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Concepções de saúde sob a ótica de mulheres cuidadoras-leigas, acompanhantes de crianças hospitalizadas

Resumos

Objetiva-se apresentar e discutir uma parte dos achados de investigação realizada em um hospital escola. É um estudo qualitativo descritivo-exploratório e intervencionista junto a nove mulheres cuidadoras-leigas, acompanhantes de crianças com câncer, hospitalizadas. Os dados foram coletados por meio da técnica de grupo focal, organizados pelo software QSR Nvivo e analisados mediante análise temática. Os resultados, provenientes da problematização das concepções de saúde das participantes, apontaram para a necessidade de um (re)pensar os direitos do acompanhante e a instrumentalização dos diversos segmentos sociais, políticos e institucionais no (re)planejamento das ações em saúde, que podem ser desenvolvidas desde a formação e qualificação dos profissionais, nos contextos de atenção à saúde, assim como, também, podem ser foco de discussão em diferentes contextos da sociedade.

cuidadores; educação em saúde; promoção da saúde; acompanhantes de pacientes; políticas públicas de saúde; enfermagem; saúde; criança hospitalizada


This study aims to present and discuss part of the findings of a research carried out at a teaching hospital. It is a qualitative descriptive-exploratory and interventionist study with nine lay caregiver women accompanying hospitalized children with cancer. Data were collected through the focal group technique, organized in the QSR Nvivo software and analyzed through thematic analysis. Results originated during the discussion on participants' health conceptions indicate the need to (re)think the rights of patients' companions and provide instruments to several social, political and institutional stakeholders in order to (re)plan health actions that can be developed during professionals' education and qualification in the context of health care, which can be the focus of discussion within diverse contexts of society.

caregivers; health education; health promotion; patient escort service; health public policy; nursing; health; child hospitalized


El objetivo es presentar y discutir una parte de los resultados de una investigación realizada en un hospital escuela. Se trata de un estudio cualitativo, descriptivo exploratorio e intervencionista realizado en nueve mujeres cuidadoras, no profesionales, acompañantes de niños hospitalizados con cáncer. Los datos fueron recolectados por medio de la técnica de grupo focal, organizados por el software QSR Nvivo y analizados mediante análisis temático. Los resultados provenientes de la problematización de las concepciones de salud de las participantes, apuntaron para la necesidad de repensar los derechos del acompañante y la instrumentalización de los diversos segmentos sociales, políticos e institucionales para replantear las acciones en salud que pueden ser desarrolladas en la formación y calificación de los profesionales, dentro del contexto de la atención a la salud, así como ser foco de discusión en diferentes contextos de la sociedad.

cuidadores; educación en salud; promoción de la salud; acompañantes de pacientes; políticas públicas de salud; enfermería; salud; niño hospitalizado


ARTIGO ORIGINAL

Concepções de saúde sob a ótica de mulheres cuidadoras-leigas, acompanhantes de crianças hospitalizadas

Wiliam WegnerI; Eva Neri Rubim PedroII

IEnfermeiro, Doutorando em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, Professor Titular do Centro Universitário Metodista IPA, Brasil, e-mail: wiliamwegner@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Educação, Professor Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: evaneri@terra.com.br

RESUMO

Objetiva-se apresentar e discutir uma parte dos achados de investigação realizada em um hospital escola. É um estudo qualitativo descritivo-exploratório e intervencionista junto a nove mulheres cuidadoras-leigas, acompanhantes de crianças com câncer, hospitalizadas. Os dados foram coletados por meio da técnica de grupo focal, organizados pelo software QSR Nvivo e analisados mediante análise temática. Os resultados, provenientes da problematização das concepções de saúde das participantes, apontaram para a necessidade de um (re)pensar os direitos do acompanhante e a instrumentalização dos diversos segmentos sociais, políticos e institucionais no (re)planejamento das ações em saúde, que podem ser desenvolvidas desde a formação e qualificação dos profissionais, nos contextos de atenção à saúde, assim como, também, podem ser foco de discussão em diferentes contextos da sociedade.

Descritores: cuidadores; educação em saúde; promoção da saúde; acompanhantes de pacientes; políticas públicas de saúde; enfermagem; saúde; criança hospitalizada

INTRODUÇÃO

Na condição de enfermeiros e professores universitários na área do cuidado da criança e da família, atualmente, tem-se vivenciado algumas situações, diariamente, no contexto em que se desenvolvem as atividades profissionais. Tem-se percebido que mulheres cuidadoras-leigas, acompanhantes de crianças hospitalizadas, aparentemente abandonam, parcial ou completamente, os cuidados com a sua saúde, a fim de se dedicar única e exclusivamente à criança enferma. Os cuidadores-leigos são pessoas que oferecem cuidados ao enfermo, seja no hospital ou na família, mas realizam suas atividades isentos de remuneração ou formação especializada para tal ofício(1). Observa-se dificuldades, apresentadas por essas cuidadoras, visto que o sistema de saúde não prevê assistência aos acompanhantes que participam da ação de cuidado com os seus próximos e que tampouco as políticas de saúde apresentam alguma alternativa para essa parcela. Observa-se com freqüência a rigidez e inflexibilidade em algumas instituições para possibilitar o atendimento ao acompanhante da criança hospitalizada, quando esse apresenta alguns sinais de adoecimento ou busca por informações e encaminhamentos. Frente a isso, o profissional de saúde não apresenta ou mesmo discute estratégias para viabilizar o acesso aos serviços dessas acompanhantes. Por outro lado, parece ser problemático discutir a implantação de programas ao acompanhante se não há políticas públicas de saúde que o incluam no planejamento da atenção. Isso, muitas vezes, faz com que o profissional de saúde se perceba como impotente frente à realidade presenciada no seu cotidiano.

A família é a principal instituição para efetuar o cuidado daquele integrante doente, podendo reduzir os transtornos causados pelas hospitalizações e minimizando os agravos às reinternações freqüentes, como no caso do tratamento da criança com câncer. Por isso, o cuidado familiar é considerado um recurso para o enfermeiro ampliar o seu nível de atenção à saúde(2). Quando se fala em cuidado familiar, a figura mais presente é a mãe, principalmente quando o paciente em questão é uma criança, pois cabe à equipe de saúde dedicar atenção ao cuidado dessa facilitadora do cuidado à criança(3).

Diante do exposto, muitos questionamentos surgiram: quais as concepções de saúde dessas mulheres? Como era sua vida antes da doença da criança? E, agora, o que mudou? Elas se cuidam? Como se cuidam? Quais as necessidades de saúde das mulheres cuidadoras-leigas que permanecem junto da criança doente? O que elas faziam e o que fazem hoje para cuidar de si? Que ações seriam importantes para modificar essa situação? Questiona-se se elas "deixaram de lado" o seu estado de saúde e quais os fatores que influenciam esse estilo de vida. Sabe-se que uma mulher é capaz de abdicar de se cuidar por causa de uma criança doente cuidada por ela, mas será a patologia da criança o único fator associado àquela limitação? Outra questão relaciona-se às opções dessas mulheres-cuidadoras para desenvolverem seu próprio cuidado. Há alternativas para realizá-lo? Isso aponta para um problema amplo, relacionado ao contexto estrutural do sistema de saúde vigente e ao modelo tecnoassistencial. Analisando o papel social da mulher como cuidadora e a saúde como valor relacionado à cultura, busca-se investigar essas questões que se refletem diretamente no contexto social e estrutural da nossa sociedade. Considera-se que a promoção da saúde é alternativa viável para modificar parte desse comportamento e solucionar alguns percalços enfrentados pela equipe de saúde, quando se presta assistência à díade mulher-cuidadora/criança portadora de doença oncológica. A educação em saúde poderia ser a principal estratégia para potencializar o cuidado das participantes.

Uma das estratégias poderia ser o modelo de educação em saúde, denominado radical, o qual mobiliza os indivíduos para adquirir consciência crítica, para rever valores e conceitos, além de propor caminhos alternativos aos cuidadores-leigos e à coletividade por meio da problematização dos rumos possíveis para um viver melhor(1).

Sabe-se que o enfermeiro, ao prestar cuidado à criança doente, deveria estendê-lo ao acompanhante da mesma, co-participante da hospitalização e que, muitas vezes, apresenta comportamentos suscetíveis a potenciais agravantes, semelhantes aos da criança, porém, invisível às políticas de atenção à saúde. Assim sendo, faz-se necessário refletir e englobar o acompanhante quando se pensa em integralidade da assistência em saúde, já que ele faz parte do contexto de vida e saúde do usuário hospitalizado.

Objetiva-se, neste artigo, apresentar e discutir parte de estudo realizado em um hospital escola de grande porte na cidade de Porto Alegre, RS. O projeto de pesquisa aqui mencionado intitula-se: Concepções de saúde de mulheres cuidadoras-leigas: estratégias à sua promoção da saúde, resultado de dissertação de mestrado. Os objetivos do estudo foram: conhecer as concepções de saúde de mulheres cuidadoras-leigas de crianças com câncer; explorar as concepções de cuidado de mulheres cuidadoras-leigas de crianças com câncer, proporcionando reflexão entre a situação concreta e a idealizada; refletir e propor estratégias de educação em saúde a partir dos aspectos identificados na pesquisa.

MÉTODO

Trata-se de estudo com abordagem qualitativa do tipo descritivo-exploratório e intervencionista. O estudo foi desenvolvido na Unidade de Oncologia Pediátrica (UOP - 3º Leste) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), no período entre março e abril de 2007. As participantes foram nove mulheres cuidadoras-leigas com algum grau de parentesco com a criança (oito mães e uma irmã), obedecendo aos seguintes critérios de inclusão: idade superior a 18 anos, conhecimento do diagnóstico há mais de seis meses, acompanhante da criança no momento da seleção das participantes, além da disponibilidade de tempo para participar do estudo.

A coleta das informações ocorreu através da técnica de grupo focal e ficha de identificação. O grupo focal é uma espécie de entrevista em grupo, porém, o seu substrato está nas informações provenientes das discussões e reflexões propostas através da interação grupal sobre um tópico específico proposto pelo pesquisador(4). A ficha de identificação apresenta dados socioeconômicos e de caracterização das participantes e suas respectivas crianças cuidadas. Os objetivos da técnica grupo focal são alcançar um pensamento coletivo dos participantes sobre o tema em debate, conhecer o processo dinâmico de interação entre os participantes, observar o surgimento de contradições e como as mesmas tentam ser resolvidas e reproduzir os processos de interação grupal que acontecem fora dos encontros(5). Houve seis encontros grupais com duração variável, conforme a Agenda dos Grupos Focais, a qual operacionaliza a coleta de dados na técnica grupo focal.

Os encontros aconteceram nas dependências do campo de estudo em sala reservada e apropriada para atividade em grupo com as participantes. No primeiro encontro, o pesquisador reapresentou o projeto de pesquisa e esclareceu as dúvidas sobre a participação, além de discutir um contrato de participação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. A partir do segundo encontro, houve temáticas pré-estabelecidas que orientavam o pesquisador na condução dos encontros. Os temas de cada encontro foram: papel social da mulher como cuidadora na sociedade (grupo gocal 2); saúde como um valor relacionado à cultura (grupo focal 3); saúde das mulheres cuidadoras-leigas: "o antes e o depois da doença da criança" (grupo focal 4); o cuidado de si/autocuidado e as repercussões no atendimento das necessidades básicas das mulheres cuidadoras-leigas (grupo focal 5); questões que interferem no autocuidado das mulheres cuidadoras-leigas e propostas para alcançar o cuidado (grupo focal 6). A coleta de informações acontecia a partir da discussão coletiva entre as participantes sobre o tema proposto sempre após a apresentação de uma atividade propulsora ao debate e reflexão, ou seja, as gravações aconteciam no momento da discussão sobre os tópicos gerados pela atividade propulsora. Entende-se por atividade propulsora qualquer ação que mobilize um grupo a pensar e refletir sobre um assunto pré-estabelecido, o qual, posteriormente, é apresentado e discutido entre as participantes do grupo e pesquisador. As discussões grupais foram gravadas e transcritas para posterior análise. As informações subjetivas e de convivência grupal foram apreendidas por um auxiliar de pesquisa previamente treinado para observar e facilitar o desenvolvimento dos encontros, principalmente controlar o tempo e garantir o alcance dos tópicos pré-estabelecidos para debate.

Para a organização e codificação dos materiais, utilizou-se o software QSR Nvivo na versão 2.0, como ferramenta facilitadora no agrupamento dos dados coletados. O uso de software não tira o rigor da pesquisa qualitativa, mas sim o reforça porque o processo de análise adquire maior detalhamento e clareza com o emprego de softwares(6). A análise dos dados qualitativos aconteceu mediante a análise temática(7), sendo essa fase exclusiva do pesquisador, pois o uso do software serve apenas para consulta a alguma informação que possa gerar dúvidas durante essa fase. As questões bioéticas foram respeitadas e empregadas conforme as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa em Seres Humanos, conforme Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(8). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (sob nº 6-135) e todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido . Para fins de manutenção do anonimato das participantes, adotou-se a letra G acrescida de um algarismo numérico que representa o número do encontro grupal e a letra P para representar a participante.

RESULTADOS

Os dados coletados da ficha de identificação revelaram que a idade das mulheres cuidadoras-leigas variou entre 24 e 42 anos de idade; quanto ao grau de escolaridade, quatro delas apresentavam oito anos de estudo (ensino fundamental completo) e cinco com menos de sete anos de estudo (ensino fundamental incompleto). Cinco eram procedentes da região metropolitana de Porto Alegre, RS, e quatro do interior do Estado. Em relação à ocupação, sete relataram estar desempregadas e duas eram donas de casa; seis convivem e moram com companheiro, e três não possuem companheiro. A freqüência de retorno ao lar é variável, quatro relataram retornar mensalmente à proveniência, três semanalmente, uma quinzenalmente e uma bimestralmente. Quanto ao número de filhos, cinco possuem acima de três filhos e três possuem menos de quatro filhos e uma tem um filho, a que é irmã da criança hospitalizada. A renda familiar mensal ficou entre R$ 100,00 e R$ 800,00.

Foi possível perceber que existe valorização e destaque entre os diferentes papéis assumidos pela mãe e a dedicação exclusiva e única ao filho/irmão. O abandono das atividades que fazem parte da vida das mulheres tem caráter secundário, mas o cuidado não é delegável ou partilhado, conforme as participantes. Essas questões foram problematizadas durante os grupos focais, principalmente a busca por alternativas que permitissem opções para as mulheres cuidadoras-leigas dividirem com a família o cuidado à criança. Conforme o depoimento: tem umas que abandonam o serviço para cuidar, abandonam tudo para estar ali com eles (G1P3).

Uma participante sintetizou a concepção de saúde que viria a ser compartilhada ao longo dos encontros subseqüentes e que obteve aprovação do grupo, sendo o eixo norteador das discussões: a questão da felicidade! Se a gente não é feliz não é saudável, né (G2P6).

Todas comentaram que a preocupação é direcionada à criança, principalmente porque a equipe está especializada no atendimento à criança, o que elas referem como importante e necessário. Algumas ainda acreditam que tais condutas, por parte dos profissionais que ali estão, são de desconsideração, muitas vezes, não as percebendo como seres humanos e cidadãs, conforme o relato: a gente está ali, está cuidando e a gente também é ser humano, a gente também sente dor, a gente também fica doente (G1P6).

As participantes listaram algumas atividades desejadas como estratégias de promoção da saúde, que lhes possibilitariam promover sua saúde e qualidade de vida. Os relatos enunciam algumas atividades: ter um horário prá nós. Poder conversar, dar risada, não ficar falando só da doença! Então, quem sabe alguma coisa, poderia ensinar as outras [...] ter umas pessoas para cuidarem de nós! Pintar o cabelo, fazer as unhas, levantar a nossa auto-estima (G5P3).

DISCUSSÃO

As características destacadas contextualizaram as problemáticas discutidas e confirmadas na literatura, ou seja, todas eram mulheres (mães/irmã), com limitado grau de instrução, desempregadas e com insuficientes recursos financeiros. Também chamou a atenção a etapa de desenvolvimento em que se encontravam, na qual todas poderiam ser classificadas como adultas jovens. Diante dessas informações, contesta-se a vulnerabilidade social a que as mulheres cuidadoras-leigas estão expostas, o que as torna suscetíveis de desestruturação sob diferentes vieses, além de enfrentamento desigual frente às dificuldades crescentes após a hospitalização do filho/irmão. É fundamental lembrar que essas mulheres cuidadoras-leigas são pobres e vivenciam uma doença grave no contexto familiar. Talvez isso reafirme a importância que elas representam nos ambientes de cuidado e justifique o porquê da preocupação com elas a partir da sua cultura, que apontam as mães como principais cuidadoras. Indaga-se as questões relacionadas à cidadania e direitos humanos das pessoas e coletividades e até mesmo sobre as políticas de humanização, advindas de programas ligados ao Estado que promulgam a eqüidade, a integralidade, a ética, entre tantos outros conceitos que deveriam estar presentes no fazer profissional de todos os agentes envolvidos na atenção à saúde da população. Acredita-se que os cuidadores-leigos, acompanhantes, apresentam também demandas e como tal necessitam ser incluídos como usuários do sistema de saúde vigente.

O determinismo social imposto pelo sistema capitalista brasileiro faz transparecer a figura feminina ligada à subalternidade dos processos produtivos e secundário em relação ao masculino, principalmente ligada ao proletariado, no qual a mulher assume o papel de cuidado dos filhos doentes e afazeres domésticos, independente de exercer sua força produtiva remunerada(9). As participantes são mulheres pobres que têm dificuldades para a inserção no mundo do trabalho. Essa realidade é vivenciada em diferentes cenários e contextos. Alguns estudos(10-11), retratando a vida das mães que acompanham e cuidam de crianças com câncer, relatam que elas apresentam mudanças drásticas nas suas vidas, por exemplo, saída do emprego, abandono de todas as atividades de vida diária, dedicação exclusiva ao cuidado do filho, mudanças na dinâmica familiar, entre outros. Isso contribui para a concepção de saúde das mulheres cuidadoras-leigas e, talvez, aproxime o conceito de saúde à noção de felicidade almejada pelas participantes.

Os projetos de felicidade envolvem o corpo/mente e/ou a matéria/espírito do sujeito e valorizam as experiências vividas, sendo próprios e singulares para cada pessoa(12). A felicidade é o alvo das pessoas nos diferentes projetos existenciais, mas seu conceito é singular e variável. A saúde é contemplada nos projetos de felicidade das participantes, ou seja, as experiências vividas e valorizadas positivamente são identificadas como meios para se alcançar a felicidade. Para elas a recuperação da criança e retorno ao cotidiano vivido antes da doença e hospitalização é um ideal a ser perseguido. Julga-se que as concepções de saúde incorporam valores pessoais de cada participante e possibilitam a compreensão de aspectos fundamentais para a integralidade da assistência e (re)formulações conceituais e políticas quanto ao cuidado de quem cuida.

O trabalho dos cuidadores informais passa desapercebido e não é socialmente reconhecido. Essa invisibilidade pode ser fruto do caráter feminino, doméstico, que é atribuído ao cuidado, ou seja, um trabalho de mulher, natural, socialmente esperado(13). Dessa maneira, pode-se compreender que elas necessitam de um olhar mais atento, uma preocupação mais evidente consigo mesmas, mais espaço para diálogos, no sentido de se sentirem envolvidas no processo de tratamento de seus filhos e não meras coadjuvantes. A integralidade da assistência prevê a mudança nessa forma de conceber saúde, ampliando o foco para o contexto e a família. A integralidade pressupõe práticas de inovação em todos os cenários de atenção à saúde, em diferentes espaços e análise do contexto individual e coletivo, pautada nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e voltada às necessidades sociais de saúde das pessoas(14).

A promoção da saúde é um campo teórico-prático-político que parte dos pressupostos do movimento da reforma sanitária e delineia-se como política que deveria percorrer um conjunto de ações e projetos em saúde que apresentam todos os níveis de complexidade da gestão e da atenção do sistema de saúde(15). A educação radical em saúde poderia ser uma estratégia para promover a saúde nas coletividades por meio da reflexão e do desenvolvimento da criticidade das pessoas. O papel do enfermeiro deve estar em consonância com o do cuidador-leigo, tanto no ambiente hospitalar como domiciliar, mesmo que em uma primeira instância esteja concentrado na prevenção de doenças e outros agravantes, para, posteriormente, redirecionar sua ação à emancipação desses cuidadores(1). Estratégias como, por exemplo, medidas direcionadas para sensibilizar os profissionais envolvidos no cuidado à criança a ampliarem seu olhar à mulher cuidadora-leiga, a importância do apoio, solidariedade e empatia para/com a mãe/acompanhante da criança hospitalizada, os grupos de discussão/diálogo para compartilhar experiências, as parcerias com outros segmentos para ensinar trabalhos manuais, entre outras possibilidades de cuidado, são imprescindíveis para as mulheres garantirem seus direitos humanos e cidadania. A formação de grupos de suporte é uma estratégia positiva para os familiares acompanhantes/cuidadores, mas é necessário mobilização político-institucional e dos agentes responsáveis pelo cuidado para o desenvolvimento desse tipo de trabalho.

Sendo assim, as estratégias de promoção da saúde caracterizam a concepção de saúde das mulheres cuidadoras-leigas e facultam aos segmentos sociais, educativos e políticos a reflexão sobre as emergentes transformações imprescindíveis à práxis em saúde e reformulações políticas equânimes.

Reflexões sobre as concepções de saúde: propostas educativas e emancipatórias à promoção da saúde

A literatura apresenta poucas evidencias em relação ao cuidado com acompanhante. Os estudos que discutem a problemática apontam preocupações em subsidiar o acompanhante (mãe) para o cuidado da criança hospitalizada ou estratégias de enfretamento ou adaptação ao modo como os familiares convivem com a doença e o tratamento da criança, já aqueles que discutem o acompanhante de adulto e/ou idosos hospitalizados mostram as dificuldades experienciadas por esses e as iniciativa da equipe de enfermagem em inseri-los no cuidado(16-18). A contribuição do estudo, no entanto, traz um olhar voltado para o contexto de vida da acompanhante no ambiente hospitalar, apontando suas necessidades de vida e saúde. Reforça-se que dar voz ao acompanhante e emancipá-lo, também, como usuário dos serviços de saúde é uma intervenção imediata para os profissionais compreenderem a complexidade da atenção em saúde a partir da integralidade.

A aproximação com as mulheres, acompanhantes de crianças com câncer, sem dúvida mobilizou muitos sentimentos, entre eles a solidariedade, a compaixão, a compreensão e, principalmente, a importância do encontro "com o outro" em situação vulnerável e solitária. O estudo possibilitou o entendimento de algumas questões existentes previamente ao início da pesquisa e confirmou as pressuposições referentes aos cuidadores-leigos no contexto em que se desenvolveram as atividades. A invisibilidade da acompanhante da criança hospitalizada, a inexistência de políticas públicas de saúde, preocupadas com a figura do cuidador-leigo, além da rigidez e normatização institucional, são alguns exemplos de contestações do pesquisador que definiram o objeto de estudo e a clarificação do problema de pesquisa. Por outro lado, o abandono e desinformação aos cuidados de saúde das mulheres cuidadoras-leigas foram possíveis de serem discutidos sob uma nova ótica, a partir das concepções de saúde, bem-estar e qualidade de vida apresentadas pelas participantes.

As participantes reclamaram das restrições impostas pela instituição hospitalar ao acompanhante, falta de opções e despreocupação com a situação delas. Quiçá a integralidade de assistência seja, realmente, uma utopia nesse contexto no qual a exacerbação das relações de poder e dominação prevalecem sobre o ser humano. É possível discutir a integralidade em um ambiente biologicista e normatizador? Quais as estratégias possíveis para a construção coletiva de eqüidade ético-social? Essas perguntas potencializam a reflexão que perdura há anos, ou seja, a transposição do modelo tecnoassistencial flexneriano e, a partir disso, a problematização de uma 'nova saúde pública'.

A educação radical em saúde como mecanismo emancipatório e educativo da população, portanto, pode potencializar a ampliação da promoção da saúde às coletividades vulneráveis e proporcionar a problematização usuário-profissional-governantes das políticas públicas de saúde com vistas à integralidade. Sugere-se a continuidade de pesquisas nesse campo, a fim de, quem sabe, despertar nos concentradores de poder e formadores de opinião novas formas de (re)discutir os interesses a partir das demandas. Por fim, acredita-se que caminhos novos apontam para transformações de práticas e políticas que dependem da vontade de governantes, legisladores, gestores, docentes, profissionais, usuários, enfim, da vontade política de importantes segmentos da sociedade e das pessoas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 2009

Histórico

  • Aceito
    23 Dez 2008
  • Recebido
    09 Out 2007
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