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Análise crítica do discurso: novas possibilidades para a investigação científica no campo da saúde mental

Resumos

Este ensaio teórico procura discutir os aspectos filosóficos, conceituais e metodológicos da Análise Crítica do Discurso como referencial teórico-metodológico para estudos na área da saúde mental. No início há reflexão acerca do discurso psiquiátrico, na história e na atualidade, para introduzir conceitos e pressupostos que orientam a análise dos processos discursivos. Discorre-se sobre as demarcações históricas da Análise Crítica do Discurso como referencial analítico no campo das ciências sociais. Finaliza-se este ensaio apresentando suas aplicações conceituais e metodológicas à investigação no campo da saúde mental.

estudos de linguagem; saúde mental; ciências sociais


The present study aims to get to know the philosophical, conceptual and methodological aspects of Critical Discourse Analysis, as a theoretical-methodological framework for research in the mental health area. Initially, the study presents a reflection on psychiatric discourse in history and at present, with the goal of introducing concepts and presuppositions that would guide the analysis of discursive processes. Discussions are presented about the historical milestones of Critical Discourse Analysis as an analytical framework in social sciences. Finally, the study presents its conceptual and methodological applications to research in the mental health area.

language arts; mental health; social sciences; linguistics


Este ensayo teórico buscó discutir los aspectos filosóficos, conceptuales y metodológicos del Análisis Crítico del Discurso como marco teórico-metodológico para realizar estudios en el área de la salud mental. En el inicio se reflexiona acerca del discurso psiquiátrico, en la historia y en la actualidad, para introducir conceptos e hipótesis que orientan el análisis de los procesos discursivos. Se discurre sobre los hitos históricos del Análisis Crítico del Discurso como marco analítico en el campo de las ciencias sociales. Se finaliza este ensayo presentando sus aplicaciones, conceptuales y metodológicas, en la investigación en el campo de la salud mental.

estudios del lenguaje; salud mental; ciencias sociales; lingüística


ARTIGO TEÓRICO

Análise crítica do discurso: novas possibilidades para a investigação científica no campo da saúde mental

Leandro Barbosa de PinhoI; Luciane Prado KantorskiII; Antonio Miguel Bañon HernándezIII

IProfessor Assistente da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas, Brasil, Aluno de Doutorado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil, e-mail: lbpinho@uol.com.br

IIDoutor em Enfermagem, Professor Adjunto da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas, Brasil, e-mail: kantorski@uol.com.br

IIIDoutor em Filologia, Professor Titular da Universidade de Almería, Espanha, e-mail: amhernan@ual.es

RESUMO

Este ensaio teórico procura discutir os aspectos filosóficos, conceituais e metodológicos da Análise Crítica do Discurso como referencial teórico-metodológico para estudos na área da saúde mental. No início há reflexão acerca do discurso psiquiátrico, na história e na atualidade, para introduzir conceitos e pressupostos que orientam a análise dos processos discursivos. Discorre-se sobre as demarcações históricas da Análise Crítica do Discurso como referencial analítico no campo das ciências sociais. Finaliza-se este ensaio apresentando suas aplicações conceituais e metodológicas à investigação no campo da saúde mental.

Descritores: estudos de linguagem; saúde mental; ciências sociais; lingüística

REFLEXÕES DO DISCURSO PSIQUIÁTRICO NA HISTÓRIA E NA ATUALIDADE

No campo da saúde, a construção de saberes e práticas ainda é uma interrogação a ser desvelada. Difícil iniciar discussão sobre saúde e doença que não leve outras pessoas a se posicionarem também, seja a favor ou contra dada visão sobre o assunto. Isso porque saúde e doença são conceitos produzidos no interior das relações humanas, estimulando o pensamento e a reflexão, mas revelando também a orientação teórica dessas pessoas para se posicionarem e defenderem suas concepções.

Conhecer e produzir conhecimentos sobre a saúde e a doença é fato que não deve ser encarado isoladamente, mesmo quando olhado do ponto de vista do conflito epistemológico proporcionado pelas reflexões. Isso, de certa maneira, parece representar a incursão ideológica dos sujeitos no contexto social. Por isso, o processo saúde-doença assume características não menos complexas e que, de uma forma ou outra, influenciam no modo de ser, na conduta e nas relações humanas. É em meio a essas contradições e conflitos que são constituídas as abstrações, quando se cresce como ser humano e profissional, fundamenta-se discursos, enfim, caminha-se para repensar - e transformar - o mundo e a realidade.

No âmbito acadêmico, o processo saúde-doença sempre esteve nos mais diversos conflitos e discussões teórico-epistemológicas. Isso porque o ato de criar - e nesse caso abstrair - exige construções mais complexas, trazendo tanto rupturas como resistências(1). Exemplos disso aconteceram nas profissões da área como a psicologia, a enfermagem e a medicina. Dentro da psicologia, há desde os paradigmas mais positivistas - que valorizam os achados explicativos e causais, independentes do objeto estudado - até os mais existencialistas - que se preocupam em compreender os significados e percepções sobre determinado assunto para o sujeito e de seu modo de viver no mundo. Na enfermagem, o desenvolvimento de estudos científicos, principalmente na pós-graduação stricto sensu(2), com a utilização de vários paradigmas e dispositivos metodológicos, oriundos de outras áreas do conhecimento, como das ciências sociais, tem permitido expandir o conhecimento da profissão, (re)inventado novas práticas para promover saúde, bem como compreendido os encargos físicos, emocionais e sociais decorrentes do processo de adoecimento.

Foi na medicina, no entanto, que modificações mais substanciais no modo de pensar a saúde e a doença na humanidade se tornaram mais presentes. No caso específico da saúde mental, foi quando a loucura, através de Phillipe Pinel e seus seguidores, foi elevada à condição de doença mental, sendo o hospital psiquiátrico o local de tratamento e reabilitação. A partir desse momento, o discurso psiquiátrico se volta para as confluências de um saber racional, que urge pela explicação dos achados do sujeito e de sua manifestação sintomática, assim como pela organização metodológica desses achados para dar início à classificação dos diversos "gêneros" da doença psiquiátrica(3-5).

A realidade concreta da produção médico-psiquiátrica ao mesmo tempo em que nasce como um "novo saber científico" consolida discurso médico-dominante que defende e difunde a necessidade dessas práticas. Aproveitando-se da hegemonia médica do século XIX, com o nascimento do racionalismo científico cartesiano(6), é que a psiquiatria encontra subterfúgio para se desfazer das contemplações empíricas e incorporar saberes e práticas cientificamente comprovados, como os empreendimentos classificatórios, a instituição de terapêuticas, as altas hospitalares e a realização de novas admissões, feitos esses nas instituições hospitalares psiquiátricas modernas(7).

Como se pode observar, o discurso sobre a doença mental como objeto de intervenção e olhar médico revela-se dominante no contexto do cuidado psiquiátrico, até os dias atuais. No entanto, as críticas difundidas no decorrer do século XX, em especial no período após a Segunda Grande Guerra, tiveram papel decisivo na crítica ao discurso médico-psiquiátrico, pois esse orientava um modo de fazer de cunho observatório, pedagógico, meramente causal e centrado no hospital psiquiátrico como local de "tratamento" e "reabilitação".

É nesse contexto de mudanças que se pode pensar na ampliação do objeto do saber da psiquiatria, o que, conseqüentemente, orientou a construção de novos discursos na área. Não se pretende mais concentrar a atenção no hospital psiquiátrico, pois esse não parece ser o melhor ambiente terapêutico. Procura-se focalizar a produção de vida nos espaços da comunidade, levantando-se a noção de cuidado no território onde vive o sujeito e a inclusão da família nesse tratamento. Numa dimensão mais subjetiva, pretende-se trabalhar com o sujeito sendo esse um ser que está vivenciando situação de sofrimento, carecendo de cuidado, atenção, solidariedade, acolhimento e compreensão.

É possível destacar alguns fatores para o surgimento desse novo discurso, de caráter reformista: o aumento da consciência sanitária mundial, estimulando pacientes, famílias e profissionais a lutarem por melhores condições de vida e tratamento, a aceitação gradativa de que o cuidado pode ser fornecido na comunidade e o fenômeno da desinstitucionalização, que estava ocorrendo em vários países do mundo(8). Nesse sentido, consolidam-se diferentes movimentos destinados a combater os altos níveis de cronificação dos doentes e das desabilidades sociais causadas pela internação hospitalar. Entre eles, destacam-se as comunidades terapêuticas inglesas, a psicoterapia institucional francesa, a psiquiatria comunitária americana e a psiquiatria de setor francesa. Esses dois últimos movimentos influenciaram a constituição da reforma psiquiátrica italiana, posteriormente adotada como modelo teórico para subsidiar outras reformas, entre elas a do Brasil(9).

No caso brasileiro, a reforma psiquiátrica tem possibilitado constituir novos discursos no campo da saúde, revelando faces antes escurecidas pela tradição excludente da psiquiatria tradicional. Hoje, fala-se em Centro de Atenção Psicossocial como serviço substitutivo ao manicômio. Fala-se em louco não como objeto de apreensão, mas como experiência-sofrimento, um ser-participante, complexidade de manifestações. Fala-se em tratamento e cuidado: tratamento como reflexo e cuidado como centralidade. Tratamento como projeto e cuidado como condição.

Como se pôde observar, um discurso não visa apenas expressar determinado ponto de vista de um sujeito ou de um grupo social específico. O discurso está imerso na vida humana como produção da sociedade e como ato da atividade linguageira. Ele instiga a construção de regularidades e irregularidades sócio-históricas. O discurso interpela a formação de sujeitos. O discurso produz saberes, assim como produz e reproduz práticas. É essa realidade que a análise crítica de discurso procura compreender e que nesse ensaio teórico se busca.

A ANÁLISE DO DISCURSO - DEMARCAÇÕES HISTÓRICAS

A análise do discurso constitui-se em disciplina teórica e metodológica que busca, no interior das ciências humanas, desvendar as singularidades lingüísticas do discurso como produção social. Representa possibilidade de olhar os eventos do cotidiano como manifestações semióticas, ou seja, materializadas na atividade da linguagem e dotadas de significados, determinando, de alguma maneira, como, quando e porquê alguns fenômenos da vida assumem regularidades ou descontinuidades(10-11).

Historicamente, duas orientações teórico-filosóficas já estavam preocupadas no ato de situar e delimitar o objeto de estudo da lingüística: o subjetivismo realista e o objetivismo abstrato. A primeira tendência, que tem em Wilhelm Humboldt um de seus maiores precursores, interessa-se pelo "ato da fala", ou seja, pela criação individual como fundamento da língua (no sentido lato de qualquer atividade da linguagem sem exceção). Na segunda tendência, que tem suas origens firmadas no racionalismo cartesiano dos séculos XVII e XVIII, a língua é considerada como atividade centrada em um sistema lingüístico, dotado de estruturas fonéticas, gramaticais e lexicais. Enquanto na primeira orientação a língua pode ser caracterizada como um fluxo de atos de fala, no objetivismo abstrato a língua é um objeto imutável, que domina esse fluxo, algo único, irredutível e individual(12).

A lingüística, no entanto, como é conhecida hoje, é originária dos trabalhos de Ferdinand de Saussure e de sua análise de anagramas, para mostrar como existe um texto latente sob um texto poético agindo na mente do leitor. Por ser a língua organizada internamente, Saussure passa a denominá-la como sistema, pois seus elementos constituintes só adquirem valor quando se relacionam com o todo do qual fazem parte. O sistema saussuriano passa a ser, a posteriori, chamado de estrutura por seus sucessores, dando uma posição estruturalista à ciência que começa a desvendar a língua e suas relações internas/externas com o mundo(13).

A corrente estruturalista da lingüística moderna encontra seu apogeu somente na década de 60, com os trabalhos de Lévi-Strauss e Michel Pêcheux. Lévi-Strauss procurou articular conhecimentos das ciências humanas (antropologia, sociologia, filosofia) para mostrar que a concepção saussuriana da língua como sistema fechado provoca um deslocamento conceitual, pois existem outros sistemas paralelos a ela (míticos, literários) que se relacionam, internamente e externamente, com a própria língua. Por sua vez, Pêcheux, baseado nos estudos de Karl Marx e Louis Althusser, rejeitou completamente a concepção de linguagem como instrumento de comunicação, a qual não passaria de uma ideologia, que distorce a prática política, obscurece essa articulação. Com o objetivo de mostrar essas peculiaridades lingüísticas de determinado evento e os efeitos de sentido produzidos, Pêcheux desenvolveu o primeiro dispositivo experimental de análise do discurso, conhecido como a análise automática do discurso(11,14).

Mais especificamente nas décadas de 60 e 70, novo movimento teórico-filosófico, intitulado giro lingüístico, promoveu certa mudança de paradigma na filosofia e nas várias ciências humanas e sociais, estimulando a se dar mais ênfase aos aspectos interiores/exteriores da linguagem, tanto nos próprios projetos das disciplinas que a estudam quanto na formação dos fenômenos que ela costuma estudar(15-16).

O giro lingüístico se firmou como movimento teórico-filosófico na interface de três estágios de desenvolvimento da filosofia da linguagem. No primeiro, oriundo do pensamento cartesiano que fundou a filosofia da consciência, a linguagem é um veículo de expressão de idéias e nada mais do que isso. No segundo, de orientação neopositivista, a linguagem passa a ser uma representação da realidade, deslocando o estudo das "idéias" para o estudo dos eventos objetivos, ou seja, os discursos, pois são eles que correspondem aos objetos do mundo. Já no terceiro, a linguagem assume sua centralidade na investigação filosófica, quando lingüistas europeus, radicados nos Estados Unidos em função das perseguições nazistas, inauguraram o rompimento epistemológico com a tradição cartesiana, designando a linguagem não apenas como expressão das idéias. Nesse sentido, a linguagem "faz coisas", ela é "formadora" de realidades, podendo seus resultados ser explicitados e analisados à luz do conhecimento científico produzido pelas ciências humanas/sociais(17).

A perspectiva crítica da análise de discurso teve como influência principal a "lingüística crítica", uma corrente teórica de estudos da linguagem em articulação com as ciências sociais críticas, principalmente baseadas nos pressupostos filosóficos da Escola de Frankfurt, destinada a identificar, compreender e relacionar todo o rol de possibilidades de formações lingüísticas que estruturam as relações de poder na sociedade. No entanto, a perspectiva crítica da análise de discurso também nasceu da conexão de uma teoria dialética com um método de análise que permitisse atribuir significados às práticas sociais, sendo o discurso o cenário dessas manifestações(18).

É essa possibilidade de articular vários conhecimentos produzidos pelas ciências sociais que confere um caráter transdisciplinar à análise crítica do discurso. Há diferentes enfoques da análise crítica do discurso. Destaque para lingüistas como Sigfried Jäger, Ron Scollon, Teun Van Dijk e Norman Fairclough. O primeiro trabalha numa linha foucaultiana

No contexto da saúde, o discurso dos trabalhadores diz muito sobre o que pensam, compreendem e agem em relação a diferentes aspectos do processo de adoecimento. Isso quer dizer que seus discursos parecem modificar o meio, mas, também, parecem ser modificados por ele. De certo modo, contexto social e discursos parecem ser "flexíveis" às mudanças do cotidiano e ao conhecimento que os sujeitos produzem de si mesmos em sua relação com esse mundo material. Nesse sentido, a análise crítica do discurso desvela-se como possibilidade teórico-metodológica de explicação dos fenômenos discursivos nas áreas do conhecimento em saúde, levando-se em conta sua complexidade e suas articulações, já que o discurso é formador de práticas, assim como as práticas podem constituir diferentes discursos.

A seguir, outras questões conceituais são introduzidas para delinear a vertente da análise crítica de discurso escolhida para as reflexões contidas neste trabalho.

A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO - APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

Todo discurso possui sentido e significado. De certa forma, na linguagem cotidiana, é muito comum encontrar referências a ele como um tipo de atividade comunicativa. Embora se aplique a uma das formas de utilização da linguagem, ele pode ser difundido no meio social de maneira mais "informal", designando conhecimentos de áreas específicas, como o "discurso neoliberal", o "discurso médico" e o "discurso da mídia televisiva"(20).

Como é possível observar, convive-se com o discurso no cotidiano sem, por vezes, se notar toda sua complexidade. Como dimensão da vida material e da linguagem contemporânea, o discurso representa parte do que se é e se faz, assim como é representado por aquilo que se é e que se faz. Nesse sentido, o discurso repercute na vida humana e na sociedade com diferentes significados, sejam esses necessários para promover esclarecimentos, conhecimentos específicos e reflexões, seja para estimular conflitos, disseminar ideologias e persuadir pessoas ou grupos sociais.

Um exemplo de como os significados do discurso podem servir para diferentes finalidades na sociedade está na constituição do discurso psiquiátrico no século XIX. O discurso psiquiátrico nesse período não se caracterizou por objetos privilegiados, mas pela maneira como esses objetos foram formados pela medicina. Para poder falar de tais objetos, foi necessário elevar o discurso no nível da prática social, pois o discurso só pode "formar" objetos quando esses puderem ser abordados, nomeados, analisados, classificados e explicados. Foi assim que se criou uma unidade dos discursos sobre a loucura. A medicina mental foi capaz de defini-la como dimensão patológica não enquanto saber, mas enquanto prática, ou seja, a loucura como constituinte de mecanismos de repressão, de jurisprudência, de compreensão teológica, de objeto do diagnóstico nosológico e das descrições patológicas. Sendo assim, o discurso não é uma representação de elementos, mas constitui-se em práticas, que formam sistematicamente os objetos de que fala(21).

O discurso pode ser entendido como "atividade lingüística em ação", como momento das práticas sociais, práticas essas que podem ser analisadas em termos de sua estrutura (interna/externa) e de sua ação (repercussão social). Prática social que também é uma "prática de produção", isto é, uma arena onde a vida humana e a habilidade linguageira são produzidas/reproduzidas como acontece na economia, na política, na cultura, nos eventos cotidianos e - aqui - no campo da saúde(18,22).

O discurso, nesse sentido, trata-se não apenas, mas também, de uma representação lingüística e extralingüística dos homens. Lingüística porque se materializa na fala e na escrita humana. Extralingüística porque está imerso nas atividades cotidianas da vida, na materialidade sócio-histórica do sujeito, na constituição da existência social, nos "devires" do mundo. Compreende um vir-a-ser, uma relação, um sentido, um significado, uma reação, com uma (ou várias) expressões. Mas mais do que isso, é ação social, é ação em relação. Discurso como resultado dos processos sociais, como socialização, como construção social, mas também como processo de singularização do ato linguageiro do homem no mundo.

O dispositivo teórico-metodológico de análise crítica do discurso, usado por nós, corresponde ao modelo tridimensional do discurso(22). Nesse modelo, o discurso é analisado a partir de três dimensões essenciais: a análise do discurso como texto, do discurso como prática discursiva e do discurso como prática social. Todas essas dimensões estão relacionadas dialeticamente, fazendo parte da dinâmica analítica do material discursivo como um todo. A figura abaixo sintetiza a configuração tridimensional do discurso para o autor.

Na análise do discurso como texto, pode-se estudar os mecanismos internos de produção do discurso como vocabulário, gramática, semântica, coesão e estrutura textual. No estudo da gramática e do vocabulário, são estudadas as palavras individuais ou expressões articuladas, assim como algumas propriedades da linguagem que transparecem no discurso (neologismos, lexicalizações, metáforas, nominalizações). Na coesão textual, são trabalhados os elementos de ligação entre as frases, incluindo-se as sentenças individuais e a coesão interseqüencial. Na análise semântica, estuda-se elementos de inferência, as implicações, os significados extraídos do interno (e do externo) ao discurso.

Na análise das práticas discursivas, são estudados os mecanismos que promovem a articulação dos diferentes discursos, pois um discurso sempre se interconecta ao que é "interno" e ao que é "externo" a ele. Sendo assim, a prática discursiva medeia o campo da análise do discurso como texto e como prática social. Nessa categoria, são estudadas a intertextualidade e a interdiscursividade. São elas que conectam um texto a outro, possibilitam pensar no potencial dialógico do discurso como materialidade sócio-histórica.

Em relação à pesquisa em saúde mental, através da intertextualidade e da interdiscursividade, é possível extrair conteúdos que versam sobre determinado assunto de interesse, incorporando diferentes ou semelhantes discursos, dialogando, combinando determinados elementos e mostrando como, porquê e quando esses elementos se mostram compatíveis ou incompatíveis no cotidiano investigado.

No caso da análise do discurso como prática social, são estudadas as repercussões desse discurso na materialidade sócio-histórica dos sujeitos, que características produzem continuidades ou descontinuidades e como determinados eventos discursivos se imiscuem na vida humana, imergindo na atividade social e nas interações sociais. Nesse contexto, é feita uma análise sociológica dos eventos discursivos, focalizando os movimentos ideológicos e hegemônicos do discurso, nascidos dos processos sociais e que repercutem tanto nas práticas sociais como nas materialidades discursivas.

No caso da análise discursiva em saúde mental, permite-se pensar em como, quando e porquê discursos produzidos na área influenciam na constituição da sociedade e no modo de como essa se relaciona com o fenômeno da loucura. Também pode-se constatar os embates e deslocamentos que determinados discursos provocam nas relações sociais, de modo a evidenciar fragilidades, potencialidades, limitações e contradições no cotidiano dos sujeitos que fazem, vivem ou pensam a loucura como dimensão da vida humana.

Enfim, as características apontadas pela análise crítica de discurso, embora não sejam totalizadoras de seu conhecimento, parecem revelar as múltiplas possibilidades de interlocução entre diferentes áreas do conhecimento científico. Nesse caso, o modelo tridimensional de discurso(22) configura-se em apenas uma das várias vertentes críticas da análise do discurso. No entanto, mostra-se como campo fecundo para novas descobertas científicas sobre os fenômenos relacionados à vida, gerando conhecimento, saberes, práticas e novas relações no campo da saúde, complexo por natureza e em constante transformação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente ensaio teórico revelou somente alguns dos muitos aspectos que possibilitam articular saberes produzidos por áreas específicas, como a lingüística, no campo da saúde. Destacou algumas aproximações e novas abordagens teórico-metodológicas para a produção do conhecimento sobre determinados aspectos do processo de viver e adoecer e que se materializam nos discursos, considerando-os como atividade fundamental da linguagem e como mecanismo de produção de sentidos no cotidiano.

No caso da saúde mental, a análise crítica do discurso estrutura-se como disciplina destinada à investigação dos fenômenos semióticos que têm a loucura como seu objeto de estudo e como dimensão do processo saúde-doença. Mais especificamente, a análise crítica do discurso pode ajudar a desvendar peculiaridades não somente lingüísticas, mas também sociológicas como personalidades, conflitos, posicionamentos, resistências, enfrentamentos e assimilações. Por sua vez, é o conjunto dessa análise que vai determinar como o movimento ideológico e hegemônico se desloca dialeticamente no campo psiquiátrico, produzindo novos (e velhos) discursos repletos de contradições, potencialidades e limitações.

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    (19).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 2009

    Histórico

    • Aceito
      27 Out 2008
    • Recebido
      12 Out 2007
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