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Saúde e autocuidado entre catadores de lixo: vivências no trabalho em uma cooperativa de lixo reciclável

Resumos

Estudo realizado com catadores de lixo que organizaram uma cooperativa de triagem de lixo reciclável, em Porto Alegre, RS, num galpão cedido pela prefeitura. Essa atividade, que tem atraído número crescente de excluídos do mercado formal de trabalho, apresenta riscos à saúde e padrões de adoecimento peculiares. O estudo objetivou conhecer as concepções e ações de autocuidado das participantes do estudo, todas mulheres, propondo discussões e reflexões conjuntas acerca da problemática por elas vivenciada. O foco foi direcionado ao ambiente de trabalho e às atitudes com relação aos riscos à saúde. Por meio da técnica de grupo focal com dez sujeitos, privilegiou-se a expressão da capacidade de análise situacional das pessoas envolvidas, dando origem a três eixos temáticos. A cada tema discutido seguiu-se a construção de um plano de ação, porém, de forma a compatibilizar o atendimento de necessidades mais prementes com a viabilidade operacional dos encaminhamentos propostos.

pobreza; políticas públicas de saúde; redes comunitárias; condições sociais; enfermagem em saúde comunitária; autocuidado; grupos focais


Study performed with garbage pickers who organized a cooperative to sort recyclable garbage in Porto Alegre, Brazil, in a shed loaned by the city administration. This activity, which has attracted an increasing number of people excluded from the formal job market, presents peculiar health risks and patterns of disease. The study aimed to learn about the participants' concepts and self-care actions, proposing discussions and jointly reflection on their problems. It focuses on the working environment and on attitudes towards health risks. Through the focal group technique with ten female subjects, the expression of capacity of situational analysis of those involved was privileged, giving rise to three main themes. Each theme discussed was followed by the construction of a plan of action in order to meet compatibly the more pressing needs according to the operational feasibility of the solutions proposed.

poverty; health public policy; community networks; social conditions; community health nursing; self care; focus groups


Estudio realizado con minadores de basura que organizaron una cooperativa de separación de basura reciclable en un galpón de la municipalidad de Porto Alegre, RS. Esta actividad, que ha atraído un número creciente de excluidos del mercado formal de trabajo, presenta riesgos a la salud y estándares peculiares de enfermedad. La finalidad fue conocer las concepciones y acciones de autocuidado de las participantes, todas mujeres, proponiendo discusiones y reflexiones conjuntas sobre la problemática vivida por ellas. El foco miró el ambiente de trabajo y las actitudes relacionados a los riesgos a la salud. La técnica de grupos focales con diez sujetos permitió privilegiar la expresión de su capacidad de análisis situacional, originando tres ejes temáticos. A cada tema discutido se siguió la construcción de un plan de acción de manera a compatibilizar la atención a las necesidades más demandadas con la viabilidad operacional de los encaminamientos propuestos.

pobreza; políticas públicas de salud; redes comunitarias; condiciones sociales; enfermería en salud comunitária; autocuidado; grupos focales


ARTIGO ORIGINAL

IOrientador, Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: clarice@adufrgs.ufrgs.br

IIEnfermeira, e-mail: fernanda@cefetrs.edu.br

RESUMO

Estudo realizado com catadores de lixo que organizaram uma cooperativa de triagem de lixo reciclável, em Porto Alegre, RS, num galpão cedido pela prefeitura. Essa atividade, que tem atraído número crescente de excluídos do mercado formal de trabalho, apresenta riscos à saúde e padrões de adoecimento peculiares. O estudo objetivou conhecer as concepções e ações de autocuidado das participantes do estudo, todas mulheres, propondo discussões e reflexões conjuntas acerca da problemática por elas vivenciada. O foco foi direcionado ao ambiente de trabalho e às atitudes com relação aos riscos à saúde. Por meio da técnica de grupo focal com dez sujeitos, privilegiou-se a expressão da capacidade de análise situacional das pessoas envolvidas, dando origem a três eixos temáticos. A cada tema discutido seguiu-se a construção de um plano de ação, porém, de forma a compatibilizar o atendimento de necessidades mais prementes com a viabilidade operacional dos encaminhamentos propostos.

Descritores: pobreza; políticas públicas de saúde; redes comunitárias; condições sociais; enfermagem em saúde comunitária; autocuidado; grupos focais

INTRODUÇÃO

O aumento do lixo, produto do consumo desenfreado da sociedade moderna, é inversamente proporcional aos recursos e dispositivos existentes para tratá-lo, acondicioná-lo ou eliminá-lo. Hoje, esse é um problema de primeira ordem na esfera ambiental e econômica e, invariavelmente, também repercute no âmbito do controle sanitário. Em algumas regiões, o lixo é uma variável importante no diagnóstico de saúde de algumas comunidades, sobretudo as urbanas, visto que pode comprometer seriamente a salubridade de ambientes que combinam grandes aglomerações humanas com carência de saneamento básico.

Problemas relacionados ao lixo têm mobilizado as mais diversas áreas do conhecimento no sentido de desenvolver tecnologias e propor alternativas com a intenção de minimizá-los. A alternativa mais difundida, estudada e incentivada atualmente é a reciclagem. A possibilidade de esgotamento das matérias-primas e a contaminação dos recursos naturais são as premissas ecológicas mais iminentes que justificam a necessidade de reciclar o lixo, pois essa medida "consiste em submeter produtos existentes no lixo a processos de transformação, de forma a gerar um novo produto"(1). Para viabilizar e estimular a reciclagem, metrópoles como Porto Alegre realizam a coleta seletiva, disponibilizando os materiais aos recicladores em unidades de triagem que constituem diferentes associações(2).

Sendo assim, além do importante aspecto ecológico, há também os aspectos econômico e social que, somados, compõem a tríade de justificativas para promover a reciclagem de lixo. Entretanto, essa nova modalidade de trabalho apresenta risco à saúde e padrões de adoecimento peculiares. Em se tratando dos danos à saúde humana, oriundos do contato com o lixo, devido "à diversidade de vias de transmissão e, especialmente, a ação dos vetores - biológicos e mecânicos - o raio de influência e os agravos à saúde mostram-se de difícil identificação"(3). Contudo, as morbidades mais freqüentes, advindas do contato humano direto ou indireto com o lixo são as doenças diarréicas, diretamente relacionadas à lavagem das mãos, e aquelas transmitidas por vetores biológicos e mecânicos.

Outra situação potencialmente insalubre diz respeito ao reaproveitamento de alimentos e de outros objetos encontrados no lixo como bijuterias, brinquedos, vasilhames, utensílios etc., sendo importante destacar que a própria natureza do trabalho pode comprometer a integridade física, além de outros percalços que podem afetar a saúde. Em si mesma, tal problemática justifica o interesse que a enfermagem e demais profissões da área da saúde(4) devem dispensar a esses trabalhadores que, mesmo não possuindo vínculo empregatício formal, crescem numericamente a cada dia e integram a clientela dos serviços de saúde conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS).

A condição de pobreza e de exclusão social que afeta indivíduos nessas circunstâncias certamente precisa ser pensada em sua amplitude, na medida em que envolve várias dimensões como aquelas que remetem à esfera econômica e das políticas públicas de saúde, por exemplo. Disso não se pode alienar. Contudo, apesar das adversidades provocadas por determinantes sociais mais amplos, conta-se com certo grau de autonomia nos modos de andar a vida que se instala entre o singular e o coletivo desses sujeitos, de tal forma que possam tecer, mesmo que minimamente, possibilidades de transformação e, alhures, de reinserção social. Algumas reflexões, nessa direção, constam nos resultados de investigação(5) sobre o processo de emancipação social de catadores de lixo, vinculados a duas cooperativas de material reciclável, na Região Sudeste do País.

Em um primeiro momento da inserção no campo de pesquisa, relativo ao presente estudo - uma cooperativa de lixo reciclável de Porto Alegre - verificou-se efetivamente que o contato e manuseio com o lixo, bem como o ambiente de trabalho, propiciam muitos riscos à saúde, surgindo os seguintes questionamentos: o que é e qual a importância do autocuidado em tal ambiente para esses trabalhadores? Quais as possibilidades de obter o máximo de proveito do lixo com menor risco para a saúde? Com base nessas questões, delineou-se o objetivo do estudo que foi conhecer os comportamentos de autocuidado dos trabalhadores dessa cooperativa de lixo reciclável por meio da discussão/reflexão sobre o tema e, com isso, subsidiar a elaboração de um plano de ação conjunto para promover práticas de autocuidado no ambiente de trabalho.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa qualitativa, desenvolvida junto a catadores de lixo de uma cooperativa de lixo reciclável, situada na periferia de Porto Alegre, RS, num galpão cedido pela prefeitura. Deu-se ênfase à participação e capacidade de análise dos sujeitos, aproximando-se da perspectiva de co-gestão de coletivos(6) e do enfoque de pesquisa-ação(7). Toma-se por pressuposto a inclusão ativa dos sujeitos em todas as etapas da resolução dos problemas, inclusive na fase diagnóstica que identifica e contextualiza os próprios sujeitos. Não basta o profissional identificar um risco ou agravo à saúde como tal. É fundamental que o sujeito vulnerável também os perceba, avalie e discuta sua condição e construa soluções e alternativas, acordadas com suas possibilidades, sem perder de vista os infortúnios a que está submetido, por pertencer aos segmentos mais pobres da sociedade. Assim, foi providencial operacionalizar a coleta de dados mediante a Técnica de Grupo Focal, vindo a se constituir em importante ferramenta para avaliar a situação de trabalho associada ao ambiente e desfechos atitudinais dos trabalhadores com relação aos riscos à saúde.

Na técnica de grupo focal, "cada integrante fala a partir de sua verticalidade, isto é, a partir de suas vivências. Mas, como a história individual se constrói no seio de inter-relações experienciadas, os relatos, as opiniões, os posicionamentos são constructos que vão se delineando nas relações com o(s) outro(s). Remete-se, portanto, aos grupos de origem, manifestações da história pregressa e contemporânea. Assim, os sujeitos também são porta-vozes da horizontalidade em que se inscrevem e o próprio debate no grupo focal é uma dessas construções"(8). Pautando-se nesse princípio, foi adotado o critério de amostra intencional e, para compô-la, apropriou-se do recurso snow-ball, no qual um sujeito indica outro para fazer parte do grupo. A pessoa que vinha assumindo a posição de liderança formal da cooperativa forneceu a primeira indicação que, por sua vez, indicou o sujeito subseqüente e, assim por diante, até completar 10 participantes, módulo considerado ideal para a dinâmica pretendida(8). Ocorreram cinco sessões semanais de 1 hora e 30 minutos, entre dezembro de 2003 e janeiro de 2004, em um espaço físico da cooperativa.

No transcorrer de cada sessão grupal, as participantes foram instigadas a comentar sobre suas concepções de saúde e a observar o próprio ambiente de trabalho com a intenção de identificar prováveis riscos à saúde. Com base nessas discussões, buscou-se elementos que favorecessem a implantação de melhorias para a promoção da saúde e prevenção de agravos. A coordenação dos debates foi conduzida por uma das autoras e, após cada sessão do grupo focal, havia encontros da equipe de coordenação - constituída pelas autoras - para discussão e balizamento de aspectos relevantes que surgiam na dinâmica grupal, já planejando a próxima sessão e, assim, sucessivamente, até concluir a coleta de dados.

Para o tratamento das informações, recorreu-se à análise de enunciação(9), modalidade de análise que não se pauta na quantificação de significantes - palavras, expressões - porém, na compreensão e no significado das falas emergentes.

Com relação aos aspectos éticos, norteou-se pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e outros dispositivos(10). O projeto somente teve início após tramitação no Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, onde obteve homologação sob registro número 2003230. Contou-se com a anuência da liderança da Cooperativa, enquanto instituição de realização da pesquisa. Também, mediante assinatura em duas vias do termo de consentimento livre e esclarecido, buscou-se autorização de cada participante para gravação em áudio, sendo assegurado: livre participação e direito à desistência a qualquer momento, anonimato, caráter confidencial das informações e isenção de quaisquer influências que pudessem interferir no acesso e manutenção do contrato laboral que os catadores de lixo vinham mantendo com a cooperativa. Logo após a transcrição, o material gravado em áudio foi inutilizado, guardando-se o material transcrito por cinco anos e o teor das falas para compor o texto da publicação dos resultados foi validado com as mulheres participantes do grupo focal, em um encontro específico para essa finalidade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Do material oriundo das discussões, a partir da técnica de grupo focal, destacaram-se três temas emergentes: concepção de saúde na visão dos catadores de lixo; no meio do lixo, o local das refeições; o ambiente de trabalho e a conduta dos trabalhadores: identificando e solucionando riscos evitáveis.

Concepção de saúde na visão dos catadores de lixo

Para dar início aos debates, o grupo foi questionado sobre suas concepções de saúde. As manifestações convergiram para uma única certeza: ter saúde é não contrair uma doença grave. Para os sujeitos participantes do grupo focal, todas mulheres, a condição de não ter saúde relaciona-se diretamente ao acometimento de doenças como o câncer, AIDS, tuberculose, doença do rato etc. Tais moléstias foram evocadas a partir de situações que vivenciaram na família ou muito próximas de si, em razão do contexto, como ilustra o pronunciamento a seguir.

Pra mim ter saúde é não baixar o hospital, não tomar remédio, não tendo isso aí a gente tem saúde, não tendo nada de doença... Eu acho que se deve proteger das doenças, como no caso da AIDS, assim, e outras doenças que pegam.

O entendimento de saúde limitou-se à esfera biológica, considerando o corpo o marcador por excelência dos estados de saúde e doença. Embora tenham apontado alguns agravos à saúde que podem ser adquiridos no contato com o lixo, não houve avaliação afirmativa no sentido de considerar as influências do meio como determinantes incisivos na promoção e manutenção da saúde(11). Mesmo reconhecendo que as doenças respiratórias e as alergias podem ser adquiridas através do lixo, não foi conferida preocupação com tais doenças, mediante o argumento de que são passíveis de cura com o uso de medicação. Na concepção das participantes, essas doenças passam quase despercebidas, o que incomoda é o fato de ir morrendo aos pouquinhos e, então, estabeleceram associações com o sofrimento de quem tem câncer. Ou seja, a possibilidade de cura determina a importância de uma moléstia para a manutenção do status de saudável. Com base em tal representação, o grupo percebe-se saudável e, quando questionado sobre os possíveis riscos à saúde, no contato com o lixo, foi manifestada preocupação apenas com o risco de contrair doenças que considera graves, como o caso da AIDS, durante manuseio de lixo hospitalar.

Depreendeu-se dos debates que os catadores de lixo avaliam as condições de vida e saúde quantitativamente, ou seja, atêm-se à prioridade de ter que assegurar a sobrevivência e não com base numa medida qualitativa, que diz respeito ao prazer de viver, condição semelhante já sinalizada em estudo anterior(4). Ter saúde está muito vinculado à possibilidade de poder trabalhar, indiferentemente das condições que o trabalho ofereça. Essa concepção denuncia o quanto está distante a noção de salubridade que busca contemplar condições adequadas de trabalho e a separação do lixo, não apenas pelo caráter informal, mas principalmente pelos riscos que oferece, é legalmente considerada insalubre(12). Ampliando o enfoque para além das fronteiras do trabalho, cabe destacar ainda que a saúde é o resultante das necessidades sociais plenamente atendidas, no sentido de obter vida digna e com qualidade(13), o que não é observado no caso desses trabalhadores.

A informalidade e a pobreza são problemas que persistem e toda essa complexa rede interage com a saúde do sujeito, pois permeia várias dimensões do bem-estar físico, psíquico e social(13). Em se tratando da atividade laboral, a reciclagem resolveu alguns problemas, entretanto, trouxe ou manteve outros. A geração de renda sem dúvida representa parte da solução, uma garantia mínima para a própria sobrevivência e de suas famílias. Já, os riscos inerentes a essa atividade, citados na introdução deste artigo, inauguram uma nova categoria de morbidades.

No meio do lixo, o local das refeições

Muitos dos relatos expressavam o entendimento de não haver problema em comer no lixo já que se come lixo. Os comportamentos arraigados, pouco suscetíveis a mudanças, na tentativa de resolver essa questão específica, talvez encontrassem eco no vínculo que esses sujeitos estabeleceram com o lixo. O valor que o sujeito atribui ao mesmo é socialmente definido, ou seja, as condições sociais desses trabalhadores determinam o aproveitamento intenso dos rejeitos(4).

Nos primeiros contatos com o campo, a liderança formal da cooperativa apontou como um dos pontos centrais da problemática o local das refeições, já que eram feitas no próprio galpão de reciclagem. Na tentativa de resolver esse impasse, fora construída uma cozinha no pátio, de forma a proporcionar um local mais adequado para tal finalidade. Entretanto, nos debates do grupo focal, foi dito literalmente:

... fizeram essa cozinha aqui pra nós, mas nós não tomamos café aqui.

Enquanto pesquisadoras, imbuídas da perspectiva de co-gestão de coletivos, sabia-se que qualquer plano de ação para o enfrentamento de dificuldades teria que estar respaldado na co-participação das pessoas diretamente envolvidas e o primeiro passo era a escuta. Em meio a esse contorno, inseriu-se na pauta das discussões o porquê de não usufruir da ambiência da cozinha para as refeições, já que era o espaço mais apropriado para tal finalidade. De imediato houve argumentação acerca da inconveniência de ter que se deslocar do galpão até à cozinha, pois o tempo de lanche, pré-definido em 20 minutos, reduziria quase pela metade. A justificativa de uma participante que alegava não haver cadeiras suficientes para acomodar todos os trabalhadores não encontrou ressonância entre as demais, tendo atraído outro comentário:

... é mais perto vir até a cozinha do que pegar uma doença e ir ao posto que é mais longe.

Contudo, mesmo que a intenção fosse evocar um agir preventivo, a fala denota preocupação mais direcionada para se precaver do desconforto do deslocamento do que, propriamente, ser preventiva no sentido do cuidado à saúde. Aos poucos, desvelava-se no grupo uma atitude cristalizada, resistente a qualquer argumento que pudesse romper com a habitualidade em fazer refeições no galpão de reciclagem, tanto que se agregaram outras queixas como a porta de acesso geralmente trancada na hora do lanche e, ainda, o fato de que algumas trabalhadoras não se sentem bem na cozinha.

Noutra ocasião, foi verbalizado constrangimento em fazer refeições no galpão de triagem por causa da visita de pessoas não pertencentes à cooperativa que, por vezes, flagravam os trabalhadores lanchando nesse local e comentavam sobre a falta de higiene relativa a essa conduta. Ao investigar se o grupo estaria apreendendo o fato como falta de higiene, efetivamente, foi respondido: eu acho que eles pensam que é falta de higiene, referindo-se aos visitantes. De um lado, essa declaração poderia estar apontando para o desconhecimento dos riscos à saúde. Mas, então, por que esconder dos visitantes essa prática? A preocupação com a opinião alheia pelo fato de serem vigiados, enquanto comiam em tais circunstâncias, denotou que os sujeitos sabiam que "algo estava errado". Paralelamente, noções de higiene podiam ser identificadas, ou seja, naquele meio, havia um reconhecimento do que é contaminação.

Eu conheço uma amiga, que eu não vou citar nome, mas que não lava as mãos na hora que come. Pega uma coisa que acha ali, um chocolate, uma coisa limpa, fechadinha, pega e come, não lava as mãos [...].

Tá, tu pegou uma coisinha fechadinha, tudo bem, mas o que tem que estar fechado? Tu vai e pega com as mãos sujas né, abre e come com as mãos sujas, aí não adianta nada.

Situações como essas precisam ser dialetizadas, tal como se exercitou na dinâmica do grupo focal, pois podem conter capacidade ímpar de reverter situações adversas ou, pelo menos, de cogitar reflexões acerca das mesmas entre os envolvidos. O ir-e-vir dos diálogos, inicialmente permeados de resistências explícitas em admitir que comer junto ao lixo pudesse representar um risco à saúde, aos poucos foi mudando de configuração. Em um determinado momento, predominava a crença de que seria difícil, embora necessário, fazer com que os colegas viessem comer na cozinha. Porém, à medida que transcorriam os debates, o grupo permitiu-se retomar certas posições que vinham se mostrando cristalizadas e, como tais, bloqueadoras da aprendizagem. Assim, emergiu interesse em planejar alternativas que, se fossem incorporadas ao autocuidado, poderiam se reverter em benefícios à saúde. Como exemplo, menciona-se a iniciativa que tiveram de confeccionar cartazes, incentivando refeições na cozinha e convidando a todos para um almoço comemorativo do Ano Novo, já que estava próxima essa data festiva. Dessa forma, consolidou-se o propósito de redimensionar hábitos alimentares, a partir do Ano Novo e o almoço programado seria o início dessa nova etapa. Em momentos assim, gradativamente, o grupo passou a se mobilizar na construção de soluções viáveis, que estivessem ao seu alcance, como sujeitos pró-ativos.

Com esse engajamento, outras necessidades se desvelaram entre os participantes e os mesmos passaram também a discutir acerca da importância das relações interpessoais no trabalho. Surgiu a convicção no grupo de que, além da questão de higiene, o ato de se reunir no galpão seria a oportunidade de aproximar os subgrupos de trabalhadores. Genuinamente, disparava-se um processo de apropriação da realidade, em uma rede colaborativa.

O ambiente de trabalho e a conduta dos trabalhadores: identificando e solucionando riscos evitáveis

Entre outros aspectos, verificou-se baixa adesão ao uso de luvas, em grande parte motivada pela precária reposição do estoque. Essa é uma problemática que os catadores de lixo da cooperativa enfrentam, já que dependem de doações feitas pelo posto de saúde mais próximo, porém, a quantidade é insuficiente para atender as demandas do trabalho. Na falta de luvas novas, os trabalhadores retiram o que encontram no lixo hospitalar, lavam e guardam para uso posterior. Com isso, a problemática se agrava. Além do fator contaminação a que se expõem, deparam-se com a fragilidade das luvas cirúrgicas, pois as mesmas se rompem facilmente durante o manuseio do lixo, sendo ineficazes como equipamento de proteção.

Nas discussões do grupo focal, surgiram alguns argumentos favoráveis ao uso de luvas, como evitar o acúmulo de sujeira embaixo das unhas e proteger-se de bichinhos que surgem no lixo, principalmente no verão. Os bichos maiores elas afastam com as mãos, tendo preocupação com os bichinhos pequenos que podem entrar na gente sem a gente perceber. Um dos receios é contrair a doença do rato, referindo-se à leptospirose. Contudo, as participantes mais resistentes à adesão das luvas rebateram esses argumentos dizendo que nunca haviam contraído nenhuma doença no trabalho com o lixo e uma delas disse rejeitá-las, por ter alergia, associando essa intercorrência com o fato de ser hipertensa.

... se eu boto luva as minhas veias parecem que vão estourar.

Nas discussões, evidenciou-se que a maioria dos trabalhadores da cooperativa, efetivamente não usa luvas para manusear o lixo. Entretanto, foi verbalizado que, na presença de visitantes, todos os trabalhadores colocam-nas, mesmo os que não têm o costume de usá-las. Em uma primeira leitura, poderia ser interpretado que ocorre o reconhecimento da noção de risco e do comportamento seguro para proteger-se dele. No entanto, convém considerar a hipótese de eles estarem tão somente aderindo a uma atitude "politicamente correta", semelhante à situação já relatada, de esconder dos visitantes a prática de comer no meio do lixo.

Outros problemas foram emergindo ao longo dos debates e à medida que as participantes os identificavam, eram instigadas a propor soluções viáveis, tanto do ponto de vista operacional como orçamentário, em razão de eventuais custos financeiros que pudessem advir dos encaminhamentos sugeridos. Aos poucos, esboçava-se um plano de ação conjunto, com o reconhecimento de que as preocupações de cada uma diziam respeito a todas e que a busca de soluções traria repercussões coletivas. Como exemplos de mobilizações concretas, citam-se: construção de uma mureta para se protegerem de alagamentos e evitar que o chão ficasse escorregadio; isolamento de fios elétricos em canos impermeáveis, precavendo-se de choques; construção de um telhado do lado de fora do galpão para proteger do sol e da chuva os trabalhadores que organizavam os materiais no pátio; providências quanto à aquisição de equipamentos de proteção individual adequados (EPI) e desratização na área de reciclagem.

Após o delineamento do plano, o próximo passo seria levá-lo à liderança da cooperativa para discutir a viabilidade de implementação. Chamou atenção que o grupo preocupou-se quanto à necessidade de recursos financeiros para essas mudanças, receando um desconto salarial no fim do mês. Então, a proposta foi reavaliada por todos, ponto a ponto para averiguação da viabilidade financeira e uma das participantes sugeriu que alguém redigisse o plano por escrito para que nada fosse esquecido no momento da reunião com a liderança da cooperativa.

No último encontro do grupo focal, os sujeitos, na condição de co-partícipes, mobilizaram-se em agregar esforços junto à pessoa que vinha assumindo a liderança formal da cooperativa, convidando-a para engajar-se no movimento do grupo e isso foi oportunizado ainda naquele encontro. A dinâmica grupal e o plano de ações foram explicados pelas próprias mulheres, participantes da pesquisa, que se comprometeram em assumir a condição de multiplicadoras das novas idéias entre todos os trabalhadores da cooperativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No momento contemporâneo, a reciclagem de lixo vem se apresentando como nova modalidade de trabalho que tem atraído número cada vez maior de indivíduos. A cada dia surgem novas cooperativas de separação de lixo reciclável, nas grandes cidades, mas ainda não há uma política social e de saúde específica para atender as necessidades desse grupo expressivo de trabalhadores(5,13,14).

A pobreza em que vivem os catadores de lixo faz com que o objetivo primordial seja garantir sua sobrevivência e de suas famílias, ignorando possíveis riscos do ambiente que são apreendidos como "parte" do trabalho e não como conseqüência desse. Ao diluir a capacidade de indignação, culminam em abafar e, por vezes, ignorar os próprios sentimentos que, dessa forma, são incorporados e vão tecendo a banalização da injustiça social. Essa ciranda de problemas sociais, que nada mais é que a subtração de oportunidades que esses sujeitos tiveram que enfrentar, ao longo da vida, possui seu eixo central no aspecto econômico, comprometendo direta e significativamente a saúde dos trabalhadores(13).

Por outro lado, apesar das agruras do contexto, muitas vezes, depara-se com saberes manifestos e outros que se apresentam em estado de latência, prontos para serem resgatados e (re)construídos com os próprios sujeitos que vivenciam tal situação. O presente estudo proporcionou essa constatação, mostrando que muitos desses momentos propícios são aqueles que se inscrevem em discussões co-participativas, como se pretendeu por meio da técnica de grupo focal, da forma como foi implementada.

À guisa das conclusões, evidentemente, é preciso levar em conta que o saber isolado pouco resolve na prática se a fome é uma necessidade de primeira ordem. Além da alimentação, outras premissas como habitação, lazer, educação, entre outras, todas evocadas nas teorizações sobre de saúde, necessitam estar integradas na rede social de assistência(11,13). E isso não se limita a tão somente solucionar necessidades mais imediatas. Para o alcance de resultados efetivos é imprescindível mudança na lógica da política social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 16.4.2007

Aprovado em: 18.8.2007

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  • Saúde e autocuidado entre catadores de lixo: vivências no trabalho em uma cooperativa de lixo reciclável

    Clarice Maria Dall'AgnolI; Fernanda dos Santos FernandesII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Recebido
      16 Abr 2007
    • Aceito
      18 Ago 2007
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