Acessibilidade / Reportar erro

Percepção do funcionamento familiar entre familiares de mulheres sobreviventes ao câncer de mama: diferenças de gênero

Resumos

O objetivo deste estudo foi conhecer como familiares do gênero feminino e masculino percebem a dinâmica de suas famílias, após o câncer de mama. Investigação de abordagem qualitativa que tomou como referencial teórico o modelo de funcionamento familiar saudável, proposto por Barnhill. Participaram 23 familiares constituintes de 10 famílias. Os dados foram coletados por meio de entrevistas e submetidos à análise de conteúdo. Os resultados mostraram que, no processo de adaptação ao câncer de mama, ambos os gêneros utilizam a comunicação clara para a busca do equilíbrio familiar e apresentam interações caracterizadas por sentimentos de mutualidade e individuação. Às filhas é atribuída a responsabilidade pela manutenção da família e os elementos do gênero masculino demonstram maior desorganização no funcionamento familiar. O vínculo dos familiares de ambos os gêneros que vivenciam o câncer de mama apresentam interações importantes no processo de identidade.

Neoplasias da Mama; Família; Identidade de Gênero; Enfermagem


The aim of this study was to know how female and male family members perceive their family dynamics after breast cancer. Barnhill's proposal of a healthy family functional model served as the theoretical framework for this qualitative research. The data was obtained through interviews and submitted to content analysis. The results showed that, in the adaptation process to breast cancer, both genders use clear communication in order to achieve family balance and present interactions characterized by mutual and individual feelings. The responsibility for maintaining the family is attributed to the daughters, whereas the male elements show more disorganization with regard to family functions. The bond between family members of both genders who are affected by breast cancer shows important interactions in the identity process.

Breast Neoplasms; Family; Gender Identity; Nursing


El objetivo de este estudio fue conocer como familiares del género femenino y masculino perciben la dinámica de sus familias, después del cáncer de mama. Es una investigación de abordaje cualitativo que tomó como marco teórico el modelo de funcionamiento familiar saludable, propuesto por Barnhill. Participaron 23 familiares constituyentes de 10 familias. Los datos fueron recolectados por medio de entrevistas y sometidos al análisis de contenido. Los resultados mostraron que, en el proceso de adaptación al cáncer de mama, ambos géneros utilizan la comunicación clara para la búsqueda del equilibrio familiar y presentan interacciones caracterizadas por sentimientos de mutualidad e individuación. A las hijas es atribuida la responsabilidad por la manutención de la familia y los elementos del género masculino demuestran mayor desorganización en el funcionamiento familiar. El vínculo de los familiares de ambos géneros, que experimentan el cáncer de mama, presenta interacciones importantes en el proceso de identidad.

Neoplasias de la Mama; Familia; Identidad de Género; Enfermería


ARTIGO ORIGINAL

Percepção do funcionamento familiar entre familiares de mulheres sobreviventes ao câncer de mama: diferenças de gênero

Raquel Gabrielli BiffiI; Marli Vilela MamedeII

IDoutor em Enfermagem, Professor, Departamento de Enfermagem, Centro Universitário Barão de Mauá, SP, Brasil. E-mail: gabriellibiffi@yahoo.com.br

IIDoutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: mavima@eerp.usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste estudo foi conhecer como familiares do gênero feminino e masculino percebem a dinâmica de suas famílias, após o câncer de mama. Investigação de abordagem qualitativa que tomou como referencial teórico o modelo de funcionamento familiar saudável, proposto por Barnhill. Participaram 23 familiares constituintes de 10 famílias. Os dados foram coletados por meio de entrevistas e submetidos à análise de conteúdo. Os resultados mostraram que, no processo de adaptação ao câncer de mama, ambos os gêneros utilizam a comunicação clara para a busca do equilíbrio familiar e apresentam interações caracterizadas por sentimentos de mutualidade e individuação. Às filhas é atribuída a responsabilidade pela manutenção da família e os elementos do gênero masculino demonstram maior desorganização no funcionamento familiar. O vínculo dos familiares de ambos os gêneros que vivenciam o câncer de mama apresentam interações importantes no processo de identidade.

Descritores: Neoplasias da Mama; Família; Identidade de Gênero; Enfermagem.

Introdução

A confirmação do diagnóstico de câncer de mama leva a mulher afetada e a sua família a se depararem com difíceis decisões e enfrentamentos. Essa patologia torna-se grande desafio na vida de uma família, pois nenhum dos membros permanece intocado, ocasionando, por vezes, mudanças nas configurações estabelecidas entre eles, o que impõe importante desafio à habilidade do grupo familiar de se conservar relativamente organizado enquanto se ajusta às necessidades diversas(1).

O profissional de saúde deve estar sensibilizado a ponto de reconhecer a família como um fenômeno complexo que necessita de apoio, sobretudo em situações que apresentam o câncer de mama, pois demanda mudanças significativas na dinâmica familiar. O cuidado centrado na família envolve todos os seus membros e importância especial é dada às relações estabelecidas entre eles, entendidas como um dos determinantes do processo saúde/doença(2). Esclarecimentos sobre a patologia e o tipo de tratamento a ser seguido favorecem a promoção da saúde, tornando as pacientes mais independentes para o cuidado de si mesmas e para a realização de outras atividades relacionadas ao ambiente e à família(3).

É comum observar na unidade familiar dificuldades em relação ao estabelecimento de condutas e comportamentos que promovam o equilíbrio familiar, revelando que a família necessita atentar para identificar situações conflitantes, possivelmente expostas pelos seus membros para que não venha emergir discórdias irreparáveis no futuro(4).

Estudo aponta que, quando um membro do grupo familiar é acometido pelo câncer de mama, a dinâmica familiar é alterada. E a experiência profissional tem mostrado que a participação e o ajustamento dos familiares à nova condição de saúde familiar, devido ao câncer de mama em um de seus membros, se dá de forma diferenciada entre o gênero masculino e o gênero feminino daquela família(5). A experiência ainda tem mostrado que nesse processo de adaptação familiar à nova condição de saúde coexiste rígida divisão de papéis sexuais entre seus membros e, muitas vezes, cabe ao gênero feminino a maior carga de responsabilidade na manutenção da harmonia familiar.

A literatura apresenta-se bastante escassa quando se busca estudar as relações entre o ajustamento familiar, após o câncer de mama, e a participação de familiares de acordo com o gênero. Nesse sentido, trazer a ótica de gênero para os estudos sobre dinâmica familiar de membros com câncer de mama possibilita desenvolver conhecimentos concretos sobre a posição das mulheres naquela realidade e visualizar as relações de igualdade e diferença entre os sexos no funcionamento familiar, tendo em vista que os gêneros masculino e feminino assumem posições e papéis diferenciados no processo de cuidar da família.

O conceito gênero será entendido na presente pesquisa como o processo pelo qual a sociedade classifica e atribui valores e normas para homens e mulheres, construindo, assim, as diferenças e hierarquias sexuais, delimitando o que seriam papéis masculinos e femininos. Dessa forma, a interpretação acerca da diferença entre os sexos pode apontar para uma relação de complementaridade ou de hierarquia, a depender da cultura(6).

Incorporar a família na unidade de cuidado à mulher com câncer de mama, portanto, se faz necessário e urgente, e focalizar a atenção nas relações sociais de gênero, estabelecidas entre os membros familiares no processo de adaptação à nova condição de vida famíliar pode ser estratégia importante de cuidado. Sendo assim, o presente estudo apresenta a seguinte questão nortedora: a percepção sobre a dinâmica familiar entre os familiares de sobreviventes do câncer de mama é distinta entre os gêneros masculino e feminino?

Os resultados deste estudo poderão proporcionar às enfermeiras um olhar mais crítico sobre a relação do ajustamento familiar de sobreviventes ao câncer de mama com questões mais amplas, nas quais seus membros, homens e mulheres, modelam o desenvolvimento dos papéis sociais em função de determinações sociais, sexuais e culturais.

Objetivo

Conhecer como familiares do gênero feminino e masculino percebem a dinâmica de suas famílias após o câncer de mama.

Metodologia

Estudo de abordagem qualitativa que tomou como referencial teórico o modelo de funcionamento familiar saudável(7). Esse modelo de dinâmica familiar fundamenta-se na abordagem da teoria de sistemas e é composto por oito dimensões bipolares agrupadas em quatro processos familiares básicos. Na tabela abaixo, são descritos os processos e significados de cada uma das dimensões da teoria do sistema familiar saudável(7).

Tabela 1

As definições positivamente ordenadas descrevem a saúde e bem-estar familiar e servem como recursos em situações nas quais a família deve se adaptar à nova condição. As colocações negativamente ordenadas expressam a necessidade de lidar com essas situações. As dimensões relacionadas à percepção clara e percepção confusa ou distorcidas não foram utilizadas no presente estudo por se entender que funcionam como pré-requisito para identificar a qualidade da comunicação entre os membros familiares.

Amostra

A amostra constou de 23 familiares representados por dez famílias de mulheres com câncer de mama, que participavam de um núcleo especializado em reabilitação de mulheres com câncer de mama, no interior paulista, e que se prontificaram estender o convite a seus familiares para fazer parte da pesquisa.

A configuração dos participantes apresenta-se da seguinte forma: 11 mulheres (nove filhas, uma tia e uma sobrinha) e 12 homens (cinco filhos e sete parceiros). O tamanho da amostra conclui-se quando os depoimentos dos familiares foram organizados e analisados e as informações compartilhadas com os pesquisadores se tornaram repetitivas.

Todos os familiares, inicialmente, se dispuseram a participar da pesquisa, no entanto, 1 membro da família se recusou, alegando não dispor de tempo e não ter problema algum com o câncer de mama no contexto familiar, impossibilitando a inclusão do mesmo no trabalho.

Os familiares foram incluídos no estudo se atendessem os seguintes critérios: familiar de mulher com câncer de mama há pelo menos três meses; residir no município de Ribeirão Preto, ou localidades próximas, até cinquenta km de distância; ter residência fixa na casa da mulher, e ter mais de 18 anos de idade.

Instrumentos de coleta de dados

Utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada, com perguntas abertas, previamente elaboradas, as quais direcionaram para o entendimento do funcionamento da família após o câncer de mama como seguem: como é conviver com alguém na família que tem câncer de mama? O que mudou na sua casa? O que mudou no seu dia a dia após a cirurgia para retirada do câncer de mama? Você se percebe como alguém que dá suporte? Por quê? Você tem ou teve dificuldades para lidar com o diagnóstico de câncer de mama? Você conversou sobre isso? O que você tem feito/fez para superar tais dificuldades? Quem menos sofreu com o diagnóstico de câncer de mama? E quem mais sofreu? Quem dá mais suporte? E quem dá menos suporte?

Para validação do conteúdo do instrumento foram realizadas entrevistas com quatro mulheres com câncer de mama e treze familiares, os quais não foram incluídos no estudo.

Procedimentos

Após a confirmação da participação dos familiares na pesquisa, foram realizadas entrevistas individuais, na data e local convenientes para cada um deles. A coleta de dados foi realizada em 2007 e iniciada somente após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da EERP-USP, aceitação dos sujeitos em participar e assinatura do termo de consentimento pós-informado.

Todas as entrevistas foram utilizadas, gravadas e transcritas posteriormente, mediante a permissão dos participantes.

Para organização e análise dos dados realizou-se a categorização dos relatos, mediante análise de conteúdo, modalidade temática(8). Assim, buscou-se identificar conteúdos das falas dos familiares que se relacionavam com as dimensões do modelo de dinâmica familiar(7). Para esse processo de corte e recorte, foi criado um mapa, cujos recortes eram colocados nos espaços relacionados às dimensões do modelo de dinâmica familiar de acordo com o gênero e vínculo familiar do participante.

Para assegurar maior confiabilidade e validação ao processo de identificação de conteúdos, relacionados às dimensões do modelo de dinâmica familiar, esses foram submetidos à validação de construto por três juízes, sendo um pesquisador experiente na área e dois doutorandos e especialistas no atendimento à saúde da mulher e suas famílias(9).

Mediante apresentação para os juízes dos conceitos das dimensões do modelo teórico e de um conjunto de recortes das entrevistas, foi solicitado a eles a classificação dos mesmos conforme as dimensões do modelo. Após tais procedimentos, verificou-se a concordância entre os juízes e as pesquisadoras. Quando houvesse discordância da classificação feita pelas autoras com mais de um juiz, o recorte era descartado do processo de análise.

De posse dos recortes das unidades temáticas que representavam as dimensões do modelo de dinâmica familiar, eles foram agrupados de acordo com o gênero (masculino, feminino) dos participantes sem perder de vista o vínculo familiar de cada membro. Os participantes foram identificados com letras que identificavam o parentesco e o gênero filho (Fo), filha (Fa), marido (Ma), tia (Ta), sobrinha (Sa) e números que identificavam a que família (F) pertenciam.

Resultados e discussão

A faixa etária dos participantes deste estudo variou de 18 a 85 anos, sendo que a idade das mulheres foi de 19 a 85 e dos homens de 18 a 62 anos.

Os conteúdos relacionados à dinâmica familiar, mais verbalizados pelos familiares estudados de ambos os gêneros, dizem respeito aos processos de identidade e adaptação às mudanças, conforme apresentado na Tabela 2. Foi possível também verificar que os aspectos mais positivos desses processos foram identificados por grande parte de ambos os gêneros.

Cabe destacar que ambos os gêneros revelaram percepções muito parecidas sobre os aspectos positivos dos processos de identidade familiar e de adaptação às mudanças. Em seus discursos, os familiares de ambos os gêneros deixaram em evidência como suas famílias se organizam e o quanto cada um dos membros se mobilizou diante das dificuldades apresentadas no cotidiano familiar.

Como pessoas individuadas, falaram de sentimentos, referindo ao sofrimento que os membros vivenciaram, com a doença da mãe/parceira. Filhos e filhas demonstraram que se sentiam como pessoas que experimentavam suas identidades pessoais nos relacionamentos familiares e que, diante dos problemas, eles se colocavam em posição de enfrentamento dos mesmos, procurando ajudar, assim como os demais membros da unidade familiar.

Na nossa família não existe alguém que dá menos apoio, tem uma frase que eu gosto muito: você não dá mais daquilo que você pode oferecer, mas todo mundo tem algo a oferecer, cada um à sua forma. Não acredito que exista alguém mais completo para apoiar de maneira única (Fo-F2).

Meus outros irmãos não me ajudam porque um não está em casa, um estuda fora e os outros estão casados, mas eles sofrem bastante também, mas quem mais vê tudo sou eu (Fa-F7).

No século XX, a família foi caracterizada, sobretudo pela construção de uma lógica de grupo centrada no amor e na afeição. Essa família era um grupo, regulado pelo amor, no qual os adultos estavam a serviço do grupo e principalmente das crianças. O homem devia ir ao trabalho e a mulher devia ficar em casa para tornar seu interior aprazível, No entanto, a família, na atualidade, ainda com algumas características antigas, se distingue da precedente pelo peso maior dado ao processo de “individuação”. O elemento central não é mais o grupo reunido, mas sim os próprios membros que a compõem. A família se transforma, então, em espaço privado a serviço dos indivíduos(10).

Ao se refletir sobre o conteúdo dos depoimentos identificados como individuação e mutualidade, apresentados pelo gênero masculino; especificamente relatados pelos parceiros; pode-se ver que o significado da conjugalidade está relacionado à conformação de condutas e atitudes no contexto familiar.

Eu mesmo me ajudo no meu dia a dia em relação ao câncer de mama dela. Eu não me canso de falar que uma das melhores coisas que eu fiz na minha vida foi casar, encontrei a parceira certa (Ma-F5).

Não tem opção, você vai ficar sentado dentro de uma tina de água benta e vai sarar? Não tem jeito, nós temos que fazer o quê? Tem que fazer cirurgia tem que tirar, então vai cuidar disso e passamos a enfrentar a nova situação. Eu sou o marido dela e tenho que ajudá-la (Ma F4).

A conjugalidade ocorre para um conjunto de indivíduos, num dado momento do percurso pessoal, e é ideologicamente marcada de forma diferenciada, de acordo com as condições de existência e com o gênero. Para o gênero masculino, fortemente expressa pelos parceiros aqui estudados, a produção de sentidos e identidade pessoal na estruturação de suas famílias foi construída através da relação com a parceira, ao longo de vida em comum, e foi dessa forma que construíram uma maneira de ver o mundo familiar e a si próprios. E, na situação de doença da esposa, para muitos, exigiu-se um re-olhar para a dinâmica familiar(11). Percebe-se que foi através dessa relação construída ao longo da vida marital que os maridos se posicionaram depois do câncer de mama no contexto familiar, dando sinais de pertencimento ao seu grupo familiar, cumprindo, assim, aspectos importantes de sua identidade social, conforme expressado por um dos filhos, abaixo.

Meu pai me chamou e falou: filho, a Carmem vai precisar bastante da gente. Percebi assim que foi uma convocação, assim, você vai fazer parte dessa tropa toda, estamos precisando de gente (Fo1-F2).

Por outro lado, foi possível perceber que atitudes caracterizadas por mutualidade e sinais de individuação identificadas pelo gênero feminino, especialmente quanto aos aspectos da relação entre filha e mãe, parecem estar relacionadas à herança mórbida(12), por estar o câncer de mama ligado a fatores genéticos.

Eu fiquei bem assustada porque dizem que o câncer é hereditário e eu já estou com 37 anos. Eu mudei o meu comportamento, procurei fazer de ano em ano todos os exames de mama, mamografia, ultrassom, procurei me cuidar mais (Fa-F4).

Essa particularidade trouxe proximidade emocional entre mãe e filha, um senso de autonomia e responsabilidade pessoal para com a saúde de ambas.

Todo mundo ficou mais atento a ela, começou dar mais atenção, a gente tem certo cuidado a mais do que tinha antes, mais carinho, procura ficar mais perto dela, não deixar ela sozinha, eu sou filha tento ficar o maior do tempo junto dela (Fa-F1).

Além disso, percebe-se que, para o gênero feminino, as suas relações familiares se revestem de consistência, responsabilidade e segurança diante de nova realidade no âmbito familiar.

Nós ficamos mais unidas do que nós éramos, e começamos a dar mais valor na vida, comecei valorizar mais a vida e a presença da minha mãe, sei lá parece que a filha sente mais (Fa-F7).

Minha mãe passou a ter mais confiança em mim, eu cuidava do almoço, cuidava da casa, dava banho nela e fazia os curativos, então ela se sentia bem (Fa-F9).

No gênero masculino, no entanto, neste estudo, pôde-se verificar identidades não compartilhadas ao revelar sinais negativos no funcionamento familiar, caracterizados por sinais de isolamento entre seus membros, inclusive deles próprios.

Meu irmão mais velho dá menos apoio. Ele trabalha, tem namorada ele fica pouco aqui, ele é meio desligadão, não procura se envolver nos assuntos de família. Ele é mais ausente (Fa-F1).

Eu não tenho o que fazer por ela, porque a interpretação do diagnóstico eu não participei, eu não entendia. Raras, às vezes, eu levei ela para a fisioterapia, ou qualquer outra coisa. Conversas íntimas ela tinha mais com as minhas irmãs, como eu sou homem, eu ficava sabendo só o superficial (Fo-F5).

O compartilhamento de identidades na vida familiar dá forma aos padrões e ideais da família, às linhas de autoridade, diferenciação sexual, divisão de trabalho e atitudes na educação dos filhos.

Os familiares do gênero feminino (filha e irmã) foram destacados, por elas mesmas e por outros membros da família, como elementos importantes para o oferecimento de apoio e, por consequência disso, mostraram-se sobrecarregadas por assumirem as responsabilidades do lar.

Eu percebo que dou apoio, eu acho que por ser filha mulher, eu sempre procuro estar junto com ela em todos os sentidos e fazer tudo junto com ela. Eu acho que sou uma das pessoas que dou mais apoio para ela, por ser mulher. Eu praticamente eu tomei a frente disso tudo (Fa-F1).

O papel de gênero consiste no conjunto de normas que a sociedade e a cultura estabelecem sobre o comportamento feminino ou masculino, de modo que seus sentimentos, comportamentos, atitudes, e brincadeiras são determinados por essa identificação(6).

Estudo(13) com filhas de mulheres com câncer de mama mostrou que elas vivenciam emoções intensas de choque, pânico e esgotamento diante da experiência com a doença. Esses achados sugerem haver relacionamento pouco diferenciado entre esses membros da família, podendo ser considerado que haja certa simbiose entre eles.

Por outro lado, o papel do gênero converte-se em fato social de tamanho impacto, fazendo com que seja encarado como “natural” a divisão entre o que é trabalho feminino e o trabalho masculino. Ao homem cabe o público, o poder, traçar diretrizes e metas, dirigir e comandar os altos cargos nas hierarquias funcionais, enquanto que as mulheres são destinadas à responsabilidade pelos filhos, estruturação do lar, cuidado dos idosos, e tudo o mais que se relaciona à esfera doméstica(6).

Os achados deste estudo possibilitaram apreender que, para manter a estabilidade da família, foram os elementos do gênero feminino/filhas que modificaram as suas rotinas para assegurar o bem-estar de suas mães e diretamente da família.

Eu mudei de casa e de cidade, trouxe meu marido e filho junto comigo só para ficar com a minha mãe, houve mudança total em casa e na casa da minha mãe, sou sua filha e quero cuidar dela (Fa-F9).

A estabilidade familiar resulta em produto de processos complexos e interdependentes, entre os quais se destacam a continuidade das identidades através do tempo, o controle de conflitos vivenciados na unidade familiar, a capacidade de mudanças, de aprender, de preencher novos papéis, de alcançar maior desenvolvimento, e, finalmente, a complementaridade das relações nos papéis familiares(13).

Hoje já conversa, a gente já brinca porque na época a gente não brincava muito a respeito da doença, então hoje a gente já conversa e já brinca, muitas vezes a gente vê a prótese dela e fala, olha a mama pulando aí. Brincadeiras como essa a gente consegue fazer, percebo que é uma coisa que foi superada (Fa-F4).

A manutenção de funcionamento equilibrado da família ocorre por meio de processos mentais múltiplos, como da percepção, memória, associação, julgamento e controle da emoção, coordenados através da implementação de estratégias de domínio e defesas específicas da constelação familiar. A estabilidade é uma característica dos sistemas vivos e é garantida por mecanismos de regulação e controle como, por exemplo, as regras familiares. Os depoimentos de ambos os gêneros deixam em evidência que o alcance da estabilidade familiar foi condicionado às mudanças adaptativas no padrão familiar, após o câncer de mama, e que dependeu muito da organização interna do lar.

Hoje em dia já se tornou algo cotidiano, criamos um hábito dentro da casa, um estilo próprio de vida, o fato de se prontificar um para o outro (Fo-F2.).

Faço de tudo para deixar a casa em harmonia (Fa-F1).

Os achados deste estudo, todavia, mostram a presença de alguns aspectos negativos nos processos de adaptação às mudanças no interior familiar, os quais foram identificados especialmente pelo gênero masculino. Sinais de desorganização emocional foram identificados, como apresentado nos depoimentos abaixo.

Eu trabalho, fumo, tomo cerveja pra esquecer, tomando cerveja, com tanta coisa que vem na cabeça da gente até esquece, pelo menos a gente relaxa um pouco e esquece do problema da mulher da gente (Ma-F3).

O filho dela, meu irmão desligado, fica mais preocupado com a namorada e sair para passear (Fo-F1).

Uma pesquisa mostra(14) que os cuidadores experimentam impacto adverso em seu trabalho, sendo frequente a perda de horas de serviço para atender às demandas do familiar doente.

Eu tive problema emocional, no serviço, eu trabalho como digitador, eu estava digitando errado aí a minha chefe me chamou para saber o que estava acontecendo. Na escola eu percebi que eu piorei o rendimento, nas notas (Fo1-F1).

Nos polos opostos, observam-se a estabilidade e flexibilidade, além da rigidez e da desorganização. A rigidez pode levar a família a manter padrões não muito adequados às suas condições de vida, enquanto a falta de certa regularidade nos padrões conduz ao caos, tornando o dia a dia imprevisível e desorganizado(14-15). A fala de um marido deixa transparecer essa situação.

Eu ajudo da maneira que eu posso, do jeito que eu sou não consigo mudar (Ma-F3).

Nos processos de estabilização e mudanças a comunicação entre os membros da família sofre influência decisiva. A comunicação é considerada como a característica mais importante dos bons relacionamentos, sobretudo porque permite aos membros da família discriminar comportamentos e aumenta a capacidade de ser compreendidos, proporcionando apoio(15).

Eu e minha mulher conversávamos sobre tudo. Cada detalhe, aí tudo se esclarecia a gente sempre conversou exatamente sobre tudo muito claramente sem nenhuma restrição, sem nenhum medo (Ma-F2).

Em famílias nas quais predominam fronteiras rígidas, ocorre distanciamento dos membros. Fronteiras difusas dão origem a relacionamentos próximos e íntimos, porém, a independência e a autonomia ficam comprometidas. Já as fronteiras adequadas permitem a proximidade, o afeto e a proteção, sem gerar simbiose dos membros(15).

No presente estudo, o gênero masculino, representado pelo parceiro, identifica, na sua própria interação, indicadores de comunicação distorcida na relação familiar.

Às vezes penso em fazer as coisas que quero fazer, mas não pode fazer porque vai dar problema, então se guarda de muita coisa.Eu às vezes penso em conversar com minha mulher, mas não falo, às vezes deixo quieto mesmo e não falo nada, a gente sente muito (Ma-F3).

Os parceiros mais expressivos têm maior facilidade para manterem o diálogo e isso favorece o crescimento pós-traumático do casal que experiencia o câncer de mama(14).

Por outro lado, a certeza da necessidade de comunicação clara entre os membros da família, conforme os filhos de ambos os gêneros e o parceiro expuseram, foi a estratégia encontrada por eles para aliviar tensão e favorecer a interação familiar. Contudo, o gênero feminino foi o que mais percebeu sinais de comunicação distorcida entre os membros, identificando certa vulnerabilidade familiar para a solução de conflitos, vivenciados no contexto familiar. Da mesma forma, foram as mulheres quem mais perceberam a presença de limites difusos ou perturbados no funcionamento familiar. Algumas filhas percebiam a figura do pai como alguém que prejudicava o funcionamento familiar.

O meu pai dá menos apoio, ele não pergunta o que ela tem, se ela está com dor se ela não está, e a gente percebe que ela sofre muito com isso também (Fa-F7).

As relações familiares regulam o fluxo de emoções, facilitando alguns caminhos de liberação emocional, inibindo outros. A configuração familiar controla a qualidade e quantidade de expressão emocional, bem como sua direção.

Considerações finais

A despeito do número limitado de familiares investigados, os achados deste estudo evidenciam que a percepção dos familiares sobre a dinâmica familiar de mulheres sobreviventes ao câncer de mama mostra similaridades em algumas dimensões e diferenças em outras. Pode-se perceber que o vínculo afetivo dos participantes, de ambos os gêneros, com a mulher com câncer de mama se reforça na medida em que as interações sociais são caracterizadas por sentimentos de mutualidade e sinais de individuação, interiorizados no processo de identidade do grupo familiar.

Os membros do gênero masculino, em especial os parceiros, percebem que, na relação com a parceira, o fortalecimento dos processos de identidade na dinâmica familiar, através de atitudes caracterizadas com traços de individuação e mutualidade resultam em recompensa e gratificação pessoal. Dessa forma, o gênero masculino, especialmente os parceiros sexuais, construiu uma maneira de ver o mundo familiar e a si próprio como indivíduo numa situação de doença (o câncer de mama) que exige um re-olhar para a dinâmica familiar.

Em decorrência das atribuições e papéis sociais destinados às mulheres no interior da família, o presente estudo revela que as diferenças de gênero atribuem claramente às mulheres um perfil de participação caracterizado como mais intenso, mais afetivo e mais ativo na manutenção da unidade familiar.

Os mecanismos usados pelos membros da família de ambos os gêneros para a busca do equilíbrio do funcionamento familiar, diante da doença, foi lançar mão de processamento de informação, optando pela comunicação clara. Essa foi uma estratégia que aliviava a tensão e favorecia a interação familiar.

As consequências de uma comunicação distorcida e estabelecimento de limites difusos nos relacionamentos familiares foram mais percebidos pelas mulheres, o que, para elas, revelavam certa vulnerabilidade e dificuldade para solução de conflitos, vivenciados no contexto familiar.

Os achados deste estudo têm implicações importantes para os serviços de saúde. A população feminina com câncer de mama é um grupo populacional crescente e, à medida que a sua incidência como também o período de sobrevida vem aumentando, mais famílias convivem com as dificuldades de enfrentamento da doença e seus tratamentos. Diante desse cenário, torna-se necessário que os serviços de saúde se organizem para manejar, de forma adequada, as demandas não somente das mulheres sobreviventes ao câncer de mama, mas também de seus familiares.

Para que isso ocorra, recomenda-se que outros estudos sejam realizados com vistas às investigações e às características dos determinantes da saúde familiar de mulheres sobreviventes ao câncer de mama, focalizando a participação dos familiares de ambos os gêneros no processo de recuperação da mulher.

Como enfermeiras, percebe-se a necessidade de se ter uma abordagem multidisciplinar na assistência às famílias, por entender que se trata de constelações de indivíduos com diferenças de gênero, cada um com opiniões, pontos de vista e posições constituídos de grandes significações na dinâmica familiar.

Referências

  • 1. Kirsch SED, Bradt PA, Lewis FM. Making the most of the moment, When a child´smother has breast cancer. Cancer Nurs. 2003; 26(1):47-54.
  • 2. Martins CS, Ferriani MGC, Silva MAI, Zahr NR, Arone KMB, Roque EMST. A dinâmica familiar na visão de pais e filhos envolvidos na violência doméstica contra crianças e adolescentes. Rev Latino-am Enfermagem. 2007 setembro-outubro; 15(5):889-94.
  • 3. Cleoneide POP, Silva RM, Mamede MV, Fernandes AFC. Participação em grupo de apoio: experiência de mulheres com câncer de mama. Rev Latino-am Enfermagem. 2008 julho-agosto; 16(4):733-8.
  • 4. Wernet M. Enfermagem e família investindo no primeiro passo. Rev Bras Enferm. 2000 dezembro; 53(n.especial):87-9.
  • 5. Bervian PI, Perlini NMOG. A família (con)vivendo com a mulher/mãe após a mastectomia. Rev Bras Cancerol. 2006 agosto; 52(2):121-8.
  • 6. Villela WV, Arilha M. Sexualidade, gênero e direitos sexuais e reprodutivos. In: Berquó E, organizadora. Sexo e vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp; 2003. p. 95-150.
  • 7. Barnhill L. Healthy family systems. Family Coordinator 1979; 28:94-100.
  • (8) Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.
  • 9. Cozby PC. Métodos de pesquisa em ciências do comportamento. São Paulo (SP): Atlas; 2003.
  • 10. Singly FO. Nascimento do "indivíduo individualizado" e seus efeitos na vida conjugal e familiar. In: Peixoto CE, organizadoras. Família e individualização. Rio de Janeiro (RJ): FGV; 2000. p.13-49.
  • 11. Torres A. individualização no feminino, o casamento e o amor. In: Peixoto CE, organizadoras. Família e individualização. Rio de Janeiro (RJ): FGV; 2000. p. 135-56.
  • 12. Volich RM. Câncer de mama, entrelinhas, entranhas: Perspectivas Psicanalaticas. Bol Novidades Pulsional. 1998; 107:16-25.
  • 13. Raveis VH, Pretter S. Existential plight of adult daughters following their mother's breast cancer diagnosis. Psycho-Oncol. 2005; 14(2):49-60.
  • 14. Grunfeld E. Family caregiver burden: results of a longitudinal study of breast cancer patients and their principal caregivers. Can Med Assoc J 2004; 170(12):1795-801.
  • 15. Nichols MP, Schwartz RC. Terapia familiar: conceitos e métodos. Porto Alegre (RS): Artmed; 1998.
  • Corresponding Author:

    Centro Universitário Barão de Mauá
    Rua Ramos de Azevedo, 423
    Jardim Paulista
    CEP: 14050-090 Ribeirão Preto, SP, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      03 Jul 2008
    • Aceito
      02 Dez 2009
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br