Acessibilidade / Reportar erro

O sofrimento amenizado com o tempo: a experiência da família no cuidado da criança com anomalia congênita

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender o significado da vivência do processo de cuidar da criança com anomalia congênita sob a perspectiva da família. O Interacionismo Simbólico e a Teoria Fundamentada nos Dados foram utilizados como referenciais teórico e metodológico, respectivamente. A coleta dos dados foi realizada com oito famílias de crianças com anomalia congênita, utilizando-se a entrevista semiestruturada e observação participante. A análise dos dados foi conduzida até à codificação axial. Como resultados, foram evidenciados dois fenômenos na experiência da família ao cuidar da criança com anomalia congênita - deparando-se com uma experiência inicialmente difícil e tendo o sofrimento amenizado com o tempo. Conclui-se que a compreensão dessa vivência oferece subsídios importantes para se repensar a assistência de enfermagem à família no cuidar da criança com anomalia congênita.

enfermagem; anormalidades congênitas; criança; família


This study aimed to understand the experience of caring for a child with a congenital anomaly from the family's perspective. Symbolic Interactionism and Grounded Theory were the theoretical and methodological references, respectively. Data collection was carried out with eight families with children having congenital anomalies through semi-structured interviews and participating observation. Data analysis reached axial coding. Results revealed two phenomena in the experience of families in delivering care to children with congenital anomalies - Facing an initially difficult experience and suffering eases over time. We concluded that the understanding of this experience supports the need to reconsider the nursing care provided to families in the care of children with congenital anomalies.

nursing; congenital abnormalities; child; family


El objetivo de este estudio fue comprender el significado de la vivencia del proceso de cuidar de niños con anomalía congénita bajo la perspectiva de la familia. El Interaccionismo Simbólico y la Teoría Fundamentada en los Datos fueron utilizados como marcos teóricos y metodológicos, respectivamente. La recolección de los datos fue realizada en ocho familias de niños con anomalía congénita, utilizándose la entrevista semiestructurada y la observación participante. El análisis de los datos fue conducido hasta la codificación axial. Como resultados, fueron evidenciados dos fenómenos en la vivencia de la familia al cuidar del niño con anomalía congénita: deparándose con una vivencia inicialmente difícil, y teniendo el sufrimiento amenizado con el tiempo. Se concluye que la comprensión de esa vivencia ofrece subsidios importantes para repensar la asistencia de enfermería a la familia que cuida de niños con anomalía congénita.

enfermería; anomalías congénitas; niño; familia


ARTIGO ORIGINAL

IMestre em Enfermagem, Enfermeira do Hospital São Paulo, Universidade Federal de São Paulo, Brasil, e-mail: crisneonato@hotmail.com

IIDoutor em Enfermagem, Professor Adjunto, Universidade Federal de São Carlos, Brasil, e-mail: gdupas@.ufscar.br

IIIDoutor em Enfermagem, Professor Adjunto, Universidade Federal de São Paulo, Brasil, e-mail: mpettengill@denf.epm.br

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender o significado da vivência do processo de cuidar da criança com anomalia congênita sob a perspectiva da família. O Interacionismo Simbólico e a Teoria Fundamentada nos Dados foram utilizados como referenciais teórico e metodológico, respectivamente. A coleta dos dados foi realizada com oito famílias de crianças com anomalia congênita, utilizando-se a entrevista semiestruturada e observação participante. A análise dos dados foi conduzida até à codificação axial. Como resultados, foram evidenciados dois fenômenos na experiência da família ao cuidar da criança com anomalia congênita - deparando-se com uma experiência inicialmente difícil e tendo o sofrimento amenizado com o tempo. Conclui-se que a compreensão dessa vivência oferece subsídios importantes para se repensar a assistência de enfermagem à família no cuidar da criança com anomalia congênita.

Descritores: enfermagem; anormalidades congênitas; criança; família

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o enfermeiro tem buscado fundamentação teórica para cuidar da criança com anomalia congênita e sua família, realizando pesquisas com o objetivo de compreender o significado dessa experiência e delinear estratégias de cuidado que contemplem sua necessidade(1).

Um dos aspectos estudados está relacionado às dificuldades que essas famílias enfrentam ao cuidar da criança em casa. Autores de um estudo(2) enfatizam que as orientações recebidas pela família antes da alta hospitalar não contemplam suas necessidades, favorecendo o surgimento de dúvidas e/ou dificuldades em relação ao cuidado a ser dispensado à criança. Dessa maneira, recomendam que as orientações sejam realizadas antes e após a alta, para que se transmita segurança e minimize a ansiedade desses pais.

A instituição em que a autoria deste estudo tem desenvolvido as atividades é referência no atendimento de recém-nascidos com anomalia congênita. No entanto, durante o período de internação, observa-se que tem sido pouco estimulada a participação das famílias no cuidado aos seus bebês, em razão da precariedade de infraestrutura do ambiente e de recursos humanos para atender à grande demanda de pacientes.

Nos últimos anos, tem-se percebido um movimento dos profissionais de saúde no sentido de incluir a família no cuidado, acompanhando-a e ajudando-a a estabelecer contato afetivo mais próximo com a criança. Dessa maneira, os profissionais têm começado a estimular os pais a conversar com o bebê, a tocá-lo, a trazer objetos significativos de casa, inclusive realizar alguns cuidados como alimentação e higiene. Mas, quando se trata de uma criança recém-nascida com anomalia congênita, a dificuldade para integrar a família é ainda maior por parte da equipe, pois a própria equipe não sabe como lidar com essa situação.

Quando é feito o diagnóstico de um defeito congênito, os pais atravessam uma sequência bastante previsível de estágios, independentemente da natureza real da condição. O estágio inicial ou impacto é de choque, acompanhado de choro, manifestando sentimentos de desamparo e ânsia por fugir; no segundo estágio, há descrença e negação da situação; no terceiro, há tristeza e ansiedade manifestada por muito choro e raiva; logo vem o equilíbrio, caracterizado pela admissão de que a condição existe e, por último, o estágio de reorganização através de reintegração e reconhecimento familiar desse filho(3).

A preocupação, aqui, foi entender como é a experiência de cuidar de um filho com anomalia congênita para a família atendida nesse serviço, após a alta hospitalar. Quais são as dificuldades e em que medida as orientações recebidas no período de internação cumprem a função de ajudá-la no cuidado domiciliar. Acredita-se que compreender sua experiência de cuidado pode oferecer subsídios para melhor compreender a família que vivencia o cuidar da criança com anomalia congênita e, dessa forma, encontrar melhores possibilidades de assisti-la.

Assim, este estudo teve por objetivo compreender o significado que tem para a família vivenciar o processo de cuidar da criança com anomalia congênita em casa.

METODOLOGIA

O Interacionismo Simbólico valoriza a particularidade de o homem interagir, interpretar, definir e agir no seu cotidiano, de acordo com o significado que ele atribui à situação vivida(4). A utilização dos conceitos e ideias centrais do Interacionismo Simbólico, neste estudo, mostrou-se pertinente, pois a família é composta de atores que desempenham um papel, agem e interagem consigo mesmos, com seu futuro, entre si, com sua comunidade, com os profissionais que os atendem, ao mesmo tempo em que avaliam o passado e planejam o futuro.

A Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) tem suas raízes nas ciências sociais, especialmente na tradição do Interacionismo Simbólico, quando retrata a sociedade, suas ações, quais aspectos necessitam ser investigados e como compreender as situações sociais(5). A aplicação desse referencial metodológico permitiu que os aspectos da vida subjetiva fossem compreendidos pelo pesquisador.

Desenvolvimento da pesquisa

O estudo foi desenvolvido em um Ambulatório de Seguimento para recém-nascidos com anomalia congênita, que estiveram internados na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) de um Hospital Escola.

Para a coleta de dados, foram seguidas as normas para pesquisa envolvendo seres humanos, estabelecidas pela Resolução n.° 196/96 do Conselho Nacional da Saúde. Fizeram parte do estudo oito famílias, totalizando 12 membros familiares, sendo 8 mães e 4 pais.

Como técnicas para coleta dos dados, utilizou-se a observação participante e a entrevista do tipo semiestruturada. O genograma e o ecomapa foram construídos antes das entrevistas com a finalidade de compreender sua história de formação e dinâmica.

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra pelo pesquisador. A questão norteadora foi: como é para você(s) cuidar da criança com anomalia congênita em casa? Durante o transcorrer da entrevista, surgiram outras questões com o intuito de ampliar a verbalização da experiência, além de trazer o ponto de vista dos outros membros constituintes da família como, por exemplo: quais as dificuldades que vocês têm enfrentado para cuidar dessa criança em casa? E as facilidades? Conforme iam respondendo, novas questões surgiam, a fim de melhor elucidar os aspectos da experiência de cuidar.

Os dados foram analisados simultaneamente à coleta, segundo os preceitos da TFD. Essa metodologia, por ser uma forma de manejar os dados, é uma constante construção, que permite ao pesquisador parar em qualquer nível de análise dos dados e reportar o encontrado(5). Assim, embora essa metodologia proponha a elaboração de um modelo teórico, este estudo foi conduzido até à Codificação Axial, que permitiu a identificação de dois fenômenos representativos do significado para a família no cuidar da criança com anomalia congênita.

RESULTADOS

Da análise dos dados emergiram dois fenômenos complementares na experiência da família ao cuidar da criança com anomalia congênita. O primeiro Deparando-se com uma experiência inicialmente difícil, e o segundo Tendo o sofrimento amenizado com o tempo, permeados por um processo evolutivo marcado por períodos de desequilíbrio, estresse físico e emocional, como também por períodos de fortalecimento, enfrentamento e superação. Tais fenômenos emergiram das reconstruções que as famílias participantes realizaram de sua experiência, explicitando fatos significativos ocorridos desde a ocasião do nascimento da criança até os momentos atuais de convivência.

Deparando-se com uma experiência inicialmente difícil, retrata a vivência da família no início da experiência, quando tem que assumir os cuidados da criança com anomalia congênita em casa. Esse fenômeno é revelado pelas categorias que se seguem.

Tendo insegurança para cuidar revela as reações manifestadas pela família no momento em que se depara com o filho necessitando de cuidados especiais em casa. A família manifesta temores e inquietações em relação aos cuidados, referindo falta de prática e de experiência para realizar as ações de cuidar desse filho.

... logo que ele chegou em casa, eu morria de medo... De pegar... Tinha que lavar o machucadinho... Eu tinha medo de machucar ele... Nossa! O maior cuidado... Os pontos que eu tinha que tá lavando... tudo... (F4).

Também a família revela que segue sofrendo no convívio com a situação. Esse sofrimento remete ao fato de perceber a criança e toda a família tendo que aprender a conviver com as limitações impostas pela situação, tais como o medo da criança ter uma recaída e correr risco de vida, da necessidade de reinternação hospitalar.

... eles disseram que qualquer tipo de febre, infecção, que ele pegar, pode prejudicar a válvula. Então eu não quero correr esse risco de internação de novo e tudo... (...)... a minha preocupação maior é que ele não pode pegar infecção, infecção nenhuma... (F8).

Esse sofrimento se manifesta com a família vivenciando uma sobrecarga de demandas no cotidiano, convivendo com a situação do filho que acarreta a intensificação de dificuldades, como a falta de recursos financeiros e de transporte.

... o meu dinheiro para vir aqui está acabando... Agora eu ainda tenho um pouco, mas quando eu não tiver e aí, como é que fica?Quando eu não tiver vou ter que ir atrás, porque eu não tenho carro... preciso de dinheiro para o transporte. Se eu não conseguir terminar o tratamento dele logo, aí sim, eu acho que isto vai ser um obstáculo (F1).

No dia a dia a família depara-se com situações inesperadas, como dúvidas sobre os cuidados especiais exigidos pelas condições de saúde do filho. Essas condições despertam na família sentimentos de desconforto e desapontamento com a qualidade da assistência recebida que a faz ir, aos poucos, se decepcionando com a assistência recebida.

... quando o meu filho saiu da UTI elas falaram pra eu não mexer num negócio que tava nas costinhas dele (placa de hidrocolóide)... Então eu não mexi ali (...). Só que aí, quando eu cheguei no neurocirurgião... ele falou que não... que eu tinha que ter tirado aquilo, quando eu cheguei em casa... que eu tinha que ter passado sabão, que eu tinha que ter lavado pra poder secar, porque daquele jeito nunca que ia secar... (F4).

Consciente de que sua criança é dependente de seus cuidados, a família deixa suas próprias necessidades para um segundo plano e procura esforçar-se para fazer qualquer coisa pela melhora da criança, buscando promover o bem-estar do filho.

... deixo qualquer coisa pra poder cuidar dele, tanto dele (marido) quanto da janta de lá de casa. Não tem obstáculo pra mim. Se precisar, pode ser de noite, de dia... (...) ... eu não tenho carro, mas mesmo assim, isso não me impede de vir aqui. De qualquer maneira eu chego com ele... Eu tento ser sempre uma supermãe... (F1).

Tendo o sofrimento amenizado com o tempo é o segundo fenômeno revelado nessa experiência. Ter vivenciado um início difícil desencadeia na família algumas reações que revelam sua força de vontade para readquirir o controle, no sentido de ter uma vida normal para ela e sua criança. A seguir, são apresentadas as categorias que compõem esse fenômeno.

A família sente-se mais segura para cuidar do filho conforme vai adquirindo experiência para cuidar da criança, em razão do esforço que realiza para obter conhecimento e habilidade ao longo do tempo.

... aí com o tempo você vai pegando um pouco de mais jeito... (...) ... Pra mim já está ficando mais fácil, conforme vai passando o tempo... vai ficando mais fácil... (...) ... Agora eu já tenho mais prática... (F7).

A partir do momento em que vai se sentindo mais segura para cuidar da criança, a família sente-se mais vinculada à criança e manifesta todo o seu amor com maior intensidade, sentindo prazer em cuidar dele em casa, aceitando a sua condição e com isso vai tendo os laços afetivos fortalecidos por meio do cuidado.

... pra mim é prazeroso chegar em casa... ver o meu filho sorrindo... alegre... Pegar ele no colo é prazeroso, beijar o meu filho... tudo... (...) ... pra definir... é um prazer ter o meu filho do jeito que ele me foi dado... (F3).

Sentindo-se confortada revela que a família, ao perceber o apoio da equipe de saúde, da família ampliada, dos amigos e da fé em Deus, ganha mais forças para amenizar o seu sofrimento. Receber ajuda de pessoas que a acolhem com carinho, faz com que se sinta cuidada.

...Tenho o apoio em Deus também... acho que primeiramente em Deus e em segundo minha família mesmo, porque eu acho que tá tudo na mão Dele. Então, se eu quiser um conselho eu tenho que pedir pra Ele... No que a minha família não puder suprir, eu acho que só Deus mesmo... (F5).

Sentindo-se mais capacitada para desenvolver as ações e tendo as dificuldades de cuidado iniciais amenizadas, a família se permite sonhar com um futuro melhor, em que a criança tenha possibilidades para superar as limitações impostas pela sua condição, acreditando em uma nova perspectiva de vida.

... agora, no momento, pra mim, o meu maior orgulho na minha vida eu vou ter quando o meu filho estiver andando, porque eu tenho fé que ele vai andar!... (...) ... o objetivo que eu tenho pro futuro é de ver o meu filho andando. Não importa se vai mancar, se ele não vai mancar... mas ele andando com as próprias perninhas dele... É o que tenho como objetivo, que eu tenho fé que eu vou vencer... (F4).

DISCUSSÃO

Os dados apreendidos neste estudo permitiram o início do processo de compreensão da experiência da família no cuidado da criança com anomalia congênita.

Ao levar o filho recém-nascido com anomalia congênita para casa, a família vivencia preocupações e angústias frente à responsabilidade que passa a assumir pelo seu cuidado. A insegurança está relacionada às dúvidas surgidas durante o ato de cuidar, não somente frente aos cuidados dispensados a uma criança especial, mas também em relação aos cuidados básicos a qualquer bebê.

A experiência da família que possui uma criança dependente de tecnologia(6) revela similaridades com este estudo, com a família assumindo a responsabilidade por executar procedimentos técnicos, muitas vezes complexos, como a administração de dieta por gastrostomia, em casa. A família, por estar familiarizada com os procedimentos realizados no ambiente hospitalar, acredita se sentir segura para realizá-los nesse contexto. No entanto, no início, é comum não se sentir preparada para tamanha responsabilidade.

A transição da família para o cuidado no domicílio é um conceito que vem sendo estudado(7). A alta hospitalar representa para os pais um marco simbólico, o início de nova fase em suas vidas, quando se tornarão responsáveis por um bebê com características especiais. Os pais se sentem despreparados para assumir a responsabilidade de cuidar de seus filhos e incertos de que possam continuar o tratamento iniciado no hospital. Daí a necessidade de preparar os pais, para cuidarem de seu filho em casa.

A família, por meio do cuidado no dia a dia, percebe as limitações que a doença impõe ao filho. Então, sofre com o preconceito vivido ou percebido diante da sociedade, tendo conhecimento de que a anomalia congênita, muitas vezes, compromete a estética, dificultando sua integração social.

A preocupação dos pais sobre a maneira como a criança é percebida pelos outros é uma das categorias reveladas em estudo(8) sobre o significado da experiência de ser mãe de uma criança com malformação congênita. Representa a maneira como a mãe se sente diante da inserção do filho no contexto familiar e social. A evidência da malformação é percebida pela mãe como um risco de rejeição ou discriminação da criança pelas pessoas. Assim, direciona o seu papel de mãe e protetora da criança, quando percebe seu filho sendo rejeitado em função da malformação.

Somado ao sofrimento de conviver com a condição do filho, a família vivencia sobrecarga de demandas no cotidiano, o que a fragiliza. As maiores dificuldades são de ordem financeira, acarretando aflição quando não consegue dispor de recursos adequados para atender as necessidades da criança.

Estudo com famílias de crianças com condição crônica apresenta a questão da falta de recursos financeiros da família para realizar o cuidado, pois os mesmos vão se escasseando com o tempo, e podem causar desestrutura na dinâmica familiar, com o afastamento de membros da família(9).

A mãe, mesmo sem o apoio de outros membros da família, assume o papel de cuidadora, uma vez que representa perante a sociedade o papel central da estrutura familiar. Esse papel é uma expectativa que se tem dela e que ela tem de si mesma e, para cumpri-lo, a mãe acaba criando estratégias, dentre elas a adequação do horário de trabalho às necessidades e atividades dos filhos e à rotina doméstica e, até mesmo, a desistência do emprego em favor das demandas dos filhos(10).

Paralelo às dificuldades vivenciadas no cotidiano, a família decepciona-se com a assistência recebida. Vivencia situações que a fazem se sentir prejudicada pela falta de orientação para realizar os cuidados com seu filho. Evidencia também, em seu cotidiano, que há divergências entre as orientações recebidas pelos profissionais de saúde quanto ao tratamento e cuidados da criança.

Isso pode favorecer a perda da credibilidade no serviço que utiliza, pois não basta disponibilizar os serviços de saúde, o acesso envolve outros aspectos que são significativos à adesão do usuário tais como o tempo de espera para ser atendido, a distância do serviço, a disponibilidade de horários, a formação de vínculo e o sentimento de confiança nos profissionais de saúde(11).

Com o passar do tempo, a família percebe-se mais segura com seu filho e tenta cuidar da mesma maneira que cuidaria de uma criança normal, como forma de enfrentamento e superação da presença da anomalia congênita. No entanto, apesar de cuidar como se fosse de uma criança normal, também compreende e reconhece que deve ser de maneira mais delicada, contemplando suas particularidades e cuidados especiais.

Nas condições crônicas, estudos(6,8,12) realizados revelam que a família busca a normalidade, de modo a integrar sua criança com a doença crônica no cotidiano e na sociedade, a fim de que seja vista e tratada por todos como normal. Os pais sempre reforçam o lado positivo, ressaltando que a criança tem aparência saudável, estimulando sua habilidade e comparando-a de maneira favorável às outras, preocupando-se para que ela não seja rotulada como doente, como diferente, como anormal.

O fato de ir vencendo aos poucos as barreiras relativas ao cuidado da criança gera na família sentimentos de aproximação e satisfação através do ato de cuidar, o que permite que se perceba a criança com mais emoção e menos tensão. A criança é vista como criança em sua essência, apesar da anomalia, o que favorece que a família se apaixone por ela.

O cuidado inclui duas significações básicas internamente ligadas entre si. A primeira, essa atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para com o outro e, a segunda, de preocupação e de inquietação, porque a pessoa que cuida se sente envolvida e afetivamente ligada ao outro(13).

Pesquisa(14) sobre a construção da parentalidade na experiência vivenciada pela mãe de uma criança com câncer revela que ela constrói o seu papel mediante as demandas da doença e, assim, torna-se mãe de uma criança com câncer de forma a dar significado à sua experiência e desenvolve o papel que considera como seu, em direção ao seu filho. Um papel no qual o tempo se faz presente nas suas ações.

Neste estudo, percebeu-se o quanto os pais empreendem esforços, ao longo do tempo, para construírem a parentalidade. À medida que buscam habilidades para cuidar de sua criança, despertam para as emoções envolvidas nesse processo, o que caracteriza o cuidar como algo prazeroso, uma vez que conseguem vincular-se à sua criança experimentando sentimentos como amor, orgulho e satisfação.

O fato de a família se fortalecer com a ajuda advinda dos profissionais de saúde, dos familiares, amigos e também da fé traz-lhe conforto. Esse apoio leva-a a conseguir se vincular cada vez mais à criança, reforçando a superação das dificuldades e do sofrimento provocados pela condição de saúde do filho.

Estudo(15) sobre o significado da experiência de interação da família no contexto de cuidado da saúde da criança revela que a interação com os profissionais de saúde e outras famílias que vivenciam situações semelhantes às suas vivências é aspecto importante da experiência da família. Ela se sente acolhida ao partilhar sua vivência com outras famílias, pois a troca de amizade e afeto, ao receber atenção e gestos de carinho, são elementos interacionais importantes para a família nesse momento.

Outro aspecto que confere conforto à família está relacionado à fé. A crença em Deus é fonte de energia para o fortalecimento da família na busca do enfrentamento da situação de cuidar de uma criança com anomalia congênita.

No Brasil, estudos têm contemplado a espiritualidade como sinônimo de esperança e vida, de coragem para lutar frente às adversidades e minimizar os sofrimentos(16-17). Pesquisa sobre a experiência do pai ao ter um filho nascido com anomalia congênita revela que ele entrega a cura do filho e o próprio sofrimento a Deus(18). É na proteção divina que ele encontra a força que precisa para superar os seus limites e enfrentar a situação.

Vinculando-se cada vez mais pela experiência do cuidar, a família segue fazendo planos, pois acredita em uma nova perspectiva de vida para si e para sua criança. Mesmo sabendo de todas as dificuldades, a família, ao perceber que todo o seu esforço não tem sido em vão, porque a criança apresenta melhora, planeja atender suas necessidades de cuidado e ainda garantir condições para proteção, a fim de que ela cresça de maneira feliz, longe de riscos, para que, no futuro, ambos colham os frutos plantados pelo cuidado e pelo amor que ela lhe dedicou.

TECENDO ALGUMAS REFLEXÕES

A compreensão do significado da experiência da família no cuidado à criança com anomalia congênita possibilitou a apreensão da experiência e o entendimento dos comportamentos e ações desenvolvidos no cuidado à criança. Esses eventos conferem significado e promovem transformação na perspectiva da família no cuidar, ao longo de sua trajetória.

As dificuldades apresentadas neste estudo, vivenciadas pelas famílias em relação à experiência de cuidar da criança com anomalia congênita, levou à reflexão sobre até que ponto os enfermeiros e demais profissionais de saúde estão atentos às necessidades dessa clientela. Pôde-se constatar que o despreparo da família está diretamente ligado à experiência vivenciada por elas no período de internação, sendo necessárias intervenções planejadas e sistematizadas com o objetivo de promover medidas que favoreçam a assistência dessa criança no domicílio, a fim de minimizar a sobrecarga de demandas e o sofrimento por elas apresentada.

Dessa forma, acredita-se que a família deve ser cuidada pela equipe de saúde não somente durante a internação de sua criança na UTI neonatal, mas também posteriormente à alta hospitalar, de modo que receba apoio e espaço para verbalizar suas inquietações, para que possa cuidar com mais segurança de sua criança em casa.

Ao se aproximar da família que vivencia o cuidado da criança com anomalia congênita, tem-se a oportunidade de refletir sobre a prática profissional em enfermagem. Com isso, reconhece-se a necessidade de esses profissionais se fazerem presentes, acima de tudo, no cotidiano da família, apoiando-a no enfrentamento dos problemas, especialmente em períodos de adaptação, servindo de auxílio, fornecendo informações adequadas, sugerindo caminhos a serem seguidos, facilitando o acesso a serviços necessários e, principalmente, desenvolvendo postura profissional e pessoal sincera de escuta e de acolhimento em seus momentos de crise.

REFERÊNCIAS

  • 1. Guiller CA, Dupas G, Pettengill MAM. Criança com anomalia congênita: estudo bibliográfico de publicações na área de enfermagem pediátrica. Acta Paul Enfermagem 2007; 20(1):18-23.
  • 2. Nissel M, Öjmyr-Joelsson M, Frenckner B, Rydelius P, Christensson K. How a family is affected when a child is born with anorectal malformation: Interviews with three patients and their parents. J Pediatric Nursing 2003; 18(6):423-32.
  • 3. Raines DA. Suspended mothering: women's experiences mothering an infant with a genetic anomaly identified at birth. Neonatal Netw. 1999; 18(5):35-9.
  • 4. Charon JM. Symbolic interacionism: an introducion, an interpretation, an integration. 3rd ed. Englewood Cliffs (New Jersey): Prentice Hall; 1989.
  • 5. Chenitz WC, Swanson JM. From practice to Grounded Theory: qualitative research in nursing. Menlo Park (California): Addison-Wesley; 1986.
  • 6. Fracolli RA, Angelo M. A experiência da família que possui uma criança dependente de tecnologia. Rev Mineira Enfermagem 2006; 10(2):125-31.
  • 7. Balbino FS. Preocupações dos pais de recém-nascidos prematuros com a proximidade da alta da unidade de terapia intensiva neonatal [dissertação]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem/ UNIFESP; 2004.
  • 8. Parazzi MM, Dupas G. Compreendendo o significado de ser mãe de uma criança com problema e desenvolvimento. Rev Paul Enfermagem 2005; 24(1):40-6.
  • 9. Cohn RJ, Goodenough B, Foreman T, Suneson J. Hidden financial costs in treatment: an Australian study of lifestyle implications for families absorbing out-of-pocket expenses. J Pediatric Hematol Oncol 2003; 25(11):854-63.
  • 10. Martins VB, Angelo M. A organização familiar para o cuidado dos filhos: percepção das mães em uma comunidade de baixa renda. Rev Latino-am Enfermagem 1999; 7(4):89-95.
  • 11. Duarte CMR. Equidade na legislação: um princípio do sistema de saúde brasileiro? Ciênc Saúde Coletiva 2000; 5(2):443-63.
  • 12. Souza LGA, Boemer MR. O ser-com o filho com deficiência menta: alguns desvelamentos. Paidéia (Ribeirão Preto) 2003; 13(26):209-19.
  • 13. Boff L. Saber cuidar: ética do humano- compaixão pela terra. 2Ş ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1999.
  • 14. Moreira PL, Angelo M. Tornar-se mãe de criança com câncer: construindo a parentalidade. Rev Latino-am Enfermagem 2008; 16(3):355-61.
  • 15. Silveira AO, Angelo M. A experiência de interação da família que vivencia a doença e hospitalização da criança. Rev Latino-am Enfermagem 2006; 14(6):893-900.
  • 16. Dupas G. Buscando superar o sofrimento impulsionada pela esperança: a experiência da criança com câncer. Acta Oncol Brasileira 1997; 17(3):99-108.
  • 17. Pettengill MAM, Angelo M. Vulnerabilidade da família: desenvolvimento do conceito. Rev Latino-am Enfermagem 2005; 13(6):982-8.
  • 18. Baumann SL, Braddick M. Out of their element: fathers of children who are "not the same". J Pediatric Nursing 1999; 14(6):369-78.
  • O sofrimento amenizado com o tempo: a experiência da família no cuidado da criança com anomalia congênita

    Cristiana Araújo GuillerI; Giselle DupasII; Myriam Aparecida Mandetta PettengillIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009

    Histórico

    • Recebido
      24 Set 2008
    • Aceito
      18 Jun 2009
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br