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Reflexões sobre a assistência de um caso de suspeita de infanticídio

Resumos

O presente estudo resulta da experiência do trabalho de supervisão do caso de uma pessoa suspeita de ter cometido infanticídio, internada em uma enfermaria de psiquiatria. O objetivo foi buscar respaldo em literatura científica sobre infanticídio, denotar as aflições e incertezas que uma equipe interdisciplinar psiquiátrica pode encontrar quando colocada frente ao acompanhamento de um caso como esse e sugerir estratégias para lidar com tais sentimentos e suas possíveis conseqüências no manejo do caso. Profissionais envolvidos no atendimento denotaram desconforto frente à situação e dificuldades com sentimentos relacionados à culpabilidade na morte da criança, intencional ou não. Estudiosos sugerem facilitar a relação entre psiquiatria e lei através da desmedicalização do delito, incluindo fatores socioeconômicos, comorbidades, violências domésticas, normas culturais e outros. A equipe deve procurar aprender com as mães, incluídas em situações semelhantes, superando a raiva ou a repulsa com compaixão e coragem para entender o infanticídio.

infanticídio; violência doméstica; depressão pós-parto; mortalidade infantil


This study resulted from the experience of supervising a suspected infanticide case hospitalized at a psychiatric ward. We aimed to find support in scientific literature about infanticide, point out an interdisciplinary health team's affliction and uncertainties when faced with this kind of case and suggest strategies for dealing with these feelings and their possible consequences in dealing with this case. Professionals involved in this case observed their discomfort about the situation and difficulties caused by feelings of guilt about the child's death, whether intentional or not. Specialists suggests that the relation between psychiatry and the law should be facilitated by demedicalizing the crime, including socioeconomic factors, comorbidities, domestic violence, cultural norms etc. The team must try and learn from these mothers, overcoming their anger or repulsion with compassion and courage to understand infanticide.

infanticide; domestic violence; depression, postpartum; infant mortality


El presente estudio resulta de la experiencia del trabajo de supervisión de un caso de una persona sospecha de haber cometido infanticidio internada en una Enfermería de Psiquiatría. El objetivo fue buscar respaldo en literatura científica sobre infanticidio, denotar las aflicciones e incertidumbre que un equipo psiquiátrico interdisciplinario puede encontrar cuando colocada frente al acompañamiento de un caso como este y sugerir estrategias para lidiar con tales sentimientos y sus posibles consecuencias en el manejo del caso. Profesionales envueltos en el atendimiento denotaran desaliento frente a la situación y dificultades con sentimientos relacionados a la culpabilidad en la muerte del niño, intencional o no. Estudiosos sugieren facilitar la relación entre psiquiatría y ley a través de la desmedicalización del delito, incluyendo factores socioeconómicos, comorbidad, violencias domesticas, normas culturales y otros. El equipo debe procurar aprender con estas madres, superando la rabia o la repulsa con compasión y coraje para entender el infanticidio.

infanticidio; violencia domestica; depresión postparto; mortalidad infantil


COMUNICAÇÕES BREVES/RELATOS DE CASOS

Reflexões sobre a assistência de um caso de suspeita de infanticídio

Edson Arthur SchererI; Zeyne Alves Pires SchererII

IMédico Psiquiatra, Doutorando, Assistente do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil, email: scherer@eerp.usp.br

IIProfessor Doutor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil

RESUMO

O presente estudo resulta da experiência do trabalho de supervisão do caso de uma pessoa suspeita de ter cometido infanticídio, internada em uma enfermaria de psiquiatria. O objetivo foi buscar respaldo em literatura científica sobre infanticídio, denotar as aflições e incertezas que uma equipe interdisciplinar psiquiátrica pode encontrar quando colocada frente ao acompanhamento de um caso como esse e sugerir estratégias para lidar com tais sentimentos e suas possíveis conseqüências no manejo do caso. Profissionais envolvidos no atendimento denotaram desconforto frente à situação e dificuldades com sentimentos relacionados à culpabilidade na morte da criança, intencional ou não. Estudiosos sugerem facilitar a relação entre psiquiatria e lei através da "desmedicalização" do delito, incluindo fatores socioeconômicos, comorbidades, violências domésticas, normas culturais e outros. A equipe deve procurar aprender com as mães, incluídas em situações semelhantes, superando a raiva ou a repulsa com compaixão e coragem para entender o infanticídio.

Descritores: infanticídio; violência doméstica; depressão pós-parto; mortalidade infantil

INTRODUÇÃO

A agressividade é compreendida como parte do instinto do ser humano, ou seja, é algo inato. Sua manifestação, sob a forma de uma ação, configura agressão que pode vir a ser considerada violência. Essa tem crescido tanto em freqüência quanto em tipo ou forma de apresentação. Aparece nos meios de comunicação representada pela violência domiciliar e até nos grandes conflitos armados. Novas formas de manifestações, nas quais o homem é vitimizado, têm surgido, acompanhando a evolução e o progresso tecnológico.

Cada vez mais têm sido estudadas e detectadas doenças decorrentes do uso inadequado dos recursos disponibilizados pelos chamados "modernismos", por vezes, confundidos com "modismos". O estímulo crescente às relações virtuais, aparentemente inofensivas, pode trazer conseqüências na forma de o indivíduo se relacionar com os demais. Além disso, já é percebido o aumento de distúrbios mentais, como a ansiedade e depressão, em pessoas que vivem em constante stress, correndo e "plugadas ou ligadas" o dia inteiro. Não há mais espaço para o contato com a natureza, ou para usufruir do lazer com amigos e familiares. Uma característica desses comportamentos violentos é o desconhecimento, ou seja, a não tomada de consciência pela vítima de que está sendo ou se deixando ser alvo de agressão. Não é incomum, também, a ocorrência de auto-agressão.

O homem, dessa forma, tem se mostrado solitário, disperso e confuso podendo até perder a capacidade de reconhecer o que é considerado comportamento normal ou anormal. Alguns atos violentos passam a ser aceitos pelo chamado "senso comum", ou seja, seu significado passa a ser compreendido em relação ao contexto cultural. Os princípios morais parecem apoiar estas explicações. Assim, homicídios podem ser justificados a partir de possíveis ganhos pessoais e, apesar de não aceitos, constituem acontecimentos do cotidiano(1).

Diante dessa realidade ameaçadora, há um ponto que merece atenção. As diferentes formas de violência elegem como vítimas os mais fracos. Aqui, encontram-se as crianças que nascem com total falta de defesa e perduram durante tempo prolongado na dependência de outros (adultos)(2).

A relação entre saúde mental, crime e justiça pode gerar desconforto ao se analisar uma determinada situação, além de suscitar dúvidas em sua condução. Uma circunstância que ilustra essas dificuldades diz respeito aos casos onde há a suspeita, ou mesmo a confirmação, de que a pessoa de quem é esperada a responsabilidade por cuidar causou a morte de um filho.

Os maus-tratos com crianças(2) em suas mais diversas manifestações, ou seja, desde violências psicológicas até os que culminam com a morte, existem desde os primórdios da criatura humana. Nas civilizações antigas, o infanticídio era considerado um meio para eliminar todos aqueles pequenos que, por desgraça, nasciam com defeitos físicos. Crianças eram mortas ou abandonadas para morrerem desnutridas ou devoradas por animais, por razões como: equilíbrio de sexos, medida econômica nos grandes flagelos, por não agüentarem longas caminhadas, por motivos religiosos, por ser direito do pai reconhecer ou não o direito de viver de seu filho (Jus vitae et nasci - Roma).

Com o desenvolvimento da civilização em estágios sucessivos, a motivação e os métodos de maus-tratos e morte de crianças diversificaram. Entre as motivações incluem-se justificativas econômicas, políticas, ideológicas, de guerras, educacionais, de insanidade e religiosas. Parece haver entendimento de que as crianças são propriedade a serem disponibilizadas pelos seus próprios pais. Para alguns estudiosos a criança tem status menor na sociedade, o que acaba refletindo em leis acerca do infanticídio, com penas menores daquelas para homicídio e com defesas baseadas na insanidade. Em contrapartida, ou seja, questionando o menor status social da criança, quando o pai mata um filho não há padrão de ambivalência ou misericórdia em termos da punição que recebe(3).

Na prática da clínica psiquiátrica, o profissional pode deparar-se com situações de violência que envolvem seu cliente de formas diversas. Esse pode ter sido vítima de maus-tratos na infância ou mesmo ser o perpetrador de violências contra crianças. O manejo de tais situações suscita desconforto (incômodo) em quem é responsável pela prestação da assistência.

Neste estudo, motivados a partir do acompanhamento de um caso em que houve a suspeita de que uma mãe teria matado o filho de 8 meses, os autores apresentam considerações sobre o tema infanticídio e filicídio. O que chamou a atenção dos profissionais envolvidos na assistência desse caso foi o motivo pelo qual a pessoa foi levada ao serviço. Trata-se de situação de uma mulher que vinha com sintomatologia psicótica de longa data, sem tratamento, que não foi trazida para o atendimento por estar doente, mas, por ter sido encontrada na rua com seu bebê morto nos braços. São apresentadas as dificuldades que podem surgir no acompanhamento e condução de casos como esse e dados de literatura específica com o intuito de servir de fonte para outros profissionais que venham se deparar com atendimento similar.

OBJETIVO

Denotar as aflições e incertezas que uma equipe interdisciplinar psiquiátrica pode encontrar quando colocada frente ao acompanhamento de um caso de suspeita de infanticídio e sugerir estratégias para lidar com tais sentimentos e suas possíveis conseqüências no manejo do caso.

Buscar respaldo em literatura científica sobre infanticídio.

MÉTODO

O presente estudo resulta da experiência do trabalho de supervisão do caso de uma pessoa suspeita de ter cometido infanticídio, internada na Enfermaria de Psiquiatria (EP) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Essa enfermaria caracteriza-se como um serviço terciário que oferece assistência a pessoas portadoras de transtornos psiquiátricos.

Este trabalho configura-se, portanto, como reflexão do médico psiquiatra assistente e da docente da disciplina de enfermagem psiquiátrica, responsáveis pela supervisão do. Dessa forma, o trabalho é apresentado seguindo o método de estudo de caso(4), onde é realizada a discussão (reflexão), fundamentada em literatura pertinente à luz de um relato de caso.

A equipe psiquiátrica de assistência da EP(5) é constituída por um grupo fixo (médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e auxiliares de enfermagem) e outro flutuante (médicos residentes, aprimorandos de psicologia, serviço social e terapia ocupacional, e alunos de graduação) em esquema de aprendizagem em serviço. O modelo de trabalho é o de equipe interdisciplinar, portanto, os profissionais, fixos e flutuantes, participam ativamente de discussões, planejamentos terapêuticos e aplicação de técnicas de tratamento. Por se tratar de hospital-escola, as atividades são supervisionadas por docentes e técnicos com formação universitária.

O serviço dispõe de 14 leitos, sendo 8 femininos e 6 masculinos, destinados à internação integral. Durante a permanência na enfermaria, os usuários participam de programa de tratamento que consta de farmacoterapia, grupos operativos (nos moldes da comunidade terapêutica) diariamente, atividades físicas e de lazer, sessões de psicoterapia individual, grupos de terapia ocupacional e reuniões de família. Essas abordagens seguem(5) os preceitos do modelo de ambiente terapêutico.

Para a revisão bibliográfica, foram selecionadas publicações em periódicos nacionais e internacionais, citados nas bases de dados do Índex Latino-americano das Ciências da Saúde (LILACS) e da National Library of Medicine (PubMed) e o Código Penal Brasileiro(6).

Seguindo os preceitos éticos e legais, em consulta ao Comitê de Ética da Instituição, onde o estudo foi realizado, foi sugerida e providenciada, a título de resguardo da cliente, a assinatura do "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" junto à mesma. Com relação à equipe que prestou assistência à situação apresentada, o referido Comitê sugeriu que os autores do trabalho apresentassem a essa seus resultados no intuito de servir de instrumento para nortear sua atuação em situações semelhantes com as quais venham se deparar no futuro.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Síntese do caso

Mulher, 29 anos, branca, casada, 2 filhos (filha de 4 anos, filho de 8 meses), afazeres domésticos, religião pentecostal, ensino fundamental incompleto, foi acompanhada pela polícia para atendimento psiquiátrico ao ser encontrada sentada na calçada com o filho de 8 meses, "desacordado" nos braços, onde foi constatado o óbito da criança (Laudo do Centro de Medicina Legal de Ribeirão Preto (CEMEL) - causa da morte: asfixia mecânica, sem possibilidade de saber o motivo, ou seja, não foi possível caracterizar dolo ou culpa).

No atendimento, mostrou-se ansiosa, inquieta, falando em medo de morrer, pedindo faca para se matar. Relatou ter saído com o filho, à meia-noite, por ter ouvido vozes que diziam querer matá-la. Alternava informes de que, guiada por vozes, teria asfixiado o filho, comprimindo-o contra seu peito, ou de que "tampou" sua boca e nariz para aquecê-lo, ou de que o encontrou morto (no berço) e fugiu com medo do marido culpá-la.

Aos 13 anos, começou a ouvir vozes, conversando com ela ou entre si, comentando suas atitudes, proferindo ofensas ou ordens, especialmente quando se encontrava em situações estressantes. Ainda, na adolescência, tentou o suicídio por duas vezes. Contudo, até o momento desse atendimento, não havia procurado assistência médica.

A hipótese diagnóstica psiquiátrica foi de esquizofrenia paranóide (CID 10: F 20.0).

Contextualizando o infanticídio

O contato com o caso, objeto deste estudo, motivou nos pesquisadores a busca de esclarecimentos sobre situações de pais que causam a morte dos próprios filhos. Procedendo à revisão da literatura, participando de discussões em fóruns sobre violência doméstica e discussão sobre o manejo deste caso com outros profissionais da área, entre esses, psiquiatras, assistentes sociais e psicanalistas, foi possível perceber que os questionamentos sobre tais ocorrências começam na própria denominação do fato, ou seja, trata-se de infanticídio ou filicídio?

No Brasil, o termo infanticídio é descrito no Código Penal(6), em seu artigo 123, como "matar, sob influência do estado puerperal, o próprio filho durante o parto ou logo após". A pena prevista é a detenção de 2 a 6 anos. Já filicídio seria o ato de matar o próprio filho(7), que é enquadrado nos crimes de homicídio, previsto no artigo 121 do Código Penal(6), com pena de reclusão de 6 a 20 anos. É prevista, também, no artigo 26 do referido código, redução da capacidade penal nos casos de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardo mental do agressor, com previsão de diminuição da pena de 1 a 2 terços.

Em alguns países como Nova Zelândia, Inglaterra, Austrália, Canadá, Áustria, Colômbia, Finlândia, Grécia, Índia, Coréia, Filipinas e Turquia há legislação específica para o infanticídio. Nessas legislações, há diferenças quanto à delimitação da faixa etária da criança, sendo comum, no entanto, a provisão de redução de culpa nesses casos se comparados ao homicídio. Nos Estados Unidos e Escócia, no entanto, a legislação não prevê qualquer distinção entre homicídio e infanticídio(3).

A polêmica com relação à nomeação do fato de matar um filho aparece na literatura especializada. Há críticas quanto ao uso legal do termo infanticídio que, em geral, se baseia na existência de um distúrbio mental da mãe, decorrente do puerpério ou da lactação, ou mesmo de distúrbio apresentado pelas mulheres e ligado à reprodução(8). Não há, segundo pesquisadores, evidências suficientes que comprovem a existência de tais transtornos(8-9). Há indícios de relação com transtornos afetivos bipolares e que os distúbios são amplos, incluindo psicoses psicogênicas e orgânicas(9). Os estudiosos do tema questionam, também, o fato de que tais casos sejam tratados de forma diferente dos outros crimes cometidos por pessoas com distúrbios mentais, ou seja, através de legislação específica(3,8,10). São apresentados dados, corroborando tal posicionamento, de que 50% das mulheres que cometem o infanticídio o fazem em contexto de gravidezes indesejadas ou ocultadas(7-8). Outros fatores, como circunstâncias sociais e econômicas, podem, também, aumentar os índices de infanticídio(7-8).

Em pesquisa cubana(11) sobre mortes violentas em recém-nascidos no período compreendido entre 1981 e 1990, foram evidenciados 12 casos de infanticídio. Nesses, mais da metade das mães eram "desocupadas", jovens entre 16 e 20 anos, que não tinham mais que o ensino primário e a causa fundamental era morte por sufocação. Essa é a mais conhecida causa de morte infantil nos chamados "homicídios encobertos". Nas mortes por sufocamento pode não haver sinais ou evidências diagnosticáveis pelos patologistas. O diagnóstico acaba sendo feito quando as mães confessam ou quando são surpreendidas em filmagens com câmeras ocultas(12).

Os artigos referentes ao tema em discussão consideram o infanticídio como a morte de uma criança menor de um ano, causada pela própria mãe. Filicídio seria a morte de uma criança maior de um ano. Há, ainda, autores que caracterizam a morte do recém-nascido nas primeiras 24 horas de vida como neonaticídio(3,7,9-10,13-14).

A Associação Psiquiátrica Americana, depois do caso Yates(13), no qual uma mulher afogou seus cinco filhos, publicou nota sobre defesa baseada na insanidade e doença mental. Nessa, há a expectativa de que a sociedade e seu sistema legal discutam como lidar com réus com doença mental severa. É sabido que houve avanço das neurociências que aumentou o entendimento de como o funcionamento mental é alterado pela doença mental e de como a psicose pode distorcer a realidade. No entanto, até o momento, o entendimento popular não foi atingido por esses avanços. As decisões de punir doentes mentais têm sido influenciadas pela falha na apreciação do impacto da doença sobre o pensamento e comportamento. As prisões estão cheias de doentes mentais, a maioria desses sem receber tratamento adequado. Pessoas cujos crimes derivaram de sua doença deveriam ser encaminhados a serviços psiquiátricos especializados e tratados, não trancados em prisões, muito menos condenados à morte.

Ainda, com base no referido caso, um artigo de revisão da legislação e perspectiva psiquiátrica de infanticídio(13) cita fatores considerados como precipitantes ou oportunidades que são perdidas na prevenção de delitos dessa ordem. Entre esses, a presença de história de doença mental pregressa, condições do parto, história familiar de doença mental, estigma ou descrença familiar devido à crença religiosa ("é coisa do diabo"). Quanto à conduta dos profissionais de saúde envolvidos no atendimento pós-parto, aponta a psicoeducação e o manejo, por vezes, como inadequados. Nesse mesmo artigo, a autora conclui que a maioria dos casos de infanticídio e suicídio ocorre fora do foco da mídia. Para a segurança da mãe e da criança, dessa forma, os critérios diagnósticos para os distúrbios pós-parto são cruciais.

Com o objetivo de descrever características maternas, precedentes ao ato de matar o próprio filho e sugerir estratégias preventivas, foi realizado um estudo retrospectivo(15) dos registros hospitalares forenses de 39 mães com doença mental severa, consideradas não culpadas por motivo de insanidade. Cerca de dois terços dessas mães estavam tendo alucinações auditivas, em especial "vozes de comando", metade delas estavam depressivas quando cometeram o delito e três quartos já tinham feito tratamentos psiquiátricos anteriores. Quase três quartos dessas mulheres haviam passado por estressores em seu desenvolvimento, tais como morte da própria mãe e incesto. Entre os motivos, predominaram o "altruístico" (para aliviar algum sofrimento real da criança ou a crença delirante da mãe) e o "surto psicótico agudo". Os autores chamam a atenção dos psiquiatras para avaliarem cuidadosamente o risco de filicídio em mães com doença mental.

Diante de um caso de infanticídio fica perceptível a interface entre saúde e justiça. Portanto, há necessidade de trabalho integrado dessas duas instâncias. Estudiosos sugerem que uma relação mais próxima entre a psiquiatria e a lei seria facilitada através da "desmedicalização" do delito, ou seja, que os profissionais de saúde não ficassem restritos às intervenções médico-clínicas da assistência. Assim, quando do atendimento e avaliação dos casos, é esperado que os técnicos da saúde observem fatores socioeconômicos, comorbidades, violências domésticas, normas culturais e outros entre as possíveis causas desse tipo de delito(3,7-8,14).

Outro aspecto que merece atenção diz respeito às políticas preventivas. Para implementá-las é necessário que a psiquiatria, a saúde pública e as ciências sociais colaborem com suas competências no sentido de prover informações sobre quem está em risco de cometer infanticídio ou filicídio, sendo assim, portanto, é esperado que os pesquisadores modifiquem a forma de coleta de dados, incluindo dados específicos sobre perpetradores de homicídio de crianças e seguimento de mães doentes mentais com questionamento sobre intenções filicidas. Um programa de pesquisa focal e sistematizado sobre marcadores confiáveis para filicídio materno é necessário para prevenir tais eventos(7).

A equipe de saúde na assistência de um caso de infanticídio

Infanticídio materno, ou a mãe matar seu filho no seu primeiro ano de vida, é situação que causa constrangimento e repulsa. Para a sociedade em geral é crime, requer retribuição, requer a lei. De um lado uma criança indefesa, morta pela pessoa da qual dependia para sobreviver. Do outro, a imagem de uma mãe insana, presa por um crime impensável para a maioria das pessoas. Isso mostra a ambivalência frente à situação, uma contradição(13).

Durante o atendimento do caso apresentado, os profissionais (fixos e flutuantes) da EP mostraram desconforto e dificuldades em lidar com os sentimentos neles suscitados ao cuidarem de uma pessoa que não conseguia manifestar a presença ou não do sentimento de culpa na morte de seu próprio filho (intencional ou não).

Um dos fatores que pode ter influenciado ou mesmo gerado mal-estar, a equipe guarda relação com a proximidade entre a cliente e os profissionais, o que pode ter despertado mecanismos de identificação desses com o caso, suscitando dúvidas e dificuldades na sua condução. Alguns dos técnicos, tanto homens quanto mulheres, estavam na mesma faixa etária da paciente, já tinham filhos e outros planejavam tê-los. Houve manifestações verbais ou não-verbais de inconformismo, repulsa, indignação e raiva.

Foram freqüentes os questionamentos ao longo do seu acompanhamento sobre como alguém poderia conviver com o sofrimento de uma perda nessas condições, especialmente pela aparente indiferença afetiva da paciente. A indicação de contracepção foi, também, motivo de várias discussões do referido caso. Diante disso, os profissionais apresentaram algumas manifestações de contra-transferência* * A contra-transferência constitui fenômeno descrito pela psicanálise. Pode ser compreendida como o conjunto de emoções, representações ou atos do profissional, despertados pela interação com os ingredientes psíquicos do paciente. É fenômeno de natureza inconsciente, ou seja, ocorre à revelia do terapeuta para com a paciente. Isso ocorreu apesar da equipe saber que a indiferença poderia ser justificada pelo quadro psicótico apresentado pela mesma.

Dessa forma, se atitudes de identificação ou mesmo de contra-transferência forem detectadas, é esperado que os colegas de trabalho ajudem a pessoa a entender o que está acontecendo e a reconhecer e respeitar seu limite e o limite do outro (paciente). É esperado que seja estabelecido um processo de ajuda e, se necessário, orientação para a busca de suporte individualizado para tal profissional.

Outro aspecto relevante na situação apresentada é a própria tendência do ser humano em buscar um culpado e puni-lo. Além disso, outro risco que se fez presente foi o de punir a família, considerando-a omissa, ou mesmo responsável pela conturbada história de vida da paciente. O difícil é compreender a situação e não julgar.

Os profissionais da área de saúde mental são sabedores de que podem ser confrontados com situações novas ou inusitadas a qualquer momento em sua prática. Cada atendimento pode ser motivo de incertezas e aflições. Deparar-se com violências domésticas talvez seja uma das que mais exija esforço desse técnico no sentido de conseguir manter-se atento e fiel ao seu papel. Em especial, frente a casos de infanticídio (ou suspeita), muitas vezes é indicada a internação para avaliação e tratamento da mãe que cometeu o delito. Quando tal ocorre, a assistência é prestada por equipe da qual é esperada isenção, imparcialidade, não julgamento e o não "sentenciamento" da cliente. Atitudes de curiosidade e empatia, no sentido de buscar compreender e mesmo aprender com essa paciente, além de facilitar ao grupo perceber o sofrimento nem sempre revelado de forma clara, favorecem o estabelecimento do vínculo e a formação de aliança terapêutica entre a mãe e a equipe.

No Brasil, assim como na maior parte dos países, não há políticas públicas ou estratégias relacionadas a cuidados de saúde mental no período perinatal. O foco primário de atenção é a biologia da gravidez e puerpério, restando papel secundário aos aspectos referentes à saúde mental. As equipes de saúde mental, por sua vez, concentram-se em prover assistência aos doentes mentais graves. Além disso, existe, ainda, a crença de que mulher com distúrbio psicótico é subfértil. Em Londres, uma abordagem ativa é encontrada no Maternity and Perinatal Partenrships in Mental Health (MAPPIM)(16), baseado no Hospital St. Thomas, que oferece treinamento para a equipe da maternidade em questões de saúde mental, informações para equipes de maternidade e saúde mental sobre questões de perinatalidade, consultoria de ligação entre profissionais envolvidos na assistência perinatal e de saúde mental, bem como cuidados e tratamentos para grávidas com distúrbios mentais.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, surgem questionamentos relacionados à formação dos profissionais envolvidos na assistência de saúde mental. Esses recebem treinamento que contempla o tema violência doméstica em seus cursos de graduação ou mesmo em estágios ou pós-graduações? E a formação de profissional especializado, é necessária? Ora, como visto no caso apresentado, a equipe, composta por técnicos experientes, de diversos campos da área de saúde mental, inserida em um serviço universitário que oferece treinamento em serviço e especialização não está preparada para o encontro com a realidade do infanticídio e, talvez, com outras situações do espectro da violência doméstica. Isso reflete a necessidade de investir na formação, treinamento e acompanhamento dos profissionais. Uma sugestão possível de ser implantada é a implementação de programas de educação permanente a serem oferecidos de forma acessível a todos os profissionais que, porventura, possam vir atender situações como essa.

Outro campo que merece atenção diz respeito às formas de prevenção e esclarecimentos da própria população, no intuito de ampliar a abrangência da notificação e atendimento de casos, pois, muitos desses acontecem fora do domínio da rede assistencial. Através de fóruns de discussão abertos e com a participação do aparato legal, talvez o tema, que ainda é visto com certo preconceito e censura, possa ser encarado como um problema de toda a sociedade, e não somente do domínio da saúde e do poder legal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 15.5.2006

Aprovado em: 6.10.2006

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  • *
    A contra-transferência constitui fenômeno descrito pela psicanálise. Pode ser compreendida como o conjunto de emoções, representações ou atos do profissional, despertados pela interação com os ingredientes psíquicos do paciente. É fenômeno de natureza inconsciente, ou seja, ocorre à revelia do terapeuta
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Recebido
      15 Maio 2006
    • Aceito
      06 Out 2006
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