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Relações múltiplas do cuidado de enfermagem: o emergir do cuidado "do nós"

Resumos

Este é estudo de abordagem qualitativa, com o objetivo de compreender as relações de cuidado de si, do outro e "do nós", nas diferentes dimensões do cuidado, através de um processo educativo/reflexivo/interpretativo com profissionais de enfermagem de um hospital escola, sob a perspectiva da complexidade. Os dados foram coletados mediante oficinas e submetidos à análise de conteúdo. Emergiram as categorias: refletindo o significado do cuidado de si, do outro e "do nós" para o "eu - ser humano" e para o "eu - profissional de enfermagem" e, refletindo e (re)construindo os significados das relações do cuidado de si, do outro e "do nós". O cuidado "do nós" é tema emergente, em construção, impele a preocupação com o coletivo e remete à compreensão dos fenômenos múltiplos e inesgotáveis do constante movimento entre os seres e, desses, com seu ambiente, modificando, alterando e fazendo alterar as redes de relações existentes.

Enfermagem; Equipe de Enfermagem; Cuidados de Enfermagem


The aim of this qualitative study was to comprehend the relationships of the care of the self, of care of the other, and of care "of the us" in the different dimensions of care, through an educational/reflexive/interpretative process with nursing professionals in a University Hospital, using the complexity perspective. The data were collected through workshops and submitted to content analysis. The following categories emerged: reflecting upon the meaning of care of the self, care of the other, and "of the us" for the "I - human being", and for the "I - nursing professional"; and reflecting and (re)constructing the meanings of the relationships of care for the self, care for the other, and care "for the us". The care "for the us" is an emerging theme, in construction, and impels a concern for the collective, as well as remits to the comprehension of the multiple and unending phenomenon of constant movement among the beings and between them and their environment, modifying, altering, and causing to be altered the networks of existent relationships.

Nursing; Nursing, Team; Nursing Care


Se trata de un estudio de abordaje cualitativo con el objetivo de comprender las relaciones de cuidado de sí, del otro y "de nosotros" en las diferentes dimensiones del cuidado, a través de un proceso educativo/reflexivo/interpretativo con profesionales de enfermería de un Hospital Escuela, bajo la perspectiva de la complejidad. Los datos fueron recolectados mediante talleres y sometidos al análisis de contenido. Surgieron las categorías: reflexionado sobre el significado del cuidado de sí, del otro, y "de nosotros" para el "yo - ser humano" y para el "yo - profesional de enfermería"; y, reflexionando y (re)construyendo los significados de las relaciones del cuidado de sí, del otro y "de nosotros". El cuidado "de nosotros" es un tema nuevo, en construcción, incentiva la preocupación con el colectivo y se relaciona con la comprensión de los fenómenos múltiples e inagotables del constante movimiento entre los seres y de estos con su ambiente, modificando, alterando y haciendo alterar las redes de relaciones existentes.

Enfermería; Grupo de Enfermería; Atención de Enfermería


ARTIGO ORIGINAL

Relações múltiplas do cuidado de enfermagem: o emergir do cuidado "do nós"1

Maria Aparecida BaggioI; Alacoque Lorenzini ErdmannII

IEnfermeira, Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Bolsista CNPq. E-mail: mariabaggio@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Filosofia da Enfermagem, Professor Titular, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: alacoque@newsite.com.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Este é estudo de abordagem qualitativa, com o objetivo de compreender as relações de cuidado de si, do outro e "do nós", nas diferentes dimensões do cuidado, através de um processo educativo/reflexivo/interpretativo com profissionais de enfermagem de um hospital escola, sob a perspectiva da complexidade. Os dados foram coletados mediante oficinas e submetidos à análise de conteúdo. Emergiram as categorias: refletindo o significado do cuidado de si, do outro e "do nós" para o "eu – ser humano" e para o "eu – profissional de enfermagem" e, refletindo e (re)construindo os significados das relações do cuidado de si, do outro e "do nós". O cuidado "do nós" é tema emergente, em construção, impele a preocupação com o coletivo e remete à compreensão dos fenômenos múltiplos e inesgotáveis do constante movimento entre os seres e, desses, com seu ambiente, modificando, alterando e fazendo alterar as redes de relações existentes.

Descritores: Enfermagem; Equipe de Enfermagem; Cuidados de Enfermagem.

Introdução

A existência do coletivo, da sociedade, dos seres humanos se dá pela interdependência e inter-relação por meio da cultura, da linguagem, da educação(1-3). Desse modo, por coexistirem e coabitarem o mundo, os seres dependem das interações que estabelecem em seu meio, sendo fundamental o estabelecimento de relações com outros seres para a sua socialização, cuja condição impele a compreensão mútua nos modos singulares de convivência e de cuidado(4-5).

As relações que permeiam o ambiente laboral fazem parte do processo criativo e, também, parte do processo de cuidado dos seres(6), os quais desenvolvem a autonomia psicológica, pessoal, individual a, partir de múltiplas dependências como a família, a escola, a universidade etc.(2). A prática cotidiana de cuidados também depende das relações estabelecidas no ambiente laboral, cujo espaço é potencial desencadeador de situações de estresse, fadiga física e mental(7), tendo as condições ambientais, culturais e sociais influência no processo de cuidado dos seres. Assim, pode-se dizer que os seres dependem uns dos outros para a sua autonomia, sua sobrevivência e seu cuidado pessoal e profissional, num processo relacional construtivo e criativo no contexto em que se vive.

Com base nisso, o ser humano/profissional de enfermagem precisa ser instigado a olhar de forma ampla, acurada e reflexiva a realidade que o cerca, para poder compreender a dimensão do cuidado humano na sua complexidade. A atitude crítica e reflexiva deve ser estimulada, considerando a inter-relação e interação do cuidado no seu ambiente de relações, seja o cuidado de si, o cuidado do outro e o cuidado "do nós", na circularidade que se constitui, como uma noção em construção, desafiada pelo foco e domínio de conhecimento ou compreensão sobre o "nós", associando/integrando as relações de si com o outro, mutuamente; favorecendo as trocas entre os seres envolvidos; aproximando a compreensão acerca das relações, interações e associações estabelecidas entre os seres humanos, dos seres com seu ambiente, com sua realidade e consigo mesmos, bem como as influências particulares e recíprocas, possibilitando a construção de novas formas de pensar e agir que, consequentemente, impulsionam para novas e melhores práticas de cuidado.

Dessa forma, vê-se o encontro com os profissionais de enfermagem, a partir das experiências individuais/pessoais e coletivas/profissionais advindas do viver e do conviver num mundo complexo, o singular e o comum, como possibilidade de questionar: como ocorrem as relações de cuidado de si, do outro e "do nós", nas diferentes dimensões de cuidado em uma unidade hospitalar?

Diante do exposto, este estudo objetivou compreender as relações de cuidado de si, do outro e "do nós", nas diferentes dimensões de cuidado, através de processo educativo/reflexivo/interpretativo com profissionais de enfermagem de unidade clínico-cirúrgica de um hospital escola, sob a perspectiva da complexidade.

Método

O estudo de natureza qualitativa foi desenvolvido através de encontros, denominados oficinas. Os participantes do estudo foram enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem de uma unidade clínico-cirúrgica de um hospital universitário da Região Sul do país, totalizando dez profissionais, com participação voluntária, após o esclarecimento dos objetivos e da metodologia proposta, mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, sob no 266/07, sendo os aspectos éticos respeitados em todas as etapas da pesquisa, conforme prevê a Resolução 196/96(8).

Realizaram-se cinco oficinas semanais, em outubro de 2007, com duração de uma hora aproximadamente, com participação de 7 profissionais por oficina, em média. A dinâmica das oficinas foi construída* e desenvolvida pelas autoras, com aporte teórico da complexidade(1-3), tendo cada oficina três momentos distintos. O primeiro momento, denominado "preparando-nos para a oficina", objetivou a sensibilização e introdução às temáticas, com leitura de texto e elaboração de cartazes. No segundo momento, denominado "indo ao ponto X", promoveu-se espaço para discussões aprofundadas acerca das relações de cuidado de si, do outro e "do nós". O último momento, denominado "fechamento", tratou de aglutinar as manifestações dos significados das relações de cuidado, fundamentadas na circularidade do pensamento complexo, a partir das interpretações e construções dos sujeitos participantes da oficina. O roteiro de discussão, que continha as questões norteadoras das oficinas, foi baseado no Princípio da Incerteza**, de Edgar Morin, que orientou, conforme adaptação dos pronomes (eu, tu, nós), todas as oficinas. Nortearam a discussão as seguintes questões: são o eu, o outro e o nós pronomes (in)definidos? Como percebo/vejo e como cuido do eu - ser humano e/ou profissional, do outro, "do nós"? Em que dimensões de cuidado? Como ocorre e que significado representa esse cuidado? Que relações são estabelecidas entre o cuidado do eu, o outro e "do nós"? Eu consigo integrar conhecimentos para a condução da minha vida, para meu cuidado, para o cuidado do outro e para o cuidado do "do nós"? Até que ponto eu cuido do eu, do outro e "do nós", até que ponto eu faço um discurso pessoal e autônomo, ou até que ponto, sob a aparência de que acredito ser pessoal e autônoma, não faço mais que repetir ideias adquiridas? Sou uma máquina anônima infrapessoal que cuida? Sou quem discursa o cuidar/cuidado e que dá a ilusão de que cuida de si mesmo, do outro e "do nós"?

Os dados foram registrados mediante gravação digital de voz dos participantes e anotações de campo. Para resguardar a identidade dos participantes, esses foram identificados com a letra "P", seguida de número ordinal correspondente às participações nas falas (exemplo: P.1, P.2, P.3 ...).

Para a análise do estudo, foi utilizado o método de análise sistemática do conteúdo das falas dos participantes, após a transcrição, leitura e releitura dos dados, que constituíram as unidades de significado(9).

Após várias leituras dos dados, visando a busca dos significados das falas dos sujeitos, foram recortadas do texto as palavras-chave ou frases de significado que contemplavam significativa importância para a formação das unidades de registro, ou unidades de significado, as quais, posteriormente, foram classificadas e agregadas, sendo, então, definidas as categorias que comandariam as especificações dos temas (unidades temáticas). A seguir, procedeu-se à interpretação do material pesquisado à luz do pensamento complexo e da revisão da literatura.

Resultados e Discussão

Serão apresentados, a seguir, os resultados emergidos do processo educativo/reflexivo/interpretativo que, mediante análise de conteúdo, compõem quatro categorias e treze subcategorias.

A categoria refletindo o significado do cuidado de si do "eu - ser humano" e do "eu - profissional de enfermagem" desvela o cuidado de si – do ser humano/profissional, em dimensões múltiplas e interligadas, concebidas nas suas especificidades, determinando o tipo de relação estabelecida nos movimentos do conviver complexo, descritas em seis subcategorias, a seguir.

Conflito e dicotomia no discurso do cuidado do eu – ser humano e do eu – profissional

Os participantes, no movimento dialógico, denotam ora a possibilidade de separar o "eu – ser humano" do "eu – profissional" ora a dificuldade para separá-los no cuidado, como apontam as falas. Eu acho que separa, como a gente trabalha em um ambiente muito estressante, às vezes a gente sem querer separa. Por exemplo, às vezes tem um paciente que está muito grave, você não quer se envolver muito. Acho que é mais profissional do que ser humano (P.4). Na verdade, os dois estão integrados, só que a gente tem que dosar. Neste momento eu não posso ser só profissional ou só humano, mais profissional ou mais humano, eu não vejo separado, eles estão integrados (P.7).

No ir e vir dos depoimentos, constata-se a unidualidade dos seres humanos e profissionais que se envolvem mutuamente com os seres cuidados, sem distinguir claramente quando cuidam enquanto profissionais ou enquanto seres humanos, o que configura a impossibilidade de divisão, ou seja, de serem indivíduos divisíveis na relação com o outro. Na circularidade do cuidar/cuidado, o envolvimento do "eu – ser humano" e do "eu – ser profissional" com o cliente se processa naturalmente, sendo que ser humano e profissional são em sua unidade/multiplicidade indivíduos singulares e plurais, portanto, coesos(1).

Profissional de enfermagem como eu – máquina/robô

Os profissionais de enfermagem equiparam-se a uma máquina e/ou robô nas dimensões do trabalho, do cuidado de si e do outro.

No que tange à dimensão do trabalho em enfermagem, esse é considerado tarefa robotizada, comparada a uma máquina, quando relacionado às atividades tecnicistas, realizadas no cotidiano de trabalho. Reside, ainda, a insatisfação por não receber a valorização almejada, inclusive financeiramente, como assevera o profissional: o pessoal da enfermagem se torna uma máquina, que vem, trabalha e, às vezes, não consegue olhar para o lado; só quer olhar para frente e trabalhar, trabalhar, e acha que muitas vezes não é valorizado. Não estou falando só financeiramente (P.1).

Na dimensão do cuidado de si, manifesta-se o descaso com o próprio cuidado quando equiparado a uma máquina, como se vê: se você se ver como uma máquina, na verdade, só vai cuidar quando ela dá problema. E é assim que no fim a gente acaba fazendo consigo. Só vai lembrar de si quando alguma coisa estiver errada com a máquina, quando tiver alguma dor (P.8).

Na dimensão de cuidado do outro – cliente, o profissional compara-se a um robô quando se utiliza do não envolvimento afetivo ou evita contato muito próximo ao ser cuidado como mecanismo de defesa pessoal ou enfrentamento, mobilizados internamente para sustentar condições do ambiente de trabalho, traduzindo em suas ações o desinteresse pelo outro, a desvalorização do cuidado e o agir mecanizado(10-11). Em contrapartida, a capacidade de empatia e sensibilização com a dor do outro são entendidos como imperativos para o cuidado humano, não sendo possível cuidar do outro como uma máquina, ou seja, sem sentimentos e emoções.

Dimensões do cuidado de si – ser humano/profissional

O estudo desvela o cuidado de si – ser humano/profissional nas dimensões de cuidado espiritual, biológico, físico, estético, amoroso, social, cognitivo. Conforme o pensamento complexo(1-4), são dimensões múltiplas e interligadas, concebidas nas suas especificidades, e que determinam o tipo de relação estabelecida seja consigo, com o outro e com o nós, no sentido amplo e coletivo.

O sistema/serviço de saúde e sua implicação para o cuidado de si

Os profissionais qualificam o serviço/sistema de saúde como ruim para atender as necessidades de cuidado à saúde e apontam intolerância para se assumir na condição de paciente/doente, tendo que recorrer ao sistema/serviço de saúde seja para diagnóstico ou tratamento, não encarando como necessidade pessoal e sim como continuidade do trabalho em saúde. A gente não tem tolerância para correr atrás como paciente, tendo que correr atrás do sistema de saúde. A gente sempre dá um jeitinho. E a gente não vê como uma necessidade pessoal; encara como trabalho (P.10).

Os profissionais, contudo, se utilizam do conhecimento obtido na formação e na atuação e das inter-relações no/do próprio ambiente de trabalho, denominadas "dar um jeitinho", para combater algum problema de saúde(12). Esse jeitinho agrega saberes e fazeres advindos das experiências particulares, expressos numa atitude solidária, de troca e cuidado(2).

Formação e prática em saúde e enfermagem: condicionantes do autocuidado/automedicação

O autocuidado/automedicação praticada pelos profissionais de enfermagem, como em outros estudos(13-14), está baseada nos conhecimentos obtidos na formação e na prática da profissão em saúde. Não consigo dormir, eu viro para um lado dói o pescoço, viro para outro dói o ombro, de barriga para cima eu ronco. Custa pra dormir! Toma um remedinho, passa, passou e vai passando. Quando vai ao médico é porque já não aguenta mais (P.3).

A automedicação representa conduta inadequada e arriscada no cuidado de si dos profissionais que, em tese, deveriam educar e orientar leigos, desestimulando essa prática, que pode mascarar uma doença aparente, podendo o problema ressurgir potencializado(14).

Descuidando de si, sendo cuidado e cuidando do outro

Na hierarquização do cuidado na vida do enfermeiro, está o cuidado do outro, seja no trabalho seja na família. Eu acho que a gente até olha para o problema da gente, mas acaba diminuindo, não dando a devida importância. Se preocupa com a casa, a família, o trabalho ... E vai deixando aquele problema. Falta se olhar com mais carinho (P.7).

Entende-se que é o tempo exíguo, devido às inúmeras atividades profissionais, um motivo prevalente da falta de cuidado de si(15). Mediante os sinais emergentes do descuidado, entendidos como um problema, esses têm atribuída pouca importância, visto a demanda cotidiana de cuidados a outros seres (familiares) e a outras coisas (da casa). Enquanto cuidam, sentem-se cuidados, mas não oferecem a si o cuidado devido.

A categoria refletindo o significado do cuidado do outro para o "eu – ser humano" e para o "eu – profissional de enfermagem" compreende o cuidado do outro – do cliente e do colega (esse último interpelado por conflitos que permeiam as relações humanas) e a (in)visibilidade do cuidado do outro e do próprio profissional de enfermagem, são apresentadas em quatro subcategorias

Cuidado do outro – cliente

O cuidado do outro – cliente é subjetivo e individual, sendo fundamental que seja voluntário, sensível, solidário, empático e processe a troca entre os seres envolvidos, na abertura e integração de si com o outro(1-4). O cuidado, na verdade, às vezes, não é profissional. Por exemplo, se alguém está chateado, eu não vou usar nenhuma técnica de enfermagem para cuidar dessa pessoa, às vezes basta escutar, um ombro. Não é profissional, não tem nenhuma técnica para isso (P.8).

Assim, conforme a complexidade, as incertezas das estruturas do conhecimento e do saber técnico não atendem unicamente as necessidades do outro, é preciso estar atento para o movimento dinâmico de cuidados e reconhecer as fragilidades presentes nas mais variadas formas, dimensões e saberes do agir humano(16).

Cuidado do outro – colega

A convivência diária e prolongada no ambiente laboral, junto aos colegas, possibilita a interação e a integração entre esses, promovendo a formação de vínculos afetivos, o cuidado do outro – colega. O fato de conviverem e partilharem sentimentos, experiências e conquistas fortalece os laços de amizade e solidariedade e, ainda, o acolhimento do/pelo outro – colega, promove da relação profissional à relação interfamiliar, ultrapassando o espaço institucional. Como a gente vive muito tempo aqui, a gente se torna uma família. Sente como se fossem irmãos mesmo. Passa a ter o colega como um membro da nossa família (P.1).

Nos espaços do hospital, entretanto, as relações com o outro – colega são permeadas por conflitos oriundos dos movimentos e ondulações próprios da complexidade(1-4), como assevera a fala: é complicado, é complexo, as pessoas são diferentes e você tem que saber lidar com isso (P.2).

Os profissionais de enfermagem vivenciam o cuidado humano para um conviver mais saudável, mas também experienciam e enfrentam as conturbações do cotidiano, que inquietam a si e o coletivo. Apesar disso, buscam superar as animosidades do/no ambiente de relações que permeiam o conviver num mundo complexo(1-4).

O cuidado do outro invisível e visível

O cuidado invisível refere-se ao cuidado silencioso, espontâneo, voluntário, não explícito, evidente ou visível, que não é percebido pelo outro. O cuidado invisível é sentido quando o profissional de enfermagem percebe-se, enquanto ser humano e profissional, invisível e ‘desvalorizado na percepção do outro’ ser. O cuidado invisível, que é para o outro, mas o outro não está sabendo que está sendo feito para ele, e, por isso, às vezes, não é expresso. Mas quando alguém deixa de fazer, deixa de cuidar do outro, isso nota, a gente sente a falta (P.9). Todavia, o cuidado invisível torna-se visível, como não cuidado, quando não realizado, inclusive na dimensão familiar. As mães fazem o cuidado invisível também para os filhos ... as mães reclamam do cuidado invisível, reclamam que fazem e os filhos não valorizam, não veem (P.9).

O cotidiano do profissional de enfermagem do gênero feminino, neste estudo, ainda é marcado pelos afazeres da casa e cuidado com os filhos, embora estudiosos apontem ocorrência de transformações significativas, a partir da metade do século XX, na busca da equidade entre os gêneros, tanto na vida particular quanto na privada(17-19).

Invisibilidade do profissional de enfermagem conforme sua categoria

É inferida a invisibilidade do profissional de enfermagem/da enfermagem por conta do entendimento inadequado ou da falta desse, pelo cliente, no que diz respeito à esfera da profissão, ao seu status e à competência do fazer e do saber. Quando a gente fala que é enfermeira, eles dizem: ah, mas você não pretende estudar para ser médica? Não quer estudar mais? (P.7). Ah, mas você técnica? Mas você é mais que enfermeira? (P.1).

A profissão de enfermagem, historicamente, retrata imagem de dedicação aos pobres, sendo responsável pelos cuidados com o corpo do outro. A prática dessa profissão, em sua maioria ocupada por mulheres, é entendida pela sociedade como subalterna, sem valor, que não necessita do conhecimento e da habilidade para sua realização, e, portanto, social e economicamente não reconhecida(20).

Na categoria denominada refletindo o significado do cuidado "do nós" para o "eu – ser humano" e para o "eu – profissional de enfermagem", os participantes significam o cuidado "do nós" como cuidado coletivo, englobando os sujeitos de relação/integração que representam um conjunto/equipe/grupo/reunião de pessoas que agregam outros além do eu; indicam a enfermagem como exemplo de coletividade, bem como a violência presente nas relações humanas, apresentado nas três subcategorias, a seguir.

Discurso "do nós", designado como responsabilidade coletiva, poder, autoridade e força

A pronúncia "do nós" designa responsabilidade coletiva, representa o trabalho de cada um relacionado ao de outros para a constituição do todo, na interdependência/inter-relação complexa e dinâmica dos seres(1-4). Sentido de responsabilidade. Querendo ou não, quando coloca o nós, está se incluindo ... (P.9). Salientam que algo decidido coletivamente garante a força e o poder da decisão, denota autoridade, pois representa o argumento de várias pessoas pensantes, o nós, sugerindo a consciência da necessidade de atenção quanto aos posicionamentos políticos e à explicitação do saber/fazer pela enfermagem, em seu cotidiano(21).

Cuidado "do nós": encontro e troca a partir da relação com o outro, com o coletivo

Neste estudo, no processo de organização/auto-organização da enfermagem como grupo, emerge o encontro para o cuidado de si, do outro e "do nós", cujas relações se alimentam de cuidado. Eu acho que o grupo em si, quando se reúne, ou quando se cuida tem um pouquinho disso, de troca (P.2). O momento de encontro, a preocupação, a solidariedade e o se importar pelo outro remetem ao cuidado "do nós".

Assim, por ser um sistema aberto, o cuidado e as relações na enfermagem dissipam-se, trocam, recebem, doam, regeneram-se, desintegram-se, degradam, transformam, organizam a partir de integrações, interações e inter-relações dos seres de cuidado(1).

Violência nas atitudes relacionais/coletivas

Os participantes inquietam-se com a presença da violência na vida das pessoas, e indignados apontam: tem bicho ainda que é melhor e nem se compara com o ser humano (P.1). O mundo que nós vivemos, um mundo de violência. O que aconteceu com a gente? Essa matança nas favelas, a desigualdade. [...] Uns com tanto e outros sem nada. E as pessoas com pouco se contentam com tão pouco e os que têm, quanto mais têm, mais quer, passando por cima das pessoas (P.1).

Segundo o pensamento complexo, precisa-se ampliar, aguçar, desenvolver uma visão de mundo que possibilite o olhar para o outro e para si mesmo, incluindo, além da visão local, também a visão global, do indivíduo, do ambiente, da coletividade, da sociedade(1-4,22). Urge mudança de atitude, como indivíduos e humanos, o exercício do respeito e da solidariedade com o outro e porquê não dizer, conosco mesmo.

A categoria refletindo e (re)construindo os significados das relações do cuidado de si, do outro e "do nós" destaca a preocupação dos profissionais com o nós, no sentido do cuidado ecológico/planetário/coletivo/do ambiente. Como sujeitos críticos e reflexivos, os profissionais aludem sobre atos e fatos locais que repercutem globalmente, especificamente ressaltam a preocupação com o controle de epidemias, como a de dengue, que afeta a população no país (na época do estudo), a preservação do ambiente natural, a promoção da saúde humana, vislumbrando o cuidado individual e coletivo, citando o uso de agrotóxicos, a preservação da água e do meio ambiente, apontando o risco da escassez dos recursos naturais, se não preservados, o cuidado do planeta, como um todo, que depende de cada sujeito.

Tais apontamentos motivam o pensar e o (re)pensar as práticas individuais com vistas a garantir a própria saúde – o cuidado de si e de toda uma população – o cuidado do nós, considerando que doenças outrora erradicadas, ou até então controladas, estão retornando ou se alastrando com grande poder de virulência(23) e denotam importante sintoma da crise civilizacional, enfrentado na contemporaneidade, cuja consciência ecológica está subjacente à crise de degradação do meio ambiente(24) e o individualismo subjacente ao coletivo. É que, na verdade, a gente pensa na gente. Não estamos pensando em nós (P.1). R.esponsabilidade social como sendo dever do eu, do outro e de todos nós (P6). A gente tem que ter respeito com o outro e com o nós (P4).

Esta categoria implica, portanto, os profissionais, numa análise das próprias práticas cotidianas, considerando aspectos ambientais, sociais e culturais para a promoção de novas e melhores práticas para o cuidado coletivo e planetário(1-4).

Considerações finais

Foi possível compreender que as relações do cuidado de si, do outro e "do nós" conjugam as múltiplas dimensões do ser humano, concebidas nas suas especificidades que determinam o tipo de relação estabelecida seja consigo, com o outro e com o nós, no sentido amplo e coletivo. A relação cuidativa se processa na relação com outros seres, particularmente pelas trocas que proporcionam o atender as expectativas individuais e/ou coletivas.

O estudo aponta a impossibilidade de separar o "eu – ser humano" do "eu – profissional", sendo ambos, inerentes a um único ser, indivisível, insubstituível, cujas relações de cuidado que estabelece consigo e com outros, nos seus movimentos, apresenta dimensões múltiplas e interligadas, advindas do viver complexo.

A relação de cuidado com o outro, seja cliente ou colega, corresponde à complexidade que permeia o conviver humano, sendo subjetiva, plural e também singular à experiência humana, envolvendo, além da formação de vínculos e trocas mútuas, os conflitos, conturbações e animosidades inerentes às relações coletivas.

O cuidado "do nós", tema emergente e em construção, é designado como responsabilidade coletiva, destacando o cuidado ecológico/planetário/coletivo/do ambiente, remetendo à compreensão dos fenômenos múltiplos e inesgotáveis da constante associação entre os seres e desses com o seu ambiente, que modificam, alteram e fazem alterar as relações existentes, sendo imperativa a continuidade e ampliação da compreensão acerca das relações de cuidado "do nós".

O referencial teórico, entretanto, apresenta limitações à reflexão de questões relacionadas ao ser pessoa e ao ser profissional de enfermagem, ao ter que se fazer pessoa e se fazer profissional no contexto do cuidado humano, especificamente; não contextualiza a realidade identificada e não aborda os significados da pessoa - profissional da enfermagem, as questões existenciais e culturais, pessoais e grupais do ser - profissional de enfermagem, dialogicamente.

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  • 22. Morin E, Kern AB. Terra-Pátria. 5. ed. Porto-Alegre (RS): Sulina; 2005. 181 p.
  • 23. Boff L. Saber cuidar: ética do humano - compaixăo pela terra. 8. ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2002. 199 p.
  • 24. Pena-Vega A. O despertar ecológico: Edgar Morin e a ecologia complexa. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. 108 p.
  • Corresponding Author:
    Maria Aparecida Baggio
    Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem.
    Campus Reitor João David Ferreira Lima
    Bairro Trindade
    CEP: 88040-970 Florianópolis, SC, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Paper extracted from Master’s Thesis ‘Os significados das relações múltiplas do cuidado de si, do outro e "do nós" sob a perspectiva da complexidade’ presented to Universidade Federal de Santa Catarina, SC, Brazil.
  • *
    The construction and development of the workshops were a requirement of the discipline "Assistance Projects in Nursing and Health", from the Nursing Post Graduation Program, of the Federal University of Santa Catarina - UFSC.
  • **
    Morin E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brazil; 2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010

    Histórico

    • Recebido
      24 Ago 2009
    • Aceito
      28 Jul 2010
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