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Escalonamento comparativo de diferentes dores nociceptivas e neuropáticas por meio de métodos psicofísicos variados

Resumos

O objetivo geral foi escalonar os diferentes tipos de dor existentes, comparativamente entre si, sendo investigados por meio de diferentes métodos psicofísicos. Os métodos psicofísicos utilizados foram o método de estimação de magnitudes e o de estimação de categorias. Participaram 30 pacientes ambulatoriais de diferentes clínicas, 30 médicos e 30 enfermeiros. Os resultados mostraram que a dor no câncer, dor por infarto do miocárdio, a dor por cólica renal, dor por queimadura e a dor no parto foram consideradas os tipos de dor de maior intensidade, independente do método psicofísico utilizado ou da amostra estudada. As ordenações de posições da intensidade dos diferentes tipos de dor, comparando os diferentes métodos psicofísicos utilizados, resultaram em níveis de concordância significativa com valores de Kendal próximos de 1,00. Houve divergências na percepção das intensidades de alguns tipos de dor, essas divergências foram observadas principalmente entre profissionais e pacientes.

medição da dor; psicofísica


The general aim of this study was to create a comparative scale of different types of pain through different psychophysical methods and different samples. The psychophysical methods used were magnitude estimation and category estimation. The participants were 30 patients from different outpatient clinics, 30 physicians and 30 nurses. The results were: 1) cancer pain, myocardial infarction pain, renal colic, burn-injury pain, and labor pain were considered more intense, regardless of the psychophysical method used or sample studied; 2) The ranking of different pain intensities, comparing the different psychophysical methods used, resulted in significant agreement levels with Kendal values close to 1.00; 3) There were divergences in the perception of the intensities of some types of pain. These divergences were especially observed between professionals and patients.

pain measurement; psychophysics


El objetivo general fue escalonar los diferentes tipos de dolor existentes, comparándolos entre ellos, siendo investigados por medio de diferentes métodos psicofísicos. Los métodos psicofísicos utilizados fueron el método de estimación de magnitudes y el de estimación de categorías. Participaron 30 pacientes de ambulatorio de diferentes clínicas, 30 médicos y 30 enfermeros. Los resultados mostraron que el dolor causado por: cáncer, infarto del miocardio, cólico renal, quemadura y parto, fueron considerados los tipos de dolor de mayor intensidad, independientemente del método psicofísico utilizado o de la muestra estudiada. El orden de posiciones de intensidad de los diferentes tipos de dolor, comparando los diferentes métodos psicofísicos utilizados, resultaron en niveles de concordancia significativa con valores de Kendal próximos de 1,00. Se encontraron divergencias en la percepción de las intensidades de algunos tipos de dolor, estas divergencias fueron observadas principalmente entre profesionales y pacientes.

dimensión del dolor; psicofísica


ARTIGO ORIGINAL

Escalonamento comparativo de diferentes dores nociceptivas e neuropáticas por meio de métodos psicofísicos variados

Priscilla HortenseI; Fátima Aparecida Emm Faleiros SousaII

IDoutor em Enfermagem, Professor do Centro Universitário de Araraquara, Brasil, e-mail: prihrt@yahoo.com.br

IIProfessor Associado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil, e-mail: faleiros@eerp.usp.br

RESUMO

O objetivo geral foi escalonar os diferentes tipos de dor existentes, comparativamente entre si, sendo investigados por meio de diferentes métodos psicofísicos. Os métodos psicofísicos utilizados foram o método de estimação de magnitudes e o de estimação de categorias. Participaram 30 pacientes ambulatoriais de diferentes clínicas, 30 médicos e 30 enfermeiros. Os resultados mostraram que a dor no câncer, dor por infarto do miocárdio, a dor por cólica renal, dor por queimadura e a dor no parto foram consideradas os tipos de dor de maior intensidade, independente do método psicofísico utilizado ou da amostra estudada. As ordenações de posições da intensidade dos diferentes tipos de dor, comparando os diferentes métodos psicofísicos utilizados, resultaram em níveis de concordância significativa com valores de Kendal próximos de 1,00. Houve divergências na percepção das intensidades de alguns tipos de dor, essas divergências foram observadas principalmente entre profissionais e pacientes.

Descritores: medição da dor; psicofísica

INTRODUÇÃO

O profissional da saúde tem como função primordial o alívio da dor e do sofrimento, para isso, deve livrar-se de crenças, preconceitos, experiências individuais anteriores; deve entender o paciente com dor em sua totalidade, como um ser único e com características próprias.

Não existe apenas a compreensão da dor de alguém, mas a compreensão de alguém, do que a pessoa percebe e sente e de como lida com o que sente(1).

A dor possui dois componentes: "a sensação original e a reação à sensação", ou seja, a resposta à sensação dolorosa depende de uma série de aspectos intrínsecos e extrínsecos ao indivíduo. Desse modo, a mensuração da sensação dolorosa é de caráter complexo(2).

A história da mensuração da dor foi analisada e identificou-se três ramos de atividade, sendo eles: psicofísica, os questionários multidimensionais, que utilizam descritores padronizados, e as escalas de intensidade(3). Os autores desse estudo relataram que tal preocupação histórica vem da necessidade de se estabelecer medidas confiáveis, válidas e sensíveis para se estabelecer a eficácia de analgésicos e outras terapias.

No ramo da psicofísica, alguns estudos sobre a percepção da dor utilizam a indução de dor experimental em diferentes amostras com o intuito de realizar comparações entre as "reações às sensações". Ao induzir a dor experimental, a psicofísica define o limiar e a tolerância à dor, fazendo comparações entre grupos étnicos, entre gêneros, entre diferentes idades e diferentes hábitos de vida, dentre outras variáveis(4-5).

Para o estudo da dor clínica, resultante de estados patológicos, também se pode utilizar a metodologia psicofísica. A lei psicofísica é conhecida como Lei de Stevens ou Lei de Potência. Essa Lei relaciona a magnitude psicológica e a intensidade física do estímulo e pode ser descrita por uma função de potência, a qual relaciona o estímulo e a resposta subjetiva em uma curva(6-7).

Essa função descreve uma situação onde um aumento geométrico na escala de magnitude física corresponde a um aumento geométrico na escala subjetiva ou psicológica, com o expoente refletindo a taxa relativa de aumento ao longo das duas escalas, portanto, reflete o princípio de que razões iguais entre os estímulos produzem razões iguais entre as respostas(7).

No método de estimação de magnitude, elaborado pela Psicofísica Moderna de Stevens, o sujeito seleciona e usa uma amplitude de números que representa sua amplitude subjetiva. Ao contrário, no método de estimação de categorias, o experimentador escolhe arbitrariamente a amplitude de categorias(6-7).

Esse método tem características importantes como estratégia de mensuração para conceitos subjetivos como a dor. Algumas dessas características são: a produção de escalas em nível de razão aumenta a sensibilidade da mensuração; as escalas produzidas e os julgamentos dados são replicáveis, estáveis com registros de teste e reteste e coeficientes de fidedignidade próximos a 0,908; o método é econômico, uma vez que quase não há perda de dados e os dados podem ser coletados individualmente ou em grupo(6-8).

Neste trabalho, será utilizada a metodologia psicofísica com o intuito de se conhecer um pouco mais esse fenômeno subjetivo e perceptual. Os diferentes tipos de dor, comparados entre si e entre diferentes amostras (profissionais e pacientes), foram: lombalgia, cefaleia, dores articulares, dor por queimadura, dor por neuropatia periférica, dor relacionada a movimentos repetitivos, dor na AIDS, dor pós-operatória, dor no câncer, dor no parto, dor por desordem na articulação temporomandibular (ATM), dor por herpes-zóster, neuralgia do trigêmio, fibromialgia, dor por infarto do miocárdio, dor por cólica renal, dor por úlcera gástrica, dor por cólica biliar, dor por cólica menstrual e dor de dente.

OBJETIVO

Escalonar os diferentes tipos de dor existentes, comparativamente entre si, sendo que esses foram investigados por meio de diferentes métodos psicofísicos.

MENSURAÇÃO DA DOR

Comparação entre os métodos psicofísicos escalares de estimação de magnitude e estimação de categorias

A intensidade dos diferentes tipos de dor foi avaliada por meio de dois métodos psicofísicos independentes: estimação de magnitudes e estimação de categorias.

Objetivos

-comparar o escalonamento dos diferentes tipos de dor entre as diferentes amostras;

-comparar a escala derivada de julgamentos ordinais (estimativas de categorias) com a escala derivada dos julgamentos de razão (estimativas de magnitudes) nas três amostras estudadas;

-verificar se as ordenações das intensidades de dor derivadas dos dois métodos são similares entre si nas amostras estudadas.

Método

Participantes: participaram deste estudo 30 pacientes ambulatoriais de diferentes clínicas e 60 profissionais da área da saúde, sendo 30 médicos e 30 enfermeiros, atuantes no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.

Material: caneta e blocos de papel contendo, na primeira página, instruções específicas para cada tipo de método psicofísico e, nas páginas seguintes, uma lista de 20 diferentes tipos de dor e suas respectivas definições.

Procedimento: os métodos psicofísicos utilizados foram estimação de magnitudes e estimação de categorias.

Com o método de estimação de magnitudes, a tarefa dos participantes consistiu em atribuir um número para cada tipo de dor que fosse proporcional à intensidade de dor que esse tipo possui, comparando-o com o estímulo padrão que foi lombalgia, com o valor numérico de 100. Por exemplo, se o participante considerasse que um dado tipo de dor possuísse duas vezes mais intensidade que a lombalgia, esse deveria atribuir a ele um número duas vezes maior, ou seja, 200. Se o participante considerasse que um tipo de dor possuísse metade da intensidade da lombalgia, ele deveria atribuir para esse tipo de dor um número que fosse a metade, ou seja, 50. Os participantes estabeleceram 20 estimativas, sendo uma para cada diferente tipo de dor.

No segundo método, a tarefa dos sujeitos foi assinalar um escore, que variava de 1 a 7, para cada diferente tipo de dor em função da intensidade de dor percebida. O sujeito foi instruído a assinalar, ao tipo de dor com máxima intensidade, o escore máximo de 7 e, ao tipo de dor com mínima intensidade, o escore mínimo de 1. Os outros escores intermediários de 2 a 6, deveriam ser utilizados para indicar graus intermediários de intensidade de dor que os participantes percebessem. Os diferentes tipos de dor foram apresentados em uma ordem aleatória para cada sujeito. Cada sujeito estabeleceu um escore para cada tipo de dor.

Para as estimativas de magnitudes foram calculadas as médias geométricas e os desvios padrão das médias geométricas para cada tipo de dor; para as estimativas de categorias, foram calculadas as médias aritméticas e os desvios padrão das médias aritméticas também para cada tipo de dor. Adicionado a isso, foram calculados o teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis e o teste de Mann-Whitney, para comparação das intensidades de dor, entre as amostras; e, para comparar a concordância entre os métodos utilizados, foi calculado o Kendall (W).

RESULTADOS

Os resultados apresentados nas Tabelas 1 e 2 correspondem ao escalonamento dos diferentes tipos de dor, em ordem crescente de posição, ou seja, do tipo de dor considerado de maior intensidade para o tipo considerado de menor intensidade. O escalonamento está apresentado de acordo com as três amostras estudadas: o grupo de pacientes ambulatoriais, o grupo de médicos e o grupo de enfermeiros. Os escalonamentos foram realizados por meio de dois métodos de medida: estimativas de magnitudes (Tabela 1) e estimativas de categorias (Tabela 2).

Para o grupo de pacientes ambulatoriais, os tipos de dor de maior intensidade, tanto na estimação de magnitudes quanto na estimação de categorias, foram dor no câncer, dor por cólica renal, dor por infarto agudo do miocárdio e dor na AIDS; para o grupo de médicos e enfermeiros, os tipos de dor de maior intensidade foram equivalentes entre si, sendo eles dor no câncer, dor por cólica renal, dor no parto, dor por infarto do miocárdio e dor por queimadura (Tabelas 1 e 2).

Pode-se ressaltar que a dor no câncer foi considerada pelas três amostras como sendo uma das dores mais intensas nos dois métodos utilizados (estimação de magnitudes e estimação de categorias), sendo considerada a mais intensa no grupo de pacientes ambulatoriais e no grupo de enfermeiros e como a segunda dor mais intensa no grupo dos médicos.

Os tipos de dor considerados de menor intensidade para o grupo de pacientes ambulatoriais, tanto na estimação de magnitudes como na estimação de categorias, foram dor por movimentos repetitivos, dor por desordem na ATM, lombalgia e cefaleia; para o grupo de médicos, foram dor por movimentos repetitivos, dores articulares, fibromialgia, lombalgia e dor por cólica menstrual; já para o grupo de enfermeiros, foram dor por cólica menstrual, lombalgia, dor por movimentos repetitivos, dor por desordem na ATM e dor de dente.

O teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis foi executado para cada tipo de dor, comparando as amostras estudadas em cada um dos métodos utilizados. Quando a diferença entre as amostras mostrou-se estatisticamente significativa, com p<0,05, executou-se o teste de Mann-Whitney aos pares, comparando os escores das dores entre as amostras (pacientes-médicos; pacientes-enfermeiros; médicos-enfermeiros). As Tabelas 1 e 2 mostram os valores de p para cada tipo de dor. Em seguida, estão apresentados os tipos de dor que apresentaram escores com diferenças estatisticamente significativas entre as amostras estudadas.

Observa-se que, em ambos os métodos, houve divergências importantes entre as amostras estudadas, destacando as diferenças entre pacientes e profissionais (pacientes-médicos, pacientes-enfermeiros). Esses dados sugerem que profissionais e pacientes percebem esses tipos de dores de maneira diferente. Observa-se que os valores numéricos, em ambos os métodos, são subestimados pela amostra de profissionais em relação à amostra de pacientes, apresentando valores quase sempre menores.

Destaca-se a dor na AIDS, a qual apresentou maior número de divergências entre as amostras, sendo para o método de estimação de magnitudes, diferenças entre pacientes e médicos e pacientes e enfermeiros; e para o método de estimação de categorias, diferenças entre pacientes e médicos, pacientes e enfermeiros e médicos e enfermeiros.

A dor no câncer foi considerada como a dor mais intensa na maioria das amostras estudadas e para os diferentes métodos psicofísicos utilizados. A dor no câncer é um sintoma frequente nos pacientes com essa doença, apresenta-se com intensidade significativa, manifesta-se em mais de um local do corpo, é diária e, quando não é contínua, permanece por várias horas por dia. A dor ocorre em indivíduos com câncer por meio de diversos desconfortos, tais "como lesões cutâneas, odores desagradáveis, anorexia, caquexia, falta de sono, fadiga, ansiedade, depressão, vivência de sentir-se mutilado e desfigurado, luto antecipatório, dificuldades econômicas, angústia espiritual"(9).

Um estudo(10) comparou os diferentes tipos de dor utilizando a Escala Analógica Visual (VAS) para a intensidade da dor (dimensão sensitiva) e para o grau de desprazer (dimensão afetiva) que tais estímulos provocam. Participaram do estudo 87 pacientes com lombalgia, 20 pacientes com dores nos ombros e pescoço, 38 pacientes com disfunção miofascial na região temporomandibular, 19 pacientes com causalgia, 17 pacientes com dor relacionada ao câncer e 23 mulheres em trabalho de parto. Os resultados mostraram que pacientes com dor no câncer e pacientes com dor crônica não oncológica tiveram altas taxas de dor na dimensão afetiva (desprazer que ela provoca), enquanto que pacientes no trabalho de parto e com dor induzida experimentalmente tiveram taxas maiores na dimensão sensitiva. Esses achados sugerem que a percepção da dor está relacionada ao processo de ameaça à vida, o qual aumenta a experiência de dor quando comparado ao processo de não ameaça à vida (trabalho de parto e dor experimental induzida). Também perceberam que, durante o trabalho de parto, as mulheres que focaram sua atenção no nascimento de seu filho tiveram menores índices na dimensão afetiva do que as mulheres que focaram sua atenção simplesmente na dor do parto. Isso sugere que a interpretação do processo causal da dor influencia em sua percepção e que o grau de ameaça à vida e à qualidade de vida aumentam a dimensão afetiva da dor clínica.

No presente estudo, ressalta-se que a dor por infarto do miocárdio se encontra na posição entre as cinco dores de maior intensidade. No entanto, em nenhuma das amostras esse tipo de dor esteve em posição de maior intensidade em relação à dor no câncer. "Quem teve uma trombose coronária há pelo menos tanta probabilidade de morrer de outra em pouco tempo quanto para quem está com câncer há probabilidade de morrer em pouco tempo de câncer"(11). Tal autor ressalta que as metáforas ligadas ao câncer implicam processos ligados a uma sentença de morte, a uma "maldição", uma doença considerada como um "destruidor invencível"(11).

Comparação interessante entre o câncer e as doenças cardiovasculares corrobora os resultados deste trabalho: "de todas as doenças, o câncer é a que possui o maior impacto psicológico. Não somente devido à iminente morte que é o destino de todos nós, mas por sua aproximação progressiva e dolorosa, acrescida sempre da possibilidade de mutilação natural ou pós-terapêutica. O risco de morte súbita de doenças cardiovasculares é menos assustador. É a percepção da incurabilidade do câncer, assim como o temor de que a sua terapêutica seja radical, juntamente com as imagens das alterações corpóreas, causadas pelo tratamento do câncer, que ocasionam terror"(12).

Ainda, observando as Tabelas 1 e 2, pode-se perceber que, para o grupo de pacientes ambulatoriais, a dor na AIDS ocupa a 3ª posição, tanto para estimação de magnitudes como para estimação de categorias. É interessante notar a preocupação com esse tipo de dor demonstrada por essa amostra (pacientes ambulatoriais).

A dor na AIDS não se encontra entre os dez tipos de dor mais intensos para o grupo de médicos em nenhum dos métodos utilizados, e está em 9º lugar somente para estimação de categorias no grupo de enfermeiros. Esse tipo de dor obteve diferenças estatisticamente significativas entre pacientes e médicos e entre pacientes e enfermeiros, no método de estimação de magnitudes; já no método de estimação de categorias, obteve diferenças estatisticamente significativas entre todas as amostras (pacientes-médicos; pacientes-enfermeiros; médicos-enfermeiros), demonstrando as divergências de pensamento entre pacientes e profissionais.

Observou-se que há maior preocupação com a dor no câncer em relação à dor na AIDS, já que o indivíduo com câncer, de acordo com o estigma criado para essas doenças, "não era merecedor" de tal sofrimento, e é, portanto, digno de piedade e de atenção; e o indivíduo com AIDS por ter tido "comportamentos que pudessem levar à doença" não é digno de tais sentimentos.

Em estudo recente(13), encontrou-se que 67% de uma amostra, representativa da população de adultos com HIV, relataram dor durante as quatro semanas anteriores à entrevista, ressaltam que a dor relacionada ao HIV é derivada de efeitos diretos do vírus ao sistema nervoso central e periférico, da supressão imune, dos tratamentos e das várias desordens associadas à presença do vírus.

A dor na AIDS tem outros aspectos importantes para serem lembrados como o preconceito relacionado à síndrome, o desfiguramento, os distúrbios na autoestima, a rejeição dos familiares e amigos, o afastamento das atividades de trabalho e lazer. A dor no câncer e a dor na AIDS possuem aspectos parecidos.

Não se pode esquecer, no entanto, do aspecto social da percepção da dor. Desse modo, pode-se depreender, da análise dos resultados encontrados nesse estudo, que o significado dado ao fenômeno doloroso é também influenciado pela própria sociedade, ou seja, é influenciado pelo estigma criado para a doença que o provoca.

A dor no parto também ocupa as primeiras posições, 3ª e 5ª posição, considerando o grupo de médicos e enfermeiros, respectivamente; no grupo de pacientes ambulatoriais, ocupa a 8ª posição. Um estudo antropológico foi realizado, por meio do método etnográfico, mediante observação participante e entrevista semiestruturada, com o objetivo de examinar o trabalho de parto em maternidade pública de uma capital brasileira, com base na perspectiva de mulheres jovens e adolescentes. Os resultados mostraram que as mulheres descrevem o trabalho de parto dominado pelo medo, solidão e dor. "E isso confirma, aliás, as histórias sobre a dor no parto que as jovens ouviram fora do hospital, seja de seus parentes e amigos, seja da mídia em geral". Ressaltam a ausência do acompanhante durante o trabalho de parto por motivos institucionais, o qual possibilitaria maior segurança e melhor enfrentamento da dor. Os autores consideraram que os significados culturais são inseparáveis das sensações físicas(14).

O estudo supracitado pode ajudar na argumentação dos resultados aqui apontados. Apesar de a dor no parto estar ligada ao nascimento e não a um processo de doença ou de ameaça à vida, foi considerada como uma das dores de maior intensidade. Não se pode esquecer que a abordagem dada ao processo de trabalho de parto no nosso país é precária e gera sentimentos de medo, solidão e abandono, resultando em um momento de maior tensão e com aumento da percepção dolorosa.

Pode-se perceber que as dores consideradas de menor intensidade, tais como dor por movimentos repetitivos, dores articulares e lombalgia, são dores com alta prevalência na população, com maior frequência no dia-a-dia e que causam consequências como incapacidades física e social(15-17). No entanto, não se caracterizam como ameaça à vida e estão relacionadas ao trabalho, ao gênero, à idade, ao estresse, ao sedentarismo, entre outras.

Neste estudo, também foi calculado o coeficiente de concordância de Kendall (W) para as duas escalas juntas. O coeficiente de Kendall assume valores que variam de -1 a 1, sendo que os valores negativos indicam relação inversamente proporcional entre as variáveis, ou seja, à medida que os valores de uma variável aumentam os valores da outra variável diminuem. Valores positivos indicam relação diretamente proporcional entre as variáveis, ou seja, à medida que os valores de uma variável aumentam os valores de uma outra variável também aumentam. Valores próximos a zero, negativos ou positivos, indicam independência entre as variáveis, ou seja, o comportamento de uma variável não influencia a outra.

O coeficiente de concordância de Kendall (W) aplicado às estimativas, comparando os diferentes métodos (estimativas de magnitudes e estimativas de categorias) para os diferentes tipos de dor, mostrou para o grupo de pacientes ambulatoriais de diferentes clínicas W=0,68, para o grupo de médicos W=0,89 e para o grupo de enfermeiros W=0,78. Isso indica que as ordenações de intensidade de dor obtidas das estimativas resultantes dos dois métodos são concordantes para os três grupos e que as estimativas são estatisticamente significantes com p<0,001.

Existem algumas diferenças fundamentais nos escalonamentos obtidos. No método de estimação de magnitudes é possível estabelecer as ordenações, as diferenças e, principalmente, as razões entre os graus de intensidade de dor. No método de estimação de categorias, é possível estabelecer apenas as ordenações e as diferenças entre as intensidades de dor. Já no método de estimação de postos, pode-se obter apenas uma ordenação das intensidades de dor.

Alguns autores(18), em estudo anterior, ressaltaram que, com o uso das escalas de categorias, há dois problemas centrais. Primeiro, como o número de categorias com as quais os estímulos são julgados é fixo, o método introduz sérios vieses. Por isso, as escalas de categorias são especialmente sensíveis aos efeitos de contexto, tais como a amplitude das categorias e a frequência dos estímulos. No caso da mensuração da dor, uma maior fonte de erro tem sido o constrangimento causado ao examinando pela imposição de uma âncora (limite superior) no fim do contínuo de dor, isto é, da escala de mensuração da dor. Segundo, as escalas de categorias não permitem afirmações sobre a razão de diferenças entre as medidas de dor obtidas; é significativo afirmar que uma medida é maior do que uma outra ou subtrair uma da outra, mas não é possível deduzir quantas vezes uma medida é maior ou menor que uma outra.

Nos métodos de estimação de categorias não é possível conhecer as razões entre as intensidades de dor, ou seja, não é possível saber, por exemplo, quanto a dor no câncer é considerada maior ou menor do que a dor por queimadura. Pode-se afirmar, observando a Tabela 1, que a dor por cólica renal (EM=317,31) é considerada pelo grupo de médicos cerca de duas vezes mais intensa do que a dor pós-operatória (EM=159,83); enquanto que a dor no câncer (EM=310,50) é considerada pelo grupo de enfermeiros cerca de duas vezes mais intensa do que a dor por neuropatia periférica (EM=154,24).

Essas comparações também podem ser feitas entre os grupos, por exemplo, pode-se dizer que a dor na AIDS é pouco mais intensa que o dobro (2,5), para pacientes ambulatoriais (EM=303,60) do que para médicos (EM=118,42); e cerca de duas vezes mais intensa para pacientes ambulatoriais (EM=303,60) do que para enfermeiros (EM=133,11); e, ainda, apresenta intensidade de dor aproximada entre enfermeiros (EM=133,11) e médicos (EM=118,42). Várias outras comparações, entre as amostras e interamostras podem ser realizadas, já que a escala de razão proporciona esse tipo de comparação.

CONCLUSÕES

1) A dor no câncer, a dor por infarto do miocárdio, a dor por cólica renal, a dor por queimadura e a dor no parto foram considerados os tipos de dor de maior intensidade, independente do método psicofísico utilizado ou da amostra estudada, além da dor na AIDS, apontada pela amostra de pacientes ambulatoriais, entre as dores de maior intensidade.

2) A dor por desordem na articulação temporomandibular, as dores articulares, a dor por novimentos repetitivos, a dor por cólica menstrual e a lombalgia foram considerados os tipos de dor de menor intensidade, independente do método psicofísico utilizado ou da amostra estudada.

3) As ordenações de posições da intensidade dos diferentes tipos de dor, comparando os diferentes métodos psicofísicos utilizados, resultaram em níveis de concordância significativa.

4) Tal estudo possibilitou aprofundar reflexões a respeito da percepção do fenômeno doloroso e do seu significado para a nossa cultura, comparando profissionais e pacientes, por meio de método válido e confiável. Houve divergências na percepção das intensidades de alguns tipos de dor, e essas divergências foram observadas principalmente entre profissionais e pacientes (médicos-pacientes, enfermeiros-pacientes).

5) Foi traçado um perfil da percepção dos diferentes tipos de dor na nossa sociedade. Os dados alcançados trazem características originais para este estudo, tais características são demonstradas por meio da comparação dos diferentes tipos de dor julgados por diferentes amostras.

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  • Developing a comparative scale of different nociceptive and neuropathic pain through two psychophysical methods

    Priscilla HortenseI; Fátima Aparecida Emm Faleiros SousaII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Aceito
      10 Fev 2009
    • Recebido
      31 Ago 2007
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