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Finalidade do trabalho em urgências e emergências

Resumos

Trata-se de estudo qualitativo, do tipo estudo de caso, que teve como objetivo analisar as concepções dos profissionais da equipe de saúde acerca da finalidade do trabalho em uma unidade de atendimento às urgências e emergências. O campo de estudo foi uma unidade hospitalar de atendimento às urgências e emergências do interior do Estado do Rio Grande do Sul. As técnicas para coleta de dados foram observação e entrevista semiestruturada. Os resultados apontam a divergência entre as necessidades de saúde que levam os usuários a procurar a unidade e a finalidade do trabalho do local destacada pelos profissionais. A equipe de saúde revela insatisfação com a procura excessiva de pacientes, cujas necessidades não podem ser classificadas como urgência ou emergência, apontando o número de atendimentos como justificativa para a resistência em realizar o trabalho e o descompromisso com a produção do cuidado.

emergências; serviços médicos de emergência; equipe de assistência ao paciente; organização e administração


This qualitative case study aimed to analyze how health team professionals perceive the work objective in one emergency unit. The place of study was a hospital emergency ward in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. Data collection was conducted through observation and semi-structured interview. The results disclose the divergence between the health needs that make users seek health care in the emergency ward; and the work objective at that ward as highlighted by the professionals. The work team shows dissatisfaction due to the excessive search for care that cannot be classified as emergency, highlighting the number of attendances as a justification for resistance to perform the work and lack of commitment in care production.

emergencies; emergency medical services; patient care team; organization and administration


Se trata de un estudio cualitativo, del tipo estudio de caso, que tuvo como objetivo analizar las concepciones de los profesionales del equipo de salud acerca de la finalidad del trabajo en una unidad de atención a las urgencias y emergencias. El campo de estudio fue una unidad hospitalaria de atención a las urgencias y emergencias del interior del Estado de Río Grande del Sur. Las técnicas para recolección de datos fueron la observación y la entrevista semiestructurada. Los resultados apuntan para la divergencia entre las necesidades de la salud que llevan a los usuarios a buscar la unidad y la finalidad del trabajo del local destacada por los profesionales. El equipo de salud revela insatisfacción con la búsqueda excesiva del servicio por pacientes, cuyas necesidades no pueden ser clasificadas como urgencia o emergencia, apuntando el número de atenciones como justificativa para la resistencia en realizar el trabajo y para la falta de compromiso con la producción del cuidado.

urgencias médicas; servicios médicos de urgencias; grupo de atención al paciente; organización y administración


ARTIGO ORIGINAL

Finalidade do trabalho em urgências e emergências: concepções de profissionais

Estela Regina GarletI; Maria Alice Dias da Silva LimaII; José Luís Guedes dos SantosIII; Giselda Quintana MarquesIV

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, e-mail: estelagarlet@hotmail.com

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: malice@enf.ufrgs.br

IIIEnfermeiro, Mestrando em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: joseenfermagem@yahoo.com.br

IVEnfermeira, Doutoranda em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: giseldamarques@hotmail.com

RESUMO

Trata-se de estudo qualitativo, do tipo estudo de caso, que teve como objetivo analisar as concepções dos profissionais da equipe de saúde acerca da finalidade do trabalho em uma unidade de atendimento às urgências e emergências. O campo de estudo foi uma unidade hospitalar de atendimento às urgências e emergências do interior do Estado do Rio Grande do Sul. As técnicas para coleta de dados foram observação e entrevista semiestruturada. Os resultados apontam a divergência entre as necessidades de saúde que levam os usuários a procurar a unidade e a finalidade do trabalho do local destacada pelos profissionais. A equipe de saúde revela insatisfação com a procura excessiva de pacientes, cujas necessidades não podem ser classificadas como urgência ou emergência, apontando o número de atendimentos como justificativa para a resistência em realizar o trabalho e o descompromisso com a produção do cuidado.

Descritores: emergências; serviços médicos de emergência; equipe de assistência ao paciente; organização e administração

INTRODUÇÃO

As unidades hospitalares de atendimento às urgências e emergências integram o componente hospitalar do sistema de atenção, instituído pela Política Nacional de Atenção às Urgências (PNAU). A finalidade do trabalho das equipes de saúde dessas unidades é atender pacientes que chegam em estado grave, acolher casos não urgentes e proceder sua reordenação a serviços ambulatoriais básicos ou especializados, existentes na rede de atenção à saúde(1).

O pressuposto fundamental da PNAU é a garantia de acesso e acolhimento nos serviços de saúde, de acordo com a complexidade tecnológica, que deverá estar organizada de forma regionalizada, hierarquizada e regulada, prevenindo iatrogenias por manipulação ou tratamentos incorretos, evitando a morte ou incapacidades físicas temporárias e permanentes(1).

Existem alguns serviços hospitalares de atendimento às urgências e emergências que estão organizados hierarquicamente e atendem o modelo de atenção preconizado. Destaca-se o modelo de organização de uma unidade de emergência hospitalar do interior paulista, que adotou a mudança na organização do trabalho e da gestão das urgências, contribuindo para que a superlotação fosse equacionada, por meio da redução do número de consultas e da taxa de ocupação, com aumento da média de permanência, da complexidade dos casos atendidos e do custo médio das internações, transformando-se em um centro de referência nos atendimentos de elevada complexidade, assim como para a formação e capacitação de profissionais da urgência(2).

Apesar desses avanços, a atenção às urgências ainda reúne muitas fragilidades, pois, na maioria dos centros urbanos, a descentralização da assistência é tênue e a ordenação dos fluxos é incipiente. Há predominância do modelo tradicional de organização do atendimento às emergências, determinado pela procura espontânea de usuários, culminando com superlotação das salas de atendimento, com consequente baixa qualidade da assistência prestada, longo tempo de espera para consultas, exames e cirurgias, falta de vagas para internação, bem como de pessoal capacitado(2).

Os serviços de pronto atendimento e as emergências hospitalares correspondem ao perfil de atendimento às demandas de forma mais ágil e concentrada. Apesar de superlotados, impessoais e atuando sobre a queixa principal, esses locais reúnem um somatório de recursos como consultas, remédios, procedimentos de enfermagem, exames laboratoriais e internações(3) que os torna resolutivos, sob a visão do usuário.

Estudo realizado em uma unidade de emergência do Rio de Janeiro indicou que o processo de trabalho está organizado principalmente para suportar as consequências da demanda do que propriamente produzir sua finalidade, pois o número expressivo de atendimentos realizados pela equipe de saúde tem interferido consideravelmente no processo de trabalho(4). Desse modo, ao trabalharem na porta de entrada de um hospital público de emergência, os profissionais são interpelados por uma demanda que ultrapassa o que os serviços estão organizados para reconhecer e intervir. Tal organização não se restringe às condições materiais, tecnológicas e de pessoal, mas engloba igualmente a forma de organização e gestão dos processos de trabalho empregados nesses serviços(5).

A demanda por atendimento em unidades de emergência, além de excessiva, não se esgota no que se considera uma necessidade de saúde. É caracterizada, muitas vezes, por pacientes que buscam no atendimento de saúde a resolução para os mais diversos problemas sociais que enfrentam no seu dia a dia(6). O tipo de consulta atendida em um serviço público de urgência pediátrica evidenciou heterogeneidade dos atendimentos e revelou a característica do serviço em atender casos graves conforme sua missão, mas também de acolher casos não urgentes(6).

Assim, as diferentes concepções que os usuários, a população e os profissionais de saúde possuem para definir a urgência têm sido apontadas como um dos fatores determinantes da superlotação das unidades hospitalares de atenção às urgências(2). É possível identificar a existência de desencontro entre a finalidade do trabalho nas unidades com modelo tradicional de atendimento às urgências e emergências e as necessidades dos seus usuários, que possuem critérios próprios para caracterizarem o que representa uma urgência, os quais nem sempre coincidem com os parâmetros biomédicos e a organização racional do sistema de atenção à saúde(4).

O enfermeiro de unidade de emergência, responsável pela coordenação da equipe de enfermagem, precisa buscar meios para gerenciar o cuidado de enfermagem, visualizando as necessidades do paciente de forma integral, conciliando os objetivos organizacionais com os objetivos da equipe de enfermagem(7). Porém, quando os profissionais prestam atendimento em situações de urgência, não conseguem visualizar a trajetória dos usuários e as dificuldades pelas quais passam para a satisfação de suas necessidades de saúde. Desse modo, é importante a compreensão dessas situações para tornar o atendimento mais acolhedor, utilizando uma abordagem que leve à solução competente e satisfaça o usuário(3).

Recente estudo sobre a organização do trabalho nas portas de urgência e emergência destaca o atendimento prestado ao usuário em um pronto atendimento, identificando e analisando suas demandas e necessidades de saúde, sob o enfoque do usuário(3). Pretende-se, neste artigo, acrescentar elementos para a análise do trabalho desenvolvido nas portas de urgência e emergência, assim como de sua finalidade, tendo como pano de fundo a aplicação da PNAU e, como foco, as concepções de profissionais no âmbito hospitalar. Tem-se a pretensão de contribuir com a discussão dessa problemática, enfatizando o potencial da equipe de saúde para modificar a realidade na estrutura organizacional das instituições de saúde.

Assim, com base na situação descrita, tem-se como objetivo analisar as concepções dos profissionais da equipe de saúde acerca da finalidade do seu trabalho em uma unidade hospitalar de atendimento às urgências e emergências.

METODOLOGIA

É uma pesquisa com abordagem qualitativa que apreende a realidade e analisa as concepções dos profissionais que atuam na equipe de saúde(8). O desenho metodológico da pesquisa é o estudo de caso, que permite aprofundar a observação da unidade a ser estudada, vista na sua singularidade(9).

O espaço de pesquisa foi a unidade de emergência de um hospital de ensino público, referência para esse tipo de atendimento, num município do interior do Estado do Rio Grande do Sul. O serviço atende os usuários que procuram a unidade espontaneamente e os encaminhamentos formais e informais de unidades pré-hospitalares fixas (Unidades Básicas de Saúde, Unidades de Saúde da Família, Ambulatórios de Especialidades, entre outros) do município sede e de unidades hospitalares dos demais municípios que compõem uma região de aproximadamente 1.162.787 habitantes. Até o momento da coleta dos dados, o atendimento às urgências era organizado sem acolhimento com classificação do grau de risco ou central médica de regulação.

A coleta de dados foi realizada por meio de observação e entrevista semiestruturada(10). O foco da observação foi o processo de trabalho da equipe de saúde que atua na unidade. Os aspectos norteadores da observação foram: objeto, agentes, instrumentos e a finalidade do trabalho. Assim, foram observados os diferentes agentes durante o processo de trabalho na emergência e nos momentos em que eles se articulavam para realizar o cuidado ao paciente. Os agentes foram selecionados para observação conforme a função que exerciam, buscando abarcar os diversos trabalhos desenvolvidos na unidade de emergência. Também foram selecionadas atividades consideradas relevantes para captar as relações entre os sujeitos e a forma de organização do trabalho, bem como alguns espaços nos quais essas relações ocorrem de forma mais significativa. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas para identificar as concepções dos profissionais quanto à finalidade do trabalho realizado, utilizando as seguintes questões norteadoras: como você entende o trabalho realizado na unidade de emergência? Como está organizado o atendimento às urgências e emergências nessa unidade? Quais os profissionais da equipe de emergência que se envolvem no processo de trabalho, de que forma?

Os sujeitos de estudo foram os profissionais que atuavam na equipe de saúde da referida unidade, no período de junho a setembro de 2007. A seleção dos sujeitos foi intencional, priorizando a inclusão de enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e, posteriormente, ouvindo outros componentes da equipe. Participaram das entrevistas 29 sujeitos, sendo sete enfermeiros, nove técnicos de enfermagem, um bolsista do curso de graduação em enfermagem, dois médicos plantonistas da clínica médica, um médico residente, dois doutorandos do curso de medicina, uma secretária, uma auxiliar de serviços gerais, dois vigilantes, uma nutricionista, uma fisioterapeuta e a enfermeira coordenadora administrativa da unidade.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEP nº 2007688). Aos profissionais foi entregue um termo de consentimento livre e esclarecido, o qual garantia os aspectos éticos apontados pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(11).

A análise dos dados foi realizada seguindo as diretrizes do método qualitativo: ordenação, classificação em estruturas de relevância, síntese e interpretação(8). Os dados obtidos por meio das observações foram codificados com a letra "O" e os dados provenientes das entrevistas com a letra "E", seguidas da descrição da categoria do profissional observado ou entrevistado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No processo de trabalho na unidade de emergência evidenciou-se que a concepção dos profissionais acerca da finalidade do seu trabalho está relacionada ao atendimento de pacientes que apresentem alterações no organismo, resultando drástico transtorno da saúde ou em súbita ameaça à vida, exigindo medidas terapêuticas imediatas.

[...] o objetivo do nosso trabalho é o cuidado ao paciente grave (E-Enfermeiro).

Os motivos que levam os usuários às unidades de emergência, entretanto, podem ser outros: garantia do acesso ao serviço de saúde, fluxo e localização geográfica privilegiada, possibilidade de realizar exames complementares e receber medicações não disponíveis na atenção básica(3).

Além disso, a percepção do usuário do que significa algo grave está diretamente relacionada à autoavaliação sobre seu estado de saúde. A escolha do serviço de saúde se dará de acordo com essa percepção do que é simples ou grave, resultando, quase sempre, em procura espontânea pelos serviços(3).

Por meio das observações e entrevistas, constatou-se grande procura de atendimento por usuários cujas necessidades não se classificavam como urgência ou emergência, o que gerava insatisfação da equipe de saúde, conforme afirmação a seguir.

Este hospital é de média e alta complexidade. Aqui deveriam ser atendidas somente as emergências, não consultinhas. Tem gente que vem aqui para fazer exame de gravidez ou para fazer nebulização, pensa que é posto de saúde (E - Técnica de Enfermagem).

Ao contrário do que esperam os profissionais de saúde, usuários podem procurar atendimento ao apresentarem alterações de saúde que considerem importantes. Nesse sentido, o exame de gravidez para uma mulher que não consegue ou não quer engravidar, assim como a nebulização para um portador de doença respiratória, sem condições de adquirir o aparelho para realizá-la em casa, podem se tornar necessidades urgentes para o usuário.

O desencontro entre o que pensam os usuários e os profissionais de saúde foi identificado em estudo sobre o atendimento de urgência em uma unidade de pronto atendimento. Foi destacado que, para os profissionais, nos casos eletivos, a utilização era indevida e descaracterizava a missão de atendimento de urgência, trazendo sobrecarga ao trabalho já estressante, o que colocava o usuário em situação de justificar sua necessidade para receber atendimento(12).

Essas demandas de usuários parecem ser incompreendidas e até mesmo desprezadas pelos profissionais de saúde. A grande procura da unidade para atendimento de casos não urgentes é relacionada pelos profissionais à sobrecarga de atividades e à diminuição da qualidade do atendimento dos casos de urgência ou emergência.

Pesquisa realizada em unidade de emergência constatou que 74% dos atendimentos são caracterizados como não urgência ou emergência(13). Muitas vezes, essas unidades são utilizadas como válvula de escape dos serviços de saúde, prejudicando o atendimento dos casos agudos e graves que são considerados adequados à finalidade à qual se destinam esses serviços, uma vez que o excesso de demanda acarreta acúmulo de tarefas e consequente sobrecarga para toda equipe de profissionais, contribuindo também para o aumento dos custos hospitalares.

Os profissionais que atuam em unidades de emergência enfrentam conflitos, diariamente, por atuarem em ambiente superlotado, com recursos humanos, tecnológicos e de estrutura física nem sempre adequados, não oferecendo condições para acomodar os usuários com segurança e qualidade(5).

Com a superlotação tudo fica mais difícil, o atendimento fica demorado, os pacientes ficam aguardando horas na recepção, não tem sala para atender porque chegam emergências e ficam ocupando a sala de emergência, e há que aguardar até aquele paciente ser atendido para chamar outro. Enquanto isso, o atendimento da clínica e o atendimento da cirurgia vão revezando uma sala, chega um paciente acidentado, precisa da sala, chega um paciente que se cortou precisa de uma sutura e aí os pacientes que estão aqui aguardando têm que esperar, a não ser que o paciente esteja passando mal, aí eles colocam o paciente lá para dentro, mas se não é urgência ou emergência vai ficar esperando (E - Enfermeira).

O profissional reconhece a dificuldade do usuário em sua trajetória terapêutica e também percebe o seu sofrimento ao chegar a um serviço de saúde e não receber o atendimento esperado. Apesar disso, o volume de pacientes e o estresse dos atendimentos se sobrepõem ao acolhimento dos casos e à responsabilização com a produção do cuidado, sendo que a relação das equipes com o usuário fica entre o heroísmo e o descaso.

A constante superlotação das salas de espera e dos corredores das salas de urgência, associada às elevadas taxas de ocupação dos leitos de observação, nos diferentes componentes assistenciais do sistema de saúde, traz, como consequência, a flexibilização nos padrões do cuidado e da ética dos profissionais de saúde que atuam na urgência(2).

A partir da concepção biomédica e pela escassez de recursos humanos e tecnológicos, os pacientes em situação de emergência que chegam ao serviço são priorizados em detrimento daqueles que se encontram em observação ou estabilizados. Desse modo, identificou-se que os profissionais agem segundo a sua concepção de urgência/emergência, priorizando o atendimento dos problemas graves e agudos, com potencial risco à vida.

[...] priorizamos os pacientes que chegam à emergência, porque não é uma unidade de internação (E - Técnica de Enfermagem).

Segundo essa concepção, a unidade de emergência deveria ser um local transitório, destinado à realização do primeiro atendimento do usuário e tão logo as suas condições clínicas estivessem estabilizadas, encaminhá-lo para uma unidade de internação ou unidade especializada. Entretanto, na maioria das vezes, o longo tempo de permanência de usuários na unidade potencializa situações conflitantes entre eles e os profissionais, por meio das quais se vislumbram diferentes concepções acerca da finalidade do trabalho na emergência.

O tempo de permanência dos pacientes na unidade é uma dificuldade. O paciente acaba sendo tratado totalmente aqui, sai daqui com alta pra casa. Já aconteceu do paciente internar, receber tratamento vários dias, ir a óbito, sem ser transferido para unidade de internação. Não deveria ser assim. Há pacientes que ficam 30 dias aqui e deveria ser no máximo 24 horas porque aqui é uma Unidade de Emergência (E-Técnica de Enfermagem).

A organização do processo de trabalho, sem avaliação do grau de risco, que tenta equilibrar a desproporcionalidade entre o quantitativo de pessoal e o número de pacientes, associada à área física deficiente, reforça a insatisfação dos profissionais, a qual é expressa, muitas vezes, por meio da resistência em realizar o trabalho na unidade.

O fisioterapeuta diz, dirigindo-se à técnica de enfermagem: "A paciente do leito oito quer ir ao banheiro e precisa de ajuda!". A técnica responde: "Já vou!". Após algum tempo de espera, o fisioterapeuta solicita novamente que a técnica de enfermagem acompanhe a paciente até o banheiro. Percebendo que ela não vai, ele acaba o que está fazendo e acompanha a paciente (O - Fisioterapeuta).

A observação descrita evidencia a resistência de técnicos de enfermagem em assumir algumas atividades inerentes ao seu trabalho. Essa situação pode ser entendida como a naturalização de ações representadas por meio da negligência ou hostilidade ao usuário no ambiente de trabalho. Assim, alguns informantes justificam o não fazer e as longas esperas para realizar suas ações apoiados no discurso da superlotação, do número inadequado de profissionais, na grande solicitação de atendimento por parte de usuários e familiares, e, especialmente, na finalidade do trabalho na unidade de emergência, ou seja, se não for urgência ou emergência não deve ser atendido, e, se necessita permanecer no hospital, deve ser encaminhado para as unidades de internação.

Nesse sentido, cabe salientar que as relações entre profissionais de saúde e usuários são sempre permeadas por disciplina e poder. Além disso, a fragmentação do processo de trabalho também contribui para a despersonalização do usuário por parte dos profissionais da equipe de saúde, colocando-os como produtores de atos de não cuidado, embora seu exercício profissional deva estar voltado à ética, vida e saúde.

A hostilidade que o indivíduo encontra nesse ambiente pode ser entendida como o acirramento de manifestações relacionadas tanto à evolução da cultura hospitalar clássica de isolamento, à atitude impessoal apoiada no tecnicismo ou cientificismo médico positivista, a mecanismos de defesa devido às condições ultrajantes de trabalho, assim como a reação às condições de miserabilidade e violência social(4).

Assim, em alguns momentos, o número de atendimentos caracterizados como não urgentes é usado como justificativa para a resistência em realizar o trabalho e o descompromisso com a produção do cuidado. O discurso sobre a finalidade do trabalho na unidade de urgência e emergência de certa forma protege os profissionais, pois responsabiliza sempre o usuário pelo uso indevido do sistema. Além disso, descompromete a unidade de emergência e o sistema de atenção à saúde na regulação das urgências no que lhes compete à compreensão de necessidades e alocação das melhores alternativas para o acolhimento e tratamento dos usuários.

A organização dessa porta de entrada para acolher o usuário necessita ser discutida, levando em conta que existe demanda reprimida que chega aos serviços de pronto atendimento e unidades de emergência e precisa de respostas às suas necessidades. Em vez disso, observa-se a penalização do usuário pelo uso indevido do sistema de saúde, fazendo-o peregrinar por outras instâncias em busca de atendimento(12).

A regionalização e a hierarquização, por si só, não garantem a redução do afluxo desnecessário de usuários aos níveis de maior complexidade. É esperado que os usuários não só sejam acolhidos na atenção básica e secundária, mas que, fundamentalmente, recebam atenção resolutiva nesses níveis de complexidade, evitando encaminhamentos desnecessários aos centros de complexidade terciária, particularmente, hospitais de maior porte, possibilitando que os leitos sejam ocupados por usuários que realmente deles necessitem(2).

Para tanto, faz-se necessário que os profissionais, gestores e usuários atenham-se não só à dimensão biomédica, mas também às dimensões sociais e subjetivas que envolvem o atendimento de urgências. Entretanto, há ainda baixo investimento na qualificação de profissionais e capacitação de gestores quanto ao entendimento das diretrizes do sistema e no planejamento de ações que respondam às necessidades de saúde do usuário.

É fundamental estabelecer melhor organização do atendimento, definição de responsabilidades e grades de referência e contrarreferência efetivamente pactuadas, de modo que a regulação possa exercer o papel ordenador e corrigir as distorções ainda existentes nas portas de entrada do sistema. Entretanto, é imprescindível que o processo de trabalho nas unidades hospitalares de atendimento às urgências e emergências responda às necessidades dos usuários, razão de ser desses serviços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A unidade de emergência caracteriza-se pela grande demanda por atendimentos, oriunda de quadros clínicos e/ou traumáticos de diferentes complexidades. Esse fato, associado às questões de organização e gestão, faz com que essa unidade nem sempre conte com condições adequadas de trabalho, em termos de quantidade de pessoas e recursos materiais, para a realização de assistência qualificada.

Os profissionais sustentam a concepção biomédica, tendo como foco da atenção a doença e a realização da tarefa, não o indivíduo. Priorizam o atendimento aos usuários com problemas graves e agudos que procuram a unidade de emergência e demonstram sua insatisfação com os casos não urgentes ou estabilizados por meio de atendimento impessoal, hostil e até mesmo negligente.

É imprescindível que gestores, profissionais e usuários tenham clareza da finalidade do trabalho executado na unidade de emergência que deverá ser pactuada com demais serviços e instituições. Qualquer desencontro entre eles acarretará embates e conflitos que terão como produto a insatisfação de todos os envolvidos no processo.

Desse modo, faz-se necessário a ampliação das discussões acerca da finalidade do trabalho nos serviços de urgência e emergência, de forma que o trabalhador possa assumir postura crítica de seu processo de trabalho, tornando-se, em conjunto com usuários e gestores, protagonista de ampla reorganização do sistema de atenção às urgências.

Nesse contexto, a equipe de enfermagem pode ampliar sua atuação profissional e desempenhar papel de destaque. Os enfermeiros têm papel central e articulador que lhes possibilita grandes oportunidades de interação e influência sobre as ações profissionais que são desenvolvidas na unidade de emergência, em prol da produção de um cuidado integral e interdisciplinar.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009

Histórico

  • Aceito
    17 Jun 2009
  • Recebido
    29 Jul 2008
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