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Violência doméstica contra a mulher na visão do agente comunitário de saúde

Resumos

Trata-se de pesquisa sobre a visão do agente comunitário de saúde acerca da violência contra a mulher e as práticas cuidativas correspondentes, desenvolvidas no nível da atenção básica de saúde. Teve como objetivo compreender o posicionamento e as práticas cuidativas no cotidiano do trabalho em saúde, para subsidiar processos de qualificação do trabalhador a respeito do tema. O referencial teórico-metodológico foi a violência de gênero como construto social e a ideologia como produto social e norteador das práticas de saúde. A coleta de dados foi realizada mediante aplicação de questionário com perguntas fechadas, acerca do posicionamento diante de fatos da realidade assistencial. Os resultados mostraram posições e concepções majoritariamente apoiadas no senso comum, ou seja, nada diferindo das mulheres vítimas de violência ou leigos em geral, levando à conclusão de que é necessário ampliar o espaço de discussão do problema, propiciando a introdução da perspectiva de gênero no reconhecimento e no atendimento às mulheres.

saúde da família; violência contra a mulher; gênero e saúde


This study addresses violence against women from the perspective of Community Health Agents and related care practices developed at the basic care level. It aims to understand their opinions and care practices in daily care delivery in order to support training of workers on this theme. The theoretical-methodological reference was gender violence as a social construct and ideology as a social product and guider of health care practices. Data collection was carried out through a questionnaire with closed questions addressing these professionals' positions in relation to facts in the care delivery context. The results showed that positions and conceptions are mostly supported by common perceptions, that is, they do not differ from women victims of violence or lay people in general, which leads to the conclusion that it is necessary to broaden the discussion of this problem, introducing the gender perspective in the acknowledgement and care of women.

family health; violence against women; gender and health


Se trata de una investigación sobre la visión del agente comunitario de salud acerca de la violencia contra la mujer y las prácticas de los cuidados correspondientes, desarrollados en el sector de la atención básica de salud. Tuvo como objetivo comprender el posición y las prácticas de los cuidados en lo cotidiano del trabajo en salud, para subsidiar procesos de calificación del trabajador al respecto del tema. El marco teórico metodológico fue la violencia de género como constructo social y la ideología como producto social y orientador de las prácticas de salud. La recolección de datos fue realizada mediante aplicación de cuestionario con preguntas cerradas, acerca de la posición delante de hechos de la realidad asistencial. Los resultados mostraron posiciones y concepciones mayoritariamente apoyadas en el sentido común, o sea, no eran diferentes, en nada, de las que tenían las mujeres víctimas de violencia o de las opiniones de los legos en general, llevando a la conclusión de que es necesario ampliar el espacio de discusión del problema, propiciando la introducción de la perspectiva de género en el reconocimiento y en la atención a las mujeres.

salud de la familia; violencia contra la mujer; género y salud


pt_08

ARTIGO ORIGINAL

Violência doméstica contra a mulher na visão do agente comunitário de saúde

Rosa Maria Godoy Serpa da FonsecaI; Ana Emilia Ramos Bagueira LealII; Thais SkubsII; Rebeca Nunes GuedesIII; Emiko Yoshikawa EgryIV

IProfessora Titular, e-mail: rmgsfon@usp.br

IIEnfermeira, Especialista em Saúde Coletiva, e-mail: ae.leal@uol.com.br, thaisskubs@gmail.com

IIIEnfermeira, Doutoranda, Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem da Escola de Enfermagem e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: rebecanunesguedes@usp.br

IVProfessora Titular, e-mail: emiyegry@usp.br

RESUMO

Trata-se de pesquisa sobre a visão do agente comunitário de saúde acerca da violência contra a mulher e as práticas cuidativas correspondentes, desenvolvidas no nível da atenção básica de saúde. Teve como objetivo compreender o posicionamento e as práticas cuidativas no cotidiano do trabalho em saúde, para subsidiar processos de qualificação do trabalhador a respeito do tema. O referencial teórico-metodológico foi a violência de gênero como construto social e a ideologia como produto social e norteador das práticas de saúde. A coleta de dados foi realizada mediante aplicação de questionário com perguntas fechadas, acerca do posicionamento diante de fatos da realidade assistencial. Os resultados mostraram posições e concepções majoritariamente apoiadas no senso comum, ou seja, nada diferindo das mulheres vítimas de violência ou leigos em geral, levando à conclusão de que é necessário ampliar o espaço de discussão do problema, propiciando a introdução da perspectiva de gênero no reconhecimento e no atendimento às mulheres.

Descritores: saúde da família; violência contra a mulher; gênero e saúde

INTRODUÇÃO

Nos últimos vinte anos, a situação de violência doméstica contra a mulher tem adquirido visibilidade social e se tornado tema de vários estudos e conferências mundiais. "A identificação da ocorrência de abusos e violações contra a mulher dentro do quadro de referência maior das 'relações de gênero' permitiu compreender o contexto em que esses comportamentos se realizam, desvendando-se cenário de iniquidades e dominação que permeiam a vida privada e pública e as relações de poder entre homens e mulheres na sociedade"(1).

Embora a relação de dominação e opressão de gênero esteja presente desde os primórdios da humanidade, só tomou vulto e adquiriu contornos de problemática científica e foco importante de ações da saúde pública a partir da década de 70. No Brasil, isso ocorreu simultaneamente à ascensão da luta pela democratização, constituindo uma das reivindicações dos movimentos sociais organizados, inclusive aquelas ligadas ao acesso a serviços públicos de saúde e melhoria da qualidade de vida, especialmente nos centros urbanos(2).

O conceito atual de violência doméstica contra a mulher abrange todos os atos de violência física, psíquica, sexual e desrespeito aos direitos na esfera da vida reprodutiva ou da cidadania social, cometidos por um membro da família ou pessoa que habite ou tenha habitado o mesmo domicílio(3). "A violência de gênero é um problema mundial ligado ao poder, privilégios e controle masculinos. Atinge as mulheres independentemente de idade, cor, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual ou condição social. O efeito é, sobretudo, social, pois afeta o bem-estar, a segurança, as possibilidades de educação e desenvolvimento pessoal e a autoestima das mulheres. Historicamente à violência doméstica e sexual somam-se outras formas de violação dos direitos das mulheres [...]"(4).

Nas últimas três décadas, a violência de gênero tem recebido crescente atenção e mobilização, sendo que os primeiros dados estatísticos apontaram que os principais perpetradores da agressão são parceiros e familiares. Em pesquisa realizada no Distrito de Saúde do Butantã, na cidade de São Paulo, 44,4% das mulheres na faixa etária de 15 a 49 anos responderam já ter sofrido, na vida, pelo menos um episódio de violência física de gênero(5).

Com base na magnitude e visibilidade da violência contra a mulher, enquanto problema de saúde pública e fenômeno que viola os direitos humanos, no cenário mundial, foram estabelecidas leis para a proteção dos direitos das mulheres e, concomitantemente, criadas ou fortalecidas instâncias e fóruns em sua defesa, originando, pela primeira vez, a possibilidade de planejamento e execução das políticas públicas necessárias para a assistência às mulheres vítimas de violência de gênero. Essas iniciativas modificaram a situação, por exemplo, com a criação, há mais de uma década, de Delegacias de Defesa da Mulher.

Outro marco histórico importante na luta contra a violência de gênero foi a criação da Lei 11.340/2006, também chamada Lei Maria da Penha, que trata, em linhas gerais, do aumento do rigor das punições às agressões contra as mulheres no âmbito doméstico ou familiar, possibilitando a figura do "flagrante" e que a prisão preventiva seja decretada, além de aumentar as penas e outras medidas protetoras. Essa nova Lei também estabelece diretrizes para que o Estado, nas suas diversas instâncias, se organize para mudar o quadro anterior de sofrimento, adoecimento e desigualdade(6).

Embora a violência de gênero no ambiente familiar seja reconhecida como problema de saúde pública, uma vez que atinge mulheres de todas as classes sociais, muitas vezes as próprias vítimas não conhecem seus direitos e tampouco as leis que as amparam. Frequentemente, acreditam que sofrer abusos físicos ou psicológicos tem origem nas atitudes das próprias vítimas, ou que seus agressores, no caso dos cônjuges, têm o direito de ser agressivos(3).

Ainda, com frequência, o problema traduz-se em diversas repercussões para a saúde das mulheres e, consequentemente, para a sua qualidade de vida. A violência conjugal e o estupro têm sido associados a maiores índices de suicídio, abuso de drogas e álcool, queixas vagas, cefaleia, distúrbios gastrintestinais e psíquicos em geral. Em relação à saúde reprodutiva, a violência contra as mulheres tem sido associada às dores pélvicas crônicas, doenças sexualmente transmissíveis (DST), como a síndrome da imunodeficiência humana adquirida (AIDS), além de doenças pélvicas inflamatórias e gravidez indesejada(4).

Além disso, as mulheres que resistem às relações abusivas apresentam comprometimento significativo sobre a saúde individual (física e mental) o que, como consequência, é ampliado para dimensões maiores, afetando a vida e a saúde da família como um todo(7).

Aliado a isso, há diminuição da sociabilidade e realização pessoal, afetando o desenvolvimento laboral e a capacidade produtiva(5). "Considerando a participação das mulheres nos processos decisórios, a sua incorporação nas estruturas de poder tem sido lenta, tímida e muito limitada. Desse modo, o que se constata é a persistência de marcos culturais que dificultam a habilitação feminina ao exercício do poder, a pouca participação efetiva das mulheres nas estruturas de poder (menos de 5% dos parlamentares são mulheres) e nos partidos políticos, e até certo retrocesso em termos de mobilização em torno de bandeiras tipicamente feministas"(8).

Dado esse panorama, é importante contextualizar dentro das propostas do SUS (Sistema Único de Saúde) a visão de gênero e, com isso, buscar a superação de valores sociais hegemônicos que naturalizam as desigualdades e justificam a opressão e violência contra as mulheres. Essa ideologia está introjetada nas formações profissionais, propiciando a multiplicação dessa visão nas práticas em saúde.

No âmbito dos serviços, com a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), em 1991 e, posteriormente, com a criação do Programa Saúde da Família (PSF), em 1994, as equipes frequentemente se deparam com situações de difícil manejo quando se trata de relações homens/mulheres. Neste estudo, enfocou-se a visão específica do agente comunitário diante do assunto e o seu posicionamento. Essa categoria profissional foi escolhida porque sua posição é estratégica no atendimento nos casos de violência, uma vez que os atores envolvidos (profissionais e clientela) pertencem ao mesmo espaço geossocial(9).

Para que a assistência ocorra de forma adequada é necessário capacitar os profissionais de saúde, a partir da inserção de metodologias que privilegiem a qualificação sob a ótica de gênero. A categoria gênero pressupõe a compreensão das relações sociais que se estabelecem entre os sexos, diferenciando o sexo biológico do sexo social, colocando a desigualdade entre os sexos como construto social, historicamente determinado.

É importante frisar que constam das atribuições dos agentes comunitários ações individuais e coletivas que objetivem a proteção e a promoção da saúde e atividades educativas, priorizando grupos de maior vulnerabilidade, além de atuação como agentes de mudanças dentro da coletividade(10).

O Programa Saúde da Família é a estratégia que pode facilitar o processo de identificação dos casos de violência na comunidade, devido à aproximação dos profissionais da saúde com a clientela das áreas de abrangência do programa. Com isso é possível atuar sobre os grupos sociais, procurando potencializar seus recursos para o enfrentamento desse tipo de dificuldade.

A Equipe de Saúde da Família é composta por um médico, uma enfermeira, dois auxiliares de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de saúde, em geral, mulheres. Esses são os atores envolvidos no processo de identificação e intervenção dos casos de violência na atenção básica, porém, dá-se maior visibilidade ao papel do agente comunitário de saúde (ACS), já que ele é o elo entre o serviço de saúde e a comunidade. Habitando o mesmo território, tem, inclusive, condições de avaliar a dinâmica da família e, muitas vezes, identificar situações de risco ou de violência consumada, pela própria observação ou pelo vínculo que estabelecem com a clientela. O que ocorre, na maior parte dos casos, é que as mulheres acabam por relatar aos ACSs fatos que não relatariam a outros profissionais, tornando-os possíveis atores capazes então de prevenir ou intervir nessas situações(10).

A partir de tal situação, torna-se pertinente e necessário entender qual o posicionamento dos ACSs diante da violência de gênero e as práticas que lhe são correlatas, considerando que esses são profissionais fazem parte da comunidade na qual se inserem profissionalmente, permitindo, então, maior aproximação com a realidade objetiva.

Entende-se que a identificação e a compreensão das práticas profissionais, voltadas para as mulheres que vivenciam situações de violência, oferecem a possibilidade de compor elementos para a definição de políticas assistenciais de gênero no que tange ao enfrentamento da violência contra a mulher, assim como subsídios para a capacitação dos ACSs para reconhecimento e intervenção em situações de violência, além de contribuir para a visão crítica do seu próprio papel dentro do PSF, enquanto atores capazes de intervir no processo saúde/doença da família.

Assim, este trabalho teve a finalidade de buscar nos dados empíricos argumentos para a definição de políticas assistenciais de gênero, no que tange ao enfrentamento da violência contra as mulheres. Para o cumprimento dessa finalidade, teve como objetivo identificar e analisar, à luz de gênero, o posicionamento e as práticas profissionais dos ACSs diante da violência contra a mulher.

METODOLOGIA

O referencial teórico utilizado baseou-se nas categorias analíticas: violência de gênero como construto social e ideologia como produto social e norteador das práticas de saúde.

O estudo foi realizado no Distrito de Saúde do Butantã, localizado na zona oeste da cidade de São Paulo, Brasil. Participaram 17 agentes comunitários de saúde (ACS) de uma unidade básica de saúde (UBS) que utiliza a Estratégia Saúde da Família como prática e viabilização do SUS.

Os dados foram coletados por meio da aplicação de questionário composto por 30 frases temáticas sobre posicionamentos em relação à violência contra as mulheres. A partir da compreensão das frases, os participantes deveriam também se posicionar, indicando se concordavam totalmente, parcialmente ou não concordavam com as situações ou apreciações descritas por elas.

A construção do questionário em tela foi baseada em relatos de situações reais de violência e das práticas que as mesmas demandaram feitas por agentes comunitários de saúde de equipes do PSF, de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, durante outro estudo constante do mesmo projeto(11), financiado, em parte, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

A coleta de situações como material de pesquisa é proposta como pequenas novelas que mostram o sofrimento relatado por aqueles que o vivem e que facilitam a compreensão do porquê as pessoas fazem o que fazem(12). Tais relatos, mantida a linguagem utilizada pelos participantes, foram submetidos à análise de conteúdo(13), que busca a compreensão do significado da fala em conexão com o tema abordado, explicitando os conflitos e as contradições que constroem o discurso, e resultou em frases temáticas referentes às seguintes categorias: raiva do homem agressor; raiva da mulher agredida, compreensão e pena da mulher agredida; sentimento de impotência, alívio; desesperança e conformismo; vontade de ajudar a mulher; vislumbrando soluções idealizadas. Posteriormente, foram escolhidas aquelas que colocavam as idéias mais explicitamente e montado o referido questionário.

Por se tratar de estudo envolvendo seres humanos, em ambos os estudos, foram tomadas as providências requeridas pela Resolução n. 196, de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde(14). Assim, cada agente comunitário de saúde que concordou em participar assinou, em duas vias, um termo de consentimento livre e esclarecido sobre sua participação, onde foram apresentados o tema e os objetivos, assegurado-se que as informações seriam tratadas no anonimato e que serviriam unicamente para a elaboração de trabalhos científicos.

O estudo é parte integrante do projeto de pesquisa intitulado "práticas profissionais e violência contra as mulheres: um recorte de gênero e classe social", aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), sob Protocolo n. 517/2005/CEP-EEUSP.

RESULTADOS

A população de estudo foi composta por 17 mulheres, com idades entre 22 e 50 anos, com escolaridade mínima de oitava série do ensino fundamental, sendo que seis trabalhavam na mesma UBS desde a sua inauguração, ou seja, há seis anos, e todas eram moradoras da área de abrangência da unidade.

A análise dos dados foi realizada de acordo com as categorias reveladoras da violência de gênero contra as mulheres, citadas anteriormente. As categorias empíricas foram codificadas conforme segue: revolta e raiva contra o agressor (A), revolta e raiva contra a mulher agredida (B), compreensão e pena da mulher violentada (C), sensação de alívio (I), impotência (D), desesperança e conformismo (E). Relacionadas às práticas vivenciadas, foram elencadas três condutas: escuta e orientação sem posicionamento (F), vontade de ajudar a mulher agredida (G) e vislumbrando soluções idealizadas (H).

DISCUSSÃO

A Figura 1 mostra que a categoria empírica A - revolta e raiva contra o agressor - foi aquela que apresentou a maioria dos resultados adequados nas frases temáticas que expressavam essa situação, com exceção da pergunta A2, que apresentava posição majoritariamente desfavorável. Tais respostas refletem o senso comum, classificando os envolvidos entre vítimas e algozes, o que desfaz a possibilidade de reversão do quadro violento, já que a mulher está imobilizada devida à sua condição e o homem apenas paga pela sua culpa, tentando diminuí-la. O agressor é algoz e a agredida vítima, atribuindo-se todo ganho de poder ao primeiro.


O poder não é algo que possa ser dividido entre aqueles que o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. Em outras palavras, o poder não se aplica aos indivíduos e, sim, passa por eles, sendo o indivíduo um dos primeiros efeitos do poder(15).

A violência contra as mulheres é um fenômeno que tem suas raízes nas desigualdades de gênero, traduzidas em relações assimétricas de poder e, ainda, que esse poder seja relacional, a realidade tem revelado que ele muito dificilmente beneficia as mulheres, que são alvo majoritariamente preferencial da violência de gênero.

A categoria B - revolta e raiva da mulher agredida - apresentou resultados na grande maioria inadequados, considerada a perspectiva de gênero. Reflete o posicionamento de que todas as mulheres têm a possibilidade e capacidade de desfazer relações violentas, como se isso dependesse apenas delas, desconsiderando todas as dificuldades relacionadas ao fato. As mulheres geralmente ficam com a manutenção da casa e da família, funções essas que se tornam cada vez mais difíceis de serem desempenhadas sozinhas, quanto mais se desce na hierarquia social, numa conjugação de classe e gênero(16). Além disso, a construção sociocultural do universo feminino submisso legitimou, por muito tempo, a imagem negativa da imperfeição presente nas mulheres. Ao longo dos séculos, a ideia da mulher como sexo fraco, submisso e imperfeito está introjetada no imaginário social, o que ainda hoje traduz profundos efeitos na configuração do campo da assistência à saúde e da violência.

A categoria C - compreensão e pena da mulher violentada - revelou posicionamento tendendo para o adequado, provavelmente fruto da humanização na área da enfermagem e da saúde. Pode também ser influenciado pelo modo como os atores envolvidos no cuidado constroem sua própria identidade de gênero, com isso, transferindo sua ideologia para o atendimento(17).

A categoria D - impotência - expressou comportamento inadequado perante a situação, corroborando o que houve com as outras categorias. Sentimentos como a impotência ou o desânimo diante de situações de difícil solução podem imobilizar a ação do profissional e normalmente é fruto do despreparo em relação a todo o aparato que o Estado oferece para apoiar a mulher agredida.

A categoria E - desesperança e conformismo - reafirmou os resultados anteriores, uma vez que o comportamento inadequado predominou nas respostas, demonstrando a falta de percepção dos ACSs acerca do seu próprio papel enquanto profissionais. Reflete também uma situação ideal, atribuindo-se a ordem social a papéis construídos frente a relações sociais tidas como sem conflitos ou contradições. Tendo em vista que as práticas em saúde interferem nos fenômenos sociais, no sentido de superar ou legitimar o status quo, entende-se, aqui, que essa categoria reproduz a naturalização da opressão feminina no âmbito da atenção à saúde, o que pode se traduzir na omissão de cuidados efetivos, solidariedade e proteção, além de dificultar o exercício da prática profissional como instrumento de emancipação social.

As categorias representativas da prática profissional mostraram que a forma como o fenômeno vem sendo abordado, do ponto de vista assistencial, não tem se traduzido em práticas efetivas para o enfrentamento da violência de gênero. Desse modo, as práticas profissionais do PSF, voltadas para as mulheres em situação de violência, deveriam constituir-se em práticas potencializadoras da autonomia feminina, considerando a construção social de gênero como determinante dos processos destrutivos na vida das mulheres.

O predomínio da escuta sem posicionamento (F) reflete o mito de que o posicionamento dos profissionais expresso no relacionamento com a clientela significa envolvimento desnecessário, ou mesmo errôneo, e que deve ser evitado a qualquer custo. Pode também significar déficit de preparo do profissional frente a situações complexas, com as quais só sabe lidar por meio da escuta. Reflete uma visão de prática assistencial baseada na neutralidade científica e não no envolvimento pessoal do profissional, desconsiderando a politicidade das práticas em saúde. Isso está associado à forma de organizar os sistemas sociais que são baseados no patriarcado, cuja tática de poder e controle está infiltrada na lógica do raciocínio da sociedade e, portanto, pertence à base da ciência e precisa ser superado para se chegar a uma sociedade justa e igualitária(18).

A categoria (G) - vontade de ajudar a mulher agredida - expressa divisão de tendências para posições análogas dentre as várias frases do questionário, podendo denotar cisão nas formas de intervir. Reflete a noção de compromisso social das práticas em saúde, destinadas às mulheres ainda parcialmente utilizadas. No caso das profissionais mulheres também pode revelar empatia e envolvimento.

Finalmente, a última categoria - vislumbrando soluções idealizadas (H) - possui praticamente a totalidade das respostas inadequadas para o referencial de gênero. Desconsidera a complexidade da construção social na determinação da violência contra as mulheres, revelando visão de mundo em que a causa dos fenômenos se situam apenas na dimensão singular, desconsiderando a estrutura concreta da sociedade que norteia os fenômenos sociais.

CONCLUSÃO

Este trabalho revelou visão pautada pela ideologia da dominação masculina em relação à violência de gênero, além de demonstrar as profundas contradições existentes no âmago da prática assistencial que lhe é relacionada. Ficou evidente o despreparo frente à violência à mulher, indicando que é necessário investir para que os profissionais se sintam capazes de criar estratégias de identificação e intervenção no coletivo, em conjunto com a Equipe de Saúde da Família.

Os profissionais ACSs certamente são os membros mais próximos da clientela dentro do território e, portanto, têm acesso a informações fundamentais sobre os usuários, propiciando mais proximidade com tudo o que cerca a violência contra a mulher.

Estudos publicados nos últimos dez anos na Revista Latino-Americana de Enfermagem(7,19-22) confirmam a magnitude da temática para a saúde das mulheres, uma vez que têm confirmado a violência de gênero como fenômeno destrutivo do processo saúde/doença das mulheres. Nos referidos estudos, a violência se apresenta enquanto fenômeno multifatorial, tendo importante relação com outros determinantes como o uso de drogas, baixa autoestima e modos de viver e trabalhar. Corroborando a intrínseca relação entre violência e saúde, trazidas nas publicações desse periódico, este estudo vem contribuir com conhecimentos acerca do tema no sentido de mostrar que, sendo a violência uma questão de saúde, é relevante se investigar como os profissionais envolvidos com o cuidado às mulheres compreendem e lidam com o fenômeno.

Desse modo, esta pesquisa deverá subsidiar a qualificação dos ACSs e outros profissionais para ações voltadas para as questões de gênero, relacionadas à violência contra a mulher, fortalecendo diretrizes básicas do SUS, como acesso, equidade e integralidade. Pretende-se, no futuro, comparar os dados com outras categorias profissionais que fazem parte da equipe para ampliar a visão do enfrentamento do assunto no âmbito do PSF.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Aceito
    03 Ago 2009
  • Recebido
    10 Out 2008
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