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Enfermagem em unidade de emergência: interfaces e interdependências do corpo de trabalho

Resumos

O objetivo deste estudo foi conhecer de que modo a equipe de enfermagem percebe sua interdependência no corpo de trabalho em emergência. A abordagem usada foi qualitativo-descritiva, participaram três enfermeiras, seis técnicos e dois auxiliares de enfermagem da maior emergência pública em Porto Alegre, RS, Brasil. Na coleta de dados, utilizou-se o Método Criativo e Sensível, com oficinas de reflexão e análise de conteúdo, suscitando três categorias: percepções de corpo, relação dos sistemas no corpo e corpo de enfermagem em emergência. Os resultados revelaram a interdependência dos membros no trabalho e emergiu certa impotência e frustração pela sobrecarga do corpo de enfermagem e pelo (des)cuidado no contexto de intensa produtividade humana dos serviços de emergência. Os momentos de reflexão sobre o corpo biológico permitiram à equipe visualizar-se e se sentir fundamental no grupo, revelando-se estratégia eficiente de cuidado ao cuidador na enfermagem.

Enfermagem; Enfermagem em Emergência; Equipe de Enfermagem


The aim of this study was to understand how the nursing team perceives its interdependence within the work body of the emergency unit. The study used a qualitative descriptive approach with the participation of three registered nurses, six nursing technicians and two nursing assistants from the largest public emergency unit in Porto Alegre, Brazil. The Creative and Sensitive Method was used for data collection, with reflection workshops and content analysis, providing three categories: Perceptions of the body; relationship of the body systems; and the nursing body in the emergency unit. The results revealed the interdependence of the members in the work and a certain impotence and frustration emerged due to the overload of the nursing body and to the (un)caring within the context of intense human productivity of the emergency services. Moments of reflection about the biological body allowed the team to visualize and feel themselves essential in the group, revealing an efficient care strategy to the nursing caregiver.

Nursing; Emergency Nursing; Nursing Team


El estudio tuvo por objetivo conocer de qué modo el equipo de enfermería percibe su interdependencia en el cuerpo de trabajo en la unidad de urgencia. Con abordaje cualitativo-descriptivo participaron tres enfermeras, seis técnicos y dos auxiliares de enfermería de la mayor unidad de urgencia pública en la ciudad de Porto Alegre, en Brasil. En la recolección de datos se utilizó el Método Creativo y Sensible, con talleres de reflexión y análisis de contenido, que produjeron tres categorías: percepciones de cuerpo, relación de los sistemas en el cuerpo, y el cuerpo de enfermería en urgencia. Los resultados revelaron la interdependencia de los miembros en el trabajo y emergió cierta impotencia y frustración por la sobrecarga del cuerpo de enfermería y por el (des)cuidado en el contexto de intensa productividad humana de los servicios de urgencia. Los momentos de reflexión sobre el cuerpo biológico permitieron al equipo visualizarse y sentirse fundamental en el grupo, revelándose una estrategia eficiente de cuidado al cuidador en la enfermería.

Enfermería; Enfermería de Urgencia; Grupo de Enfermería


ARTIGO ORIGINAL

Enfermagem em unidade de emergência: interfaces e interdependências do corpo de trabalho1

Rejane MoschenI; Maria da Graça Corso da MottaII

IEnfermeira, Especialista em Controle de Infecção Hospitalar e Gestão Hospitalar, Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: rejanem@ghc.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil. E-mail: mottinha@enf.ufrgs.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste estudo foi conhecer de que modo a equipe de enfermagem percebe sua interdependência no corpo de trabalho em emergência. A abordagem usada foi qualitativo-descritiva, participaram três enfermeiras, seis técnicos e dois auxiliares de enfermagem da maior emergência pública em Porto Alegre, RS, Brasil. Na coleta de dados, utilizou-se o Método Criativo e Sensível, com oficinas de reflexão e análise de conteúdo, suscitando três categorias: percepções de corpo, relação dos sistemas no corpo e corpo de enfermagem em emergência. Os resultados revelaram a interdependência dos membros no trabalho e emergiu certa impotência e frustração pela sobrecarga do corpo de enfermagem e pelo (des)cuidado no contexto de intensa produtividade humana dos serviços de emergência. Os momentos de reflexão sobre o corpo biológico permitiram à equipe visualizar-se e se sentir fundamental no grupo, revelando-se estratégia eficiente de cuidado ao cuidador na enfermagem.

Descritores: Enfermagem; Enfermagem em Emergência; Equipe de Enfermagem.

Introdução

Este estudo decorreu de vivências na área hospitalar em um serviço de emergência pública, manifestando no discurso referente à interdependência dos membros na equipe de enfermagem. Eram intrigantes as repetidas ausências por atestado médico entre os trabalhadores de enfermagem, especialmente nos turnos com maiores conflitos interpessoais. Essas ausências provocavam redistribuição da escala de pacientes por profissional de enfermagem e, consequentemente, sobrecarga assistencial. A proposta, aqui, na função de enfermeira, foi investigar possíveis meios para sensibilizar e unir esse grupo num corpo de trabalho. Ao assistir uma palestra sobre a Fisiologia do corpo humano, cujos sistemas interligados influenciavam a funcionalidade do corpo, ocorreu a ideia à autoria deste estudo de representá-lo, por meio lúdico, na investigação dessa interdependência da equipe de enfermagem.

A Enfermagem é uma ciência humana de interação direta entre pessoas com produção de saberes sobre o ser cuidado, fundamentada nas práticas de saúde e doença. Para tanto, exige do profissional capacidade de reflexão, de análise crítica e constante busca de atualização de seus conhecimentos técnico-científicos(1). A divisão social do trabalho, o espírito religioso e a organização militar influenciaram as bases da profissionalização do cuidar, ora fragmentadas pela divisão de tarefas nas equipes ora marcadas pela desconsideração do outro - parceiro e aliado -, nas relações de interdependência e complementariedade(2-3) tão necessárias em serviços de saúde. Os membros da equipe, por vezes, não percebem ou não discutem abertamente suas dificuldades e necessidades na relação interpessoal, desconsiderando que suas ações podem repercutir no corpo de trabalho. O absenteísmo pode estar diretamente relacionado às condições de trabalho, cuja falta de espaços para reflexão sobre essa produção e interação no cuidado produz insatisfação na qualidade, produtividade laboral e na vida pessoal do trabalhador de enfermagem(1).

Estudos indicam a necessidade do uso de estratégias de cuidado com o cuidador de enfermagem em serviços de saúde(1-3). A produção de reflexão coletiva, por meio do corpo humano e do corpo de trabalho, permite ao enfermeiro a compreensão e a interpretação do sentido da própria existência, tomando consciência de sua representação no mundo(4), considerando que sua experiência corporal, no ambiente exterior e interior do próprio corpo, pode manifestar diferentes percepções no enfrentamento dos fenômenos de dor e sofrimento(5).

Traçando-se um paralelo entre a dinâmica do trabalho em enfermagem, evidencia-se a sobrecarga grupal e o surgimento da disfunção (desmotivação e adoecimento) de um de seus membros, pode-se compará-lo à funcionalidade fisiológica do organismo, quando um dos sistemas corporais passa a operar com deficiência suas funções vitais. Considerando que essas estruturas interconectadas visam manter o automatismo e a continuidade da vida(6), sabe-se que, ao serem atingidas por processos estressores, causam desequilíbrios corporais com respostas deletérias a outros órgãos(7-8).

A fisiologia enriquece a compreensão da interdependência dos órgãos celulares, e quando agrupadas por funções distintas são denominadas sistemas fisiológicos. O esquelético protege os órgãos internos - alavanca para os movimentos - formando células sanguíneas. O sistema muscular permite a movimentação, o circulatório e o linfático distribuem sangue e linfa e nutrem o corpo, o respiratório é responsável pelas trocas de gases (oxigênio e dióxido de carbono) entre o sangue e o ar(9) e, sucessivamente, cada sistema possui uma função vital ao corpo. Assim, utilizou-se a dinâmica do corpo biológico em analogia à dinâmica funcional da equipe de enfermagem, nas suas relações e inter-relações no mundo do trabalho. Para tanto, o objetivo deste estudo foi conhecer a percepção da equipe de enfermagem em unidade de emergência e sua interdependência como corpo de trabalho, mediante referenciais anatômicos de corpo humano e de corpo sensível.

Metodologia

Trata-se de estudo exploratório-descritivo, de abordagem qualitativa, realizado na maior unidade de emergência da rede pública do Sul do país, em Porto Alegre, RS, vinculada ao Ministério da Saúde, que atende pacientes adultos nas especialidades clínica, cirúrgica, ginecológica e odontológica pelo Sistema Único de Saúde.

Os participantes, selecionados dentre os membros da equipe de enfermagem por trabalharem nessa unidade, foram: três enfermeiras, seis técnicos de enfermagem e dois auxiliares de enfermagem com tempo na empresa entre três meses e 19 anos.

O projeto, respeitando as normas de pesquisa com seres humanos(10), obteve Aprovação nº076/04, pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital em estudo, assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido e anonimato dos sujeitos por meio de pseudônimos anatomofisiológicos: Linfa, Ovócito, Neurônio, Néfron, Hemácia, Alvéolo, Epitélio, Patela, Fibra, Boca e Pupila.

A coleta dos dados ocorreu no período de setembro a outubro de 2004, mediante o Método Criativo e Sensível, o qual se apoia no princípio de Freire pela construção do conhecimento a partir da discussão em grupo. Nele, os participantes têm liberdade de expressar suas ideias e opiniões "mostrando a faceta escondida no tema original"(11). Trata-se de método educacional e poderoso instrumento de conscientização grupal, na produção coletiva de conhecimento sobre as causas de problemas e possibilidades de soluções.

A estrutura do Método Criativo e Sensível desenvolve-se na "tríade: discussão em grupo, observação participante e dinâmica de criatividade, sensibilidade e produção artística"(11), envolvendo a realização de oficinas, com utilização de técnicas variadas - desenho, colagens, recortes, modelagens, entre outros - para produção e finalidade de coleta de dados à pesquisa. Destaca-se, nessa metodologia, o planejamento das dinâmicas, roteiro de atividades e gravação das discussões.

Essa modalidade desenvolveu-se em quatro momentos: primeiro - a acolhida grupal, objetivo do estudo, orientação sobre a dinâmica; segundo - apresentação da questão norteadora, disponibilização do material lúdico e produção artística (individual ou grupal); - terceiro, apresentação das produções e discussão coletiva e quarto - momento da síntese e da validação das reflexões.

As oficinas, cuja dinâmica denominou-se Conhecimento do Corpo, ocorreram em três encontros com as seguintes temáticas: percepções de corpo, inter-relação dos sistemas fisiológicos e corpo de enfermagem em emergência. As questões norteadoras foram: na primeira oficina - qual o sentido de corpo para cada integrante? - na segunda - qual a interação dos sistemas fisiológicos no funcionamento do corpo e sua relação com o trabalho em equipe? Nessa, cada integrante representou um sistema fisiológico, por exemplo: eu sou o sistema ... e desempenho tais funções no corpo orgânico. E, na terceira (última) oficina - qual a percepção do trabalho em emergência enquanto corpo de enfermagem?

Para interpretação das informações, utilizou-se a análise de conteúdo de Minayo(12), compreendendo pré-análise, a partir das informações obtidas nas três oficinas de criatividade e sensibilidade, foram transcritas as falas e agrupadas por categorias. Seguiu-se a exploração exaustiva do material, surgindo três categorias em resposta às temáticas de cada oficina e a interpretação dos resultados.

Desvendando significados

Os resultados a seguir versam sobre a construção grupal, por meio lúdico, de interpretações de corpo humano e corpo de trabalho através das questões norteadoras em cada oficina. Os sujeitos, enquanto pessoas singulares, por meio de sua obra criativa afloraram livremente as percepções de corpo no trabalho em enfermagem emergidas nas categorias a seguir.

Percepções de corpo

A profissão do cuidado de enfermagem é uma arte, pois necessita de toda dedicação, tal qual a de um artista para realizar a sua obra de arte(13). Seu exercício profissional requer a premissa básica da sensibilidade e o respeito aos corpos desprotegidos e entregues a esses seres também constituídos de corpos, como objetos de cuidado, revelados nas locuções. Eu li [...] que o corpo é como se fosse uma tela: o pintor pinta a tela e é uma tela morta; uma tela que não tem vida! E, nós da enfermagem, não! Nós trabalhamos como se fosse uma tela que tem vida e sentimentos! Acho que o corpo é isso (Pupila). O corpo (no desenho) no chão me parece que é [...] eu já me lembro da música do Chico Buarque: tá lá o corpo estendido no chão. [...] sem vida, sem alma, sem nada! (Néfron).

O corpo, na dimensão representada pelos participantes, reporta à condição da existência humana, com particularidades a cada indivíduo na coexistência do sentir e ser sentido, tocar e ser tocado. O homem, em sua corporeidade, é razão, espírito, afeto, é ser ético, moral e gregário de relações, encarnado em corpo vivente(4). Ao tomar consciência da corporeidade, ampliam-se os horizontes quanto à finitude e à temporalidade da existência. Permite que a pessoa repense suas condutas e almeje um limiar de humanidade em suas ações, consagrando-se ético, moral e capaz de prover a vida, amar e ser amado.

Relação dos sistemas no corpo

O pensamento dialético do Eu "não tenho corpo, sou corpo"(4), deixa claro que, por meio dele, percebo e sou percebido não apenas como um objeto, pois manifesto formas de relacionamento, trabalho, sentimentos e conflitos.

O Eu representado no sistema fisiológico inter-relacionou os sujeitos, fazendo-os se sentirem parte do todo. A representação do humano pode envolver múltiplas visões, porém, quando direcionada à expressão lúdica, baseada em conceitos e definições científicas, permite aos sujeitos se entregarem à dimensão criadora e encontrarem sentido no ato de brincar. Hemácia viu-se o próprio sistema circulatório a percorrer o corpo, favorecendo o metabolismo. Eu sou o sistema circulatório! Sem dúvida alguma sou o sistema mais importante do organismo humano, pois percorro todo ele, irrigando, transmitindo energia, oxigenando os tecidos e favorecendo o metabolismo! (Hemácia).

Alvéolo percebeu-se um mecanismo essencial de sobrevivência. Eu sou o sistema respiratório, importante para a sobrevivência humana! Sem ar nenhum ser humano sobrevive! (Alvéolo).

A experiência de se inserir em um sistema orgânico não teria valor senão como ferramenta conscientizadora do papel de cada membro no exercício de sua função na equipe de enfermagem. É, na execução das tarefas diárias, que a enfermagem mais exprime o eu preciso dos outros para desenvolver aquilo que, sozinho, exigiria maior esforço ou, talvez, deixaria de ser levado a termo. A interlocução seguinte reflete essa interdependência funcional. As equipes de trabalho deveriam ser como um corpo! [...] cada órgão, um depende do outro; mas, às vezes, não é assim! (Neurônio). É, nem um é mais importante que o outro! (Ovócito). Todos são importantes, mas, se um não trabalha firme junto, aí o outro já trabalha mais, então ... (Neurônio). Então, sobrecarrega o outro, então ... (Ovócito) acaba adoecendo. É como um corpo ... (Neurônio). Por um tempo até pode continuar funcionando, só que vai chegar um momento que vai prejudicar, todo ele vai entrar em desequilíbrio! (Ovócito).

As profissões envolvidas com o cuidado, devido à demanda emocional e física sobre o seu trabalho, requerem corpo de equipe integrado e capaz de assumir as responsabilidades do ofício. Os eventos considerados ameaças ao estado de equilíbrio podem acarretar desequilíbrio decorrente da incapacidade funcional para lidar com as dificuldades e gerar alterações fisiológicas, emocionais, cognitivas ou comportamentais - adoecimento ou individualismo na equipe de trabalho(6,8). A adaptação e o amadurecimento, diante dos conflitos, são inerentes à corporeidade humana, seja no trabalho, na família ou no âmbito individual. O desenvolvimento de espaços lúdicos favoráveis à reflexão grupal sobre o agir na assistência de enfermagem parece surgir como medida terapêutica essencial.

A herança da Revolução Industrial, pela divisão de tarefas e a concepção biomédica, sustenta o modelo assistencial vigente, tendo como foco "a atenção à doença e à realização da tarefa, não o indivíduo"(14). Os espaços de atuação entre profissionais são guiados pela definição de funções. A enfermagem rege-se por hierarquia com habilitação para funções distintas dentre os saberes técnico-científicos. A fala a seguir repercute na corporação organizacional interdependente. É que nem o corpo, se uma parte falhar a outra não vai para frente! Não adianta o médico prescrever e eu vou lá e não faço ou faço pela metade! Ele pede para observar sangramento ou controle de diurese e eu e não anoto. [...] a informação que eu tenho que passar eu não tô passando! Aí não vai funcionar! (Patela). Por isso, [...] tem que ter um cabeça, um coordenador, senão, vira bagunça! Se todos tiverem o mesmo grau de poder, pode haver uma desorganização. [...] que saiba dar oportunidade para os membros desse corpo colocar suas ideias; e ter a humildade de aceitar, gerenciar e ouvir a todos, respeitando-os (Hemácia).

A necessidade expressa por Hemácia remete à relevância do papel do enfermeiro, na função de coordenador, sobre a equipe. O enfermeiro, agente do cuidado, também é responsável pela organização do trabalho coletivo - elabora escalas, supervisiona a equipe, solicita bens materiais e consertos - visando o êxito operacional da assistência. Contudo, as demandas do grupo de trabalho também recaem sobre o gerenciamento desse profissional.

Os momentos lúdicos fomentam o estímulo a esse corpo, pois é uma maneira de viver, de ser e de fazer, de brincar(11). As aspirações expressas pelos sujeitos enlaçam-se no mergulho literário, descobrem formas de valorizar a criatividade e expressar sentimentos que, de outra forma, não seriam revelados à equipe.

Corpo de enfermagem em emergência

A peculiaridade da profissão do cuidado exige um ser de presença, aberto para acolher as diversas manifestações do indivíduo. Destaca-se, nas falas dos protagonistas, a relação de união e ajuda entre os membros, quando aflora a relação de cumplicidade na equipe. Eu acho que é um ambiente ótimo para trabalhar! As pessoas que trabalham em emergência acabam se unindo (Epitélio). O meu soldadinho tem um sentido de união: quando um tá mal o outro carrega! Nesse sentido, eu acho bom na emergência! (Linfa). Fiz uma maca com uma pessoa deitada e duas da enfermagem carregando-a, o que simboliza o trabalho em equipe. Uma pessoa só não tem condições de transportar o paciente! O conjunto é importante para a enfermagem! Um ajuda o outro (Pupila).

O cenário de interação chama a atenção pela interdependência vivencial desse corpo de trabalho. A percepção de união e cooperação, entre os elementos da equipe de enfermagem, gera certa satisfação laboral nesse ambiente de emergência. Contudo, o cotidiano assistencial do saber/fazer vê-se direcionado para suprir demandas institucionais, em detrimento da interação interpretativa do cuidado de si na atenção ao outro. Um desejo intrínseco de compreender e ser compreendido nas suas diferenças com o outro vem expresso nas falas. Há temperamentos diferentes das pessoas que trabalham juntas e, às vezes, queremos que entendam o nosso jeito, mas, pelo pouco tempo, não se consegue entender os colegas. [...] a gente se sente mal (...) Também somos humanos e as pessoas estão doentes! Mas a gente também sofre e, às vezes, acaba adoecendo por causa disso! (Ovócito).

A reflexão alerta para a complexidade e fragilidade humana na interação do cotidiano em equipe de trabalho. Há necessidade de oportunizar momentos coletivos para refletir e estar com o outro de maneira a integrar e harmonizar as diferenças no grupo. Um corpo (de equipe) deveria ser explorado como o faz a puérpera na primeira inspeção ao recém-nascido para identificá-lo, torná-lo seu. O descaso relativo à dimensão de pertença e integração, entre os elementos da equipe de enfermagem, pode ser causa de adoecimento e afastamento do trabalho. Contudo, somatórios de eventos são necessários ao desequilíbrio do organismo, mas admite-se que espaços saudáveis com pessoas aceitas e queridas pelo grupo podem contribuir para a manutenção de um corpo saudável.

Na interlocução seguinte, a equipe de enfermagem revela-se sensível e fragilizada na construção de saberes e ações de vida e de amor ao semelhante. Boca, uma enfermeira, desenhou-se em forma de sol, simbolizando o universo de atenção e interação múltipla, típico da atuação em locais de intensa demanda, como unidades de emergência em instituições públicas. Todo mundo chamando! Todo mundo querendo atenção! E tu ali, tentando irradiar todo mundo, mas, às vezes, tu não consegues! (Boca). A gente fala tanto: só um pouquinho! E, quando está do outro lado (paciente), pede alguma coisa e as pessoas te dizem: só um pouquinho! Meu Deus do céu! É terrível! Aí pensa: puxa! Como eu falo: só um pouquinho! (Hemácia).

Dessa reflexão, emerge um ser voltado para o desejo de atenção ao outro, porém, as formas de trabalho não se traduzem no imediatismo de ações, porque se coletivizam em espaço lotado de sujeitos com diferentes necessidades. A constante superlotação das unidades de emergência, pela carência de leitos de internação hospitalar no Sistema Único de Saúde (SUS), gera consequências sobre os padrões do cuidado e da ética dos profissionais que ali atuam(14).

Nas percepções dos participantes de enfermagem, evidencia-se um corpo marcado por demandas de cuidados e afazeres geradores de sentimentos ora de frustração e cobrança, ora de prazer e alegria. O sentimento de frustração se relaciona à sobrecarga de atividades. Os desejos intrínsecos dos sujeitos são desvelados na forma como gostariam de produzir um trabalho com qualidade: Não se consegue executar toda a tarefa da maneira como gostaria de fazer: dentro de sua carga horária [...] tem que fazer a prescrição e os cuidados de enfermagem e [...] se torna humanamente impossível fazer um serviço de qualidade (Hemácia). [...] porque é tanta correria que, quando chego em casa, eu começo a pensar: um paciente meu chamou, me pediu uma coisa e para mim, na hora, não era prioridade – porque ali sempre tem que ver a prioridade – só que, para ele, aquilo ali era prioridade! [...] Isso aí também cansa! Não é só o serviço braçal; é não conseguir fazer tudo e a gente ser cobrado, ser cobrado (Ovócito).

O discurso revela desgaste emocional, podendo desencadear estado estressor no corpo. O cuidador tem consciência do seu papel na preservação do cuidado e, por vezes, estende as preocupações originárias do trabalho para além do espaço hospitalar. Um estudo sobre automedicação entre os trabalhadores de enfermagem aponta que tais profissionais "excessivamente comprometidos com o trabalho, que não conseguem parar de pensar no trabalho, mesmo durante a folga", fazem maior uso de automedicação(15).

A concepção biomédica e a escassez de recursos humanos e tecnológicos favorecem a centralidade do foco assistencial sobre pacientes em situação de urgência, em detrimento daqueles estabilizados, quando em serviços de emergência, aguardando leito. Apreende-se sentimento de frustração em falhar, em não obter o esperado, o que pode causar forte impacto no estado de equilíbrio desse corpo, ao desencadear mecanismos adaptativos próprios de cada indivíduo. Somos cobrados: dos pacientes, dos familiares. Quando entra a visita, aquilo é um stress horrível! Eles querem coisas mínimas, [...] e estamos correndo com a medicação! Às vezes, dá vontade de dizer: eu tô cheia de coisa pra fazer, eu não posso alcançar essas coisas agora! Mas, para eles, aquilo ali é importante, daí a gente pensa: ... e se fosse um familiar meu e eu chegasse e visse que ele tá com a boca seca? [...] E, desgasta muito não conseguir fazer as coisas. Tens que estar sempre correndo. [...] também somos cobrados das chefias! É claro, cobram porque também são cobradas [...] e isso eu acho muito estressante (Ovócito).

Apreende-se do discurso não um culpado pela cobrança, mas o desgaste decorrente do volume de tarefas. Por vezes, o familiar também contribui, aumentando-lhe a sobrecarga física e psíquica; outras vezes, as chefias veem-se no dever de cobrar porque também são cobradas. "A hostilidade que o indivíduo encontra nesse ambiente pode ser entendida como o acirramento de manifestações relacionadas tanto à evolução da cultura hospitalar clássica de isolamento, à atitude impessoal apoiada no tecnicismo ou cientificismo médico positivista, a mecanismos de defesa devido às condições ultrajantes de trabalho"(14).

A reflexão dos trabalhadores num corpo de equipe pressupõe respeito ao espaço e à ação de cada membro para que favoreça ambiente de trabalho harmônico, prazeroso, que não gere sofrimento ou adoecimento, e uma liderança sensata e aberta a mudanças. O elogio ou agradecimento surge como (retro)alimentação para o corpo ritualizado de afazeres de enfermagem. Acho muito legal, quando um familiar elogia a gente! Falta muito alguém elogiar! Às vezes, [...] ao sentar um pouquinho, chega alguém e diz: tu aí sentada! Ah, até parece que não se fez nada (todos riem). Eu acho que o elogio e reconhecimento, de vez em quando, é muito bom! Levanta um monte a gente! (Ovócito). Levanta a autoestima! Tem hospitais que botam no mural – do mês – elogios ao funcionário porque desempenhou bem a sua tarefa. [...] Recompensa, incentiva o funcionário a se organizar! (Neurônio).

O reconhecimento e a valorização expressos por Neurônio revelam as expectativas dos sujeitos frente ao seu trabalho. Esse espaço de reflexões despertou no enfermeiro o seu papel no gerenciamento da equipe. Eu não tinha me dado conta da importância de elogiar e, às vezes, [...] sei que teria de dar um elogio e acabo não dando porque é aquela correria. Na verdade, hoje eu passei um monte de vezes ali na tua escala [de pacientes] e tava tudo arrumadinho! (Epitélio).

Ao criar espaço para o diálogo entre os construtores das relações de trabalho, definidas num corpo materializado, possibilitou um dar-se conta da importância de elogiar e passou-se a exercer, nos agentes, uma transformação pela abertura e escuta indispensáveis ao diálogo. Não é que faça as coisas para receber elogios, mas, quando a gente se arruma, gosta que o namorado note; fica assim: esperando um elogio! É bom! Todo mundo gosta! (Ovócito). Ao dizer que se arruma e gosta que o namorado goste, Ovócito manifesta a verdadeira forma de nutrir o corpo de enfermagem e torná-lo competitivo, não para individualizá-lo, mas estimulá-lo na sua singularidade.

Reflexões da corporeidade na enfermagem

Nas várias etapas do processo investigatório, observou-se a singularidade de cada momento, indivíduos alegres, com definições por vezes semelhantes, outras peculiares para si, desnudando um corpo constituído por eles próprios. A interdependência emergiu com força para uma sabedoria ímpar: é impossível pensar em equipe ignorando seus membros. As reflexões permearam o desequilíbrio entre corpo e trabalho, as desigualdades na interdependência e o fortalecimento no interestímulo em equipe.

A corporeidade parece sobrepor-se às dificuldades porque encontra ressonância nas percepções prazerosas de seus membros. Apesar da ampla demanda de serviços, há consciência coletiva de estar servindo e talvez aí residam a alegria e o prazer vivenciados. A satisfação íntima do ser (seu ego) passa por atitudes socialmente aprovadas e entre os espaços do fazer hospitalar. A unidade de emergência é o local de maior poder de ajuda imediata no alívio da dor ao indivíduo, contudo, aumenta o risco de endurecimento emocional no cuidador, visto a exposição diária a tais extremos. As representações permitiram a apreensão do contexto de agilidade na atenção ao coletivo, ajuda e cooperação, ora união ora desunião, entre os membros, típico de uma família dinâmica. A amizade foi destacada como elemento mantenedor desse corpo que se complementa na união das peças no dia a dia.

Nos relatos, a liderança do enfermeiro foi citada como essencial na organização das atividades da equipe. No entanto, seu papel mediador nos impasses, no que concerne à cultura de cada indivíduo, revelou um cenário de intensas discussões. Contudo, indivíduos capazes de discutir manifestam sua essência, se desacomodam em um processo de amadurecimento nas relações, adaptando-se a conflitos como parte da corporeidade humana em sua existência, quer no trabalho, na família ou no ser pessoal. A humanização os capacita a compreender que cada elemento detém seu próprio espaço, singular e único na equipe, e os diferenciam da máquina.

Os integrantes, especialmente das funções auxiliares ou técnicos de enfermagem, fortaleceram a sua autoestima ao se saberem essenciais no funcionamento do corpo organizacional. Entretanto, apreenderam, na sua interdependência, o desejo de responsabilidade compartilhada no produzir trabalho. As manifestações revelam que a ausência ou descaso por parte de um dos membros leva à sobrecarga, ao adoecimento e ao desequilíbrio do corpo. O ampliar da consciência no resgate corporal de equipe despertou o ideal de igualdade nos sujeitos.

A enfermagem precisa resgatar a essência de sua profissão, desmistificar-se do ideal de poder que ofusca seu brilho e liberdade. A construção de relações saudáveis entre as diferentes equipes no cenário hospitalar requer capacidade de aceitação nas diferenças e abertura de comunicação na interação do cotidiano, pelas quais as pessoas passam a se conhecer, denotar valores e conquistar sabedoria no estar com o outro, traçando laços salutares de profissionalismo na equipe de trabalho.

Por fim, o estudo desvelou seres profundamente humanos, buscando satisfazer as necessidades do outro, mesmo que limitados pelo contexto de intensa produção humana característico de unidades de emergência. Os momentos de reflexão sobre o corpo biológico permitiram à equipe visualizar-se e sentir-se fundamental no grupo, revelando-se estratégia eficiente de cuidado ao cuidador na enfermagem.

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  • Corresponding Author:
    Maria da Graça Corso da Motta
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem.
    Departamento de Enfermagem Materno Infantil.
    Rua São Manoel, 963
    Bairro Santa Cecília
    CEP: 90620-120 Porto Alegre, RS, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Paper extracted from course conclusion monograph "Interfaces das relações de trabalho na equipe de enfermagem: o desvendar de um corpo em sua interdependência" presented to Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brazil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010

    Histórico

    • Recebido
      21 Jul 2009
    • Aceito
      28 Jul 2010
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