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Crescendo com HIV/AIDS: estudo com adolescentes portadoras de HIV/AIDS e suas cuidadoras-familiares

Resumos

Estudo exploratório com abordagem qualitativa, que trata do processo de adolescer de portadoras de HIV/AIDS, com o objetivo de identificar como ocorre o processo da adolescência, na ótica dessas adolescentes e de suas cuidadoras-familiares. A investigação foi realizada em Porto Alegre, RS, entre os meses de maio e julho de 2005, sendo que os sujeitos foram quatro adolescentes e três cuidadoras. A coleta das informações ocorreu por meio de entrevistas que foram submetidas à técnica de análise de conteúdo. O estudo revelou que tanto as adolescentes quanto suas cuidadoras-familiares não manifestaram preocupação com as transformações próprias do período, especialmente nas questões que envolvem a sexualidade. Evidenciou-se que o diagnóstico e a convivência com o HIV ainda permanecem velados no círculo familiar, visando a proteção desses atores com relação ao estigma da doença.

síndrome de imunodeficiência adquirida; adolescente; família; cuidadores


This is an exploratory study with a qualitative approach, which looks at the adolescent process with HIV/AIDS. The purpose is to identify how the adolescent process occurs, from the perspective of these teenagers and their family caregivers. The investigation was performed in Porto Alegre, RS between May and July 2005, and the subjects were four adolescents and three caregivers. Data were collected by means of interviews, which were subject to the content analysis technique. The study revealed that both teenagers and family caregivers did not show concern with the changes typical of the period, especially regarding sexuality questions. Yet, the underlying diagnosis and coping with HIV remain in the family core in order to protect these agents against the stigma of the disease.

acquired immunodeficiency syndrome; adolescent; family; caregivers


Es un estudio exploratorio con abordaje cualitativo, que trata del proceso de desarrollo de la adolescencia en portadoras de VIH/SIDA, con el objetivo de identificar cómo ocurre el proceso de la adolescencia, en la visión de estas adolescentes y de sus cuidadoras familiares.La investigación se realizó en Porto Alegre-RS, entre los meses de mayo y julio de 2005; los sujetos fueron cuatro adolescentes y tres cuidadoras. La colecta de las informaciones se hizo por medio de entrevistas que fueron sometidas a la técnica de análisis de contenido. El estudio reveló que las adolescentes y sus cuidadoras familiares, manifestaron preocupación con los cambios propios de ese período, especialmente en asuntos relacionados a la sexualidad. Se hizo evidente que el diagnóstico y la convivencia con el VIH permanecen ocultos en el contexto familiar, con el objetivo de proteger, a estos actores, del estigma de la enfermedad.

síndrome de inmunodeficiencia adquirida; adolescente; familia; cuidadores


ARTIGO ORIGINAL

Crescendo com HIV/AIDS: estudo com adolescentes portadoras de HIV/AIDS e suas cuidadoras-familiares

Ana Amélia Antunes LimaI; Eva Néri Rubim PedroII

IMestre em Enfermagem, Docente do Centro Universitário Feevale, Brasil, e-mail: anninhaenf@hotmail.com

IIDoutor em Educação, Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: evaneri@terra.com.br

RESUMO

Estudo exploratório com abordagem qualitativa, que trata do processo de adolescer de portadoras de HIV/AIDS, com o objetivo de identificar como ocorre o processo da adolescência, na ótica dessas adolescentes e de suas cuidadoras-familiares. A investigação foi realizada em Porto Alegre, RS, entre os meses de maio e julho de 2005, sendo que os sujeitos foram quatro adolescentes e três cuidadoras. A coleta das informações ocorreu por meio de entrevistas que foram submetidas à técnica de análise de conteúdo. O estudo revelou que tanto as adolescentes quanto suas cuidadoras-familiares não manifestaram preocupação com as transformações próprias do período, especialmente nas questões que envolvem a sexualidade. Evidenciou-se que o diagnóstico e a convivência com o HIV ainda permanecem velados no círculo familiar, visando a proteção desses atores com relação ao estigma da doença.

Descritores: síndrome de imunodeficiência adquirida; adolescente; família; cuidadores

INTRODUÇÃO

A adolescência no aspecto biológico é universal, mas modifica-se e é vivida de maneira distinta de acordo com a cultura e os valores de cada sociedade, cujas influências atingem questões relacionadas à educação, saúde e desenvolvimento humano.

O processo de adolescer inclui, além de componentes genéticos, valores e conhecimentos adquiridos por meio das experiências de vida que ocorrem sob influência de instâncias socializadoras do indivíduo representadas pela família, escola e, mais recentemente, pela mídia(1-2).

Em um trabalho educativo, realizado por uma das autoras, com adolescentes de um bairro popular de Porto Alegre/RS, foram feitos questionamentos sobre como os adolescentes estariam vivenciando o processo de adolescer, visto que, na abordagem de assuntos referentes aos aspectos de seu desenvolvimento, muitas dúvidas ainda estavam presentes. Essas atividades permitiram reflexões sobre como esses adolescentes saudáveis e alegres estavam vivendo a adolescência, pois foi observado, por ocasião dos trabalhos, que eles ainda tinham muitos questionamentos sobre as transformações biopsicossociais próprias do período.

As mesmas reflexões que emergiram do contato com esses adolescentes foram transportadas para outra parcela de adolescentes - os portadores de HIV/AIDS infectados por transmissão vertical. Os jovens desse grupo, por não possuírem previsão de sobrevida longa, podem não ter recebido as informações pertinentes às transformações típicas da adolescência, que não se restringem apenas ao corpo, mas incluem o desabrochar de novas formas de relacionamento consigo e com o mundo.

Um estudo(3) desenvolvido com crianças vivendo com HIV apontou que o advento das terapias anti-retrovirais, implementadas a partir de 1996, permitiu a diminuição do número das mortes e das infecções oportunistas, proporcionando às crianças e adolescentes uma sobrevida com qualidade e perspectivas de futuro. Assim, as crianças nascidas de mulheres infectadas por HIV na primeira década da epidemia atingiram a adolescência e estão se desenvolvendo e vivendo experiências semelhantes às vividas por outros adolescentes de mesma idade, apesar das rotinas impostas pela convivência com o vírus HIV.

O objeto de que trata esse trabalho é o processo de adolescer de portadoras de HIV/AIDS infectadas por transmissão vertical, pois pertencem a uma parcela de jovens que nasceu sob o estigma de uma doença que marginaliza seus portadores, desconsiderando aspectos importantes do desenvolvimento humano. O estudo da adolescência desse grupo conduziu a seguinte questão de pesquisa: como as adolescentes portadoras de HIV/AIDS percebem o processo de adolescer?

Partindo desse e de outros questionamentos, foram delineados os seguintes objetivos: identificar como ocorre o processo de adolescer para adolescentes portadoras de HIV/AIDS infectadas por transmissão vertical e relatar como os cuidadores-familiares dessas adolescentes percebem esse processo.

CAMINHO METODOLÓGICO

O estudo é exploratório com abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa é essencialmente interpretativa e o pesquisador vê os fenômenos sociais holisticamente(4), ou seja, essa abordagem de pesquisa proporciona o conhecimento de um fenômeno a partir da visão dos participantes do estudo, por meio de suas vivências em seu ambiente natural.

O contexto do estudo é um Serviço de Atendimento Especializado (SAE) localizado na região metropolitana de Porto Alegre, que presta atendimento aos portadores de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e AIDS através de uma equipe multidisciplinar. As participantes foram sete: três cuidadoras - 2 mães portadoras de HIV/AIDS e uma irmã não portadora - e quatro adolescentes portadoras de HIV/AIDS com idades entre 11 e 14 anos, residentes na região metropolitana de Porto Alegre e atendidas no SAE.

A coleta das informações ocorreu entre maio e julho de 2005, utilizando-se dois roteiros de entrevista semi-estruturada guiados por duas temáticas: o adolescer e o convívio com a AIDS. Um roteiro foi aplicado às adolescentes e o outro aplicado às cuidadoras individualmente, permitindo, após consentimento, a gravação dos relatos em fita K7. As entrevistas foram previamente agendadas com as informantes e realizadas em local reservado no próprio SAE.

As informações obtidas por meio das entrevistas foram submetidas à técnica de análise de conteúdo(5), onde são avaliados o tipo de fala e de interpretação que se pretende como objetivo. Essa técnica prevê algumas etapas para a análise dos relatos, que foram seguidas após o processo de transcrição das fitas. Entre as etapas previstas para a análise, destacam-se a leitura flutuante, que se constitui por leitura exaustiva das entrevistas, buscando impregnação dos sentidos das falas dos participantes; a exploração do material, onde os relatos foram agrupados e mapeados e, finalmente, é realizada a releitura dos relatos, visando reorganizá-los para a elaboração das categorias finais, que foram submetidas a um processo de discussão à luz da literatura pertinente.

Em relação aos aspectos éticos, o estudo foi encaminhado, aprovado e protocolado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, vinculado à Prefeitura Municipal de Porto Alegre sob o número 14/05. Também foram assegurados às participantes, por meio do termo de consentimento livre e esclarecido, o anonimato de suas identidades, o esclarecimento de dúvidas pertinentes ao estudo, bem como a autonomia e voluntariedade na participação da pesquisa. Após a leitura deste documento pela pesquisadora, o mesmo foi assinado em duas vias de igual teor pelas participantes e pela pesquisadora.

RESULTADOS

A análise de conteúdo das informações permitiu a elaboração final de duas categorias e de quatro subcategorias. A primeira categoria foi descrita como o processo de adolescer com HIV/AIDS na visão das adolescentes, emergindo dessa categoria, as subcategorias crescimento e desenvolvimento das adolescentes portadoras de HIV/AIDS e convivendo com o HIV/AIDS: a revelação do diagnóstico, os sentimentos e as reações das adolescentes. A segunda categoria denominada processo de adolescer com HIV/AIDS na visão das cuidadoras-familiares, apresenta as subcategorias crescimento e desenvolvimento das adolescentes portadoras de HIV/AIDS sob a ótica das cuidadoras-familiares e a revelação do diagnóstico às adolescentes e a convivência com o HIV/AIDS na visão das cuidadoras familiares. Essas temáticas serão apresentadas e discutidas a seguir utilizando o apoio de referencial pertinente ao assunto.

ANÁLISE E DISCUSSÃO

O processo de adolescer com hiv/aids na visão das adolescentes

A adolescência é um processo permeado por mudanças físicas e psicossociais importantes ao desenvolvimento do indivíduo e, à semelhança de outras fases, apresenta crises que ocorrem, especialmente, em função das transformações corporais que influenciam nos relacionamentos com o meio social, ao qual o adolescente busca integrar-se com maior solidez a partir desse período(6).

Crescimento e desenvolvimento das adolescentes portadoras de HIV/AIDS

O desenvolvimento humano, independente das circunstâncias às quais o individuo está exposto, é um ciclo envolvido por períodos de transição marcantes e a adolescência, como parte desse ciclo, representa uma fase importante de transição, visto ser evidenciada pelo desenvolvimento físico acentuado - o período do estirão - e por modificações corporais importantes e influentes. No âmbito emocional e social, o adolescente também passa por transições desencadeadoras de conflitos internos e externos, que o expõem a possibilidade de experimentar situações, preparando-o para o enfrentamento de outras responsabilidades quando chegar à adultez.

Referido-se ao adolescer com AIDS, entende-se que os conflitos próprios da adolescência, somados à convivência com a AIDS, tornam o adolescente portador envolto por incertezas e onipotência frente às conseqüências advindas da infecção por HIV, pois "às incertezas próprias dessa etapa do desenvolvimento, acrescentam-se, para o jovem infectado pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), aquelas trazidas pela infecção, cuja tônica ainda é a ameaça à vida"(7).

Quanto ao crescimento e o desenvolvimento físico das crianças e adolescentes afetados pelo HIV, eles apresentam-se alterados quando comparados a indivíduos da mesma fase e saudáveis. Esses aspectos foram observados a partir do contato com as adolescentes deste estudo, que apresentavam um desenvolvimento físico, aparentemente, aquém do esperado, visto que as meninas assemelhavam-se fisicamente a crianças de idade inferior e sem as características significativas da puberdade relacionadas à sexualidade, ao menos não observadas/sentidas por elas, como pode ser percebido pelo relato dessa adolescente com HIV: Ela (a mãe) falou que um tempo eu vou ficar mocinha [...] (risos) (Adolescente 4).

A expressão "ficar mocinha" pressupõe que essa adolescente conhece as modificações do corpo indicativas de seu ingresso na adolescência, porém, em seu relato sobre as características apontadas como próprias da fase, ela parece não se reconhecer nesta fase, em virtude de sua aparência física ser semelhante à de uma garota mais jovem.

O fato de não se reconhecer como adolescente conduz a reflexões sobre como as instâncias socializadoras(2) - família e escola - estão contribuindo para o processo de desenvolvimento biopsicossocial dessas adolescentes com HIV, pois se evidencia, pelos relatos, que a temática das modificações corporais é pouco discutida nesses meios de (in)formação.

Os relacionamentos afetivos, entendidos como parte integrante do desenvolvimento do adolescente e representados por "ficar" e/ou namorar também foram lembrados pelas adolescentes do estudo. "Ficar" é um relacionamento sem compromisso, cujo objetivo é a busca do prazer, a maneira mais fácil de chegar perto de um outro sem se comprometer, completando que esse relacionamento é um exercício de sedução(8).

A compreensão dessa relação amorosa típica da adolescência parece estar bem clara entre algumas adolescentes deste estudo: Se um guri vem pedir pra ficar aquele dia, a gente vai e fica só aquele dia, não vai mais ter namoro pra frente. É abraço, mãozinha e beijinho, nada mais (A4); Ficar é só ficar um dia e deu (Adolescente 3).

Assim, compreende-se que o "ficar" representa, para a maioria dos jovens, um momento de conhecimento, de descobertas e de vivência de prazeres inerentes ao relacionamento afetivo-amoroso típico da adolescência, que é conhecido e vivenciado por algumas adolescentes do estudo.

Eu já fiquei muitas vezes [...] No outro dia um guri disse assim: 'pede pra tua colega se ela não quer namorar comigo'. Aí eu pensei, pensei e disse sim. Mas, não foi namoro, foi um ficar num dia e ele falou que estava namorando comigo. (Adolescente 4)

No contexto deste estudo, não houve menção da ocorrência de relacionamento sexual, mesmo durante o "ficar", apesar de uma adolescente ter observado em um programa de televisão uma cena cujos personagens insinuaram a relação sexual, o que pressupõe que ela tenha conhecimento dessa situação: Na novela mostraram a mulher deitada na cama, fazendo bonito para ele na cama [...] fazendo umas cenas (Adolescente 4).

Essa expressão "fazendo bonito" parece ser compreendida pela adolescente como o comportamento da mulher na conquista do homem, o que evidencia os programas de televisão, especialmente algumas novelas, como veiculadores de informação sobre o comportamento de homens e mulheres.

Uma pesquisa desenvolvida pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), com aproximadamente cinco mil adolescentes brasileiros de ambos os sexos, das diferentes regiões do Brasil, apontou a televisão como a segunda principal fonte de lazer e entretenimento dos adolescentes, especialmente as novelas e minisséries(9).

Em relação à influência da mídia sobre o comportamento de crianças e adolescentes, "o universo sexual na mídia acaba por erotizar o comportamento infantil, mais do que suas mentes"(10). Pode-se dizer que a mídia está onipresente influenciando o comportamento de crianças e jovens ao longo de seu desenvolvimento como transmissora de informações, algumas vezes instigando a representação de comportamentos sem promover a reflexão do adolescente.

As adolescentes do estudo também foram questionadas quanto ao conhecimento de métodos contraceptivos e de proteção a DST, informações que devem estar claras por apresentarem relação com a viabilidade dos relacionamentos afetivo-amorosos. Nesse estudo, algumas adolescentes manifestaram pouco conhecimento do assunto, que também foi adquirido por meio de informações veiculadas na mídia. Já ouvi falar na pílula e na camisinha que eu vi na televisão (Adolescente 3); Os remédios, a injeção, não sei o que eles colocam dentro do braço que a mulher não engravida. [...] (Adolescente 4).

Evidencia-se neste estudo que a mídia aparece novamente como veiculadora de informações relativas ao uso de métodos contraceptivos e de proteção de DST. Um estudo desenvolvido com adolescentes, estudantes de escolas públicas de Aracajú(11) sobre o conhecimento de métodos contraceptivos demonstrou que essas informações são obtidas, em sua maioria, pela TV, pelo rádio e por revistas e jornais e apontou também que a falta de oportunidades de diálogo no meio familiar conduz os adolescentes à procura por informação em outras fontes, na tentativa de esclarecer as dúvidas relacionadas ao tema. Nesse sentido, a mídia parece ser em ambos os casos o meio de informação de maior acesso desses adolescentes.

Convivendo com o HIV/AIDS: a revelação do diagnóstico, os sentimentos e as reações das adolescentes

O impacto de uma doença crônica para a criança depende do seu nível de desenvolvimento, bem como do momento em que a doença teve início e da experiência acumulada pela criança com a doença. Entre os adolescentes, conviver com uma doença crônica pode afetar a convivência e a aceitação pelo grupo de amigos, interferindo também nos sentimentos do adolescente sobre os domínios de seu corpo, pois vivencia uma fase de descobertas, busca de identidade, tornando-se mais vulnerável ao estresse emocional(12).

Por tratar-se de uma doença cujo estigma permanece vigente na sociedade, a revelação do diagnóstico de HIV/AIDS e o convívio com a doença, independente da idade do portador, promove inicialmente uma não aceitação da doença pelo próprio portador. Esse tipo de reação pode desencadear sentimentos e reações de tristeza, inconformismo, vergonha e aceitação em um período mais tardio. Entre os adolescentes participantes deste estudo, pode-se perceber a manifestação de tais sentimentos. Eu sinto mais ou menos triste. Porque minha mãe foi fazer isso comigo (Adolescente 3)?

A tristeza, emoção manifestada por essa adolescente, é uma emoção básica do ser humano, caracterizada como "desprazer diante da perda ou do insucesso"(13), perda essa traduzida no estudo como a de uma vida considerada "saudável", "igual" a de todas as outras adolescentes da mesma idade, com todas as situações que envolvem essa fase.

Outra adolescente do estudo, cujo diagnóstico foi revelado pela mãe ainda na infância, parece demonstrar-se conformada com a situação de portadora de HIV/AIDS: Não é que eu fico chateada. É minha vida, né (Adolescente 4)?

É importante considerar que o tempo de revelação do diagnóstico influencia na manifestação dessas emoções, pois a adolescente 3 teve seu diagnóstico revelado pouco tempo antes da entrevista, justificando sua tristeza e desconforto ao descobrir-se portadora de HIV. Outras adolescentes do estudo (1, 2 e 4) convivem com o HIV/AIDS desde a infância e parecem estar vivenciando a fase de aceitação da doença. No entanto, observou-se em todas uma certa angústia relacionada à rotina de vida, modificada em função da AIDS e dos cuidados inerentes à doença, e que ficou evidenciada pelo silenciamento das adolescentes por ocasião do aprofundamento das questões relacionadas ao diagnóstico e à convivência com a doença.

O processo de adolescer com HIV/AIDS na visão das cuidadoras-familiares

O processo de adolescer implica a compreensão do indivíduo e da família sobre esse período permeado de conflitos que envolvem modificações biopsicossociais importantes. Tratando-se de adolescentes com HIV/AIDS, os conflitos típicos do período somam-se aos desencadeados pela convivência com a doença, no que diz respeito à manifestação e ao tratamento, aspectos que exigem um comprometimento do adolescente que deve receber um suporte social adequado pela família no enfrentamento da doença que influencia no seu desenvolvimento.

- Crescimento e desenvolvimento das adolescentes portadoras de HIV/AIDS sob a ótica das cuidadoras-familiares

O processo de crescimento e desenvolvimento dos adolescentes, além das modificações corporais significativas da etapa, a busca pela identidade com os grupos, o interesse em viver um relacionamento afetivo-amoroso e a necessidade de informações sobre temas que dizem respeito à sexualidade, devem ser assuntos contemplados pela família, por ocasião das discussões próprias a essa fase de desenvolvimento.

As cuidadoras participantes do estudo foram questionadas sobre a ocorrência de diálogo sobre "ficar/namorar" no âmbito familiar. Emergiu de seus depoimentos que a existência de relacionamentos envolve maturidade física e emocional da jovem, bem como a relação de confiança entre os membros da família: (...) hoje em dia não é qualquer um e conversar não tira pedaço, mas ficar, namorar, a gente tem que cuidar, ainda mais pessoa nova que nem sabe o que quer (Cuidadora 1). Eu vejo ela ainda muito pequena para namorar. Com treze anos eu acredito que ela esteja bem madurinha já (Cuidadora 3); Não ficou com ninguém, nem namorou ninguém. Não está na idade de namorar e quando estiver na idade eu vou deixar ela namorar (Cuidadora 2).

Na percepção dessas cuidadoras, o momento certo para "ficar/namorar" está relacionado à idade da adolescente e a sua maturidade corporal, mas não ficou claro qual seria o momento adequado para o início desses relacionamentos, pois parece não haver uma discussão objetiva com as adolescentes sobre o tema que fomenta as demais discussões acerca de sua sexualidade. Também cabe destacar que, em relação aos relacionamentos amorosos, se tem a percepção de que, para essas cuidadoras, há um momento certo para elas e não para as adolescentes.

Percebe-se que, a exemplo de outras adolescentes, o desencadear e a discussão desses assuntos no âmbito familiar ainda é problemático e difícil para pais/cuidadores e filhos também no universo das adolescentes portadoras do HIV. Embora haja preocupação dos pais com os filhos quanto à discussão dessas questões, não há por parte deles um preparo para iniciar o diálogo de questões delicadas que abram precedente para a discussão de outros temas relacionados à sexualidade do adolescente e sobre relacionamentos amorosos(14). Com relação à abordagem de outros assuntos como exposição a doenças e gestação na adolescência, duas cuidadoras manifestaram conhecimentos adquiridos a partir de suas experiências de vida, reforçando a preocupação com as adolescentes no sentido de conscientizá-las dos problemas que podem surgir por ocasião da gestação na adolescência ou da exposição a doenças sexualmente transmissíveis. [...] o que a cabeça faz o corpo paga e menor de idade com filho, uma criança tomar conta de outra criança, a responsabilidade é grande. Eu passei por isso, sei o que é isso e eu não tinha como evitar a gravidez (Cuidadora 1). Conversei sobre o uso da camisinha, mas comprimido não. Porque se ela usar uma camisinha não tem perigo (de infecção de outras doenças), porque usa a feminina. O que eu sei, o que eu aprendi, eu falo pra ela (Cuidadora 3).

No entanto, outra cuidadora informou não ter dialogado com a adolescente esses mesmos assuntos, por entender que a mesma ainda não manifestou interesse em discutir: [...] eu não cheguei a conversar sobre camisinha e pílula porque eu não vejo ela falar de namoro, de nada e não tem como eu entrar num assunto no qual ela não entrou (Cuidadora 2).

Nota-se implícito no relato dessa cuidadora o medo da abordagem dessas questões, em virtude de a jovem ser portadora de HIV, o que parece ser, na perspectiva da cuidadora, um fator limitante para o início do diálogo sobre essa temática.

- A revelação do diagnóstico às adolescentes e a convivência com o HIV/AIDS na visão das cuidadoras-familiares

A revelação do diagnóstico de portador de HIV/AIDS desencadeia expectativas da família em relação às reações da criança ou do adolescente, reações essas que dependem da sua compreensão a respeito da doença e das conseqüências impostas por ela ao seu desenvolvimento biopsicossocial. Entre as adolescentes desse estudo, três tiveram o diagnóstico revelado ainda na infância e uma, apenas na adolescência, em função da menarca.

Na revelação do diagnóstico de HIV às adolescentes do estudo, as cuidadoras apontaram a expressão de diferentes reações. Ela deu risada (Cuidadora 1); A mãe disse que na hora que a doutora contou, ela ficou desesperada [...] eu conversei com ela depois, deixei passar uns dias, e ela começou a chorar. Eu disse que isso é normal e acho que ela está conformada (Cuidadora 2). Ela chorou muito, se abraçou em mim. Falou para mim que nós duas tinha que se cuidar mais e que era eu cuidando dela e ela cuidando de mim (Cuidadora 3).

As reações manifestadas pelas adolescentes podem ser compreendidas como pertencentes aos estágios adaptativos iniciados a partir do diagnóstico de uma doença crônica em que "o estágio inicial é intensamente emocional" e "agir de forma muito feliz e otimista, apesar do diagnóstico revelado" também sugere que o indivíduo esteja passando pela negação da doença(12).

No entanto, o fato de se dizer conformada e entender a AIDS como algo normal, permite inferir que a cuidadora 3 também não está bem ajustada ao diagnóstico da adolescente, podendo indicar uma negação parcial, que atua como um mecanismo protetor temporário, permitindo às pessoas a recepção de informações estressantes dosadas por elas mesmas, de modo a controlarem seus sentimentos no momento do diagnóstico(12). Além das reações emocionais manifestadas pelas adolescentes, uma das cuidadoras apontou como fatores limitantes da revelação do diagnóstico o medo e a vergonha em virtude do estigma social da doença, que se estende à família do portador. A mãe teve que trocar ela de colégio porque os colegas falavam 'essa aí tem AIDS porque a mãe dela morreu de AIDS' [...]. Então, como ela sofria discriminação, minha mãe tirou ela daquele colégio e na escola que ela está hoje, ninguém fala nada (Cuidadora 2).

O fato de "ninguém falar nada", nem apontar a adolescente como portadora de HIV/AIDS implica também em não apontar os demais integrantes da família como supostos portadores do vírus, evidenciando, nessa atitude, uma proteção estendida à família dessa adolescente.

O conhecimento da doença por pessoas da família ou do meio social ainda é motivo de discriminação, conforme foi apontado por duas cuidadoras que mencionaram existir, no seio familiar, certo preconceito em relação à doença.

Meus familiares, meus amigos verdadeiros, que eu acho que são poucos sabem. Eu não acho que a gente deve sair falando pros quatro cantos do mundo que tu é portadora, porque preconceito existe.(Cuidadora 3)

Sabe como é, há os comentários entre a família. [...] Se eles falam alguma coisinha, falam para a vila toda saber (Cuidadora 1).

A revelação do diagnóstico do HIV no círculo familiar e social também é apontada implicitamente nos relatos das cuidadoras como discriminatória, pois supõe-se não haver na família, nem no meio social, a compreensão da AIDS como uma enfermidade crônica passível de convivência sem medo, mas uma doença que, em virtude de sua história, ainda proporciona vergonha e isolamento social, que são estendidos à rede familiar quando um de seus componentes é portador de HIV.

Esse mesmo sentimento discriminatório e estigmatizante foi apontado em um estudo com adolescentes portadores de HIV/AIDS e seus cuidadores(15), que tiveram experiências discriminatórias em suas vivências familiares e no meio social representado por amigos, escola, trabalho e serviços de saúde.

Com relação à percepção das cuidadoras sobre a convivência das adolescentes com o HIV, pode-se inferir que este convívio com a doença implica em tomada de atitudes que visam à proteção das adolescentes, bem como da família contra a discriminação e as representações que a AIDS suscita na sociedade.

Em virtude do julgamento social e na tentativa de proteger as adolescentes, essas cuidadoras apresentam dificuldades em tornar o diagnóstico do HIV conhecido pela família e pelo contexto social, tentando evitar a exposição das jovens, o que pode estar interferindo, de modo implícito, no curso normal da adolescência que envolve a vivência de sua sexualidade, o envolvimento com o grupo, o conhecimento do corpo e de suas modificações, aspectos que, devido a presença do vírus, parecem carecer de melhor atenção da família, da escola e dos serviços de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo permitiu uma aproximação com o universo de adolescentes portadoras de HIV/AIDS, nascidas em uma época em que não havia possibilidade de soroconversão e, talvez em vista desse motivo, não se previa a sobrevida prolongada, não havendo também uma preocupação clara em relação ao processo de desenvolvimento e às transformações inerentes a ele.

Pode-se evidenciar pelo contato com essas adolescentes que elas parecem não entender bem que estão ingressando em um período de intensas modificações corporais e que essas influenciarão em seu desenvolvimento. Apesar de manterem opiniões sobre algumas modificações do corpo, conhecerem alguns métodos contraceptivos e entenderem a diferença entre o "ficar" e o namorar, nota-se uma falha na abordagem clara desses assuntos pela família, pela escola e também pelos serviços de saúde.

Sendo a adolescência uma etapa caracterizada pelo imediatismo e pensamento mágico, pode-se compreender que os momentos atuais vividos por si só atendem as suas possibilidades do existir.

Em relação à revelação do diagnóstico e à convivência com o vírus, foi apontada pelas cuidadoras a preocupação em manter o diagnóstico velado, inclusive a pessoas do meio familiar, por entenderem que a doença apresenta ainda um estigma social que leva a julgamentos e discriminação que atingem não só a adolescente, mas sua família.

Por envolver um compromisso social, este estudo sugere aos profissionais e educadores envolvidos na temática do HIV/AIDS, o desenvolvimento de um conhecimento mais profundo em relação às questões da adolescência para que possam implementar medidas que tenham como foco não apenas o tratamento da patologia, mas a inclusão de aspectos relacionados à educação dos cuidadores-familiares dessas adolescentes, responsáveis pelos cuidados que influenciam em seu desenvolvimento biopsicossocial. Acredita-se que fornecendo apoio e informação aos cuidadores, eles terão subsídios para um diálogo claro junto a essas adolescentes que, a exemplo de outras, requerem atenção e informação objetiva sobre as transformações inerentes a essa fase de desenvolvimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2007
  • Aceito
    11 Mar 2008
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