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Representações sociais de mulheres diabéticas, de camadas populares, em relação ao processo saúde-doença

Resumos

Este trabalho tem como objetivo identificar as representações sociais de mulheres diabéticas das camadas populares em relação ao processo saúde-doença. Trata-se de estudo descritivo e exploratório. Foram entrevistadas oito participantes, atendidas numa unidade básica de saúde do município de Ribeirão Preto, SP, em 2003. Os dados foram organizados mediante análise temática de conteúdo e analisados segundo a teoria das representações sociais. O diabetes está relacionado a sentimentos negativos como choque, revolta e tristeza, o plano alimentar aparece vinculado à perda do prazer e prejuízos à saúde. As mulheres diabéticas mostraram relação ambivalente com o uso da medicação, percebido como cansativo e como recurso que promove o bem-estar e melhoria da qualidade de vida. A representação negativa dos serviços de saúde parece interferir no comportamento de adesão ao tratamento medicamentoso. Compreender as representações de mulheres com diabetes contribui para a integralidade do cuidado ao diabético.

diabetes mellitus; processo saúde-doença; educação em saúde


The purpose of this article is to identify the social representations of low-income diabetic women according to the health-disease process. This is a descriptive, exploratory study. Eight participants, all of them patients at a basic health unit in Ribeirão Preto, were interviewed in 2003. The data were organized according to thematic content analysis and analyzed according to theory of social representations. Diabetes is related to negative feelings, such as shock, anger and sadness; the diet plan is linked to the loss of pleasure, and also to health risks. The diabetic women showed an ambivalent relation to medication, perceived it as both tiring and as a resource that promotes well-being and improvements in quality of life. The negative representation of health services seems to interfere with the behavior of adherence to pharmacological treatment. Understanding the representations of women with diabetes contributes to integral healthcare for diabetic patients.

diabetes mellitus; health-disease process; health educación


Este trabajo tiene como objetivo identificar las representaciones sociales de mujeres diabéticas de clases populares en relación al proceso salud-enfermedad. Se trata de un estudio descriptivo y exploratorio. Fueron entrevistadas ocho participantes, atendidas en una unidad básica de salud del municipio de Ribeirao Preto, en 2003. Los datos fueron organizados mediante un análisis temático de contenido y analizados según la teoría de las representaciones sociales. La diabetes está relacionada a sentimientos negativos, como choque, rabia y tristeza; el plano alimentario aparece vinculado a la pérdida del placer y de daños a la salud. Las mujeres diabéticas mostraron una relación ambivalente con el uso de los medicamentos, percibido como productor de cansancio y como un recurso que promueve el bienestar y mejora la calidad de vida. La representación negativa de los servicios de salud parece interferir en el comportamiento de adherencia al tratamiento con medicamentos. Comprender las representaciones de mujeres con diabetes contribuye a la prestación de servicios del cuidado al diabético.

diabetes mellitus; processo salud enfermedad; educación en salud


ARTIGO ORIGINAL

Representações sociais de mulheres diabéticas, de camadas populares, em relação ao processo saúde-doença

Denise Siqueira PéresI; Laércio Joel FrancoII; Manoel Antônio dos SantosIII; Maria Lúcia ZanettiIV

IMestre em Ciências Médicas, e-mail: desiperes@ig.com.br

IIProfessor Titular, e-mail: lfranco@ig.com.br. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil

IIIProfessor Doutor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: masantos@ffclrp.usp.br

IVProfessor Associado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail: zanetti@eerp.usp.br

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo identificar as representações sociais de mulheres diabéticas das camadas populares em relação ao processo saúde-doença. Trata-se de estudo descritivo e exploratório. Foram entrevistadas oito participantes, atendidas numa unidade básica de saúde do município de Ribeirão Preto, SP, em 2003. Os dados foram organizados mediante análise temática de conteúdo e analisados segundo a teoria das representações sociais. O diabetes está relacionado a sentimentos negativos como choque, revolta e tristeza, o plano alimentar aparece vinculado à perda do prazer e prejuízos à saúde. As mulheres diabéticas mostraram relação ambivalente com o uso da medicação, percebido como cansativo e como recurso que promove o bem-estar e melhoria da qualidade de vida. A representação negativa dos serviços de saúde parece interferir no comportamento de adesão ao tratamento medicamentoso. Compreender as representações de mulheres com diabetes contribui para a integralidade do cuidado ao diabético.

Descritores: diabetes mellitus; processo saúde-doença; educação em saúde

INTRODUÇÃO

O diabetes mellitus é doença crônica e uma das prioridades para a saúde pública mundial. Os pacientes acometidos pelo diabetes requerem educação para o autocuidado e supervisão contínua, por longos períodos de tempo. Nessa direção, é importante ressaltar a necessidade de acompanhamento, de apoio e de seguimento contínuo do paciente por uma equipe multiprofissional de saúde, como demonstraram dois grandes estudos realizados na década de 90(1-2).

A partir desses dois estudos, principalmente, houve reconhecimento da importância do trabalho multiprofissional de saúde para educação do paciente diabético e inúmeros programas educativos têm sido desenvolvidos, em nível internacional e nacional(3-4).

Para que um programa tenha resultados efetivos, no entanto, é preciso considerar, além dos outros fatores, as concepções de saúde dos profissionais e dos pacientes acerca do processo saúde-doença. As concepções de saúde-doença têm características que variam de acordo com o contexto sociocultural(5), ou seja, as interpretações que os sujeitos dão à saúde fazem parte de uma série de concepções, valores e experiências que são compartilhadas pelas pessoas que participam de uma mesma cultura.

A experiência de adoecer do paciente diabético, em particular, depende em parte do que se entende por saúde e, nesse sentido, nem sempre são semelhantes os significados de doença-saúde para profissionais e usuários com diabetes, nos serviços de saúde. Os pacientes com diabetes possuem representações e práticas populares de saúde que, muitas vezes, são trocadas entre si na convivência do dia-a-dia, e é comum a equipe de saúde ignorar esses saberes populares que circulam no cotidiano, considerando o conhecimento técnico-científico como o único válido e correto(6).

Os profissionais e os usuários com diabetes às vezes não conseguem "falar a mesma língua" e pode ocorrer desconsideração do saber e das representações populares(7). O campo do saber biomédico costuma recusar a experiência e o saber daquele que sofre de alguma enfermidade e, nesse aspecto, o saber científico, muitas vezes, é considerado o único verdadeiro e correto(8). A legitimação do saber biomédico, como o único conhecimento válido, implica na desqualificação de outros saberes compartilhados, freqüentemente por mulheres com diabetes, de tal modo que recuperar esse saber feminino é tarefa que se impõe aos que se interessam pelas vozes esquecidas da memória coletiva.

Como as representações das camadas populares sobre o processo saúde-doença muitas vezes são diferentes das concepções que os profissionais possuem, é fundamental conhecê-las para assegurar maior efetividade das intervenções(5). A literatura disponível nesse campo ainda é incipiente, o que justifica a condução de novos estudos que se dediquem a compreender o processo de construção social dessas representações em pessoas com diabetes. Assim, o presente estudo tem como objetivo identificar as representações sociais de mulheres diabéticas das camadas populares em relação ao processo saúde-doença.

REFERENCIAL TEÓRICO

Escolheu-se como marco teórico de referência as representações sociais, elaboradas por Moscovici(9). A teoria das representações sociais propõe valorização do saber leigo e do conhecimento cotidiano com seus processos de produção - que se desenvolvem no contexto coletivo - e de apropriação - que se dá na experiência de cada indivíduo, por meio de uma operação denominada ancoragem, permitindo que o conhecimento científico seja assimilado ao conhecimento popular.

O estudo das representações sociais associa-se ao entendimento do corpo, da saúde e das doenças como uma matriz de significados. A apropriação dessa teoria, em estudos realizados na área da saúde, é relevante, pois incorpora os aspectos psicossociais associados às doenças, o que pode promover reflexão sobre as modalidades e estratégias de tratamento freqüentemente utilizadas pelos profissionais no contexto do novo paradigma de atenção à saúde, que destaca a necessidade de cuidados que considerem a integralidade do sujeito.

Essa teoria encontra-se no limite entre o psicológico e o social, buscando resgatar a dimensão psicológica e social dos fenômenos, o que a torna particularmente valiosa no campo da saúde, sobretudo quando se adota postura que valoriza o conhecimento que emana do senso comum e a perspectiva dos usuários dos serviços de saúde.

PERCURSO METODOLÓGICO

Trata-se de estudo descritivo exploratório, fundamentado em um enfoque de pesquisa qualitativa, realizado em janeiro de 2003, em uma Unidade Básica de Saúde - UBS - localizada na região norte do município de Ribeirão Preto, SP. Essa unidade localiza-se em bairro de nível socioeconômico baixo, e sua área de abrangência assistencial engloba vários bairros da periferia da cidade.

Realizou-se, preliminarmente, levantamento dos prontuários de pessoas com diagnóstico de diabetes, cadastradas na Unidade Básica de Saúde. Foram descartados os registros de usuários do sexo masculino. A seleção das participantes foi realizada por meio de sorteio dos prontuários de usuárias que atenderam os seguintes critérios de inclusão: mulheres diabéticas do tipo 2, com pelo menos 12 meses de diagnóstico, usuárias de um serviço da rede pública de saúde de Ribeirão Preto, com capacidade preservada de comunicação e diálogo e que concordassem em participar da pesquisa.

Para cada sujeito selecionado era realizado o contato por telefone ou carta, explicando-lhes os propósitos da pesquisa e marcando data e horário para seu comparecimento na unidade de saúde. Após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, deu-se início a entrevista em sala com condições adequadas de privacidade. Para a determinação do número de participantes, foi utilizado o critério de saturação de dados(10), o que foi alcançado com oito participantes. As entrevistas foram audiogravadas e tiveram duração média de 60 minutos. A cada entrevista realizada, os dados foram transcritos na íntegra e literalmente, constituindo o corpus do estudo. Os dados empíricos foram organizados utilizando-se a técnica de Análise Temática de Conteúdo(10). Para a análise dos dados, procedeu-se à ordenação das falas, após a transcrição integral das fitas e leitura exaustiva do material empírico. A seguir, selecionou-se partes do material, buscando as idéias relevantes que constituem as unidades de significado, as quais os pesquisadores codificaram e organizaram nos seguintes temas: diabetes - choque, revolta e tristeza; plano alimentar - perda do prazer e prejuízo à saúde; medicação - tomar remédio é cansativo; processo saúde-doença - saúde é poder trabalhar. Para garantir o anonimato dos participantes foram utilizados nomes fictícios. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em 15/4/2002 (Processo nº 2689/2002).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados e a discussão serão apresentados em duas partes. Da primeira consta a caracterização dos sujeitos (Tabela 1) e, da segunda, os temas identificados durante a análise de conteúdo das entrevistas.

Nota-se que as mulheres têm nível de escolaridade máxima de quatro anos e renda familiar máxima de, aproximadamente, três salários mínimos. Em relação à ocupação, cinco eram donas de casa, duas aposentadas e apenas uma exercia atividade remunerada. Caracterizam-se, portanto, por pertencerem a um estrato socioeconômico inferior. A literatura mostra que baixa escolaridade e poder aquisitivo restrito estão associados a menor acesso à informação e à tecnologia para o controle do diabetes, além de restringir a percepção que o diabético possui sobre a sua própria condição de saúde(11).

DIABETES: choque, revolta e tristeza

Apresentar condição crônica de saúde envolve diversas mudanças nos hábitos e na vida cotidiana dos indivíduos, o que pode ser extremamente penoso e difícil de aceitar. Receber o diagnóstico de uma doença crônica, como o diabetes, desperta diversos sentimentos, reações emocionais e fantasias, que precisam ser conhecidos e compreendidos pelos profissionais de saúde.

Os comportamentos apresentados estão relacionados a uma série de sentimentos que devem ser compreendidos por toda a equipe. Assim, as informações acerca das emoções desencadeadas pelo diabetes são fundamentais para o seguimento do tratamento da doença(12). Nas mulheres do estudo, o diagnóstico de diabetes veio acompanhado de tristeza, raiva, revolta e choque.

Ah, eu fiquei muito revoltada (Maria).

Eu fiquei muito chocada, fiquei muito triste (Vera).

Após vários anos de diagnóstico, o distanciamento ("não preocupação" com a doença) apareceu freqüentemente nos depoimentos.

Agora para mim é normal, pra mim é que nem uma pessoa que não tem diabete (Ana).

Eu faço que nem tenho nada (...) levo a vida como se não tivesse (Lúcia).

As entrevistadas vivenciaram afetos negativos frente às proibições, limitações e possíveis complicações ditadas pelo diabetes. Por não suportarem viver o tempo todo com tantas restrições, carregadas de sentimentos negativos, usavam do mecanismo psíquico da negação como válvula de escape, buscando alívio para as ansiedades.

Na sociedade capitalista, aquele que adoece não pode permanecer por muito tempo nessa condição, de modo que estar doente é um estado suportável socialmente apenas por curto período de tempo. Assim, o paciente pode negar a sua doença e o fato do diabetes ser enfermidade sem sintomas e dor, podendo favorecer tal reação(13).

Os depoimentos revelaram a influência das emoções vivenciadas pelas mulheres no seguimento do tratamento e no controle da doença. As decisões em relação ao tratamento dessa enfermidade afetam e são afetadas pelos sentimentos, pensamentos, valores e outros aspectos psicossociais associados à enfermidade.

Agora se for ficar aí afobado (...) aquela afobação, aí às vezes não toma o remédio certo, não faz a dieta certa (Laura).

Quando você está nervosa, você vai toda hora abre a geladeira (...) estando ansiosa você come (Maria).

Os depoimentos evidenciaram relação entre o comportamento de não seguir o tratamento e desistir de viver.

Meu irmão tem 80 anos, mas ele faz caminhada. Sabe, ele quer viver. Agora eu não quero viver mais, ele quer (...). Ele fala que não toma nada com açúcar, ele não toma refrigerante, não come bolo (...). Quando ele me falou, eu estava comendo tudo isso daí (Cláudia).

Pode-se inferir, a partir dos depoimentos, que é necessária uma vontade de viver e desejo de manter a saúde nos casos de doença instalada. O desejo e o compromisso das pessoas com a própria vida são elementos fundamentais no tratamento das doenças(14). O diabetes influencia todas as dimensões do cotidiano do paciente, desde a rotina mais trivial até o desejo de continuar a viver e manter sua qualidade de vida.

Por ser doença que não tem cura e necessita de comprometimento com a terapêutica medicamentosa, alimentar e atividade física, o diabetes requer da pessoa capacidade de enfrentamento durante toda a sua vida. O compromisso de seguir ou o desejo de interromper o tratamento, mesmo que seja por curto período, está sempre presente no cotidiano da pessoa diabética.

Plano alimentar: perda do prazer e prejuízo à saúde

Há um sistema complexo de valores, símbolos e significados que estão associados à dimensão do comer. A alimentação vai muito além da ingestão de nutrientes e deve ser vista para além do prisma biológico(15). Para as mulheres entrevistadas, seguir o plano alimentar recomendado parece ter vários significados, como a perda do prazer de comer e beber, a perda da autonomia e da liberdade de escolha dos alimentos que desejam, bem como diversas outras restrições, conforme se pode observar nas falas.

Não estou mais como eu era, sem essa porcaria do diabetes. (...) tudo que vai comer, a gente pensa, não vou comer isso que vai me fazer mal. (...) parece que não, mas muda tudo (Laura).

Pegou essa doença, acabou o prazer de comer e beber. (...) estraga a vida da gente. (...) não tem muita liberdade mais (Ana).

Nota-se, assim, que, para as mulheres de camadas populares desse estudo, o diabetes impõe uma série de normas e regras rígidas, é doença caprichosa que prescreve o quê e como comer, o que dificulta o controle de suas vidas. Considerando as condições de vida extremamente limitadas nas quais essas mulheres vivem, do ponto de vista material, conceber o plano alimentar como exigência que produz inúmeras restrições, reduz ainda mais as oportunidades de prazer e lazer, já restritas devido às suas condições sociais(16).

No depoimento abaixo, relacionado o plano alimentar recomendado, parece estar relacionado a prejuízos à saúde.

O homem não come nada, está pior, está da cor daquela parede ali, está amarelo. A gente não agüenta, a gente não fica nem em pé se fizer o regime (Ana).

Nas classes populares, a alimentação está ligada à capacidade de desempenho no trabalho; assim, acredita-se que o corpo precisa ingerir grandes quantidades de alimentos para conseguir manter o rendimento adequado na atividade laboral(17). A baixa ingestão de alimentos relaciona-se à sensação de fraqueza, debilidade, abatimento e doença. As sensações corporais são vivenciadas com maior ou menor intensidade conforme a classe social das pessoas. As classes populares tendem a atribuir sensações de "estar satisfeito" a uma refeição rica em gorduras e com alto teor calórico. As mulheres das classes populares utilizam mais freqüentemente o toucinho e a banha de porco na cozinha do que as mulheres de nível socioeconômico mais alto(7). A expressão "como você está gorda", "forte", é freqüentemente utilizada para referir-se à pessoa que mostra aspecto saudável.

Além do mais, as representações da obesidade são vivenciadas de diferentes formas nas diversas classes sociais. Aquilo que as mulheres de nível socioeconômico baixo definem como peso desejável é considerado sobrepeso para os critérios científicos e para a classe socioeconômica mais elevada(16). Nas classes populares, uma pessoa magra é percebida como estando em condição de doença e de falta de adaptação para o trabalho. Nesse sentido, existe a expressão popular freqüentemente difundida "saco vazio não para em pé".

A transgressão e o desejo alimentar estiveram presentes nos depoimentos a seguir.

Todo dia eu como doce (...) quando eu não acho um doce para comer eu como até açúcar (Maria).

Os olhos viu, a boca pediu (Joana).

A ausência de sintomas da doença e os aspectos financeiros para aquisição de alimentos constituem aspectos que dificultam o seguimento do plano alimentar, conforme se observa nas falas.

Eu posso comer o que for, não sinto nada (...) a diabete sobe, não fico sabendo (...) quer dizer que fica por isso mesmo (...) é onde acho assim, não tem problema não (Joana).

Para a gente que a situação financeira não ajuda fica difícil fazer o regime (Maria).

Os resultados da pesquisa mostraram que a questão cultural, o conhecimento, as representações da doença e os valores influem enormemente no comportamento alimentar. A situação financeira também deve ser considerada, mas parece não constituir fator determinante das dificuldades no seguimento dos padrões alimentares adequados, preconizados para o controle do diabetes. O paciente pode ter recursos financeiros escassos e ainda assim selecionar alimentos que contribuem para a melhora de seu controle metabólico. Evidencia-se, dessa forma, que o comportamento alimentar é complexo e precisa ser compreendido por uma conjugação de saberes interdisciplinares, englobando os seus aspectos biológicos, sociais, culturais, ambientais, psicológicos e econômicos. Sobretudo com pessoas que têm pouco acesso às informações, tal como ocorre com as mulheres das camadas populares, focalizadas por este estudo.

Medicação: tomar remédio é cansativo

O paciente pode se cansar de viver na condição de doente crônico, situação confirmada e acentuada pelo uso dos medicamentos. De acordo com os depoimentos apresentados abaixo, tomar a medicação oral pode gerar desconforto na medida em que faz o paciente se lembrar de que tem diabetes. Os sentimentos negativos desencadeados podem levá-lo a interromper, esquecer ou evitar o tratamento medicamentoso.

Hoje não vou tomar não, estou cansada desses remédios (Nair).

Sabendo que precisava tomar, mas não tomava, porque enjoava (Cláudia).

Não tomava todo dia, que eu esquecia (Ana).

Porcaria desse remédio que não vale de nada. (...) um saco tomar remédio (Maria).

Os dados mostraram que há maior dificuldade em aceitar o uso da insulina, que parece estar associado a sentimentos disfóricos. Por outro lado, a insulina foi considerada eficaz, de efeito rápido e importante para evitar as complicações do diabetes.

Eu não queria aceitar, mas de jeito nenhum, mas não teve jeito (Ana).

Enjoei de tomar injeção (...) às vezes enjoa, desacorçoa e às vezes esquece. (...) fiquei uns dois a três dias lá sem tomar insulina, eu não levei, é descuido, né (Lúcia).

Fiquei, nossa, aborrecida, pensei que é muito grave, né (Cláudia).

Se eu não tivesse tomado a insulina eu tinha ficado cega (Ana).

O uso do medicamento pelo diabético é um símbolo ambíguo, que comporta representações sociais ambivalentes. Se, por um lado, provoca lembrança constante no paciente de sua condição de doente, por outro garante a continuidade da vida e o silêncio da doença(13).

A adesão medicamentosa também depende das representações sociais do serviço de saúde de caráter público ou privado onde será adquirido o medicamento.

Eu estava tomando o comprimido branco que eu pegava na farmácia, eu estava tomando direito esse, os que eu pegava aqui no posto, muito tempo, eu não tomava direito (Cláudia).

O relacionamento profissional-paciente parece interferir na ingestão de medicamentos, ou seja, a aceitação e o uso da medicação estão ligados à crença no médico e nos serviços de saúde. A confiança no médico contribui para as representações relacionadas à eficácia dos medicamentos(15). Tem ocorrido descrença da população em relação aos médicos e aos serviços públicos de saúde. Portanto, o não uso diário dos medicamentos distribuídos gratuitamente pode estar relacionado à descrença da população com o público e gratuito.

Processo saúde-doença: saúde é poder trabalhar

As falas abaixo mostraram predomínio de representações de saúde intimamente associadas à capacidade de trabalhar.

Acho que a pessoa ter saúde, a pessoa ter disposição pra qualquer coisa né, ser disposta para tudo, para cuidar da casa, para cuidar de tudo (Joana).

Saúde é muito bom, quando está com saúde, pode trabalhar (...). Tenho que trabalhar, tem que ter saúde, né (Vera).

Para as camadas populares, estar doente significa perder o único recurso de que se dispõe para sobreviver: o próprio corpo. A saúde garante a condição de se manter ativo e, por sua vez, permite satisfazer algumas necessidades básicas como alimentação e moradia.

A maioria das entrevistadas exercia atividades não remuneradas, na própria casa, cumprindo rotina de trabalho exaustiva, reproduzida de domingo a domingo, sem interrupção. Nesse sentido, existe a representação compartilhada pelas mulheres com diabetes: "mulher não pode adoecer", pois, freqüentemente, desempenham papel de esteio das famílias, arcando com sobrecarga de trabalhos domésticos que visam proporcionar o bem-estar dos familiares, muitas vezes, em detrimento de seu próprio bem-estar(18).

Para as mulheres diabéticas, a saúde representa a força de trabalho, já que esse é responsável por garantir a sobrevivência dos seus familiares. O trabalho parece assumir importância vital no contexto da pobreza e da privação de conforto material. Assim, providências relacionadas à saúde podem ser tomadas principalmente quando a doença começa a afetar a capacidade para o trabalho. Isso acontece pela necessidade econômica de não interromper o trabalho e pelas baixas expectativas com relação à assistência à saúde(15). A atenção só é dada ao corpo quando há decréscimo no rendimento da capacidade produtiva, que normalmente se manifesta sob a forma de sintomas, repercutindo em prejuízos na execução das tarefas diárias(16).

Estudo realizado no México mostrou que, nas classes populares, a principal preocupação é satisfazer as necessidades mais imediatas como, por exemplo, ter o que comer(19). Assim, o diabetes passa a ser questão secundária e problema menor frente aos outros que enfrentam no cotidiano da pobreza.

Para as mulheres diabéticas, a dor constituiu um dos sintomas que produz maior desconforto porque prejudica o rendimento no trabalho, o que engendra associação entre dor e doença.

Diabetes, não sente dor, não sente nervoso, não sente nada (Nair).

Muitas vezes estar doente está associado a um processo doloroso, já que a dor desestabiliza o equilíbrio orgânico do indivíduo. Algumas pessoas não se consideram doentes se não sentem dor.

Por outro lado, as mulheres diabéticas referiram ausência de sintomas quando os níveis glicêmicos se encontravam elevados, o que dificulta o seguimento do tratamento estabelecido.

Tava 665, não senti nada. Estava cozinhando, lavando, pajeando, a mesma coisa (Ana).

Às vezes eu não presto atenção, às vezes eu não sinto nada (Lúcia).

É possível realizar normalmente as atividades do dia-a-dia sem perceber que a glicemia está elevada, ou seja, o diabetes é enfermidade que usualmente não dificulta a capacidade de trabalho dos indivíduos(6).

Ter diabetes requer uma atenção e um olhar ao próprio corpo. A atenção que as pessoas atribuem ao corpo é menor nas classes populares, já que utilizam intensamente o corpo no trabalho e não têm "tempo para escutar a si próprias"(7). Os sinais de doença são ignorados porque é necessário acreditar que esteja tudo bem, já que a sobrevivência depende do fato de se estar em condições de trabalhar e auferir seu próprio sustento. Esse processo é mais acentuado nas condições materiais precárias em que vivem as camadas populares, que dependem de sua integridade física para continuarem se inserindo no modo de produção capitalista, como agentes produtivos que sobrevivem da venda de sua força de trabalho(14).

Para as mulheres diabéticas de camadas populares, a condição estar doente só é percebida quando há manifestação corporal que as impede de executar a rotina de trabalho. Assim, para as mulheres diabéticas, a adesão ao tratamento somente se dá a partir de sinais objetivos, o que é extremamente grave, já que a médio e longo prazo provoca comprometimento de vários órgãos complicações crônicas prejudicando sua qualidade de vida. Assim, o processo doloroso e os sintomas das mulheres diabéticas estão vinculados à representação social de que a doença só se manifesta através da capacidade para o trabalho. Se os indivíduos prestam tanto menos atenção à dimensão corpórea, quanto mais intensamente são levados a agir fisicamente, é talvez porque o estabelecimento de uma relação reflexiva com o corpo é pouco compatível com a utilização intensa do mesmo(7).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo das representações do processo saúde-doença em mulheres diabéticas de camadas populares mostrou que o diabetes está relacionado a sentimentos negativos tais como choque, revolta e tristeza; o plano alimentar, de forma paradoxal, aparece vinculado à perda do prazer e a prejuízos à saúde. De forma análoga, as mulheres diabéticas mostraram relação ambivalente com o uso da medicação, percebido como cansativo e, ao mesmo tempo, como recurso que promove bem-estar e melhoria da qualidade de vida. A representação negativa dos serviços de saúde parece interferir no comportamento de adesão ao tratamento medicamentoso.

O núcleo central da representação social de saúde está alicerçado na preservação da capacidade de trabalho que, nas camadas populares, se reveste de significado relacionado à própria sobrevivência e de sua família. Assim, a doença passa a ter um status representacional para essas mulheres apenas quando os sintomas interferem no desempenho das atividades.

Dessa forma, os comportamentos relacionados ao autocuidado estão fortemente impregnados por representações que precisam ser compreendidas por toda a equipe de saúde. Identificar as representações sociais sobre o processo saúde-doença possibilita conhecer o modo como essas mulheres recriam os conhecimentos científicos, difundidos nos meios de comunicação de massa, conjugando-os com o saber popular, o que lhes permite apropriarem-se da experiência do adoecer e do tratamento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008

Histórico

  • Aceito
    26 Nov 2007
  • Recebido
    13 Maio 2007
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