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Evidenciando o cuidado de enfermagem como prática social

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender o significado do cuidado de enfermagem como prática social à luz das interações e associações do pensamento sistêmico-complexo. A metodologia utilizada foi a teoria fundamentada nos dados, com entrevista semiestruturada, realizada com trinta e cinco profissionais da saúde, distribuídos em diferentes grupos amostrais. A codificação e a análise simultânea dos dados possibilitaram a identificação da categoria central: "evidenciando o cuidado de enfermagem como prática social". O cuidado de enfermagem como prática social, orientado pelo pensamento sistêmico-complexo, se constitui em novo paradigma de intervenção, capaz de potencializar as ações locais por meio das redes interativas e associativas, bem como atuar de forma proativa, inovadora e participativa.

cuidados de enfermagem; papel do profissional de enfermagem; responsabilidade social; pesquisa em enfermagem


This study aimed to understand the meaning of nursing care as a social practice based on interactions and associations with complex-systemic thinking. Grounded Theory was the methodological framework used and 35 health professionals distributed in different sample groups were interviewed through a semi-structured questionnaire. Simultaneous data codification and analysis permitted the identification of the central category: "Evidencing nursing care as social practice". Nursing care as a social practice based on complex-systemic thinking constitutes a new paradigm of intervention, capable of strengthening social actions through interactive and associative networks, and of acting in a proactive, innovating and participative manner.

nursing care; nurse's role; social responsibility; nursing research


El objetivo de este estudio fue comprender el significado del cuidado de enfermería como práctica social examinado bajo la perspectiva de las interacciones y asociaciones del pensamiento sistémico complejo. La metodología utilizada fue la teoría fundamentada en los datos, con entrevista semiestructurada, realizada con treinta y cinco profesionales de la salud, distribuidos en diferentes grupos de muestreo. La codificación y el análisis simultáneo de los datos posibilitaron la identificación de la categoría central: "colocando en evidencia el cuidado de enfermería como práctica social". El cuidado de enfermería como práctica social, orientado por el pensamiento sistémico complejo, se constituye en nuevo paradigma de intervención, capaz de potencializar las acciones locales por medio de las redes interactivas y asociativas, así como actuar de forma proactiva, innovadora y participativa.

atención de enfermería; rol de la enfermera; responsabilidad social; investigación en enfermería


pt_10

ARTIGO ORIGINAL

Evidenciando o cuidado de enfermagem como prática social

Dirce Stein BackesI; Alacoque Lorenzini ErdmannII; Andreas BüscherIII

IDoutor em Enfermagem, Professor, Centro Universitário Franciscano - UNIFRA, Santa Maria, RS, Brasil. Membro, grupo de pesquisa GEPADES, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, e-mail: backesdirce@ig.com.br

IIDoutor em Enfermagem, Professor Titular, Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenador, grupo de pesquisa GEPADES, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, e-mail: alacoque@newsite.com.br

IIIEnfermeira, Doutor, Pesquisador e Professor, Institute of Nursing Science, University of Bielefeld, Alemanha, e-mail: andreas.buescher@uni-bielefeld.de

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender o significado do cuidado de enfermagem como prática social à luz das interações e associações do pensamento sistêmico-complexo. A metodologia utilizada foi a teoria fundamentada nos dados, com entrevista semiestruturada, realizada com trinta e cinco profissionais da saúde, distribuídos em diferentes grupos amostrais. A codificação e a análise simultânea dos dados possibilitaram a identificação da categoria central: "evidenciando o cuidado de enfermagem como prática social". O cuidado de enfermagem como prática social, orientado pelo pensamento sistêmico-complexo, se constitui em novo paradigma de intervenção, capaz de potencializar as ações locais por meio das redes interativas e associativas, bem como atuar de forma proativa, inovadora e participativa.

Descritores: cuidados de enfermagem; papel do profissional de enfermagem; responsabilidade social; pesquisa em enfermagem

INTRODUÇÃO

As discussões e investigações em torno do cuidado de enfermagem como prática social são amplas e crescentes, porém, constituem-se ainda em grande desafio para a área do conhecimento. Lidar harmonicamente e acompanhar o desenvolvimento técnico/científico para o pleno exercício de uma profissão, sintonizada com as contradições sociais emergentes, necessita, sob o ponto de vista da autoria, ir além dos limites institucionalizados e modelos tradicionais do saber-fazer enfermagem.

Estudos, recentemente desenvolvidos, se mostram provocantes no sentido de buscar compreender melhor o cuidado de enfermagem como prática social, quando referem que, tanto na teoria quanto na prática e representação nas políticas sociais e de saúde, a inserção de grande parte dos profissionais de enfermagem é ainda bastante tímida(1-2). Os autores mencionam, ainda, que, embora a enfermagem possua o maior contingente de trabalhadores da área da saúde, a mesma ocupa posição secundária no que se refere à execução de ações concretas de saúde que revertam na participação e elaboração de políticas públicas, voltadas para o desenvolvimento social.

Na mesma direção, outros estudiosos questionam o papel da enfermagem na atual configuração política e social, considerando as desigualdades crescentes, tanto no âmbito social como no campo das práticas de saúde. A enfermagem necessita rever a sua prática e o seu papel social, mostrando concretamente o seu engajamento nas discussões que dizem respeito às crescentes injustiças sociais e na saúde(3). O enfermeiro, como também os demais profissionais da saúde, precisam desenvolver atitude crítica e reflexiva, no sentido de implementar ações político-sociais que expressem a participação responsável e comprometida com o desenvolvimento social.

Outro estudo, mais recente, que objetivou compreender e analisar as concepções de cuidado expressas nas teses de doutorado de um programa de pós-graduação de enfermagem, defendidas entre o ano de 1995 e 2005, evidenciou que, apesar da riqueza das apreciações teórico-prática, as investigações, na sua maioria, foram realizadas mediante situação de doença, além de baseadas em práticas institucionalizas do saber/fazer tradicional(2). Os resultados retrataram, em síntese, que a enfermagem é um campo de prática social por prestar assistência com competência técnico-científica ao indivíduo doente e sadio, à família e à comunidade, no entanto, focada no fazer tradicional assistencialista, pela pouca expressividade no desenvolvimento de atividades proativas de intervenção social.

As percepções de cuidado, evidenciadas por meio das buscas teóricas e os apelos provindos das questões sociais emergentes, tornaram ainda mais incessante o desejo de ampliar a compreensão do cuidado de enfermagem, para além do saber/fazer tradicional e das práticas institucionalizadas. O enfermeiro, hoje, mais do que nunca, deve ser capaz de extrapolar os limites do saber disciplinar, dos sistemas institucionalizados e, principalmente, dos contornos da doença fisiológica, a fim de compreender e empreender, com vistas à integração de uma visão sistêmica, paradoxal e interativa, as questões sociais e da saúde.

A percepção de que o enfermeiro pode e é capaz de interagir proativamente no campo do desenvolvimento social, pela ampliação das possibilidades proativas, reflete, em última análise, o desejo de fazer a travessia do paradigma cartesiano, ainda hegemônico na área da saúde, para o pensamento sistêmico de intervenção social, capaz de contemplar e considerar o uno e o múltiplo em vez da eficiência apenas individual(4).

O pensamento sistêmico-complexo conduz, portanto, o pensar não às evidências, às certezas, mas em direção ao global, ao incerto, ao desconhecido e ao real(5). Ao apelar para o pensamento sistêmico para compreender o significado do cuidado de enfermagem como prática social, considerou-se que não existe chave para se penetrar no universo da complexidade, "o que existe são vias, caminhos, avenidas diferentes que conduzem em direção aos desafios do conhecimento"(6).

A percepção de que o enfermeiro tem conhecimento e inserção específica no âmbito das práticas sociais(7) e que, por meio do cuidado como prática social, é capaz de contribuir para o desenvolvimento sustentável, que tem a ver com a ampliação das oportunidades reais dos seres humanos, impulsionou a busca pela melhor compreensão do significado do cuidado de enfermagem como prática social.

OBJETIVOS

Compreender o significado do cuidado de enfermagem como prática social à luz das interações e associações do pensamento sistêmico-complexo.

MÉTODO

Estudo qualitativo, tendo a teoria fundamentada nos dados (TFD) como referencial metodológico(8-9). Aspecto fundamental a ser considerado na TFD é o desenvolvimento da amostra teórica. Diferentemente de outros métodos, a amostra teórica na TFD não é definida anteriormente à coleta de dados, mas é definida no transcorrer do processo de coleta e análise, com base nos conceitos e hipóteses conceituais emergentes.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas com profissionais da saúde, de diferentes instituições e distribuídos em diferentes grupos amostrais, com a finalidade de maximizar a variação entre os conceitos e acrescentar novas perspectivas ou hipóteses ao fenômeno sob investigação. Dentre os entrevistados, encontram-se enfermeiros, médicos, odontólogos, nutricionistas, farmacêuticos, psicólogos, pedagogos, gestores administrativos e usuários da saúde.

A questão norteadora que conduziu as entrevistas, dentre outras que emergiram no decorrer do processo, foi: qual o significado do cuidado de enfermagem como prática social para você?

Para a amostragem teórica, procurou-se coletar dados que pudessem subsidiar a construção teórica, de forma que, ao coletar, codificar e analisá-los, processo esse que ocorreu simultaneamente, se alcançasse a saturação teórica. A mesma foi atingida com 35 entrevistas, realizadas entre maio e dezembro de 2007.

A cada entrevista, os dados foram transcritos e realizada revisão minuciosa do texto. Na sequência, deu-se início à identificação das unidades conceituais. Os dados foram codificados linha por linha, comparados entre si e designados em categorias. Na etapa seguinte, as pesquisadoras escolheram uma categoria da codificação aberta - primeira etapa da codificação - e a colocaram como tema central, comparando-a às demais categorias. Na fase a seguir, também chamada codificação axial, os dados foram agrupados em novas formas, buscando expandir e compactar a teoria emergente a partir das conexões teóricas. Como processo facilitador da análise dos dados e do agrupamento das categorias, foi utilizado o modelo de paradigma(8-9).

Com base na integração dos elementos e das conexões teóricas entre as subcategorias e categorias, foi possível mover-se em direção à codificação seletiva, terceira fase da codificação, da qual resultou a identificação da categoria central, qual seja: "evidenciando o cuidado de enfermagem como prática social".

Todos os integrantes da pesquisa foram esclarecidos sobre os objetivos e a metodologia propostos, bem como assegurado o seu direito de acesso aos dados. O consentimento livre e esclarecido por escrito foi solicitado, a fim de poder divulgar as informações. O projeto foi aprovado por unanimidade pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC.

As contribuições dos participantes, por escrito, a serem utilizadas neste trabalho estarão identificadas, ao longo do texto, com a letra inicial "P", seguida de um algarismo que corresponde à fala.

RESULTADOS

A codificação e a análise simultânea dos dados possibilitaram a identificação da categoria central: "evidenciando o cuidado de enfermagem como prática social". A categoria é composta pelas seguintes subcategorias: significando o cuidado de enfermagem como prática social, reconhecendo potencialidades humano-interativas do enfermeiro e reconhecendo competências técnico-políticas do enfermeiro que, a seguir, serão discutidas à luz das interações e associações do pensamento sistêmico-complexo.

O papel social do enfermeiro fica visível nas diferentes práticas e se expressa de diferentes formas. Para os profissionais da saúde, a enfermagem deve ser considerada a profissão que mais converge para o contexto social, ou seja, é a profissão que tem atuação mais direta e participativa no âmbito das práticas sociais.

Significando o cuidado de enfermagem como prática social

Para os enfermeiros, mais especificamente, o significado do cuidado de enfermagem como prática social está relacionado à compreensão do contexto social do usuário da saúde, da família e comunidade. Com a inserção mais ativa e efetiva no Programa Estratégia Saúde da Família (PSF) e nos Programas de Internação Domiciliar (PID), os enfermeiros percebem que a sua prática transforma e é transformada. Mesmo que para alguns enfermeiros a adaptação à nova realidade, para a qual não foram preparados, tenha sido desafiadora, o contato direto com a realidade social dos usuários representa satisfação e motivação, além de promover sensação de bem-estar profissional e social.

A sensação de completude profissional, provocada pelo contato direto com o indivíduo em seu contexto familiar e comunitário, é bem maior que no hospital, onde a aparente segurança tecnológica e o conforto da estrutura limitam a autonomia profissional.

Quando eu entrei no PID, eu tinha muito medo porque eu não sabia como seria. Porque dentro da unidade de tratamento intensivo (UTI), onde trabalhei por 15 anos, a gente ficava muito protegida, se tinha tudo... Na família eu não sabia como seria. Lá eu preciso colocar todo o meu potencial para conseguir assistir e interagir... mas a minha satisfação agora é maior. Na UTI tem muito aquela limitação. Nem tudo é resolvido e isto causava certa frustração. Na UTI eu não conseguia ir a fundo. Na visita às famílias, a gente vai a fundo... eles me ligam à noite e não por um sintoma físico. Na visita a gente tem um impacto direto... Hoje sou enfermeira. Hoje me sinto muito mais enfermeira. Sou uma profissional completa. A gente cria um vínculo maior. Eu mergulho. Eu gosto muito do que faço. Eu me sinto bem (P13).

O espaço social, no entender dos enfermeiros, amplia as interações, fortalece os vínculos de confiança entre profissionais e usuários e possibilita a satisfação tanto do profissional quanto do usuário. Tenho um retorno que é positivo. E parece que este alimenta e motiva a volta à comunidade. Quando me aposentei, senti que precisava preencher algo... voltei para a comunidade... sabia que ali poderia ser enfermeira (P12). O espaço social, mais especificamente o espaço familiar e comunitário, possibilita aprendizado contínuo e intensa troca de experiências. Além disso, é espaço que fortalece a autonomia do profissional e do usuário da saúde e, ainda, estimula o protagonismo social. Eu preciso encontrar espaços onde eu possa fortalecer a autonomia e a comunidade te proporciona isto... (P9). Na família, a gente precisa levar em conta a autonomia do usuário... tem a possibilidade de troca, de eu também aprender. Então existe toda uma interação, ele passa a ser autor e ator do processo (P4).

O significado da prática social está associado, na visão dos enfermeiros, ao envolvimento, à responsabilidade e à resolutividade das ações de saúde. Como consequência desse processo, os enfermeiros percebem, para além da satisfação do usuário da saúde, a conquista de maior credibilidade e reconhecimento social.

Reconhecendo potencialidades humano-interativas do enfermeiro

Uma das potencialidades humano-interativas do enfermeiro, mais reconhecida e destacada pelos profissionais entrevistados, associa-se à capacidade de compreender o ser humano como um todo, à capacidade de compreender as diferentes dimensões e entrar na fragilidade do ser humano.

O enfermeiro destaca-se, dentre outras potencialidades, pela integralidade da assistência à saúde, pela capacidade de compreender o contexto social e se identificar com as necessidades e expectativas dos indivíduos, pela capacidade de potencializar as qualidades dos indivíduos, pela capacidade de interagir diretamente com o usuário e a comunidade, bem como promover a interação entre os usuários e a equipe de saúde. O enfermeiro é o profissional que tem a vivência tanto do ponto de vista psicológico, físico e técnico para atuar nos diferentes espaços. Ele é aglutinador da assistência. Ele se identifica muito mais com as necessidades do paciente do que os demais profissionais (P29).

Pelo fato de compreender o usuário da saúde como um ser integral e se envolver efetivamente com as diferentes situações sociais, o enfermeiro encontra, frequentemente, dificuldades para identificar o objeto de sua prática, ou seja, identificar a sua especificidade no conjunto das ações profissionais de saúde. Uma das enfermeiras relatou essa dificuldade ao integrar uma equipe multiprofissional de saúde, na qual cada profissional da saúde partilhava a sua avaliação em relação a um determinado cliente, cuja patologia resultava em um estudo de caso. Nos primeiros encontros, dizia ela, pelo fato de ter falado no final, não restava nenhum aspecto novo a ser acrescentado, considerando que os demais profissionais já tinham mencionado tudo em relação ao cuidado. Em outras palavras, enquanto os outros profissionais falavam apenas das partes, ao enfermeiro restava falar do todo, do cuidado integral, como segue a reflexão.

Cada um tinha que fazer uma avaliação dentro da sua área. Então uma das coisas que eu senti na pele foi: o nutricionista ao apresentar o seu diagnóstico falava de todo o aspecto nutricional do paciente. Aí vinha o assistente social e falava de todo o aspecto social do paciente. Aí vinha o psicólogo e falava de todo o aspecto emocional do paciente. Aí vinha o enfermeiro, e o que falar, uma vez que já tinham falado tudo. Então ao enfermeiro restava olhar o todo, enquanto os outros falavam das partes (P24).

A enfermagem compreende o indivíduo não como um ser doente, mas como um ser integral, isto é, um ser uno, complexo e multidimensional.

Reconhecendo competências técnico-políticas do enfermeiro

O enfermeiro é reconhecido como o profissional da saúde que detém conhecimento mais apurado e visão mais ampliada das questões de saúde. Isso se expressa pela capacidade de estabelecer relação mais próxima com o usuário da saúde em seu contexto social. Pela sua visão ampliada de saúde, o enfermeiro foi caracterizado, pelos entrevistados, como o articulador, a mola propulsora e, consequentemente, o reflexo da assistência de saúde. O enfermeiro é um articulador dos serviços de saúde na sociedade ou em qualquer espaço em que ele esteja (P8). A enfermagem é a profissão que toca o serviço de saúde (P25). Para mim a enfermeira é aquela figura de frente em qualquer setor, seja na unidade de saúde ou no hospital. É o reflexo da assistência de saúde (P19). Na equipe de saúde, o enfermeiro é um elo... É realmente um tubo de ensaio, diferentemente de outros profissionais (P29).

Em outros momentos, o enfermeiro foi identificado, mais especificamente no campo das políticas sociais e de saúde, como o advogado do paciente, ou o porta-voz da comunidade. Essa competência fica mais visível naqueles profissionais que possuem atuação política pública mais específica. A minha inserção foi pública e trabalhava com um grande número de pessoas. Eu percebi que as pessoas precisavam de uma voz ativa que os representasse e viram que poderia ser indicada em defesa deles nestas áreas (P5).

O enfermeiro destaca-se, mais precisamente, pela organização e envolvimento com os serviços de saúde como um todo. Para os profissionais da saúde, de modo geral, o enfermeiro tem formação específica para a liderança e o trabalho em equipe. Além disso, tem a capacidade para gerenciar e contornar as diferentes situações do usuário da saúde. Já para o enfermeiro, dificilmente ele não vê o conjunto das coisas, ou seja, o usuário inserido na rede social como um todo. A enfermagem tem um olhar, isto é próprio da enfermagem e todos os que trabalham na saúde coletiva percebem isto... ela tem um olhar amplo. Quem majoritariamente coordena os serviços de saúde são os enfermeiros. Eles têm uma formação específica, um pouco diferente dos médicos, dos dentistas... o próprio vínculo de trabalho faz com que a enfermagem seja mais comprometida com o sistema... Eu vejo a gestão, a participação e o trabalho em equipe como características importantes da profissão (P25).

As competências técnico-políticas do enfermeiro se expressam, de modo especial, na responsabilidade e comprometimento com que assume a causa do cliente, no modo de encarar os diferentes movimentos do dia a dia e na capacidade para integrar, aglutinar e articular os serviços de saúde, a fim de que o usuário tenha um atendimento resolutivo.

Os resultados da presente pesquisa ampliam e fortalecem ideias de estudos anteriormente desenvolvidos, nos quais já ficou evidente que o enfermeiro ocupa importante espaço no campo das políticas sociais e de saúde. As habilidades do enfermeiro se expressam, especialmente, pelo enfrentamento das fragilidades humanas, pelas intervenções educativas e de promoção da saúde e, principalmente, pela capacidade para articular os serviços de saúde, integrando indivíduo-sociedade-saúde-ambiente nos diferentes campos de atuação profissional(10-11).

DISCUSSÃO

Pelo fato de compreender o indivíduo como um todo, o enfermeiro estabelece identificação mais próxima e efetiva com as necessidades concretas dos indivíduos e comunidades. Muito mais que os outros profissionais da saúde, o enfermeiro tem a capacidade para interação mais intensa com o indivíduo, família e comunidade. Consegue perceber e apreender os problemas e necessidades sociais de forma real e contextualizada. Para alguns profissionais, a própria formação e vínculo de trabalho favorecem para que o enfermeiro tenha maior comprometimento e envolvimento social.

O cuidado de enfermagem como prática social, mais especificamente o cuidado inserido na comunidade, enriquecido pela intervenção direta na realidade do indivíduo e sua família, possibilita ir a fundo, mesmo que acompanhado, a priori, por sentimentos de insegurança e incertezas. Possibilita criar relações complexas, isto é, múltiplas interações, nas quais os profissionais têm a possibilidade de investir todo o seu potencial criador, inovador e empreendedor, as quais se mostram limitadas nas relações simplificadas, como aquelas relacionadas ao cuidado tradicional institucionalizado. Esse pensar e agir dos profissionais encontra ressonância no pensamento sistêmico-complexo(4-5), quando os autores enfatizam que algo é complexo na medida que, no mínimo, envolve mais de uma circunstância ou possibilidade interativa e maior número de entidades explicativas.

Na linguagem cotidiana, uma situação complexa "soa como confusa e difícil de ser resolvida. Evoca uma realidade cheia de dobras, nas quais se escondem variáveis difíceis de serem compreendidas"(12). É nas situações complexas e aparentemente confusas ou incertas, no entanto, que se escondem as maiores possibilidades criativas e interativas, visto que essas exigem maior reflexão e a busca constante da verdade, que se mostra de forma cada vez mais complexa.

Para os entrevistados está clara a ideia de que o conhecimento precisa ser dialogado, compartilhado e confrontado. Esse pensar fica evidente, na medida em que os profissionais argumentam que as intervenções, que antes pareciam serem simples e de fácil identificação, passaram a exigir compreensão multidimensional e complexa. Dito de outro modo, passaram a exigir a "conjunção complexa do uno ao múltiplo e do olhar as partes para compreender o todo e o todo para compreender as partes"(13). Apenas há alguns anos, o especialista, com mínimo de apoio pessoal e tecnológico e com os conhecimentos e competências que aprendera na escola, deliberava e resolvia a maior parte dos problemas relacionados à saúde(14). Hoje, no entanto, esse processo precisa ser ampliado e estar interconectado com os diferentes saberes, visto que em todas as disciplinas, em todos os níveis e na sociedade em geral os cuidados de saúde são cada vez mais complexos.

O conhecimento sistêmico-complexo permite, ao enfermeiro, avançar no mundo concreto e real dos fenômenos sociais, num esforço por compreender melhor a si mesmo, o outro e a realidade a partir de um conceito ampliado de saúde. Para os pensadores sob a perspectiva sistêmica, "o pensamento complexo é aquele que se esforça para unir, não na confusão, mas operando diferenciações. [...] A necessidade vital da era planetária, do nosso tempo, é um pensamento capaz de unir, integrar e diferenciar"(15).

Pensar e agir com base nas interações e associações do pensamento sistêmico-complexo implica navegar por um mar de incertezas, descontinuidades e desconhecimentos. Implica, em outras palavras, numa contínua e permanente travessia em busca do diferente, do aleatório e do novo(13).

Muito além de criar, inovar ou resolver, de forma simplificada, os problemas de saúde, o "cuidado de enfermagem como prática social" evidencia, por parte dos enfermeiros, a inserção na realidade concreta e o desenvolvimento de propostas que mostrem concretamente a sua participação social. Confrontar-se com as contradições sociais emergentes, sob esse enfoque, significa empreender, no sentido de rever práticas e posturas tradicionais, e assumir, definitivamente, uma nova postura em defesa da vida, ameaçada pelo modelo econômico-hegemônico reducionista(12).

A enfermagem possui competências múltiplas e campo de atuação amplo e socialmente reconhecido, mas precisa ousar no sentido de explorar as oportunidades e visualizar novos espaços, entendendo que ser protagonista social é ser capaz de explorar as oportunidades e protagonizar novos campos e práticas de atuação profissional. É ter a capacidade para imaginar, desenvolver e concretizar visões, onde os conceitos de si, sinergia, liderança e sistema de relações/interações são elementos fundamentais(16).

O cuidado de enfermagem como prática social, orientado pelo pensamento sistêmico-complexo, se constitui em novo paradigma de intervenção, capaz de potencializar as ações locais por meio das redes interativas e associativas, bem como atuar de forma proativa, inovadora e participativa.

Pensar no indivíduo e família que se apresenta ao profissional da saúde, em condição de vulnerabilidade, requer níveis de compreensão, acolhimento, escuta qualificada e vínculos de confiança intersubjetivos, sustentados à luz de referenciais capazes de conceber as múltiplas variáveis, isto é, as inter-relações e interconexões que envolvem o processo saúde/doença.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cuidado de enfermagem como prática social está fortemente associado à ideia da inserção comunitária ou das práticas de inserção comunitária. Para os profissionais entrevistados, de modo geral, a enfermagem se caracteriza como prática social histórica e o objeto de sua prática é, eminentemente, social.

A prática social do enfermeiro está associada, também, às práticas comunitárias integradas e integradoras. Está clara a ideia, tanto para os enfermeiros como para os demais profissionais da saúde, de que as práticas de inserção comunitária se constituem em espaços flexíveis e sensíveis, capazes de ampliar as possibilidades interativas e garantir a resolutividade em saúde. As instituições hospitalares, diferentemente, foram descritas como espaços limitados, associados à divisão do trabalho, à estrutura hierárquica, à rigidez, às normas rígidas, dentre outros.

O cuidado de enfermagem como prática social se destaca e diferencia, em suma, pelas práticas interativas e integradoras de cuidado, às quais vêm adquirindo importante repercussão, tanto na educação como na promoção e proteção da saúde dos indivíduos. Sem grandes premeditações, é possível argumentar que a enfermagem é profissão eminentemente social e se configura, crescentemente, como a profissão do futuro, pela possibilidade de compreender o indivíduo não como um ser doente, mas como um ser multidimensional, com potencial auto-organizador, por isso, partícipe e autor da sua própria história. Basta, no entanto, que a enfermagem invista em atitudes proativas, capazes de promover o desenvolvimento social pela ampliação das oportunidades reais dos seres humanos em seu contexto real e concreto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Aceito
    13 Ago 2009
  • Recebido
    04 Dez 2008
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