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Diagnóstico da situação dos trabalhadores em saúde e o processo de formação no polo regional de educação permanente em saúde

Resumos

A política de educação permanente em saúde vem sendo operacionalizada pelos Polos de Educação Permanente, descentralizadamente. Visando contribuir para a identificação das necessidades regionais do setor, realizou-se levantamento da situação dos trabalhadores da rede pública de saúde de 22 municípios da 10ª Regional de Saúde do Paraná. A pesquisa exploratória, com abordagem qualitativa e quantitativa, utilizou de questionário e análise documental para a coleta de dados. Os resultados revelaram que 35,6% dos trabalhadores não participaram de nenhuma atividade de formação entre 2004 e 2006. Em relação ao vínculo empregatício, 78,7%, possui apenas um vínculo, 50,2% são estatutários e 25,2% são contratados de forma precária, evidenciando a incorporação da lógica da produtividade e da flexibilização no setor. Conclui-se pela necessidade de definição clara do Polo de política para o setor de saúde que envolva os órgãos formadores e de gestão do sistema de saúde em nível regional.

recursos humanos; educação continuada; sistema único de saúde


The policy of professional health education has been put into operation by the centers of professional health education in a decentralized way. Aiming to identify the needs of the health sector at a regional level, a survey was carried out to investigate the situation of workers in the public health network of 22 cities in the 10th Paraná Health District, Brazil. Questionnaires and document analysis were used in this qualitative and quantitative exploratory study. Results revealed that 35.6% of the workers did not participate in any educational activities between 2004 and 2006. In terms of work contracts, 78.7% had only one job, 50.2% were government employees, and 25.2% had unstable contracts, showing that the sector incorporated the productivity and flexibility rationales. The conclusion is that the centers of professional education, jointly with teaching and management institutions, need to clearly define policies for the health sector at a regional level.

human resources; education, continuing; single health system


La política de educación continuada en salud ha sido ejecutada por los Polos de Educación Permanente, de manera descentralizada. Para identificar las necesidades regionales del sector, se llevó a cabo el levantamiento de la situación de los trabajadores de la red pública de salud de 22 municipios perteneciente a la 10ª Región de Salud de Paraná. La investigación exploratoria, con enfoque cualitativo y cuantitativo, se utilizó de cuestionarios y del análisis documental. Los resultados mostraron que 35,6% de los trabajadores no participó en ninguna actividad de formación entre 2004 y 2006. En relación al vínculo de trabajo, 78,7%, tenían solamente un empleo, el 50,2% eran funcionarios concursados y 25,2% tenían contratos precarios, poniendo de relieve la incorporación de la lógica de productividad y flexibilización en el sector. Se concluye por la necesidad de contar con una política para el sector de la salud a nivel regional, con participación de los órganos formadores y de gestión del sistema de salud.

recursos humanos; educación continua; sistema único de salud


ARTIGO ORIGINAL

Diagnóstico da situação dos trabalhadores em saúde e o processo de formação no polo regional de educação permanente em saúde1

Neide Tiemi MurofuseI; Maria Lúcia Frizon RizzottoII; Arlene Benini Fernandes MuzzolonIII; Anair Lazzari NicolaI

Ineidetm@terra.com.branairln@yahoo.com.br

IIDoutor em Saúde Coletiva, Docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Cascavel, Brasil, e-mail: frizon@terra.com.br

IIIMestre em Saúde Coletiva, Coordenadora do Pólo Regional de Educação Permanente da Secretaria Estadual de Saúde do Paraná, Brasil, e-mail: arlenemuzzolon@hotmail.com

RESUMO

A política de educação permanente em saúde vem sendo operacionalizada pelos Polos de Educação Permanente, descentralizadamente. Visando contribuir para a identificação das necessidades regionais do setor, realizou-se levantamento da situação dos trabalhadores da rede pública de saúde de 22 municípios da 10ª Regional de Saúde do Paraná. A pesquisa exploratória, com abordagem qualitativa e quantitativa, utilizou de questionário e análise documental para a coleta de dados. Os resultados revelaram que 35,6% dos trabalhadores não participaram de nenhuma atividade de formação entre 2004 e 2006. Em relação ao vínculo empregatício, 78,7%, possui apenas um vínculo, 50,2% são estatutários e 25,2% são contratados de forma precária, evidenciando a incorporação da lógica da produtividade e da flexibilização no setor. Conclui-se pela necessidade de definição clara do Polo de política para o setor de saúde que envolva os órgãos formadores e de gestão do sistema de saúde em nível regional.

Descritores: recursos humanos; educação continuada; sistema único de saúde

INTRODUÇÃO

A nova dinâmica do mundo da produção tem provocado intensas transformações, especialmente no mundo do trabalho, que, ao incorporar novas formas de gestão e tecnologias, reorganiza o processo produtivo, reduz os postos de trabalho na indústria e contribui para a expansão do setor de serviços(1). No campo da saúde, a partir da década de 1990, esse processo foi favorecido por políticas públicas como o Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS), agentes de combate à dengue, entre outros, contribuindo para a incorporação de trabalhadores dispensados de outros setores, sem qualificação específica. Esse processo, associado à mercantilização do setor, levou ao aumento da rotatividade de pessoal nos serviços de saúde pública, à precarização das relações de trabalho, impedindo a criação de vínculos entre usuários e trabalhadores, o conhecimento da realidade de saúde da comunidade e o próprio trabalho em equipe(2).

Além desses problemas, outros, discutidos desde o início da reforma sanitária, como a necessidade de mudança do modelo assistencial e a formação dos trabalhadores em saúde, indicam a existência de vácuo entre a formação profissional e as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS), na medida em que os cursos de graduação continuam formando profissionais sem considerar o avanço do setor público nesse campo, particularmente na área da Atenção Básica. Nesse aspecto, o SUS andou mais rápido do que as mudanças no ensino(3).

Durante os anos de 1990, vários países da América Latina, inclusive o Brasil, promoveram amplas reformas em seus sistemas de saúde, porém, centradas nos aspectos de financiamento e gestão do sistema com pouca ênfase nos trabalhadores em saúde, o que pode ter contribuído para a persistência de muitos problemas do setor como: a iniquidade do acesso e a permanência do modelo hegemônico de atenção à saúde(4).

É considerando esse contexto que se deve analisar a proposta de educação permanente no campo da saúde no Brasil, estruturada a partir de três setores: público, conveniado e privado; e em diferentes níveis de assistência: primário, secundário, terciário e quaternário, nos quais a organização do processo de trabalho é distinta, com possibilidades de ser mediado por lógicas diferenciadas, tanto quando se discute os níveis de assistência como quando se trata de setor público e privado.

A proposta de educação permanente do Ministério da Saúde (MS), em contraposição ao conceito de educação continuada que trata das atividades de ensino após a formação inicial e tem como finalidade a atualização e aquisição de novas informações, apresenta-se como estratégia de reestruturação e desenvolvimento dos serviços de saúde, a partir da análise de situações concretas, visando mudanças de valores e conceitos e a transformação das práticas dos serviços de saúde. A educação permanente, nessa perspectiva, mantém estreita relação entre o processo formativo e o processo de trabalho em saúde, com o uso de novas metodologias de ensino/aprendizagem, sobretudo a problematização. Pretende-se, ainda, que seja estratégia de transformação da formação/ensino e de gestão do sistema, mudando o processo de atenção à saúde, de formulação de políticas e de controle social no setor da saúde(5).

O Polo Regional de Educação Permanente em Saúde do Oeste do Paraná (PREPS/Oeste), que integra este estudo, é referência para os municípios pertencentes à 10ª Regional de Saúde do Paraná (10ª RS) e foi criado a partir de proposta do MS, que tem buscado instituir políticas de formação e desenvolvimento de trabalhadores em saúde como uma das estratégias para a consolidação do SUS. Essas políticas estão sendo operacionalizadas de forma descentralizada, a partir da criação, em todo o território nacional, de instâncias interinstitucionais e locorregionais, denominadas Polos de Educação Permanente em Saúde, que têm como atribuições: identificar as necessidades do setor, estabelecer negociações interinstitucionais e intersetoriais e formular políticas para a formação e o desenvolvimento dos trabalhadores da saúde, entre outras. O Estado do Paraná foi contemplado com seis polos ampliados nas macrorregionais de saúde e 22 pplos regionais, um em cada regional de saúde(6).

Para o cumprimento das suas funções, definidas pela Política Nacional de Educação Permanente em Saúde(6), o Colegiado de Gestão do PREPS/Oeste entendeu ser necessário realizar diagnóstico inicial do quadro de recursos humanos existentes, tanto do ponto de vista quantitativo quanto de outros aspectos referentes à formação, nos diferentes níveis do ensino formal, e de atualização, qualificação, treinamento e cursos que esses trabalhadores possam ter recebido, após a formação inicial, no período estudado.

Nesse sentido, o presente estudo teve como objetivo realizar levantamento da situação dos profissionais de saúde que atuam na rede de serviços públicos dos municípios de abrangência da 10ª RS e identificar as atividades de formação frequentadas entre 2004 e 2006.

MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de estudo exploratório de abordagem quantitativa e qualitativa, desenvolvido por meio de análise documental dos projetos aprovados e operacionalizados pelo PREPS/Oeste e de pesquisa de campo, sendo que a coleta de dados foi realizada por meio de questionário, contendo perguntas abertas e fechadas, distribuído aos trabalhadores, atuantes no setor público de saúde de 22 municípios

A coleta de dados ocorreu entre outubro de 2006 e março de 2007. Foram distribuídos 4000 questionários, o que corresponde ao total de trabalhadores da área da saúde dos referidos municípios. Desses, obteve-se o retorno de 939 (23,5%), acompanhado do termo de consentimento livre e esclarecido, devidamente assinado. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Parecer 097/2006 do Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Os conteúdos das questões abertas foram agrupados em unidades temáticas(7) e as falas dos sujeitos identificadas por um número de ordem, precedido da letra "Q". As respostas das perguntas fechadas foram sistematizadas em frequência absoluta e percentagem. O agrupamento das ocupações foi feito de acordo com a metodologia(8) que diferencia as ocupações do setor saúde, segundo a sua atividade fim e as classifica em três grupos: nuclear, afins e demais. A análise teve como referência a literatura relativa à temática em estudo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os participantes caracterizaram-se por serem em sua maioria do sexo feminino (78%), com escolaridade de nível médio (55,2%), com jornada de trabalho de 40 horas/semanais (75,9%), com único vínculo empregatício (78,7%) e com cinco anos de tempo de serviço (55,2%). O agrupamento das ocupações dos entrevistados pode ser acompanhado na Tabela 1.

As ocupações do grupo nuclear predominaram em relação às demais, considerando que do total de 50 ocupações encontradas, 20 delas eram do grupo nuclear (68,9%), 25 do grupo das ocupações afins (23,1%) e cinco nas demais (3,1%) (Tabela 1). Dentre as ocupações do grupo nuclear, a equipe de enfermagem (enfermeiro, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem e o agente comunitário de saúde - ACS) foi majoritária (51,5%). Embora o ACS não atenda ao requisito da exigência de formação específica(9), requerido pelo grupo da ocupação nuclear, constitui um novo membro integrado à equipe de saúde, a partir de políticas sociais implementadas pelo MS, na década de 1990. A diversidade na composição da força de trabalho na saúde coloca a necessidade de ações efetivas do governo para regular a atuação ocupacional, visando a qualidade da assistência prestada, não deixando a regulação profissional somente para o mercado(10).

Relacionando-se a escolaridade com a ocupação, verificou-se que a maioria (55,2%) possuía o nível médio, e apenas 1% mestrado, o maior nível de escolaridade registrado. Considerando que o grau de escolaridade exigido é o nível fundamental, chama atenção a quantidade de ACSs portadores de diploma de nível superior (7,4%) e de especialização (2,3%). Esse resultado pode estar relacionado à reduzida oferta de empregos e ao próprio desemprego estrutural que atinge as sociedades capitalistas, sobretudo nos países periféricos. Entre os sujeitos da pesquisa, verificou-se a presença de um secretário de saúde com formação de nível médio e um coordenador com formação somente do ensino fundamental. Entre os profissionais de nível superior vários possuíam mais de uma especialização.

No universo estudado, a estratégia da atenção básica, eixo reorganizador do sistema de saúde, absorve o maior contingente de trabalhadores do setor saúde (Tabela 2). As Secretarias Municipais de Saúde foram as principais empregadoras. Quanto ao local de trabalho, os Centros de Saúde (33,2%), Unidades de Saúde da Família (19,3%) e Unidades Básicas de Saúde (17,5%) concentram a maioria das ocupações (70%), sendo a expressão do processo de reorganização do sistema de saúde que se opera no país.

Embora a maioria dos trabalhadores estivesse contratada como servidor público (50,2%), a presença da precariedade do trabalho ficou evidenciada pela existência de contratos temporários (11,7%), outros tipos (7,6%) e vínculos omitidos (5,9%) (Tabela 3).

A maioria dos respondentes (78,7%) possuía somente um vínculo de trabalho e a minoria (9,2%) dois a quatro vínculos empregatícios. Entre aqueles com duplo vínculo de trabalho encontrava-se membros da equipe de enfermagem (4,2%), o médico (1,5%) e o dentista (0,8%). Na área da saúde, o trabalho em turnos favorece os múltiplos vínculos de trabalho e o multiemprego tornou-se uma forma de compensar as perdas salariais, apesar dos riscos e prejuízo para a assistência e para a saúde do trabalhador(11).

Reproduzindo a tendência mais geral da economia contemporânea, o setor da saúde também incorporou a lógica da flexibilização nas relações de trabalho, reduzindo os contratos formais, eliminando os limites da duração da jornada de trabalho e aumentando o volume de contratos por tempo determinado. Estima-se que haja, no Brasil, um contingente aproximado de 600 mil trabalhadores em saúde sem amparo legal, desprotegidos de direitos trabalhistas, o que tem afetado diretamente a qualidade dos serviços e a regularidade do trabalho dos profissionais(12).

A política de valorização do trabalhador do MS, denominada "DesprecarizaSUS", tem como um de seus desafios ampliar o consenso sobre o conceito de trabalho precário(12). Para os sindicatos dos trabalhadores, o trabalho precário caracteriza-se não apenas como ausência de direitos trabalhistas e previdenciários legais, decorrentes de terceirizações indiscriminadas, de contratos inexistentes ou irregulares via cooperativas e cargos comissionados para prestar assistência direta à população(13), mas também pela ausência de concurso público para cargo permanente ou emprego público no SUS(12).

A redução do corpo de trabalhadores fixos e o aumento do número de profissionais em caráter provisório(13) impactam a qualidade da assistência de saúde prestada, especialmente pela ocupação progressiva desses como prestadores de serviços com participação pontual no desenvolvimento das ações de saúde, fragmentando o cuidado e fragilizando os projetos assentados na integralidade e na equidade. Portanto, a discussão das práticas de formação ligadas a projetos de educação permanente não pode estar desvinculada do contexto em que se configuram as políticas de desenvolvimento da força de trabalho em saúde.

As práticas de formação, visando a transformação da assistência à saúde, têm sido discutidas nas Conferências Nacionais de Saúde e de Recursos Humanos, que constituem marcos de definição de políticas para o setor saúde(9). Desde então, diferentes iniciativas no campo da formação em saúde têm sido desenvolvidas, com destaque especial às ações de educação continuada e às da educação permanente em saúde. Enquanto a primeira pretende contribuir para a reorganização dos serviços de saúde, a segunda visa a transformação no processo de trabalho, dirigido para a melhoria da qualidade dos serviços e para a equidade no cuidado e no acesso aos serviços de saúde.

No processo de socialização nas instituições de saúde, como campo da prática e como instituições culturais e educativas, é que se completa e afirma a formação das diferentes profissões, sendo moldadas as práticas profissionais e as competências necessárias ao mundo do trabalho(6). As principais formas de atualização citadas pelos entrevistados da pesquisa, num conjunto de nove opções, foram: o repasse de informações pela instituição (26,6%), a participação em eventos (18,3%) e os informativos (13,8%). E as menos citadas foram: biblioteca (4,5%) e periódicos (4,9%). Esses resultados confirmam a importância da iniciativa institucional para atualização dos trabalhadores da saúde.

O levantamento das atividades educativas frequentadas revelou que 35,6% dos trabalhadores não participaram de nenhuma atividade no período investigado (2004 a 2006). Dentre eles, o maior contingente concentrou-se nas ocupações do grupo "afins" (46,5%), seguido pelo grupo "nuclear" (31,7%) e "demais" (27,6%). Dentre os que participaram de capacitação e atualização, a maioria (40,6%) tinha frequentado entre um e dois eventos no período de três anos, portanto, um registro de menos de uma participação/ano, índice considerado baixo, devido à velocidade das mudanças ocorridas no campo da saúde.

Em relação às atividades de formação promovidas pelo PREPS/Oeste, no período de 2004 a 2006, foram aprovadas e realizadas 40 atividades entre cursos, eventos, oficinas e treinamentos, sendo 11 em 2004, 17 em 2005 e 12 em 2006. Desse conjunto de atividades, 12 (30%) tiveram como objetivo doenças específicas, nove (22,5%) visavam discutir aspectos do SUS (princípios e diretrizes ou a gestão do sistema) e a educação permanente foi objeto de quatro atividades (10%). As atividades do Polo resultaram de demandas de setores da 10ª RS, com o objetivo de treinar e/ou sensibilizar as equipes municipais para ações específicas. As metodologias de ensino empregadas estiveram vinculadas, principalmente, à estratégia de problematização, com momentos de discussão, estudo em grupo e exposição dialogada.

Participação em atividades de formação constitui-se numa forma de democratização nas relações institucionais e pode ser estratégica para a recomposição das relações entre a população, os trabalhadores de saúde e os gestores. Para tanto, é necessário superar a cultura organizacional, baseada na centralização das decisões e verticalização de programas e projetos, como propõe a política de educação permanente(6). A participação entre os membros dos grupos das ocupações da saúde ocorre de maneira desigual e desproporcional com privilégios para aqueles que ocupam cargos de gestão na estrutura burocrática.

Os que participaram das atividades de formação consideraram que foi uma oportunidade de atualização técnico-científica, tanto no sentido de desenvolvimento de habilidades técnicas quanto para compreender os mecanismos de operacionalização do SUS como, por exemplo, o controle social e o pacto de gestão.

Predomina, na região pesquisada, forte dissociação entre a prática dos trabalhadores da saúde e os princípios do SUS, contribuindo para a manutenção da relação verticalizada e desigual entre os que sabem e os que supostamente nada sabem, como ilustra o depoimento: [...] a maior dificuldade é conseguir convencer a população a seguir recomendações higiênicas de saúde e de tratamento adequado (Q923).

Atividades com foco no relacionamento pessoal, na qualidade do serviço, na motivação e na humanização dos atendimentos estiveram presentes nas atividades de formação dos três grupos de ocupações. Esse foco coaduna com o modelo da gestão flexível o qual, dentre outras características, pressupõe a capacidade relacional do trabalhador(1). Dele se exige escolaridade mínima, como no caso dos ACSs(9), mas, ao mesmo tempo, se requer forte capacidade relacional para o trabalho em equipe e com a população atendida, o que exige capacidade de adequação, resolução de problemas e interpretação das informações recebidas. Portanto, atributos relacionais como cordialidade, bom humor e sorriso são tomados como sinônimos de maior humanidade e ganham primazia em relação ao conhecimento técnico específico da área da saúde.

O discurso, aparentemente humanizador, foi incorporado pelos participantes do estudo: [...] cliente devem ser bem atendidos (Q910). [...] e ao falar com as pessoas, dar orientação, temos que demonstrar amor (Q382). [...] trabalhadores devem sorrir mais. Ser bem-humoradas ajudando umas às outras. Ser mais humanas, ser gentil (Q663).

A ênfase, entretanto, dada ao aspecto relacional permeado pela cordialidade, bom humor e expressões de alegria têm sido insuficiente para superar dificuldades como, por exemplo, as vividas pelos ACSs que incluíram o pouco conhecimento técnico específico, a falta de reconhecimento profissional, tanto pelos membros da equipe de saúde quanto pelos usuários. Além disso, foram citadas outras dificuldades relativas às condições de trabalho como a ausência de estrutura física adequada, o reduzido número de trabalhadores e a insuficiência de materiais e equipamentos.

Verifica-se, portanto, que as dificuldades de diversas ordens que configuram os ambientes de trabalho na saúde não são superadas somente com medidas de ordem relacional. Além de serem insuficientes para efetivar mudanças na prática profissional, trata-se apenas de estratégia refinada que visa obter desempenhos maiores à custa da quebra da solidariedade entre os trabalhadores(1). Outra característica requerida pela gestão flexível é o trabalhador polivalente(1), capaz de atuar em diferentes setores pelo desempenho de [...] diversas funções dentro do seu cargo, evitando-se assim o engessamento do funcionário em uma mesma tarefa (Q328).

Essa fala revela que a incorporação do discurso da multifuncionalidade e da polivalência é própria do atual processo de reprodução do capital. As consequências da "nova" forma de gestão do trabalho têm influenciado o relacionamento entre os membros da equipe, como foi mencionado pelos entrevistados, ao listarem como dificuldades: a competitividade, a desunião, a falta de democracia no ambiente de trabalho, ausência de respeito por parte do superior hierárquico, dos colegas e usuários, e o comportamento pouco ético por parte da chefia em relação à equipe e aos pacientes. São obstáculos para o desenvolvimento do trabalho coletivo e contribuem para os conflitos no ambiente de trabalho, especialmente por se tratar de relações sociais que envolvem diversos trabalhadores, com diferentes intencionalidades, em que cada um atua de forma coerente com sua visão do mundo, do trabalho e das práticas sociais.

A prática, ainda comum nas instituições de saúde, de indicar pessoas para ocuparem cargos, a partir de critérios como a aliança política estabelecida durante o pleito eleitoral, resulta em problemas, pois, muitas vezes, pessoas sem o devido preparo e conhecimento acabam ocupando cargos de decisão. Além das frequentes interrupções de projetos e programas que inviabilizam o planejamento a médio e longo prazo, o cotidiano do trabalhador da saúde é marcado pelas constantes cobranças tanto por parte dos usuários quanto da coordenação, sendo expresso como um de seus desejos que o [...] funcionário público seja visto de uma forma mais humana e não como uma máquina de trabalho (Q758).

Dentre as sugestões para superar as dificuldades vividas, os entrevistados mencionaram a oferta de cursos visando a formação, a motivação do trabalhador e a melhoria do local de trabalho. São falas que evidenciam um ambiente de trabalho pouco condizente com quem deveria promover a saúde.

A penosidade do trabalho realizado pode explicar a reivindicação da redução da jornada semanal de trabalho para uma carga horária de [...] 30 horas, este trabalho é desgastante, estressante e requer concentração (Q326). [...] e disponibilizar um profissional na área de psicologia para atender os funcionários (Q651, Q676, Q831, Q391). [...] visando fazer saúde mental com os funcionários (Q100).

Esses depoimentos mostram o desgaste vivido pelo trabalhador da saúde no processo de trabalho do setor que incorporou a lógica geral do setor produtivo, exigindo a produtividade e da qualidade da assistência, sem a correspondente melhoria das condições de trabalho.

CONCLUSÃO

Este estudo evidenciou que a maioria dos trabalhadores que atua na Atenção Básica frequentou algum tipo de atividade de formação/capacitação no período avaliado. No entanto, os conhecimentos adquiridos nem sempre foram implementados, em razão dos problemas organizacionais e gerenciais existentes. Constatou-se a existência de conflitos entre trabalhadores e usuários e entre os membros da equipe decorrentes de atitudes antiéticas.

A maioria (50,2%) dos trabalhadores era contratada como servidor público, porém, constatou-se a presença de vínculos de trabalho instáveis, o que pode se tornar um complicador para o desenvolvimento dos projetos de educação permanente pela adesão reduzida, alta mobilidade e rotatividade dos trabalhadores em projetos institucionais.

O diagnóstico, cujos principais resultados foram apresentados neste trabalho, deverá orientar o Colegiado de Gestão do PREPS/Oeste da 10ª RS do Paraná na formulação de política de educação permanente em saúde e no estabelecimento de prioridades para sua atuação a curto, médio e longo prazo. Além disso, evidenciará para as instituições formadoras e para os gestores públicos as reais necessidades do sistema de saúde no que se refere à formação e desenvolvimento profissional dos trabalhadores do setor.

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  • *
    que integram a 10ª RS.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      03 Mar 2009
    • Recebido
      20 Dez 2007
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