their perceptions about the events involving such intervention; to quantify and assess the lawsuits, during the period from 2000 to 2005, characterizing situations of family violence and re-victimization. The study was theoretically based on the ecological context of human development. The methodology employed was quantitative-qualitative. The tools used were: analysis of the proceedings, filling out census maps, elaboration of genogram and ecomap. The analysis was based on dialectic hermeneutics. The results showed that there were 1766 lawsuits at the court, 8.21% of which were linked to family violence. Three empirical categories came up: I didn't have, which portrays a kind of childhood where negation was a constructive element of interactions, perversely engendered in the economic, political and institutional universes; It doesn't help and it won't change anything showed a Judicial System that did not understand society and its conflicts, and In the street, featuring everyday routines of social exclusion.

family; domestic violence; child abuse; adolescent


El objetivo de este estudio fue conocer la trayectoria y percepción de la familia acerca de las ocurrencias ligas a intervención de la justicia a la violencia que se ha cometido; cuantificar y analizar los procesos forenses, en el período de 2000 a 2005, caracterizando violencia en la familia y revictimización. El referencial utilizado es el del contexto ecológico del desarrollo humano). La metodología es cuanticualitativa. Los instrumentos son análisis de procesos, relleno de los mapas censuales, elaboración del genograma y ecomapa. El análisis se inspiró en la hermenéutica dialéctica. Los resultados apuntan 1.766 procesos judiciales de infancia y juventud, entre esos el 8,21% de violencia en la familia. Surgieron tres categorias empíricas: No Tuve que presenta una infancia en que la negación es elemento constructivo de interacciones perversamente generadas en los universos económico, político e institucional. No Ayuda y No Da Nada, expresan un Poder Judicial con poca capacidad para entender la sociedad y sus conflictos. En la Calle trae cotidianos singulares de exclusión social.

familia; violencia doméstica; maltrato a los niños; adolescente


ARTIGO ORIGINAL

Estudo das famílias de crianças e adolescentes, vítimas de violência, que sofreram intervenção da justiça

Eliana Mendes de Souza Teixeira RoqueI; Maria das Graças Carvalho FerrianiII

IDoutor em Enfermagem e Saúde Pública, e-mail: jkroque@uol.com.br

IIProfessor Titular da Escola da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail: caroline@eerp.usp.br

RESUMO

Objetivo do estudo: conhecer a trajetória e a percepção da família acerca dos acontecimentos ligados à intervenção da justiça na violência cometida; quantificar e analisar os processos forenses no período de 2000 a 2005, caracterizando situações de violência na família e de revitimização. O referencial utilizado é o do contexto ecológico do desenvolvimento humano. A metodologia é quantiqualitativa. Os instrumentos são análise de processos, preenchimento dos mapas censitários, elaboração de genograma e ecomapa. A análise inspirou-se na hermenêutica dialética. Os resultados apontam 1.766 processos judiciais de infância e juventude, dos quais 8,21% são de violência na família. Emergiram três categorias empíricas "Não tive" que apresenta a infância na qual a negação é elemento construtivo de interações, perversamente engendradas nos universos econômico, político e institucional. "Não ajuda" e "Não vira nada", expressam um Poder Judiciário com pouca capacidade de entender a sociedade e seus conflitos. "Na rua" traz cotidianos singulares de exclusão social.

Descritores: família; violência doméstica; maus-tratos infantis; adolescente

INTRODUÇÃO

O interesse em ter como objeto de estudo a reintegração de crianças e/ou adolescentes, vítimas de violência, às suas famílias após intervenção judicial, deve-se aos resultados de dissertação de mestrado da autora: Violência na família contra crianças e adolescentes e a percepção dos operadores do Direito na Comarca de Jardinópolis, SP.

A pesquisa apresentou limites, uma vez que avaliou processos formados na justiça a partir das denúncias, reduzindo os conceitos e os agravos decorrentes desses, principalmente no que concerne à família, razão pela qual se iniciou o questionar: quem são essas famílias que chegam à justiça, como vivem e quais perfis e composições apresentam ?

Para responder a essa questão, utilizou-se o Referencial Teórico centrado na visão do contexto ecológico do desenvolvimento humano, proposto por(1).

Foi encontrada conveniência entre os metamodelos descritos(2), e optandou-se pelo "contextualismo", um acontecimento dado em determinado momento de tempo como resultado da interação de todos os aspectos do sistema, tendo como ponto relevante aquele em que a pessoa e o contexto não podem ser separados; o contexto consiste em diferentes níveis de variáveis; a pessoa e o contexto de múltiplos níveis formam um sistema dinâmico, atividade e mudança, no caso do organismo, não precisam ser explicados.

As contribuições de(1-3) descrevem quatro núcleos de sistema ecológico: pessoa, processo, contexto e tempo.

A pessoa é compreendida em suas características biológicas, físicas, psicológicas, em interação com o ambiente. A estrutura da pessoa é constituída por três aspectos que se combinam: 1) as disposições que ativam e mantêm a sua interação com o ambiente; 2) os recursos, características adquiridas e internalizadas pela interação ambiental, tal como as experiências e habilidades; 3) demandas inerentes e predeterminadas (gênero, etnia, herança genética, temperamento) que sustentam ou não reações do ambiente sobre ela, adaptável e auto-reguladora frente à capacidade de resistência que se apresenta nos desafios da violência intra e extrafamiliar, drogas, baixo nível sócioeconômico, durante e após determinado tempo histórico de fatos. "A pessoa em desenvolvimento não é considerada meramente como uma tábua rasa sobre a qual o meio ambiente provoca seu impacto, mas como uma entidade em crescimento, dinâmica, que progressivamente penetra no meio em que reside e o reestrutura"(1).

O processo é como se dá a interpretação das experiências, interações e o ambiente no qual se desenvolve, nomeando-o como processo proximal, em que ocorre a interação da pessoa com outras pessoas, contextos, objetos e símbolos.

A interação entre a pessoa e o meio ambiente é considerada como bidirecional, isto é, caracteriza-se por reciprocidade, não se limita a um ambiente único, mas inclui as interconexões entre esses ambientes, assim como as influências externas oriundas de meios mais amplos.

O contexto aparece como subdividido em quatro sistemas: o primeiro, denominado microssistema, é composto pelo ambiente imediato que contém a pessoa em desenvolvimento a casa, a creche, a sala de aula são locais onde as pessoas podem facilmente interagir face a face. Fatores de atividade, papel e relação interpessoal constituem os elementos ou blocos construtores do microssistema.

O segundo inclui as inter-relações entre os ambientes nos quais a pessoa participa ativamente (tais como, para uma criança, as relações em casa, na escola), sendo ampliado sempre que a pessoa em desenvolvimento entra em um novo ambiente e é denominado mesossistema.

O terceiro sistema, o exossistema, refere-se a ambientes que não envolvem a pessoa como um participante ativo, mas nos quais ocorrem eventos que afetam aquilo que acontece no seu ambiente imediato (por exemplo, as condições econômicas e de trabalho dos pais e a vida da criança).

A manifestação de padrões globais de ideologia por meio do complexo de sistemas encaixados e conectados, representando as dimensões relativas à visão cultural, econômica, política, social e educacional mais amplas, define o quarto sistema designado como macrossistema que exerce forte influência no desenvolvimento e na qualidade de vida, pois engloba as regras de convivência, os estereótipos, as crenças e os preconceitos de um grupo cultural.

O tempo, denominado cronossistema, compreende dois modos distintos, o primeiro deles relacionado à pessoa e a seus processos proximais que avançam com o tempo e precisam ser estudados ao longo dele, e o segundo referente à passagem do tempo no sentido do contexto histórico.

A questão da transição ecológica é discutida por(1), sendo que ocorre sempre que a posição da pessoa é alterada em resultado de uma mudança de papel, ambiente ou ambos, fazendo com que essas mudanças sejam identificadas ao longo de toda a vida.

A concepção ecológica de desenvolvimento no contexto ofereceu a base teórica para a definição sistemática de um constructo, executado num ambiente natural, e que envolveu objetos e atividades da vida cotidiana, onde as propriedades da pessoa e do meio ambiente, a estrutura dos cenários ambientais e os processos, ocorrendo dentro e entre eles, foram considerados como interdependentes e analisados em termos de sistemas.

OBJETIVOS

Nesse escopo, delineou-se, como objetivos, quantificar e analisar os processos forenses autuados na Infância e Juventude da Comarca de Jardinópolis, SP, Brasil, no período de 2000 a 2005, caracterizando situações de vitimização de crianças e adolescentes que sofreram violência na família e de revitimização entre aquelas que foram atendidas na Comarca, no período de 1995 a 1999, com ou não inserção à família. Analisar a trajetória de reintegração de agressores e vítimas ao contexto, aferindo a percepção da família acerca dos acontecimentos ligados à intervenção da justiça na violência cometida, conhecendo o desenvolvimento no período de dez anos e como percebem e lidam com seu ambiente.

MÉTODOS

Para a realização deste trabalho, levou-se em conta as diretrizes e normas reguladoras de pesquisas envolvendo seres humanos, emanadas da Resolução nº 196, de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo.

A partir dessa etapa do projeto de pesquisa, foi solicitada autorização para as autoridades responsáveis na esfera forense, para a realização desta pesquisa na instituição concernente aos processos.

Como parte da documentação prevista nessa legislação, elaborou-se o "Termo de Consentimento" com esclarecimentos aos sujeitos da pesquisa, em linguagem clara, a fim de informar os objetivos do estudo, procedimentos, riscos, desconfortos e benefícios, garantindo-lhes, também, o anonimato e o respeito ao desejo de participarem ou não da mesma . Àqueles que concordaram em participar da pesquisa foi solicitado que assinassem o termo em questão. No primeiro encontro, entregou-se cópia tanto dos esclarecimentos, quanto do termo propriamente dito e, nessa ocasião, também, solicitou-se autorização para gravar as entrevistas.

A metodologia adotada é de natureza quantitativa(4) e qualitativa(5). A primeira foi utilizada para quantificar processos judiciais de violência contra a infância e juventude, no período de 2000 a 2005 e revitimização na família.

Foram caracterizados tipos de maus-tratos, aspectos relacionados à vítima e ao agressor, revitimizações, limites do atendimento, resolubilidade, relacionando-os com o período anterior, de cinco anos. A coleta de dados constituiu-se em análise dos processos, e posterior preenchimento dos mapas censitários, cuja análise quantitativa utilizou software de planilha eletrônica. Para o qualitativo, entrevista semi-estruturada, observação livre e material fotográfico produzidos pelos sujeitos da pesquisa. Para delinear-se a estrutura da família, esta pesquisa ancorou-se no Modelo Calgary de Avaliação da Família (MCAF), que consiste em estrutura multidimensional com três categorias principais: estrutural, de desenvolvimento e funcional, baseando-se em um fundamento teórico que envolve sistemas, comunicação e mudança. Tal modelo foi adaptado a partir do modelo de avaliação da família(6).

Ao avaliar uma família é preciso examinar sua estrutura, ou seja, quem faz parte dela (estrutura interna), qual é o vínculo afetivo com os indivíduos de fora (estrutura externa) e qual é o seu contexto.

Foram também utilizados o genograma, que é um diagrama do grupo familiar, e o ecomapa, diagrama do contrato da família com os outros, além da família imediata, representando as conexões importantes entre a família e o mundo e facilitando as interpretações alternativas da experiência familiar. A análise inspirou-se em(7-8).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados desta investigação apontam que a Comarca de Vara Única de Jardinópolis, SP, Brasil, nos anos de 2000 a 2005, de acordo com dados do Movimento Judiciário, totalizou 1.766 processos de Infância e Juventude.


Dessa totalização, 8,21% são de violência na família, física, negligência e sexual, envolvendo 257 vítimas, dessas, 121 do sexo feminino e 136 do sexo masculino. A violência física foi a que apresentou maior incidência (44,1%), seguida de negligência (42,1%) e violência sexual (13,8%). Apurou-se o aparecimento de comportamento violento em crianças, vítimas entre os anos de 1995 a 1999, na prática de ato infracional em 13 ocorrências, correlacionadas com 37 revítimas em anos seguintes.


Comparando-se tais resultados com pesquisa anterior(9), a atual caracterização da violência na família aponta significativo aumento nas porcentagens de ocorrência, nas modalidades negligência e violência sexual.


A negligência, entendida como atitude e percepção no contexto da vida familiar e não como comportamento, sobressaiu-se associada à desorganização familiar, nos papéis adotados por homens e mulheres em seus núcleos familiares, inserida nesse contexto as condições econômicas para a manutenção e viabilização desse mesmo núcleo familiar .

Esse é um elemento negativo que, no estudo em tela, pulverizou-se junto de outros elementos negativos, distribuídos em prejuízos variados às famílias.

Pode-se pensar, mesmo, num continuum de elementos que não só ocasionam, o mal-estar físico de manter-se entre insetos como ratos e baratas, em cujo extremo estariam localizadas outras partes de um todo que ocasiona desde baixa qualidade interacional, passando por elementos que poderiam desencadear perdas importantes no desenvolvimento afetivo, intelectual e social, até alcançar outro extremo, no qual estariam situados os elementos que favoreceriam o rompimento dos vínculos familiares, também presentes nas famílias estudadas como "vício", "violência intra e extrafamiliar" e "irresponsabilidade". Entende-se que esses elementos relacionados postam-se neste estudo como potencialmente mais destrutivos aos vínculos familiares e às funções protetoras que a família deveria desempenhar.

Os resultados verificam haver um único modelo de vida familiar sendo compartilhado, onde a mulher ocupa a centralidade, sendo a irresponsabilidade elemento relacionado como potencialmente mais destrutivo aos vínculos familiares.

Ao se recolher informações a respeito das diferentes situações de violência sexual contra crianças e adolescentes na família, ocorridas entre os anos 1995 e 2005, fez-se algumas observações de que as vítimas são, na sua maioria, do sexo feminino, suportando conseqüências de agravos e ameaça à vida e à qualidade da existência, afetando a saúde e freqüentemente produzindo a morte.


Emergiram das falas dos entrevistados relatos, utilizando-se da língua portuguesa de forma bastante distinta de suas naturais características.

A elaboração dos genogramas definiu a composição dessas famílias sempre resultante de diferentes e sucessivas relações amorosas, permeadas por rupturas regulares, envolvendo elementos de violência, não reconhecimento de paternidade dos filhos, sucessivas mudanças de domicílio, entrega de filhos em adoção, pouca inserção no mundo do trabalho, alguns com trajetórias profissionais instáveis no meio rural, ou como pintor de parede, pedreiro. Os ecomapas desenharam várias modalidades relacionais, distinguindo-se tais famílias pela presença de um ou mais sintomas sérios e graves de longa duração e de severa intensidade. Seus elementos de agregado e parentesco configuram estrutura familiar cuja natureza das relações e dos papéis desempenhados por cada pessoa faz achados nos limites, conjugalidade, parentalidade, resiliência e atividades molares, definidas como comportamento continuado que possui um momento, quantidade de movimento, impulso próprio e é percebido como tendo significado ou intenção pelos participantes do ambiente(1).

Foram identificadas três categorias empíricas oriundas do material coletado nas entrevistas: "não tive", "não ajuda e não vira"," nada e na rua".

Na primeira categoria empírica,"não tive", emergem situações de insegurança e desamparo, com conseqüências para o comportamento e para o desenvolvimento, em infância de "fome", "trabalho infantil","ausência de brincadeiras","não-inserção escolar", perpassadas nos universos econômico, político e institucional.

Apurou-se, no estudo, que 85% das famílias são compostas por mulheres, dados corroborando outras pesquisas como a de estudo desenvolvido no âmbito do Projeto "Observatório Permanente de Desenvolvimento Social", em Aveiro, Portugal(10), onde a centralidade das mulheres, na amostra recolhida em famílias multiproblemáticas pobres, encontrou composição de 82,1% de mulheres com responsabilização dessas, desde idades precoces, por diferentes figuras da casa, até mesmo pelos irmãos mais novos, em tarefas domésticas. A falta de regras e a desvalorização da escolaridade, refletidas no absenteísmo, abandono, e mesmo insucesso, agudizam esse papel de precoce adultização, sem adequada maturidade e preparação.

Há vulnerabilidade quanto a permanência de seus membros em família, quebrada com ocorrências regulares de prisões, presenças nas delegacias de polícia por motivações variadas, desde uso abusivo de álcool e drogas, tráfico, intercorrências de sucessivas idas ao fórum, presença bastante interessante junto à Ordem dos Advogados, buscando por advocacia gratuita, principalmente em demandas por exame de ácido desoxirribonucléico (DNA). Tudo co-existindo por longos períodos de tempo, alinhados com prostituição, incestos, esses bastante associados com situações de saúde complexas, como doenças sexualmente transmissíveis, entre elas, a AIDS. Constata-se algumas doenças crônicas e deficiências. No entanto, os sintomas individuais, apesar de serem múltiplos e variados, apresentam papel secundário, face ao sintoma familiar, o qual corrobora-se aqui(11).

Ao se apurar como a família percebe a intervenção da justiça, as categorias "não ajuda e não vira nada" revelam que poucas incursões são feitas frente à violência, revelando pontos estranguladores das possibilidades do fazer, pelo judiciário, em processos: quantidade, tramitação e tempo; funcionários; criança como prioridade absoluta; violência institucional; falta de instituição de apoio. Emergem ausência de entendimento da linguagem judiciária e dificuldade na tradução e interpretação dos trâmites da justiça. Usam o mesmo idioma, mas não falam a mesma língua, sendo essa uma das determinantes do descrédito na justiça que se traduz na crise de expansão da sociedade, não exclusiva da cultura judicial, cujas tradições e vícios institucionais tornam o judiciário lento, formalista, elitista e distante da realidade social, num quadro desfavorável à eficácia e à eficiência do Poder Constitucional, de que goza.

As famílias apresentam percepções de ineficiência da justiça, mediante o acontecimento de violência e, ainda, consideram essa mesma justiça como organização autoritária, centralizada, rígida e burocrática.

Vivem situações, em seu contexto, com contornos de intensa dificuldade, estando em situação de risco permanente, seja pelo traficante do local que ameaça, seja pela situação socioeconômica extremamente vulnerável que se sustenta, na sua maioria, de subsídios sociais oriundos de ação governamental como bolsa escola e, por isso, embora com alguns poucos relatos, não se observa acentuada evasão escolar, posto que o benefício tem como padrão de elegibilidade a assiduidade escolar. Ademais, além de tais subsídios, apropriam-se também de ajudas comunitárias ou institucionais, muitas das vezes acrescidas de produtos de roubo, atividades ilegais, sendo que também as crianças têm participação em rendimentos de égide obscura que, embora com tentativa de esconder do pesquisador, aflorou de forma bastante clara nas falas, demonstrando produção de sintomas de desintegração.

Quando u Tulio era assim di menor, ele trabalhô como aviãozinho, a senhora sabe? Pru tráfico de drogas, fiz isso pra pagá o meu vício, eu num tive infância, num me lembro nunca de ter brincado cum nada. (F9)

A categoria "na rua" traz inserção em relações perversas, estabelecidas no universo do tráfico de drogas, exploração, rejeição, de violação de direitos e privações econômicas.

Crianças, jovens e adultos apresentam as mesmas relações, apenas na exceção de que os infantes travam outros diálogos no próprio âmbito da família, na direção de romperem laços e vínculos, sem sucesso.

Pôde-se verificar que, vivendo em situação de miséria, as famílias buscam satisfazer suas necessidades básicas de sobrevivência com algum tipo de atividade na rua e, muitas vezes, as estratégias utilizadas estão apoiadas no trabalho de suas crianças, idosos e em membros portadores de alguma deficiência. Tal forma de vida afeta diretamente o contexto do grupo familiar como um todo, não apenas pelo situacional socioeconômico que apresenta e que o coloca na esteira das classes populares, mas, e ainda, pelos obstáculos enfrentados no cumprimento de suas funções enquanto agente socializador das suas crianças e adolescentes. Não se quer, aqui, responsabilizar o socioeconômico das classes populares e, em específico, a renda dessas famílias que não atinge um salário mínimo, como o único fator que determina a gênese de tal "na rua". Alerta-se para a observação de achados de movimentos de resiliência, mesmo perante as duras condições que apresentam.

Estudos sobre meninos de rua observam ser muito simplista dizer que em todos os casos os meninos e as meninas foram compelidos pela estrutura socioeconômica a viver nas ruas porque, muitas vezes, a própria criança faz essa opção, existindo aspectos gerais da estrutura social determinantes das condições de vida que influenciam, de maneira decisiva, para que as crianças e adolescentes se tornem meninos e meninas em situação de rua. A rua pode representar, para os mesmos, não só a liberdade, mas, também, o acesso mesmo ilusório quase direto aos benefícios que a cidade oferece(12) .

CONCLUSÃO

Concluiu-se que as famílias apresentam alterações de um momento histórico para outro, sob distintas variáveis e com complexidade específica, quanto às capacidades de descobrir, sustentar ou alterar as propriedades de seu desenvolvimento no ambiente.

Ao se focalizar a família, tendo como eixo norteador a Teoria dos Sistemas Ecológicos(1), pôde-se ter a compreensão dos fatores que permeiam a etiologia da violência e suas relações manifestadas dentro desse foco. A tolerância às diferenças postou-se como vínculo que faz da família a estrutura social e emocional dos seus membros.

É fundamental a busca pelo desenvolvimento de pesquisas e programas com visões mais ampliadas que não foquem só a vítima, mas também o agressor e o restante do grupo familiar.

Os resultados desta pesquisa podem ser fundamentais para o incentivo e a implantação de programas de intervenção e prevenção da violência no contexto ecológico onde ela se desenvolve, com possibilidades de, mediante aporte educacional, despertar a consciência das famílias sobre os seus comportamentos e relacionamentos, desencadeantes da violência que podem funcionar como promotores da resiliência.

Apontou-se a importância de articulação de ações conjuntas, nos sistemas de saúde e do judiciário, no sentido de efetivar uma ação menos burocrática, em menor tempo e mais eficiente junto às famílias que, mediante constatação de violência cometida, tiveram a intervenção da justiça .

A visão da responsabilização da família, sobre as situações de violência, perdeu substantiva força neste estudo, correlacionada com fatores culturais, psicológicos, relacionais e socioeconômicos.

A intervenção da justiça em casos de violência na família necessita considerar os novos marcos sociais, adequando-os aos novos dispositivos legais em outras bases processuais. A percepção das famílias, sobre a intervenção da justiça, conforma-se na não resolubilidade, considerada como hermética, lenta e arbitrária.

A flexibilização do direito carece de reengenharia dos procedimentos processuais e do próprio direito, com sistema de normas adaptáveis à nova realidade.

Refletir sobre limites e extensão desses resultados é de fundamental importância para influenciar a competência teórico-metodológica e ético-política, dentro e fora do sistema judiciário, com estratégias de superação não só aos entraves à garantia dos direitos, mas na participação das famílias na construção das políticas sociais, entendida em sua dimensão dentro do sistema ecológico e seus significados, interligados numa vasta e intrincada rede de relações pessoa, processo, contexto e tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 5.7.2006

Aprovado em: 31.5.2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2006
  • Aceito
    31 Maio 2007
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