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Postura dos enfermeiros de uma unidade de terapia intensiva frente ao erro: uma abordagem à luz dos referenciais bioéticos

Resumos

O objetivo deste trabalho é analisar, a partir dos referenciais da bioética, a postura dos enfermeiros diante de ocorrência de erros em procedimentos de enfermagem na unidade de terapia intensiva (UTI). Trata-se de pesquisa descritiva, sob abordagem qualitativa, realizada com 14 enfermeiros de UTI de um hospital privado de São Paulo. A análise dos resultados foi realizada segundo a proposta de análise de conteúdo de Bardin. Os resultados evidenciados foram: reconhecendo ser falível, reconhecendo e comunicando o erro, e omitindo o erro. Os relatos dos enfermeiros formaram a base para as considerações apontadas à luz dos referenciais bioéticos: a responsabilidade diante do erro supõe o reconhecimento das próprias vulnerabilidades, assumir o erro com responsabilidade supõe condições éticas nas relações entre as pessoas envolvidas e o erro tem um ambiente. Este estudo propicia repensar a prática de enfermagem pautada na bioética, recorrendo à análise do erro focada nas relações entre os envolvidos.

Erros Médicos; Bioética; Cuidados de Enfermagem/Ética; Responsabilidade Social; Vulnerabilidade


This study analyzed the attitudes of nurses concerning the occurrence of errors in nursing procedures carried out in an Intensive Care Unit (ICU) based on the bioethics framework. This descriptive study with qualitative approach was carried out with 14 nurses from a private hospital in the city of São Paulo, Brazil. Results were analyzed according to Bardin’s proposal of content analysis. The resulting themes were: acknowledging one’s fallibility; acknowledging and reporting errors; hiding errors. The nurses’ reports are based on considerations through the lens of bioethics: taking responsibility for an error implies acknowledging one’s own vulnerabilities; acknowledging an error with responsibility implies ethical conditions in the relationships among those involved; and errors are in the context of a particular environment. This study enables re-thinking nursing practice based on bioethics, resorting to the analysis of errors focusing on the relationships between those involved.

Medical Errors; Bioethics; Nursing Care/Ethics; Social Responsibility; vulnerability


El objetivo de este trabajo es analizar, a partir de referenciales de la bioética, la postura de los enfermeros delante de la ocurrencia de errores en procedimientos de enfermería, en una unidad de terapia intensiva (UTI). Se trata de investigación descriptiva, bajo abordaje cualitativo, realizado con 14 enfermeros de una UTI, en un hospital privado de Sao Paulo. El análisis de los resultados fue realizado según la propuesta de análisis de contenido de Bardin. Los resultados evidenciados fueron: reconociendo ser falible, reconociendo y comunicando el error, y omitiendo el error. Los relatos de los enfermeros formaron la base para las consideraciones apuntadas a la luz de los referenciales bioéticos; la responsabilidad delante del error supone el reconocimiento de las propias vulnerabilidades, asumir el error con responsabilidad supone condiciones éticas en las relaciones entre las personas envueltas y el error tiene un ambiente. Este estudio propicia repensar la práctica de enfermería pautada en la bioética, recurriendo al análisis del error enfocado en las relaciones entre los envueltos.

Errores Médicos; Bioética; Atención de Enfermería/Ética; Responsabilidad Social; Vulnerabilidad


ARTIGO ORIGINAL

Postura dos enfermeiros de uma unidade de terapia intensiva frente ao erro: uma abordagem à luz dos referenciais bioéticos1

Rita de Cássia Pires ColiI; Marcio Fabri dos AnjosII; Luciane Lucio PereiraIII

Centro Universitário São Camilo, SP, Brasil:

IEnfermeira, Professor. E-mail: rita.coli@uol.com.br

IIBioeticista, Filósofo e Teólogo, Professor Doutor. E-mail: mfabri@terra.com.br

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Doutor. E-mail luciane@saocamilo-sp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar, a partir dos referenciais da bioética, a postura dos enfermeiros diante de ocorrência de erros em procedimentos de enfermagem na unidade de terapia intensiva (UTI). Trata-se de pesquisa descritiva, sob abordagem qualitativa, realizada com 14 enfermeiros de UTI de um hospital privado de São Paulo. A análise dos resultados foi realizada segundo a proposta de análise de conteúdo de Bardin. Os resultados evidenciados foram: reconhecendo ser falível, reconhecendo e comunicando o erro, e omitindo o erro. Os relatos dos enfermeiros formaram a base para as considerações apontadas à luz dos referenciais bioéticos: a responsabilidade diante do erro supõe o reconhecimento das próprias vulnerabilidades, assumir o erro com responsabilidade supõe condições éticas nas relações entre as pessoas envolvidas e o erro tem um ambiente. Este estudo propicia repensar a prática de enfermagem pautada na bioética, recorrendo à análise do erro focada nas relações entre os envolvidos.

Descritores: Erros Médicos; Bioética; Cuidados de Enfermagem/Ética; Responsabilidade Social; Vulnerabilidade.

Introdução

Os profissionais de enfermagem, em sua prática diária, devem prevenir a ocorrência de erro, pois necessitam assegurar ao paciente o direito à assistência livre de danos e propiciar o cuidar salutar e seguro. Entretanto, reconhece-se que esses profissionais, como qualquer ser humano, são falíveis, capazes de cometer erros.

O livro To Err is Human: Building a Safer Health System, publicado em 2000, pelo Institute of Medicine (IOM), nos EUA, foi considerado um marco, porque abordou o estudo dos erros e eventos adversos. Esse estudo foi realizado em diversas instituições de saúde, dando início a inúmeras discussões sobre a segurança da assistência prestada ao paciente(1).

O erro pode ser definido como o uso não intencional de um plano incorreto para alcançar um objetivo (erro de execução), ou a não execução a contento de uma ação planejada (erro de planejamento)(2).

Nem todo erro, porém, resulta em dano. Erros que resultam em prejuízos ou lesões são frequentemente denominados eventos adversos ou agravos decorrentes de intervenções realizadas por profissionais de saúde e não relacionadas a condições intrínsecas do paciente, mas nem todos os eventos adversos são relacionados a erros(1).

Neste estudo, os termos “evento adverso”, “iatrogenia” e “erro” serão tratados como sinônimos.

Desde o início da enfermagem moderna existe a preocupação com o erro na prática assistencial, entretanto, mudanças nos padrões da assistência vêm surgindo com a bioética, vista como novo domínio da reflexão que considera o ser humano em sua dignidade e totalidade, incluindo nela a segurança do paciente, quando assistido pelo profissional da saúde. A bioética surge com a responsabilidade de conduzir os profissionais de saúde a refletirem sobre suas condutas.

Questionar valores, repensar e redefinir práxis no agir profissional, à luz da bioética, representa para a enfermagem tomar consciência da dimensão de seu trabalho, que é o cuidar.

Muitos, porém, daqueles que se dedicam a estudos por meio da bioética, não têm a preocupação com os assuntos do cotidiano, poucos procuram estudar o que acontece no dia a dia. Fundamentalmente, o que ocorre no dia a dia é a relação do profissional de saúde com seu paciente e ambas as parte; profissionais e pacientes, são vulneráveis nessa relação(3).

A bioética não deve ser reduzida a princípios, porém, não se pode negar que a “corrente principialista” é uma de suas características mais marcantes(4).

A proposta principialista de Beauchamp e Childress teve grande impacto no desenvolvimento da bioética e seu êxito se deve, em parte, à simplicidade de suas propostas teóricas e à fácil aplicação da teoria à tomada de decisões nos casos concretos da biomedicina e, em parte, ao acerto na escolha dos princípios (autonomia, beneficência, não maleficência e justiça) que verdadeiramente contêm os pontos cardeais da vida moral(4).

O principialismo, embora necessário, tem forte fundamentação deontológica e, portanto, insuficiente para permitir uma reflexão filosófica e ética de modo mais profundo e abrangente. Aos poucos, diante de situações bioéticas mais complexas, verificou-se o reducionismo e a insuficiência relativa da teoria dos princípios. Surge, então, a proposta de substituição de “princípios” por “referenciais” (que mantêm a autonomia, beneficência, não maleficência e justiça e acrescenta outros referenciais como a dignidade, privacidade, responsabilidade, prudência, vulnerabilidade, entre outros). Esses referenciais estão livres para a interação que a situação em análise exigir: direitos, deveres, valores, sentimentos, compromissos, em plena liberdade de atuação pluralista, inter e transdisciplinar(5).

Vale destacar que os referenciais bioéticos foram adotados para a elaboração deste estudo, devido à sua maior abrangência e contextualização para as discussões bioéticas.

Na literatura, os estudos que abordam o erro sob a ótica da bioética são incipientes, portanto, o objetivo deste estudo é: analisar, a partir dos referenciais da bioética, a postura dos enfermeiros diante da ocorrência de erros em procedimentos de enfermagem na unidade de terapia intensiva (UTI).

Trajetória Metodológica

Para desenvolver este estudo optou-se por pesquisa descritiva sob abordagem qualitativa. Na pesquisa qualitativa há preocupação com o nível de realidade que não pode ser quantificado, trabalha-se com o universo de significados, com a vivência, com a experiência, com o cotidiano, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde ao espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis(6).

A pesquisa foi realizada com 14 enfermeiros que atuavam há mais de um ano na assistência direta ao paciente de unidade de terapia intensiva adulto (UTI-A), de um hospital privado de grande porte da cidade de São Paulo, que tinham presenciado a ocorrência de erros durante seu trabalho e que aceitaram colaborar com o estudo. A escolha do local foi feita por concentrar a realização de maior número de procedimentos de enfermagem e porque a presença do enfermeiro na assistência direta é mais constante.

A escolha dos participantes ocorreu por sorteio de uma lista de 25 enfermeiros assistências da UTI-A, fornecida pela instituição. O número de entrevistados não foi pré-definido, pois se utilizou o critério de saturação da amostra(6).

Após apreciação e aprovação do Protocolo, sob n◦115/8, pelo Conselho Administrativo da Instituição onde a pesquisa foi realizada e pelo Comitê de Ética em Pesquisa, atendendo os requisitos da Resolução CNS n◦ 196/96, iniciou-se a coleta de dados.

As entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade dos enfermeiros e realizadas em local privativo, conforme escolha do entrevistado. Foi garantido o anonimato do entrevistado, bem como esclarecida a proposta do estudo. O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi lido, elucidado e assinado pelo sujeito da pesquisa e pesquisadora.

Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, com a utilização de um roteiro, validado após realização do pré-teste. O roteiro foi composto por questões norteadoras que possibilitaram o alcance dos objetivos propostos:

- durante seu trabalho na UTI você presenciou a ocorrência de erros por parte dos profissionais de enfermagem? Narre uma situação de erro que lhe chamou a atenção e resultou em dano para o paciente;

- o que você observa que acontece, com mais frequência, diante da ocorrência de erro. Por quê?

- diante do erro o que seria ideal poder fazer?

As respostas foram anotadas e gravadas em fitas cassete. O conteúdo foi transcrito na íntegra, procurando manter a riqueza dos depoimentos, para posterior análise.

A coleta de dados durou aproximadamente 30 dias (outubro/2008) e o tempo de entrevista variou de 20 a 50 minutos.

Para o presente estudo, adotou-se a metodologia de análise de conteúdo, proposta por Laurence Bardin, que define como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permeiam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens”(7).

Após a leitura flutuante, os dados foram transcritos. Para a transcrição foram consideradas as regras de exaustividade - todo discurso foi transcrito na íntegra, nenhuma fala foi omitida; representatividade - os resultados obtidos para a amostra foram generalizados ao todo; homogeneidade - todas as entrevistas foram realizadas de forma semelhante pela pesquisadora, utilizando-se do mesmo roteiro; pertinência - as perguntas norteadoras foram validadas no pré-teste e atenderam o objetivo proposto, e exclusividade - os discursos foram classificados em uma única categoria(7).

Para a construção das categorias, utilizou-se da relevância e da repetição de elementos significativos, contextualizando a mesma ideia, por meio de recortes extraídos dos textos. Por fim, chegou-se ao tratamento dos resultados, que corresponde à última etapa da análise de conteúdo.

Resultados e Discussão

Os relatos dos enfermeiros apresentam as reações expressas a respeito de sua postura frente ao erro em procedimentos de enfermagem. De um lado, percebe-se postura de reconhecimento do erro, reconhecimento de que, mesmo sem querer, ele pode errar e a importância de se comunicar o erro. Por outro lado, aparece a omissão do erro, mostrando que o mesmo nem sempre é comunicado. Dessa forma, os resultados foram contextualizados e analisados como se segue.

Reconhecendo ser falível: os sujeitos da pesquisa se percebem como pessoas que podem cometer erros, reconhecem que, mesmo sem querer, o erro pode acontecer. Que o ideal seria não errar, pois defendem que nenhum erro é intencional e, por essa razão, os enfermeiros ressaltam que a atenção na atividade deve ser redobrada: o ideal era não errar, né? Mas... como não dá... O ideal é não errar (E1). Todo mundo erra, óbvio! Mas tem que se tomar mais cuidado quando se trata de ser humano. Passar tinta azul na parede e você passou branco... você vai e passa outra em cima, mas tem coisa que não tem retorno, né? (E8).

Reconhecendo que “todos somos homens e mulheres falíveis e imperfeitos, com limitações e defeitos”(8) e tendo a consciência da susceptibilidade do ser humano ao erro, pode-se afirmar que os profissionais de saúde são falíveis, capazes de cometer erros.

Os sujeitos da pesquisa apontam a importância do reconhecimento de se ser falível, sem deixar de se preocupar com o ser humano que está sendo cuidado. É importante lembrar que o reconhecimento do erro é a base da sabedoria para se trabalhar com ele. Esse reconhecimento está relacionado à vulnerabilidade do profissional, a qual será, de certa forma, amenizada, se for consciente.

A vulnerabilidade, na sua concepção mais ampla, obriga o reconhecimento de que todas as pessoas podem ser feridas e requerem respeito. A contribuição primordial da enfermagem é, então, tomar a vulnerabilidade como princípio de sua prática e reconhecer os profissionais como, humanos que são, sujeitos vulneráveis. Quem não aceita a vulnerabilidade e a interdependência não é capaz de desenvolver atitudes de cuidado(9).

Estudos recentes apontam que é fundamental admitir a vulnerabilidade como condição humana e enfatiza suas 3 dimensões: a que decorre das limitações evolutivas de nosso ser (criança, adolescente), a que se origina em precariedades a que estamos expostos, enquanto corpos orgânicos e funcionais (doenças e disfunções); e aquela que provém de tensões relacionais. Essas dimensões exemplificam o significado da vulnerabilidade, além dos espaços da ética em pesquisa(10).

Faz-se também necessária a compreensão dos dirigentes das instituições de saúde, de que os erros acontecem porque existem falhas no sistema por eles gerenciado e não porque seus subordinados são incompetentes ou irresponsáveis. Dessa forma, mais do que buscar culpados para punir, pode-se, com isso, diagnosticar as fragilidades existentes em todo o processo e adotar medidas proativas de prevenção de riscos(11).

Observa-se, nos relatos, que o erro não é intencional e que muitas vezes o colaborador nem percebe que está errando, sendo o erro percebido por outra pessoa: ninguém erra intencionalmente, nenhum erro é intencional. Às vezes a pessoa está errando ali e nem está percebendo (E2). Assim, não foi uma coisa que ela quis de propósito, nem intencional (E13).

É importante reforçar aqui o conceito de deslizes e lapsos que implica em ações não previstas, embora a intenção de agir corretamente estivesse presente(2).

Uma ação pode ter efeitos adversos sobre outra pessoa sem que o sujeito moral a tenha ofendido ou tenha tratado injustamente. Então, para que haja ofensa moral, é preciso que o dano tenha sido intencional e injusto. Quando se infligem injustamente graves lesões corporais ou se prejudicam seriamente outros interesses fundamentais das pessoas, aí sim, estar-se-á diante de exemplos de danos que são moralmente proibidos pelo princípio da não maleficência(4).

Percebe-se, também, nas expressões dos sujeitos, a impossibilidade de manter sempre a atenção concentrada na atividade executada, diante do que se descarta a intencionalidade direcionada para o erro, o que seria altamente perverso. A atenção está relacionada à prudência e à responsabilidade na ação de cuidar.

A prudência, enquanto referencial da bioética, abrange os sentidos de sensatez, moderação, comedimento, cautela, cuidado, precaução, além de previsão, temperança, sabedoria prática, razoabilidade, englobando, ainda, experiência, modéstia e bom senso. Prudência deve também incluir os conceitos de sophrosyne no sentido socrático-platônico e phonesis (sabedoria prática) no sentido aristotélico(12).

A prudência, entendida como previsão e vigilância, remete à atitude do sujeito, às suas qualidades pessoais, às suas habilidades próprias, particularmente à sua facilidade de decidir e agir realmente no sentido que convém na situação, no caso sempre singular em que é preciso tomar uma decisão(13).

Ressalta-se, também, que, no centro de toda ética, está o conceito de responsabilidade. Assumir responsabilidades é realizar corajosamente a ação à que se impõe e refletir sobre ela, levando em conta a situação concreta, em sua singularidade e complexidade, e diversas balizas éticas, segundo sua especificidade(13).

Reconhecendo e comunicando o erro: os discursos mostram as crenças pessoais dos sujeitos - não esconder, assumir e comunicar o erro. Os enfermeiros assumem que comunicam o erro para médico e chefia, seja este cometido por sua equipe ou por ele próprio: e lógico que você tem que ter ciência que não dá pra ficar errando todos os dias mas, se acontece de você errar, você tem que, primeiro de tudo, assumir o erro (E1). Então, é como te falei: o erro realmente não deve ser abafado (E4). Eu sempre procurei com a equipe, fez alguma coisa errada? Comunica a gente, a gente revê, porque o principal prejudicado é o paciente (E5). Eu passo de imediato! Mesmo que o erro seja meu, tá? Eu vou e relato. Tanto para os médicos como para a chefia. Então, isso não quer dizer que os meus sejam ocultos não, porque às vezes a gente também acaba fazendo... (E11).

É importante destacar a preocupação dos enfermeiros em comunicar o erro, pois ressaltam a importância de se pensar no paciente como principal prejudicado e que a situação poderá ser revertida mais rapidamente e danos maiores poderão ser evitados se o erro for comunicado.

Essa preocupação com o relato do erro pode ser traduzida em responsabilidade e prudência do enfermeiro em tomar uma atitude em relação ao paciente lesado.

Estudos evidenciam que, para um problema ser resolvido, há necessidade de ser primeiramente reconhecido e o próximo passo é tornar o problema público, a fim de estudá-lo e criar estratégias e métodos para resolvê-lo(14).

Os relatos dos enfermeiros corroboram estudos nos quais se acredita que o entendimento da clara importância do relato contribui de forma positiva para que os erros sejam aceitos e notificados espontaneamente(15). A percepção do erro e sua imediata comunicação são fundamentais para a implementação de intervenções, a fim de restabelecer o mais rápido possível as condições do paciente e minimizar ou eliminar os prejuízos causados.

Neste estudo, os sujeitos pesquisados não enfatizaram a participação do paciente/família nas questões que lhe dizem respeito. O paciente, nessa circunstância, é passivo e receptor do fazer do profissional de saúde. No entanto, numa das falas, percebe-se a preocupação do enfermeiro sobre a importância de comunicar também à família: aí teve que fazer um relatório de ocorrência que a gente tem aqui no hospital pra quando acontece algum erro... ele (chefia) encaminhou pra Comissão de Ética, as famílias foram comunicadas, tudo direitinho, tudo processo legal que tinha que ser feito (E1).

Ao cuidar do outro é preciso que o profissional de saúde o veja como ser humano que se encontra muitas vezes fragilizado e vulnerável. Quando a relação estabelecida entre o profissional de saúde e o doente está baseada em respeito à pessoa, une-se a técnica à ética do cuidar e o profissional saberá reconhecer seu erro junto ao paciente e família(16).

Uma das principais responsabilidades dos profissionais de saúde, na ocorrência de erro, é informá-la ao paciente. O paciente/família tem o direito de saber a verdade e essa informação é essencial para manter a sua confiança no trabalho da equipe.

Para o profissional, embora se reconheça como falível, relatar o erro também é uma questão de confiança e, portanto, é preciso haver ambiente estrutural e relacional para que isso aconteça.

Omitindo o erro: os enfermeiros relatam que nem sempre o erro é comunicado, que o mesmo é abafado, principalmente quando envolve mais pessoas ou equipes. Lembram que o ideal seria comunicar sempre, mas que as pessoas, inclusive ele próprio, omitem o erro quando sabem que o mesmo não trará consequências imediatas ao paciente. Do contrário, se existe a dúvida sobre as consequências ao paciente, causar algum dano, ou se o erro foi observado por outro, o profissional informa o erro: nenhuma conduta foi tomada, pra tudo sempre acaba abafando os casos (E4). E, às vezes, quando fazemos alguma coisa errada, nós também não comunicamos. Para por ali, se não for alguma coisa muito grave... Então você coloca por debaixo dos panos e... acho que isso acontece muito (E5). Eu acho que, assim, é um ponto interessante: as pessoas omitem o erro quando elas sabem que aquilo que ela fez não vai trazer consequências imediatas ao paciente [...]. Agora, se ela fez um erro e ela sabe que ninguém viu, ninguém percebeu, eu acho que as pessoas omitem (E13).

Estudos apontam que somente uma pequena parcela dos erros são relatados nas instituições hospitalares, pois esses somente são informados quando há algum dano ao paciente. Isso se deve à “cultura de punição”, vigente no sistema de saúde, tornando, muitas vezes, impossível a discussão crítica e construtiva dos fatos. A visão individual do processo do erro acarreta medidas punitivas e até demissões dos profissionais envolvidos, levando frequentemente à subnotificação do erro, dificultando o desenvolvimento de mecanismos de prevenção. Os profissionais da área da saúde também não são imunes à incerteza moral, dilemas e angústias, particularmente sobre questões que envolvem o erro humano e são relutantes em relatar e admitir o erro no cuidado à saúde(17).

Reconhece-se que a responsabilidade do profissional é a de comunicar o erro, entretanto, a formação acadêmica de médicos e enfermeiros reforça a premissa do desenvolvimento de um trabalho que deve ser livre de erros, gerando uma mensagem de que esses são inaceitáveis. Isso acarreta entendimento simplório, fazendo com que erros sejam encarados tão somente como falta de cuidado, de atenção e de conhecimento(18).

Essa postura é exigida tanto pelos profissionais, como pelos próprios pacientes, dificultando ainda mais a compreensão do erro de forma construtiva: não é permitido errar! Parece que sempre tudo tem que dar certo. Como nas outras profissões pode errar... na nossa não. Um erro pode acabar com tudo que você fez (E13).

Estudos ressaltam que parece existir no imaginário dos enfermeiros preocupação quase que exclusiva com as consequências para o paciente, como se apenas ele as sofresse. Ainda que seja incontestável que é quem se encontra mais vulnerável, dada a própria condição que o levou à hospitalização, tais consequências extrapolam em muito o paciente. Afetam o paciente, os profissionais, os familiares, a instituição de saúde e a sociedade(11).

Considerações Finais

Este estudo possibilitou analisar, a partir dos referenciais da bioética, a postura dos enfermeiros diante da ocorrência de erros em procedimentos de enfermagem, na unidade de terapia intensiva (UTI).

Os relatos dos enfermeiros formaram a base para as considerações que se seguem, apontadas à luz dos referenciais bioéticos.

A responsabilidade diante do erro supõe o reconhecimento das próprias vulnerabilidades - o erro é expressão de vulnerabilidade do sujeito. A busca do reconhecimento das próprias vulnerabilidades é condição para se assumir a responsabilidade diante do erro. O estudo indica o reconhecimento das limitações humanas, pelas quais os enfermeiros se reconhecem falíveis e, portanto, capazes de cometer erros. Esse reconhecimento é a base da sabedoria para se trabalhar com o erro. Reconhecer que errare humanum est facilita que o profissional se perceba vulnerável na realização de procedimentos de enfermagem, durante sua prática diária. Ao contrário, o profissional que ignorar a vulnerabilidade, sua e do paciente, pode cometer atos falhos por menosprezar suas possibilidades de erro e/ou por dificultar, com isso, posicionamento construtivo diante do erro.

Assumir o erro com responsabilidade supõe condições éticas nas relações entre as pessoas envolvidas - o reconhecimento e a comunicação do erro demonstram a autonomia do sujeito para agir de maneira responsável e prudente. Porém, quando o erro não provoca danos, ou não é percebido por terceiros, os sujeitos omitem o erro. Isso faz pensar que a cultura punitiva ainda é vigente. Parece justo dizer que relatar o erro exige relação de confiança estabelecida entre profissional-paciente-instituição. Tal confiança não representa conivência, mas, ao contrário, permite o diálogo que abriga a reversão do que é possível no erro. Isso também tem a ver com o ambiente em que o erro ocorre.

O erro tem um ambiente - a percepção bioética do erro sugere situá-lo no contexto ou ambiente em que se dá. Isso significa não reduzi-lo imediatamente ao profissional que erra, mas admitir a hipótese de que ele possa ter origens também sociais e institucionais, além dos limites individuais. Esse ambiente diz respeito não apenas às origens do erro, mas também às formas de recepção de sua ocorrência. A consciência sobre tal ambiente parece fundamental para todo o processo ético de lidar com o erro.

É importante ressaltar que a bioética e a ética postulam a atuação dos profissionais da saúde mais humanizada, pois desenvolvem a possibilidade de postura crítica e reflexiva sobre as escolhas a serem feitas sobre o agir.

Em síntese, este estudo propicia repensar a prática de enfermagem pautada na bioética, recorrer à análise do erro focada também nas relações entre os envolvidos. Lembrar que o erro se dá numa rede de relações, portanto, não deve ser visto de forma individual, nem somente técnica, mas principalmente relacional, e buscar, dessa forma, a compreensão integral da realidade.

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  • Corresponding Author:
    Rita de Cassia Pires Coli
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    Paper extracted from Master’s Thesis "O erro em procedimentos de enfermagem na unidade de terapia intensiva sob a ótica da bioética", presented to Centro Universitário São Camilo, SP, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      16 Nov 2009
    • Recebido
      27 Abr 2009
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