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Sistematização da assistência de enfermagem como fenômeno interativo e multidimensional

Resumos

A presente investigação buscou compreender o significado da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) para os profissionais da equipe multiprofissional à luz das relações, interações e associações do pensamento complexo. Trata-se de estudo qualitativo, tendo como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados (Grounded Theory). Os dados foram obtidos por meio de entrevistas com três grupos amostrais, somando quinze profissionais da equipe multiprofissional da saúde pertencentes a diferentes instituições. A codificação e a análise simultânea dos dados possibilitaram a identificação do tema central: Vislumbrando a sistematização da assistência de enfermagem como fenômeno interacional e multidimensional e o respectivo modelo de referência. A SAE aponta, para além da interatividade e complementaridade profissional, a importância da dialogicidade e circularidade entre a academia, as práticas de saúde e os órgãos legisladores a partir de novos referenciais para a organização das práticas em saúde.

enfermagem; processos de enfermagem; equipe de assistência ao paciente


This study aimed to understand the meaning of Nursing Care Systematization (NCS) for multiprofessional health team professionals based on the relationships, interactions and associations of Complex thought. This qualitative study uses Grounded Theory as a methodological reference framework. Data were obtained through interviews with three sample groups, totaling 15 professionals from different institutions. Simultaneous data codification and analysis identified the central theme: "Glimpsing nursing care systematization as an interactive and multidimensional phenomenon" and the respective reference model. NCS appoints, in addition to interactivity and professional complementarity, the importance of dialog and connection between the academy, health practices and regulatory offices, based on new reference frameworks for the organization of health practices.

nursing; nursing process; patient care team


La presente investigación buscó comprender el significado de la Sistematización de la Asistencia de Enfermería (SAE) para los profesionales del equipo multiprofesional bajo la perspectiva de las relaciones, interacciones y asociaciones del pensamiento complejo. Se trata de un estudio cualitativo, que tiene como marco metodológico la Teoría Fundamentada en los Datos (Grounded Theory). Los datos fueron obtenidos por medio de entrevistas con tres grupos de muestra, sumando quince profesionales del equipo multiprofesional de la salud pertenecientes a diferentes instituciones. La codificación y el análisis simultáneo de los datos posibilitaron la identificación del tema central: Vislumbrando sistematizar la asistencia de enfermería como fenómeno de interacción y multidimensional y el respectivo modelo de referencia. La SAE apunta más allá de la interactividad y complementariedad profesional, la importancia del diálogo y la circulación entre la academia, las prácticas de salud y los órganos legisladores a partir de nuevas referencias para la organización de las prácticas en salud.

enfermería; procesos de enfermería; grupos de atención al paciente


ARTIGO ORIGINAL

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Brasil: Enfermeira, Doutoranda, e-mail: backesdirce@ig.com.br

IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Brasil: Enfermeira, Doutoranda, Professor Assistente, e-mail: magmau@matrix.com.br

IIIUniversidade Federal de Santa Catarina, Brasil: Enfermeira, Doutoranda, e-mail: mda_keyla@yahoo.com

IVUniversidade Federal de Santa Catarina, Brasil: Enfermeira, Doutor em Filosofia da Enfermagem, Professor Titular, e-mail: alacoque@newsite.com.br

RESUMO

A presente investigação buscou compreender o significado da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) para os profissionais da equipe multiprofissional à luz das relações, interações e associações do pensamento complexo. Trata-se de estudo qualitativo, tendo como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados (Grounded Theory). Os dados foram obtidos por meio de entrevistas com três grupos amostrais, somando quinze profissionais da equipe multiprofissional da saúde pertencentes a diferentes instituições. A codificação e a análise simultânea dos dados possibilitaram a identificação do tema central: Vislumbrando a sistematização da assistência de enfermagem como fenômeno interacional e multidimensional e o respectivo modelo de referência. A SAE aponta, para além da interatividade e complementaridade profissional, a importância da dialogicidade e circularidade entre a academia, as práticas de saúde e os órgãos legisladores a partir de novos referenciais para a organização das práticas em saúde.

Descritores: enfermagem; processos de enfermagem; equipe de assistência ao paciente

INTRODUÇÃO

Face ao crescente avanço das ciências e da tecnologia há questionamentos freqüentes como: de que forma e em quê a revolução científica tem contribuído para a melhoria das práticas na área da saúde? Se por um lado a mesma tem trazido grandes benefícios para os mais diferentes campos de atuação, por outro, tem contribuído para a dissociação dos saberes e, conseqüentemente, a fragmentação da assistência.

Os avanços e as descobertas necessitam, sob esse enfoque, ser questionados e confrontados com novas possibilidades epistemológicas, capazes de questionar e reorientar o raciocínio disciplinar numa perspectiva multidimensional(1).

É preciso admitir, portanto, que grandes avanços na área da enfermagem resultaram na implementação do processo de enfermagem, expressão proposta pela primeira vez em 1961, como atividade relacionada à organização e planejamento do cuidado ao ser humano de forma integral(2). Fundamentado na Teoria das Necessidades Humanas Básicas, o processo de enfermagem consistiu em conjunto de etapas sistematizadas e inter-relacionadas, orientadas para a organização e planejamento do cuidado ao ser humano. Nessa abordagem predominou, contudo, a visão do cuidado de enfermagem como um fim em si mesmo, sendo pouco considerada a vivência e expectativas do paciente, bem como as interações com os demais profissionais da saúde(3).

Nesse contexto, o processo de enfermagem emergiu para assegurar e garantir a autonomia profissional através da sistematização das ações de enfermagem(4). A partir dessas concepções inicias, o processo cunhou-se de novos significados e expressões, passando a ser denominado - Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) adaptado, na maioria das realidades, à classificação Norte Americana de Enfermagem(5-6).

Com a aprovação da Lei do Exercício Profissional de Enfermagem, que estabeleceu como atribuição privativa do enfermeiro a prescrição de enfermagem(7), o processo de assistência passou a ser alvo de preocupação para os profissionais brasileiros. Nesse contexto, a SAE tem sido objeto de diversos estudos, tanto na formação como nos serviços de saúde, com a finalidade de qualificar o conhecimento científico dos cuidados em enfermagem, assegurar assistência individualizada e garantir autonomia profissional(8-11).

Autores do pensamento complexo criticam, contudo, os modelos metodológicos seguros e ordenados e que têm como conseqüência a inflexibilidade dos saberes(12-14). Mencionam que os métodos tradicionais inflexíveis e lineares desintegram a complexidade do real, mutilam e tratam de maneira unidimensional o ser humano e os fenômenos sociais.

Torna-se premente, nessa perspectiva, a busca por referenciais mais dinâmicos, cooperacionais e interdisciplinares. Processos capazes de valorizar a multidimensionalidade do ser humano, além de integrar os diferentes saberes disciplinares. Uma assistência, portanto, pautada nos princípios da complexidade, capaz de proporcionar interações mais efetivas entre os profissionais da equipe de saúde bem como condições de participação dos usuários.

O pensamento complexo possibilita o desenvolvimento de olhares mais críticos e criativos sobre a realidade, ou seja, sobre as práticas nas quais se estabelecem as interações e associações de cuidado. De outro modo, o pensamento complexo estimula a desconstrução de padrões culturais objetivos e a construção de estratégias epistemológicas e práticas interdisciplinares reflexivas e criticas(15).

Como integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração de Enfermagem e Saúde (GEPADES), que tem buscado em suas investigações o aprofundamento do pensamento complexo, apresenta-se o seguinte questionamento: qual o significado da SAE para a equipe multiprofissional da saúde?

Na expectativa de explorar novos ângulos de visão por meio da complexidade e da interdisciplinaridade, o presente estudo teve por objetivo compreender o significado da SAE para os profissionais da equipe multiprofissional da saúde à luz do pensamento complexo.

PERCURSO METODOLÓGICO

Dentre as várias metodologias qualitativas, a opção para este estudo foi a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), também chamada Grounded Theory, com o propósito de compreender o significado dos fenômenos a partir dos dados e da ação.

Trata-se de metodologia originalmente desenvolvida por Glaser e Strauss, sociólogos americanos, que intentaram construir uma teoria assentada nos dados a partir da exploração do fenômeno na realidade em que o mesmo se insere, sendo que a construção teórica explica a ação no contexto social(16-17).

A TFD é um método de investigação qualitativa e indutiva que visa gerar novos conhecimentos a partir dos dados investigados, analisados e comparados de maneira sistemática e concomitante. O conhecimento é construído com base na interação social e da compreensão da atividade e da ação humana nos diferentes espaços. Os procedimentos utilizados visam identificar, desenvolver e relacionar os dados simultaneamente, para que haja relevância teórica e metodológica comprovada(18).

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas com duração de 40 minutos em média, em duas instituições de saúde, localizadas na cidade de Florianópolis, SC. As entrevistas responderam às seguintes questões: o que significa para você a Sistematização da Assistência de Enfermagem? Como a sua aplicabilidade vem ocorrendo na prática de saúde?

As entrevistas foram realizadas em três grupos amostrais conforme prevê o método de pesquisa. O primeiro grupo amostral foi composto por dez profissionais, integrantes da equipe multiprofissional da saúde, que atuam na unidade de clínica médica e cirúrgica. Os participantes, selecionados por indicação da chefia de enfermagem imediata, foram consultados acerca da disponibilidade e possibilidade de participarem da pesquisa.

O segundo grupo amostral foi composto pelas diretoras do Serviço de Enfermagem, das referidas instituições de saúde, tendo em vista as hipóteses resultantes do primeiro grupo, que apontaram para olhares divergentes e pouco esclarecedores em relação ao objeto de estudo. A questão norteadora foi a mesma, porém, com nível de aprofundamento maior a fim de compreender a filosofia, os referenciais e a forma como a SAE vem sendo trabalhada nos seus processos relacionais, interativos e associativos na prática dessas instituições.

Um dos participantes do segundo grupo amostral fez referência, com freqüência, ao Conselho Regional de Enfermagem (COREN), órgão fiscalizador da enfermagem, mencionando que esse parece não ter a devida clareza e entendimento do que realmente seja a SAE. Desse modo, considerou-se importante buscar a compreensão do significado da SAE para os profissionais que atuam no COREN. Assim, foram entrevistadas duas profissionais que trabalham diretamente na fiscalização dos serviços de enfermagem, tendo como questão norteadora: o que significa a SAE para você? E, ainda, como a SAE vem sendo aplicada e fiscalizada nas instituições de saúde?

Para a amostragem teórica, procurou-se coletar dados que pudessem subsidiar a construção teórica, de forma que, ao coletar, codificar e analisá-los, processo esse que ocorreu simultaneamente, se alcançasse a saturação teórica, atingida com quinze entrevistas, realizadas no período de novembro de 2006 a maio de 2007.

A cada entrevista, os dados foram transcritos e realizada revisão minuciosa do texto. Na seqüência, deu-se início à identificação das unidades conceituais. Os dados foram codificados linha por linha, comparados entre si e designados em categorias. Na etapa seguinte, as pesquisadoras escolheram uma categoria da codificação aberta - primeira etapa da codificação - e a colocaram como tema central, comparando-a com as demais categorias. Na fase a seguir, também chamada codificação axial, os dados foram agrupados em novas formas, buscando expandir e compactar a teoria emergente a partir das conexões teóricas. Buscou-se, nessa fase, realizar o desvelamento teórico da SAE, a partir do contexto causal, das interveniências, das conseqüências e das estratégias, procurando captar ao máximo as relações e interações subjacentes aos dados. Com a análise e a redução subseqüente das categorias, os conhecimentos teóricos foram delimitados e o tema central foi alcançado(17).

O projeto seguiu as recomendações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética: a autonomia, a não maleficência, a beneficência e a justiça, entre outros, além de assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado(19). Desse modo, a obtenção da anuência dos participantes se deu através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, sob número 0291/06.

Para preservar o anonimato dos atores envolvidos na pesquisa, as falas serão identificadas, no texto, com uma letra e seguidas de um algarismo (P1, P2...).

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Vislumbrando a sistematização da assistência de enfermagem como fenômeno interativo e multidimensional emergiu como tema central no processo de codificação, comparação e redução das categorias. Em outras palavras, esse se constituiu na essência e/ou no âmago do processo de codificação e integração das categorias.

A expressão central Vislumbrando a sistematização da assistência de enfermagem como fenômeno interativo e multidimensional sinaliza a necessidade de revisitar as teorias e práticas de enfermagem a partir de novos referenciais, capazes de compreender a interatividade e multidimensionalidade da assistência à saúde de forma ampla e complementar. Em meio à revolução do conhecimento, a chave para a construção de referenciais capazes de estabelecer vínculo entre as partes e a totalidade necessita pautar-se em processos interativos e práticas interdisciplinares capazes de compreender a sistematização de forma integral e interligada, como já sinalizam algumas experiências: a sistematização é muito ampla. É todo o processo que envolve o cuidado ao cliente, independente da área... é preciso trabalhar a sistematização como um todo, tanto na área da enfermagem, da nutrição, da hotelaria, por que se percebe que tudo está interligado, tudo tem que estar sistematizado. Porque na lavanderia se não existir um processo de sistematização da roupa, conseqüentemente vai atrasar a vinda da roupa para a enfermagem, assim a enfermagem vai atrasar o banho... no centro cirúrgico não vai ter roupa (P11).

A lógica existencial da ciência pós-moderna necessita promover atitudes comunicativas baseadas nas interações e intertextualidades organizadas em torno de projetos locais de conhecimento indiviso e que tenham como horizonte a totalidade e a multidimensionalidade dos fenômenos. Nessa perspectiva, também o processo de enfermagem precisa estar articulado com os diferentes setores, ser total e apreendido a partir das condições da ação humana nos diferentes espaços e campos de atuação(20).

As subcategorias e categorias foram integradas, sucessivamente, ao tema central mediante o desvelamento teórico no contexto social que parte das condições contextuais, das estratégias, das causas, conseqüências e das interveniências, conforme determina o modelo de referência.

Assim, verificando a necessidade de cuidado interativo, complementar e multiprofissional e percebendo a desarticulação entre o saber, o fazer e o legislar constituíram, a partir do desvelamento teórico, as categorias contextuais que deram origem ao tema central: vislumbrando a sistematização da assistência de enfermagem como fenômeno interativo e multidimensional.

A categoria verificando a necessidade de cuidado interativo, complementar e multiprofissional refere-se em maior e/ou menor grau à SAE como disposição relacional que precisa ir além da enfermagem, ou seja, que necessita extrapolar os limites do saber disciplinar e caminhar na perspectiva dialógica e complementar em relação aos outros profissionais da saúde(21). Mostram-se relevantes, sob esse olhar, as subcategorias: identificando a necessidade da complementariedade profissional na assistência do paciente; reconhecendo a SAE como elementar para o trabalho dos outros profissionais; percebendo a necessidade da continuidade nos processos e compreendendo que outros serviços cuidam indiretamente, podendo ser ilustradas com o seguinte comentário: eu gostaria de ressaltar que a gente percebe a necessidade da multidisciplinaridade para bem atender o paciente... eu compreendo também que a gente precisa de uma comunicação bem clara entre os profissionais, para que o paciente se sinta seguro e respeitado... (P3). Essas observações ficaram mais evidentes naqueles profissionais que atuam diretamente na assistência ao paciente, incluindo aí, especialmente, o enfermeiro, que, muitas vezes, atrelado ao fazer individualizado, não percebe a importância da interconectividade das práticas da saúde e, sobretudo, do sistema de cuidados. Os profissionais trazem à tona essas questões quando mencionam: o problema que vejo na enfermagem é que ela olha muito só para o "umbigo" dela, como se as outras áreas não fossem importantes. E todas as áreas têm que estar interligadas. Porque não adianta... A enfermagem não anda se a higienização não faz um serviço bom. A questão quando o paciente sai do hospital, ele não sai falando da enfermagem. Ele vai sair falando mal do hospital. Vai sair falando mal da instituição. Então todo o mundo tem que estar interligado ao processo do cuidado deste cliente para que o efeito seja positivo (P12).

As falas retratam a SAE, traduzida no fazer do enfermeiro, como um modelo cartesiano, denominado também reducionista, que divide o todo em partes e as estuda em separado, de forma isolada. A SAE pode ser enquadrada no paradigma da simplificação, cujo conhecimento é dualista do tipo subjetivo ou objetivo, coletivo ou individual(12).

Como promover, sob esse aspecto, atitudes dialógicas baseadas nas interações disciplinares tendo como objeto a SAE? De que forma a SAE poderia responder à multiplicidade de questões colocadas no campo dos diferentes saberes profissionais? Essas e outras questões necessitam, gradativamente, ser integradas no modo de pensar e fazer enfermagem em tempos pós-modernos.

Já a categoria percebendo a desarticulação entre o saber, o fazer e o legislar se refere ao distanciamento entre a academia, as práticas de saúde e os órgãos de classe, como também se refere à inexistência de espaços concretos para o diálogo e a problematização das questões que dizem respeito à SAE. Ao mesmo tempo em que a categoria mostra a desarticulação do fazer enfermagem, sinaliza, também, em direção a novo paradigma, capaz de valorizar o conhecimento do senso comum, do conhecimento prático, que orienta as ações e confere significados aos diferentes fenômenos interacionais(13).

Os profissionais, principalmente os envolvidos nas funções administrativas e/ou gerenciais do sistema de cuidados, percebem crescente descompasso entre o conhecimento que é produzido na academia e a prática. Acreditam que esse elemento pode estar contribuindo para a desvalorização da SAE e, até mesmo, para o desenvolvimento de processos mais flexíveis e dialógicos na perspectiva da interdisciplinaridade. Eu não sei até que ponto nós temos valorizado a SAE nos currículos... Eu acho que alguns enfermeiros, quando se formam, não acreditam na sistematização da assistência. Há um descompasso entre o que se produz de conhecimento na academia e o que os serviços incorporam dessa produção de conhecimento... não basta simplesmente ter a sistematização da assistência enquanto método, mas precisa estar pautada numa filosofia (P13).

O distanciamento entre a academia e as práticas de saúde, bem como a pouca valorização da SAE por parte de alguns profissionais, também pode estar relacionado às diferentes concepções e significações sobre um mesmo fenômeno, como mostrado pelas falas: para mim não é aquele processo preconizado pelo COREN, que o COREN está trabalhando e exigindo das instituições, mas é a sistematização do cuidado (P12). A universidade ensinando a SAE fora da realidade de aplicação por não conhecer a prática dos enfermeiros e dos serviços de saúde... a prática, por sua vez, está na dependência dos gestores, ainda muito pautada nas questões burocráticas, não se preocupando com os resultados assistenciais, mas sim com os custos... os órgãos legisladores necessitam conhecer a prática dos enfermeiros..., ajudar na construção da SAE para que a mesma atenda a realidade dos serviços de saúde e não somente estabelecer regras a serem cumpridas (P15).

As falas convidam à reflexão e à crítica, no sentido de reduzir as lacunas entre o ser/ fazer por meio das ligações ou interdependências num esforço do pensamento para promover a dialogicidade entre o simples e o complexo(12).

As categorias reconhecendo a SAE como instrumento norteador do cuidado e associando a SAE ao organograma, regimento e fiscalização emergiram das subcategorias: reconhecendo a importância da SAE enquanto instrumento norteador; reconhecendo a importância da SAE para o paciente e equipe; ressaltando a importância das informações no prontuário e reconhecendo a SAE como forma de organização e orientação do cuidado de enfermagem. As mesmas constituem-se em estratégias para melhorar a qualidade, a interatividade e a multidimensionalidade da assistência no contexto da saúde. Além de proporcionar direcionamento para a organização do sistema de cuidados, a SAE proporciona, também, aos profissionais de enfermagem maior autonomia. Significa um método de organização do processo de trabalho no que se relaciona ao registro de informações, bem como no direcionamento dos cuidados a serem prestados ao paciente, proporcionando ao enfermeiro um instrumento de avaliação e direcionamento dos cuidados a serem desenvolvidos pela equipe de enfermagem (P15).

Apesar dos esforços, a SAE, da forma como vem sendo aplicada até hoje, ainda tem como pressuposto o enfermeiro determinando o sistema de cuidados em saúde, a partir da sua visão de mundo, de sociedade e de ser humano. É preciso, todavia, que as escolhas do que fazer e como fazer sejam discutidas e negociadas com a equipe de saúde e com o próprio paciente, como um ser pensante, dotado de consciência e autonomia(3).

As categorias verificando a fragmentação do cuidado em saúde e percebendo a SAE como processo mecanizado constituem-se como determinantes para o desenvolvimento de um pensar e fazer sob a perspectiva da complexidade, ou seja, do cuidado complexo. As falas dos profissionais refletem que a SAE não passa, freqüentemente, de método mecanizado e rotinizado pelos afazeres do dia-a-dia, agravado pelo número insuficiente de profissionais da enfermagem, a divisão de tarefas, informações discordantes, descontinuidades no cuidado e a excessiva burocratização do próprio sistema de saúde vigente. Eu acho que as pessoas agem rotineiramente... Eu penso que alguns têm visto a SAE de uma forma rotineira, aí minha preocupação, inclusive com a informatização: eu aperto o botãozinho, a prescrição já tá pronta. Porque a gente vê que as prescrições se repetem (P2). Então essas são questões que apontam que a sistematização, principalmente a evolução e a prescrição de enfermagem se tornam mecânicas (P12).

A categoria percebendo a necessidade de um instrumento único para todos os profissionais emergiu como conseqüência da excessiva burocratização e fragmentação das práticas relacionadas ao cuidado exercido por vários profissionais. Mostram-se significativas, nesse sentido, as subcategorias: percebendo a necessidade de um canal e/ou instrumento único de informação; adaptando a sistematização para outras áreas por meio dos procedimentos operacionais; salientando a importância dos registros de todos os profissionais no prontuário do paciente.

Percebendo a necessidade de um instrumento único para todos os profissionais mostra, por excelência, a complexidade das práticas em saúde. Nenhum profissional, isoladamente, é capaz de responder pelas diferentes dimensões que envolvem o cuidado ao paciente na totalidade do ser. A sistematização estava muito ligada à enfermagem, como se ela fosse a dona da verdade. Então o que nós fizemos. Os POP - Procedimentos Operacionais, que acabam sendo universais no hospital para todas as áreas que estão relacionadas direta ou indiretamente nesse processo...(P11). É preciso tecer uma teia a partir dos diferentes saberes e caminhar na direção da assistência complexa, flexível e de paradigma de humanização da assistência(3).

A categoria reconhecendo no profissional enfermeiro a ponte de comunicação entre os profissionais apresenta-se como interveniência para o alcance de práticas de cuidado mais interativas e complementares em saúde. O enfermeiro é reconhecido pelos profissionais da saúde como elemento articulador e integrador dos diferentes saberes, principalmente, por estar mais próximo do paciente e detectar com mais facilidade as alterações que se processam ao longo das vinte e quatro horas do dia. É preciso, contudo, que o enfermeiro polarize as interações e valorize as diferentes formas de pensar a fim de compreender as correlações parte/todo e apreender o ser humano como um ser complexo. As subcategorias refletem, em síntese, que o enfermeiro é reconhecido e valorizado pela sua inserção nos diferentes espaços da saúde, mesmo que essas devam estar acompanhadas de processos mais interativos e complementares como refletem as falas: eu acho que é um avanço nosso, no sentido, inclusive, de consolidação do espaço da enfermagem, do trabalho do enfermeiro (P4); a enfermagem por estar sempre próxima do paciente, detecta as suas necessidades e nos informa (P7).

Vislumbrar a SAE como fenômeno amplo e complexo, pressupõe, além da interatividade e complementaridade dos profissionais da saúde, a circularidade entre a academia, as práticas de cuidado e os órgãos legisladores com base em referenciais mais flexíveis, criativos e dinâmicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema central "Vislumbrando a Sistematização da Assistência de Enfermagem como fenômeno interativo e multidimensional" abre novas e complexas possibilidades para os serviços da enfermagem e sistema de cuidados. Esse apresenta o modelo de referência encontrado, constituindo-se das categorias: verificando a necessidade de cuidado interativo, complementar e multiprofissional e percebendo a desarticulação entre o saber, o fazer e o legislar como condições contextuais, reconhecendo a SAE como instrumento norteador do cuidado e associando a SAE ao organograma, regimento e fiscalização como estratégias, verificando a fragmentação do cuidado em saúde e percebendo a SAE como processo mecanizado como possíveis determinantes. Igualmente, percebendo a necessidade de um instrumento único para todos os profissionais emergiu como conseqüência da excessiva burocratização e fragmentação das práticas relacionadas ao cuidado exercido por vários profissionais e reconhecendo no profissional enfermeiro a ponte de comunicação entre os profissionais como interveniência para o alcance de práticas de cuidado interativas e complementares em saúde.

Os resultados apontam para o alcance efetivo da implementação da SAE na medida em que se desenvolverem estratégias dialógicas e reflexivas no coletivo, capazes de problematizar as ações reducionistas de um fazer meramente técnico e burocratizado. Em suma, a SAE se mostra como importante instrumento de informação por favorecer a implantação de padrões e critérios de assistência e estabelecer as prioridades assistenciais.

A SAE mostra-se como importante elemento articulador e mobilizador de processos de melhoria no contexto interdisciplinar da saúde, desde que ampliada e visualizada para além da organização da enfermagem. Assim, muito mais que apontar críticas, os resultados visam problematizar a prática assistencial através de movimento dinâmico de construção e reconstrução de saberes, além de desencadear proposta de mudança de paradigmas para a conquista de um "novo espaço" na área da enfermagem e saúde.

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  • Sistematização da assistência de enfermagem como fenômeno interativo e multidimensional

    Dirce Stein BackesI; Magda Santos KoerichII; Keyla Cristiane do NascimentoIII; Alacoque Lorenzini ErdmannIV
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      02 Set 2008
    • Recebido
      14 Jun 2007
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