Acessibilidade / Reportar erro

Percepção do risco no trabalho em saúde da família: estudo com trabalhadores no Sul do Brasil

Resumos

Este é um estudo analítico, de natureza qualitativa, que objetivou identificar a percepção dos trabalhadores da Estratégia em Saúde da Família, sobre os riscos aos quais estão expostos no trabalho. Utilizou-se análise temática e o referencial do processo de trabalho para examinar o conteúdo das entrevistas dos 48 sujeitos (agentes comunitários de saúde, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e médicos). Os riscos percebidos pelos trabalhadores foram: violência física e moral, acidente típico de trabalho, desgaste emocional, irresolutividade do trabalho e doença relacionada ao trabalho. Os resultados apontam predominantemente para a relação com o objeto/sujeito do trabalho e as características socioambientais das comunidades adstritas. O estudo contribui para o somatório de conhecimentos, podendo sistematizar processos tecnológicos coletivos e individuais para a gestão dos riscos à saúde do trabalhador na atenção básica.

risco; trabalhadores; ambiente de trabalho; atenção primária à saúde


This analytical and qualitative study aimed to identify how workers in the Family Health Strategy perceive the risks they are exposed to at work. Thematic analysis and the reference framework of the work process were used to examine the contents of interviews with 48 subjects (community health agents, nurses, nursing auxiliaries and physicians). The workers noticed the following risks: physical and moral violence, typical work accident, emotional exhaustion, lack of problem-solving ability and occupational disease. The results predominantly show the connection with the object / subject of the work and the social environmental characteristics of the related communities. The study adds to the body of knowledge and can systemize collective and individual technological processes for occupational health risk management in primary health care.

risk; workers; working environment; primary health care


Este es un estudio analítico, de naturaleza cualitativa, que tuvo como objetivo identificar la percepción de los trabajadores de la Estrategia en Salud de la Familia, sobre los riesgos a los cuales están expuestos en el trabajo. Se utilizo el análisis temático y el referencial del proceso de trabajo para examinar el contenido de las entrevistas de los 48 sujetos (agentes comunitarios de salud, enfermeros, auxiliares de enfermería y médicos). Los riesgos percibidos por los trabajadores fueron: violencia física y moral, accidente típico de trabajo, desgaste emocional, irresolutividad del trabajo y enfermedad relacionada al trabajo. Los resultados apuntan predominantemente para la relación con el objeto/sujeto del trabajo y las características socio ambientales de las comunidades adscritas. El estudio contribuye para aumentar el conocimiento, pudiendo sistematizar procesos tecnológicos colectivos e individuales para la gestión de los riesgos a la salud del trabajador en la atención básica.

riesgo; trabajadores; ambiente de trabajo; atención primaria de salud


pt_06

ARTIGO ORIGINAL

Percepção do risco no trabalho em saúde da família: estudo com trabalhadores no Sul do Brasil

Marta Regina Cezar-VazI; Jorgana Fernanda de Souza SoaresII; Paula Pereira de FigueiredoIII; Eliana Pinho de AzambujaIV; Cynthia Fontella Sant'AnnaV; Valdecir Zavarese da CostaVI

IEnfermeira, Doutor em Filosofia da Enfermagem, Professor Associado, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande, Brasil, e-mail: cezarvaz@vetorial.net

IIEnfermeira, Doutoranda em Saúde Pública, Universidade Federal da Bahia, Brasil, e-mail: jfss_rs@hotmail.com

IIIDoutoranda, Universidade Federal do Rio Grande, Brasil. Professor Assistente I, Universidade Federal do Pampa, Brasil, e-mail: paulapfigueiredo@yahoo.com.br

IVEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto, Colégio Técnico Industrial, Universidade Federal do Rio Grande, Brasil, e-mail: gama@vetorial.net

VEnfermeira, Mestranda em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande, e-mail: cy_kuasenurse@hotmail.com

VIEnfermeiro, Doutorando, Universidade Federal do Rio Grande. Professor Assistente I, Universidade Federal do Pampa, Brasil. E-mail: valdecircosta2005@yahoo.com.br

RESUMO

Este é um estudo analítico, de natureza qualitativa, que objetivou identificar a percepção dos trabalhadores da Estratégia em Saúde da Família, sobre os riscos aos quais estão expostos no trabalho. Utilizou-se análise temática e o referencial do processo de trabalho para examinar o conteúdo das entrevistas dos 48 sujeitos (agentes comunitários de saúde, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e médicos). Os riscos percebidos pelos trabalhadores foram: violência física e moral, acidente típico de trabalho, desgaste emocional, irresolutividade do trabalho e doença relacionada ao trabalho. Os resultados apontam predominantemente para a relação com o objeto/sujeito do trabalho e as características socioambientais das comunidades adstritas. O estudo contribui para o somatório de conhecimentos, podendo sistematizar processos tecnológicos coletivos e individuais para a gestão dos riscos à saúde do trabalhador na atenção básica.

Descritores: risco; trabalhadores; ambiente de trabalho; atenção primária à saúde

INTRODUÇÃO

O presente artigo refere-se ao estudo da emergência do discurso de trabalhadores sobre os riscos aos quais se percebem expostos no processo de trabalho da Estratégia da Saúde da Família (ESF) do município do Rio Grande, RS, Brasil.

A motivação para a pesquisa proposta partiu de busca na literatura acerca da abordagem teórica da percepção de risco, oportunidade em que se constatou a coerência e a necessidade de ser analisada a questão do risco humano nos ambientes de trabalho, na relação com os trabalhadores, que inclui aspectos sociais, culturais e políticos em sua produção e reprodução, por parte do trabalhador e da sociedade em geral(1-3). No presente estudo, assumiu-se tal abordagem, na qual o risco pode ser entendido como a percepção do perigo e possui existência relacionada ao indivíduo ou ao coletivo (trabalhadores da ESF), que o compreende por meio de representações racionais e sociais, e convive com ele por meio de práticas específicas (processo de trabalho na ESF).

Verificou-se que, na literatura, entre os estudos acerca dos riscos à saúde do trabalhador nos ambientes de trabalho, predominantemente, contribuem para o estabelecimento de nexos causais entre as ações tecnológicas que oferecem riscos visíveis ao corpo desse trabalhador e a sua imediata conexão ao saber da fisiopatologia do trabalho, com especial atenção aos acidentes de trabalho(4) em contextos hospitalares(5-6). Outro aspecto de relevância, distinto da proposta apresentada, é o fato de que tais estudos se utilizam da abordagem de risco ocupacional, a qual se reitera não ser a adotada, pois os riscos não podem ser classificados como ocupacionais no seu sentido stricto sensu, já que, em muitas situações, incluídas as características das comunidades e as condições de trabalho, nas quais os trabalhadores se inserem, não obrigatoriamente se explicam como impactantes no processo saúde/doença dos mesmos.

Segundo a orientação teórica assumida por este estudo, pressupõe-se que, na especificidade do trabalho em saúde da família, os riscos podem ser percebidos de distintas maneiras e, ao conhecê-los e vivenciá-los no referido processo, o trabalhador reelabora os seus saberes para a satisfação das necessidades sociais percebidas, na relação com os objetos/sujeitos das ações de saúde e a equipe, bem como na intermediação com o instrumental de trabalho. E, assim, incorpora e produz conceitos particulares de risco(1-3) que se desdobram em expressões coletivas.

Por conseguinte, o conteúdo teórico e empírico em questão fomentou a presente investigação, que objetiva identificar a percepção dos trabalhadores da Estratégia em Saúde da Família (ESF) a respeito dos riscos a que se expõem no seu processo de trabalho, procurando relacioná-los aos elementos constitutivos desse processo de atenção primária à saúde(7). Diante do exposto, acredita-se que a presente pesquisa pode se tornar instrumento contributivo para o desenvolvimento de estratégias de prevenção de risco e de produção da saúde(7) do trabalhador em seu ambiente de trabalho.

METODOLOGIA

A pesquisa se caracteriza por ser estudo transversal sob abordagem dialética(8), que congrega a análise qualitativa temática(9) da percepção de risco do trabalhador, como dimensão constitutiva do processo de trabalho.

O cenário do estudo compreendeu a rede básica de atenção à saúde da família, no município do Rio Grande, localizado no extremo sul do Rio Grande do Sul, Brasil. A amostra da pesquisa constituiu-se por 13 do total de 20 equipes da ESF, existentes no semestre que antecedeu a coleta dos dados. Para a seleção, foram utilizados os seguintes critérios de inclusão dos sujeitos/equipes na amostra: tempo de formação da equipe superior a seis meses, o tempo de atuação do trabalhador junto à equipe superior a seis meses, existência de todos os trabalhadores na equipe e a representatividade de um profissional de cada categoria. Salienta-se que, para a seleção dos agentes comunitários de saúde, foi realizado sorteio simples. Dos 52 trabalhadores selecionados para participarem do estudo, quatro sujeitos foram considerados perdas, por se encontrarem ausentes na Unidade Básica de Saúde após três tentativas de entrevista, reunindo, assim, 48 sujeitos das 13 equipes.

A coleta de dados ocorreu, através de entrevistas semiestruturadas, gravadas. O roteiro das mesmas foi testado por meio de estudo piloto junto a uma equipe de saúde da família não pertencente ao grupo selecionado para a amostra, e estruturado em duas partes: a primeira compõe-se de um questionário para caracterização dos sujeitos (sexo, idade, formação), e a segunda, do roteiro propriamente dito das entrevistas que, para essa apresentação, foi orientada através da seguinte questão norteadora: como os trabalhadores da ESF (agente comunitário de saúde, auxiliar de enfermagem, enfermeiro e médico) percebem os riscos aos quais estão expostos no seu processo de trabalho?

As entrevistas foram digitalizadas e analisadas no programa NVivo 7.0. Com o auxílio dessa ferramenta, construiu-se uma matriz (Árvore) de análise qualitativa do tema(9). Para tanto, foram utilizadas as categorias definidas a priori, partindo do quadro teórico do processo de trabalho(10), particularmente, no estudo ora apresentado, o trabalhador e os elementos constitutivos do trabalho: o objeto/sujeito da ação, o instrumental, o produto e a organização geral do conjunto das ações do trabalho. A organização do trabalho expressa como e quais são os fatores intrínsecos à sua realização; o objeto de trabalho consiste na população adstrita, de responsabilidade das equipes e os contextos socioambientais(7) que a caracterizam; os instrumentos são os meios de realização do trabalho, os quais estão inseridos entre o trabalho em si e o produto, sendo o último o próprio resultado do trabalho. Outras categorias empíricas, definidas a posteriori, a partir da própria análise temática, apoiada nos dados e subsidiada na classificação de risco na relação com o ambiente de trabalho(11), foram: acidente de trabalho típico (aquele que ocorre no ambiente de trabalho), doença relacionada ao trabalho, desgaste emocional, irresolutividade do trabalho e violência física e moral. Salienta-se que um mesmo trabalhador pode ter apontado um ou mais sentidos de riscos aos quais se percebe como exposto no desenvolvimento de seu trabalho, apresentados na relação com os depoimentos dos entrevistados.

A proposta de pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande. Todos os entrevistados manifestaram concordância em participar do estudo assinando, em duas vias, o consentimento pós-informado. Os princípios éticos foram respeitados conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Os trabalhadores entrevistados foram identificados com a sigla da categoria (Enf=enfermeiro, Md=médico, AE=auxiliar de enfermagem, ACS=agente comunitário de saúde) acrescida do número arábico correspondente à identificação individual no banco de dados.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os sujeitos da pesquisa constituíram-se de 48 trabalhadores, dos quais 13 (27,1%) eram enfermeiros, 10 (20,8%) médicos, 12 (25%) auxiliares de enfermagem e 13 (27,1%) agentes comunitários de saúde. Quanto ao sexo dos trabalhadores, a maioria era (45-93,75%) composta pelo sexo feminino. A média de idade deles foi de 38,27±8,56 (média ± desvio padrão) anos, variando entre 19 e 57 anos. Dos 23 profissionais que possuíam Ensino Superior (enfermeiros e médicos), 14 (60,87%) eram especialistas em Saúde da Família.

A percepção do risco "acidente de trabalho típico" foi identificada em 12 depoimentos (dois ACS, três AE, um Enf e seis Md) dos 48 colhidos. Em oito deles (três AE, um Enf e quatro Md), foi mencionada como elemento condicionante a manipulação de materiais perfurocortantes e fluidos biológicos, na relação direta com o objeto de trabalho, conforme é possível identificar na seguinte fala: eu trabalho com seringa, perfuração, podendo saltar sangue do paciente na tua mucosa (Md 7). Em outros três depoimentos (dois ACS e um Md) foram apontadas as características socioambientais do território próximo às Unidades de Saúde da Família, em que se pode destacar a presença de cercas elétricas, cachorros, cavalos e animais peçonhentos. Tais são condicionantes com os quais os profissionais se deparam devido à prática da visita domiciliária. Também, no depoimento de um médico, as características físicas da Unidade de Saúde da Família foram apontadas como condicionante de risco na rotina de trabalho, o que fica evidente na transcrição de sua fala: as instalações são pequenas aqui [...] bati com a cabeça lá na porta, não posso modificar essa condição (Md 14).

Depreende-se que a percepção do risco para acidente de trabalho, apresentou-se diretamente relacionada às características da ação e ao contexto socioambiental que o circunda. Com maior recorrência foi citado o acidente com material perfurocortante, por ocasionar a exposição ao sangue e a fluidos corpóreos. As características estão para a natureza da ação no objeto/sujeito, na dimensão individual do trabalho. O risco dessa natureza revela o ato no corpo de um indivíduo com potencial de contaminação com agentes infecciosos, como é o caso dos vírus das hepatites B e C, e o vírus da imunodeficiência humana (HIV), nos exemplos trazidos pelos entrevistados. O risco em questão é amplamente estudado na literatura como risco à saúde do trabalhador em serviços hospitalares(5-12) e, embora com menos intensidade, na rede de atenção primária à saúde(4).

No mesmo contexto do saber da clínica, na relação com a doença propriamente dita, evidenciou-se, em 10 depoimentos, a percepção para a "doença relacionada ao trabalho" (cinco ACS, três Enf e dois Md). No conjunto considerado, na relação direta com o objeto/sujeito da ação, o elemento condicionante, na fala de seis trabalhadores (três ACS, um Enf e dois Md), ficou associado à exposição às secreções das vias aéreas, como no exemplo: o contágio de doenças como a tuberculose (Md 45). Ou, ainda, mais uma vez, na relação com as características socioambientais das comunidades adstritas, conforme relataram dois ACS, no exemplo: pegar [...] bicho-de-pé, carrapato assim... (ACS 16), a possibilidade de contraírem alguma doença parasitária. Somado a isso, outros condicionantes foram associados à percepção de risco, diretamente relacionados às condições físicas e organizacionais do trabalho: o ambiente físico interno da unidade básica, mencionado por um enfermeiro: ambiente pequeno (...) eu mesma estou sempre com sinusite (Enf 14); e a jornada de trabalho em turno integral, em consonância com outro enfermeiro: a gente fica confinada aqui dentro, então a gente vive muito o problema da pessoa (...) eu me sinto ansiosa, me sinto estressada, fico com a pressão alta às vezes (Enf 34).

O confinamento na sede da unidade, devido à jornada de trabalho, é considerado um risco para adoecimento dos profissionais, já que a permanência na unidade em turno integral faz com que vivenciem o contato com os problemas da comunidade durante todo o dia. Inúmeros trabalhos já demonstraram a associação entre as condições de trabalho e os danos crônicos como, por exemplo, os danos cardiorrespiratórios, da mesma forma que a possível transmissão de doenças infecciosas e parasitárias(11). Porém, é sabido que os exemplos das doenças parasitárias, referidos pelos entrevistados, não compõem a lista das doenças relacionadas ao trabalho.

A percepção do risco "desgaste emocional" foi identificada em 11 depoimentos (dois ACS, seis Enf e três Md). Na referência direta ao objeto de trabalho, o vínculo do trabalhador com as pessoas em condições precárias de vida das comunidades adstritas foi o elemento condicionante encontrado no relato de seis trabalhadores (dois ACS, três Enf e um Md), o que pode ser ilustrado pela seguinte fala: a gente emocionalmente fica muito prejudicada, sente-se literalmente sugada, a gente se apega muito (Md 6) ou, ainda, nós ficamos doentes por eles, porque tu vives tudo que eles vivem (ACS 31). Outro condicionante é o ritmo de trabalho provocado pela demanda, que relaciona a organização do trabalho e a necessidade de atenção da comunidade, sendo enunciado por um enfermeiro: a demanda que é muito grande (Enf 25). Tem-se, também, outro condicionante, expresso através da cobrança de produtividade por parte da gestão, explicitado por dois trabalhadores (um Enf e um Md): devido à exigência de dados, papéis relatórios (...) tu não recebes um retorno do teu empenho e tu és muito cobrada (Enf 43). O próprio limite do trabalho é reconhecido como condicionante ao desgaste emocional, mencionado por dois trabalhadores (um Enf e um Md) e transcrito a seguir: a gente não consegue resolver (...) é a tua frustração (Enf 30) e a gente se estressa porque não consegue fazer as coisas (Md 17).

Pode-se considerar que a percepção do desgaste emocional como um risco relaciona-se, principalmente, às necessidades apresentadas pelo objeto/sujeito da ação, representado pelos diferentes grupos das comunidades adstritas, e à organização do trabalho, de maneira a atender tais necessidades. Assim, o trabalho pode representar em si um condicionante ao desgaste emocional referido e, acrescenta-se, ao desgaste físico/corporal provocado pela natureza dialética do trabalho - simultaneamente qualitativo e quantitativo. O fato significa que os trabalhadores, ao desenvolverem o vínculo com os indivíduos e coletivos assumem qualitativa e quantitativamente as necessidades demandadas, natureza que traduz precariedades de vida e carências de atenção das populações adstritas, além do número elevado de pessoas para serem atendidas, tornando o trabalho na ESF bastante intenso e extenso. Realizado desse modo, o trabalho produz repetição que não é relatada nos depoimentos como reprodução de atos que podem acarretar alterações musculoesqueléticas(11), mas, antes, causadora de desânimo e frustração no trabalhador. Essas são oriundas do empenho dele para resolver os problemas de saúde da clientela, sem muitas vezes conseguir as modificações no objeto/sujeito da ação para o alcance da satisfação das necessidades requeridas.

A produtividade e o ritmo de trabalho cobrado pela gestão local da ESF, reconhecido pelos trabalhadores como condicionante para o desgaste emocional, pode ocorrer porque esses são os responsáveis diretos pelo que é produzido e, consequentemente, pelo compromisso assumido pela gestão local do município frente ao exigido pelo setor federal, para o repasse dos recursos financeiros necessários à gestão operacional da ESF. Destaca-se, ainda, no mesmo contexto, a existência de busca por atividades que representam, de certa forma, pressão para que haja crescente produtividade, podendo provocar aumento nos riscos, potencializando a ocorrência de acidentes, doenças relacionadas ao trabalho e o desgaste típico das condições de trabalho(11) apresentadas. O risco citado aproxima-se de outro sentido de risco, percebido pelos trabalhadores, que é o da "irresolutividade" do trabalho em saúde, podendo ser identificado, ao mesmo tempo, como um condicionante para e um risco em si mesmo.

A percepção do risco "trabalho não resolutivo" ("irresolutividade"), relacionado à sua organização que impõe o limite, para a obtenção do produto, foi referida por 10 trabalhadores (um AE, quatro Enf e cinco Md). De acordo com três médicos, enquanto um elemento condicionante para o desgaste emocional é relacionado ao suporte insuficiente da gestão municipal, como no depoimento sequente: localmente tu consegues organizar, mas a partir do momento que saiu do teu território, tu já não tens mais resposta (Md 3); ao suporte insuficiente de outros setores, claramente apontado em: não ter recursos próprios, por exemplo, problemas com a caixa d'água, água contaminada [...]necessita de um monitoramento constante...(Enf 9) ou, ainda, ao próprio limite da organização do trabalho da equipe, isso revisitado na fala de dois entrevistados (um Md e um Enf): não conseguir resolver os problemas deles [população adstrita] pelos entraves que a gente encontra (...). A gente é a ponta que mais sofre a pressão porque é o usuário que quer ser atendido, a gente quer atender e às vezes não conseguimos resolver esse impasse (Enf 21). Enquanto um risco em si mesmo, a irresolutividade do trabalho, possui como elementos condicionantes: as características socioculturais da comunidade que determinam a não aderência e o vínculo à proposta da ESF, de acordo com o depoimento de cinco trabalhadores (um AE, três Enf e um Md), dos quais é retirado o fragmento a seguir: expor e explicar e não aceitarem o programa (AE 2) e, em outro exemplo mais específico do problema da aderência ao tratamento medicamentoso, o paciente não aderir ao tratamento, ele não pode comprar... (Md 8).

Na direção apontada, a percepção do risco da irresolutividade do trabalho ficou centralizada no alcance ou não do seu produto. Tal risco expressa o sentido da capacidade resolutiva das ações desenvolvidas pelas equipes locais, na relação com os encaminhamentos para serviços referenciados pelas mesmas, na necessidade de um trabalho integrado com outros setores municipais, com vistas à resolução de problemas socioambientais das comunidades que extrapolam as ações da atenção prestada pelos trabalhadores. Além disso, relacionam-se com as características culturais das pessoas que não aderem à atenção das equipes. Constata-se que o conjunto de condicionantes do risco de irresolutividade possui ligação com os instrumentos tecnológicos utilizados e as necessidades de atenção desse objeto/sujeito na organização do processo de trabalho. E isso pode ser elucidado porque a ESF representa o primeiro nível do Sistema de Saúde para a atenção à saúde individual e coletiva, por meio de ações resolutivas de promoção da saúde, assim como de prevenção e controle à maior parcela dos problemas de seu território(13). A percepção de risco, ao apresentar centralidade no alcance (ou não) do produto do trabalho, revela um elemento positivo, factual. A percepção de risco em foco tende a sugerir que os trabalhadores reconhecem o objeto da ação como sujeito do sucesso de seu trabalho. Nesse sentido, a percepção de risco, como outro conhecimento qualquer, manifesta valores concorrentes e é construída e reelaborada, como fenômeno constituinte de trocas sociais e de construção de sentidos individuais e coletivos(14).

A percepção do risco "violência física e moral" foi levantada por 23 (cinco ACS, cinco AE, sete Enf e seis Md) de um total de 48 trabalhadores entrevistados e aparece, nos depoimentos dados por eles, vinculada diretamente ao objeto/sujeito da ação, ou seja, o elemento condicionante ficou centrado nas características sociocomportamentais dos grupos sociais das comunidades adstritas, conforme pode ser constatado nas duas falas subsequentes: na população mais carente tem mais violência, uso de drogas, assaltos, agressão verbal e agressão física (Enf 13), ou como em outra fala: [...] tu te expões mais e se a população não entende o teu trabalho, poderá ter pessoas que baterão boca, que discutirão e que se alterarão. Aí tu tens que saber fazer um manejo disso, porque senão daqui a pouco tu estás apanhando mesmo! Já aconteceu, mas graças a Deus as coisas já se acalmaram e agora a gente já consegue conversar bem (Enf 47).

As características referidas, como a capacidade de produção da agressão física e moral na direção dos trabalhadores, desenvolvidas por meio das próprias concepções e costumes de determinado grupo ou pessoa, estão relacionadas àqueles aspectos mais gerais da sociedade atual, seguramente uma "sociedade de risco"(2). Além disso, podem estar associados a aspectos culturais mais específicos, como a não aderência e compreensão por parte das pessoas das comunidades em relação ao trabalho desenvolvido. Um dos aspectos para o qual se deve atentar é que todos os depoentes relataram sua percepção do risco "violência física e moral" na relação com o objeto de trabalho como elemento condicionante(15-16). Estudos demonstram que a principal fonte de violência refere-se ao cliente/paciente e familiares, ou mesmo à existência de outras fontes de possível agressão, como as relações entre os próprios colegas de trabalho ou com a chefia imediata(16-17).

O fato pode ser explicado, dado que, na particularidade da atenção à saúde da família, a equipe é constituída por um número pequeno de trabalhadores, em que todos, de uma forma ou de outra, entram em contato direto com as pessoas das comunidades devido à própria proposta da ESF. Nesse contato, as pessoas usuárias do serviço podem não se sentir satisfeitas, viabilizando, assim, situações conflitantes a ponto de propiciarem algum ato violento contra o trabalhador. E, em seus sentidos, pode-se apreender implicitamente vinculado ao contexto sócio-histórico vivido, no qual os riscos se tornam concretos.

COMENTÁRIOS FINAIS

Na análise do conjunto dos dados, acerca da percepção de risco dos trabalhadores para acidente de trabalho típico, doença relacionada ao trabalho, desgaste emocional, "irresolutividade" do trabalho e violência física e moral, não foi possível identificar evidências que permitissem apresentar diferenças de percepção de risco entre as equipes ou mesmo entre as categorias dos trabalhadores, o que pode ser incluído no próprio limite do presente estudo e remete a outros estudos pretendidos.

Por outro lado, pode-se confirmar, conforme análise apresentada, anteriormente, que a percepção dos trabalhadores na relação com os elementos constitutivos do processo de trabalho(10) constituiu-se, em síntese, da seguinte forma: no que concerne ao objeto de trabalho, foram apreendidos nos discursos os riscos referentes ao acidente típico de trabalho, à doença relacionada ao trabalho, ao desgaste emocional e à violência; os riscos percebidos como relativos à organização do trabalho contemplaram os acidentes de trabalho, a doença relacionada ao trabalho, o desgaste emocional e a irresolutividade do trabalho. Na percepção de riscos identificados como relativos aos instrumentos de trabalho, apreendeu-se o acidente de trabalho e a irresolutividade do trabalho. Em relação aos riscos relacionados ao produto do trabalho, identificou-se nos discursos a doença relacionada ao trabalho, o desgaste emocional e a irresolutividade do trabalho em saúde.

A análise permitiu reiterar que o risco assume o sentido de ser resultante da possibilidade de ocorrência de situações adversas, associando, em seu significado, previsão estrutural com indeterminação(2,14). Salienta-se que a previsão está ligada diretamente ao processo de trabalho na ESF, pois, ao conhecer sua estrutura operacional e proposição teórica, é possível que o trabalhador identifique e reconheça os possíveis riscos imanentes ao processo. Por outro lado, afirma-se que uma (ou mais) indeterminação está representada, principalmente, por meio da relação entre o trabalhador e seu trabalho e outro elemento, o qual não controla. O outro elemento referido apresentou-se nos achados, predominantemente, a outro sujeito, seja o objeto/sujeito da ação (individual, coletivo) e as características socioambientais de sua comunidade e outros coletivos de trabalhadores/trabalhos (gestão da saúde e setores outros do município). Essa (ou essas) indeterminação sugere o quanto a relação entre prever e conhecer a diversidade de condicionantes de um risco é necessária, para que a gestão do trabalho possa produzir a saúde do trabalhador. Torna-se importante, igualmente, compreender que um mesmo elemento, dependendo da situação percebida e vivenciada, pode ser um condicionante para ou um risco em si mesmo.

Com base nos depoimentos, também, é possível apreender o sentido negativo atribuído ao risco, pois ele "é a tradução de uma ameaça, de um perigo para aquele que está sujeito a ele e o percebe como tal"(14). Somado a isso, entende-se que "não há risco sem uma população ou indivíduo que o perceba e que poderia sofrer seus efeitos. Corre-se riscos, que são assumidos, recusados, estimulados, avaliados, calculados"(14).

A percepção de risco neste estudo foi apreendida como um conjunto de significados construídos individual e coletivamente a partir dos trabalhadores que produzem e reproduzem formas semelhantes e diversas ao mesmo tempo. E essas formas de conhecer o fenômeno social em questão, qual seja, o risco humano no ambiente de trabalho - podem influenciar positiva ou negativamente a produção de saúde do trabalhador em seu ambiente de trabalho. No contexto estudado, os achados permitem inferir a importância da análise de risco na relação com os elementos constitutivos do processo de trabalho para a implementação de ações de prevenção dos agravos e promoção da saúde dos trabalhadores.

Cabe, ainda, salientar que o exercício de interpretação produzido pelos autores não possuiu a intenção de oferecer uma classificação dos riscos percebidos, pois a análise apresenta o seu limite na própria natureza do objeto, ou seja, a percepção dos sujeitos acerca dos riscos aos quais se sentem expostos. É dizer que, em suas diversas interpretações, há diferença tênue entre eles que também prevalece em relação aos elementos constitutivos do processo de trabalho. Isso demonstra a necessidade da gestão de riscos em ambientes de trabalho, como o da atenção básica, de forma a somar conhecimentos que possam sistematizar e empreender um processo de ensino e aprendizado e proceder-lhe de maneira que resulte em tecnologias coletivas e individuais para a saúde do trabalhador da ESF.

REFERÊNCIAS

  • 1. Slovic P. Perception of Risk. Science 1987; 236:280-5.
  • 2. Hayes M V. On the epistemology of risk: language, logic and social science. Soc Sci Med 1992 August; 35(4):401-7.
  • 3. Barnett J, Breakwell GM. Risk perception and experience: hazard personality profiles and individual differences. Risk Anal 2001; 21:171-7.
  • 4. Chiodi MB, Marziale MH, Robazzi ML. Occupational accidents involving biological material among public health workers. Rev Latino-am Enfermagem 2007; 15(4):632-8.
  • 5. Marziale MHP, Rodrigues CM. A produção cientifica sobre acidentes de trabalho com material pérfuro-cortante entre trabalhadores de Enfermagem. Rev Latino-am Enfermagem 2002; 10(4):571-7.
  • 6. Monteiro CM, Benatti MCC, Rodrigues RCM. Occupational accidents and health-related quality of life: a study in three hospitals. Rev Latino-am Enfermagem 2009; 17(1):101-7.
  • 7. Cezar-Vaz MR, Muccillo-Baisch AL, Soares JFS, Weis AH, Costa VZ, Soares MCF. Nursing, environment and health conceptions: an ecosystemic approach of the collective health production in the primary care. Rev Latino-am Enfermagem June 2007; 15(3): 418-25.
  • 8. Lefebvre H. Lógica formal, lógica dialética. 6Ş ed. São Paulo (SP): Civilização Brasileira; 1995.
  • 9. Green J, Thorogood N. Qualitative methods for health research. London (UK): Sage; 2005.
  • 10. Marx K. Manuscritos econômicos e filosóficos. Lisboa (PT): Edições 70; 1993.
  • 11
    Ministério da Saúde (BR). Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001.
  • 12. Rapparini C. Occupational HIV infection among health care workers exposed to blood and body fluids in Brazil. Am J Infect Control 2006; 34(4):237-40.
  • 13
    Ministério da Saúde (BR). Portaria n° 648, de 28 de Março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família e o Programa Agentes Comunitários de Saúde. Diário Oficial da União. República Federativa do Brasil. Ministério da Saúde, Gabinete do Ministro. Edição n° 61 de 29/03/2006.
  • 14. Veyret Y, Richemond NM. O risco, os riscos. In: Veyret Y, organizadora. Os riscos: o homem como o agressor e vítima do meio ambiente. São Paulo (SP): Contexto; 2007. p. 23-4.
  • 15. Klijn TP, Suazo VS, Moreno MB. Violencia percibida por trabajadores de Atención Primaria de Salud. Cienc enferm [versión on-line]. 2004 Dic [citado 2008 agos 18]; 10(2): 53-65. Disponible en: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0717
  • 16. Silva KL, Sena RR, Leite JCA. A gerência e a violência no âmbito da Unidade Básica de Saúde. REME Rev Min Enferm. 2004; 8(1):177-81.
  • 17. Camelo SHH, Angerami ELS. Sintomas de estresse nos trabalhadores atuantes em cinco núcleos de saúde da família. Rev Latino-am Enfermagem 2004; 12(1):14-21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
E-mail: rlae@eerp.usp.br