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Experiências do familiar em relação ao cuidado com a saúde bucal de crianças

Resumos

Este estudo objetivou verificar a compreensão das experiências dos familiares em relação ao cuidado com a saúde bucal das crianças. É estudo qualitativo, realizado em 2007, em distrito de saúde do município de Ribeirão Preto, SP, com 12 cuidadores. Utilizou-se referencial teórico da vulnerabilidade e a perspectiva hermenêutica. Três categorias empíricas foram elaboradas: os significados do cuidado com a saúde bucal, em busca das causas e da prevenção de agravos bucais e a realidade dos serviços de saúde bucal. Entre outros elementos potencializadores da vulnerabilidade infantil aos agravos bucais, emergiu a supervalorização da causalidade biológica, do atendimento de alta complexidade e da odontologia estética e, entre os protetores, a valorização do saber popular e a integração de ações e conhecimentos profissionais. Aponta-se para a revisão das estratégias de prevenção e promoção de saúde bucal, fornecendo elementos para auxiliar os serviços de saúde a reorganizarem o cuidado com a saúde bucal de crianças.

Saúde Bucal; Vulnerabilidade; Criança


The aim of this study was to comprehend the experiences of family members regarding the oral health care of children. This was a qualitative study, conducted in 2007, in the health district of Ribeirão Preto, with 12 caregivers. The theoretical framework of vulnerability and the hermeneutical perspective were used. Three empirical categories were established: the meanings of oral health care, in search of the causes and prevention of oral diseases, and the reality of oral health services. Among other potentiating factors of infantile vulnerability to oral diseases, the overvaluation of biological causality, of high complexity care and of esthetic dentistry emerged, and among the protective factors, the valorization of popular knowledge and the integration of professional actions and knowledge were observed. This study indicates the necessity for a review of prevention and oral health promotion strategies and provides elements to assist health services to reorganize oral health care for children.

Oral Health; Vulnerability; Child


Este estudio objetivó verificar la comprensión de las experiencias de los familiares en relación al cuidado con la salud bucal de los niños. Es un estudio cualitativo, realizado en 2007, en un distrito de salud del municipio de Ribeirao Preto-SP, con 12 cuidadores. Se utilizó el referencial teórico de la vulnerabilidad y la perspectiva hermenéutica. Tres categorías empíricas fueron elaboradas: los significados del cuidado con la salud bucal, en busca de las causas y de la prevención de daños bucales, y la realidad de los servicios de salud bucal. Entre otros elementos potencializadores de la vulnerabilidad infantil a los daños bucales, emergieron la supervalorización de la causalidad biológica, la atención de alta complejidad y la odontología estética; y, entre los protectores, la valorización de la sabiduría popular y la integración de acciones y conocimientos profesionales. Se señala que debe ser efectuada la revisión de las estrategias de prevención y promoción de la salud bucal, ofreciendo elementos para auxiliar a los servicios de salud a reorganizar el cuidado con la salud bucal de niños.

Salud Bucal; Vulnerabilidad; Niño


ARTIGO ORIGINAL

Experiências do familiar em relação ao cuidado com a saúde bucal de crianças1

Célia Mara Garcia de LimaI; Pedro Fredemir PalhaII; Maria Lúcia ZanettiIII; Cristina Maria Garcia de Lima ParadaIV

ICirurgiã-dentista, Doutor em Enfermagem, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: lima@eerp.usp.br

IIEnfermeiro, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: palha@eerp.usp.br

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: zanetti@eerp.usp.br

IVEnfermeira, Livre Docente, Professor Adjunto, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), Botucatu, SP, Brasil. E-mail: cparada@fmb.unesp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Este estudo objetivou verificar a compreensão das experiências dos familiares em relação ao cuidado com a saúde bucal das crianças. É estudo qualitativo, realizado em 2007, em distrito de saúde do município de Ribeirão Preto, SP, com 12 cuidadores. Utilizou-se referencial teórico da vulnerabilidade e a perspectiva hermenêutica. Três categorias empíricas foram elaboradas: os significados do cuidado com a saúde bucal, em busca das causas e da prevenção de agravos bucais e a realidade dos serviços de saúde bucal. Entre outros elementos potencializadores da vulnerabilidade infantil aos agravos bucais, emergiu a supervalorização da causalidade biológica, do atendimento de alta complexidade e da odontologia estética e, entre os protetores, a valorização do saber popular e a integração de ações e conhecimentos profissionais. Aponta-se para a revisão das estratégias de prevenção e promoção de saúde bucal, fornecendo elementos para auxiliar os serviços de saúde a reorganizarem o cuidado com a saúde bucal de crianças.

Descritores: Saúde Bucal; Vulnerabilidade; Criança

Introdução

A criança, devido às características de seu estágio de desenvolvimento, depende de cuidados e suporte da família e/ou de cuidadores, pois o cuidado que recebem durante esse período terá influência ao longo de sua vida(1). Nessa vertente, pais e cuidadores são de fundamental importância, por tomarem as decisões do dia a dia relativas à nutrição, escolaridade e saúde, entre outras. Dentre as ações voltadas ao bem-estar da criança, os cuidadores assumem, também, responsabilidades relativas ao cuidado com a saúde bucal(1-2).

A promoção de saúde bucal inclui o desenvolvimento de bons hábitos dietéticos e de higiene bucal, iniciados precocemente, assim como ações coletivas por meio de políticas sociais efetivas(2). Dentre os problemas de saúde bucal que afetam crianças na primeira infância, as alterações gengivais, a mal oclusão e a cárie dentária são os mais frequentes(3).

A cárie dentária representa a doença bucal de maior impacto epidemiológico e constitui problema de saúde pública. Apresenta alta prevalência na maioria dos países, com alto custo financeiro e social para instituições de saúde e sociedade e tem sua prevenção relacionada a uma série de fatores de ordem geral e individual(2,4).

Ao considerar que, na odontologia, as atividades preventivas têm se centrado no conceito de risco - fatores e comportamentos -, insuficientes para modificar o quadro atual de saúde bucal de crianças(5); há necessidade de ampliar a compreensão sobre esses determinantes.

O conceito de risco, desenvolvido pela epidemiologia, conformou-se como instrumento de quantificação das possibilidades de adoecimento de indivíduos ou populações, a partir da identificação de associações entre eventos ou condições patológicas e outros eventos e condições não patológicas, casualmente relacionáveis(6). Traduzidos como probabilidade de ocorrência, tais relações de causa/efeito fornecem explicações parciais de chances de adoecimento.

Nesse sentido, é preciso atentar para os limites do uso do "risco" nas ações de prevenção e de promoção de saúde, pois, nem sempre esse conceito consegue apreender a complexidade dos fenômenos em saúde, deixando ocultos valores, necessidades de saúde e significados culturais(6).

Para melhor compreensão da complexidade dos fenômenos relacionados à ocorrência de agravos bucais em crianças, adotou-se, neste estudo, o conceito de vulnerabilidade. A construção do quadro conceitual da vulnerabilidade, no campo da saúde, é relativamente recente e está estreitamente relacionada ao esforço de superação das práticas preventivas, apoiadas no conceito de risco(6-8). Esse conceito refere-se à chance de exposição das pessoas às doenças, como resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas, também, coletivos e contextuais, que acarretam maior suscetibilidade à ocorrência de patologias e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para que se protejam contra enfermidades. As análises de vulnerabilidade envolvem a avaliação articulada de três eixos interligados: o individual, o social e o programático(6,8).

Dentre as inúmeras possibilidades de discussão do tema, este estudo teve como objetivo compreender as experiências dos familiares em relação ao cuidado com a saúde bucal das crianças. Espera-se, ouvindo-se os cuidadores moradores do Distrito de Saúde Leste de Ribeirão Preto, compreender sua perspectiva de cuidado, de forma a subsidiar a reorganização dos serviços de saúde e ampliar seu escopo de ações.

Método

Optou-se pela metodologia qualitativa, uma vez que o caráter interpretativo busca significados atribuídos a concepções e práticas de saúde, elaborados por determinados sujeitos sociais. Utilizou-se o apoio da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, que forneceu os pressupostos para aproximação mais adequada da natureza interpretativa da produção empírica(9). Assim, a interpretação respeitou a regra hermenêutica, segundo a qual a compreensão do todo ocorre com base no singular, e o singular, com base no todo, por meio de leituras exaustivas e repetidas que visaram ampliar a unidade do sentido, pela concordância de todas as partes singulares com a totalidade dos resultados.

Por outro lado, a busca por superar o conceito de risco, como perspectiva única para pensar as ações de promoção e prevenção em saúde bucal, remeteu ao quadro conceitual da vulnerabilidade.

O estudo foi realizado na área de abrangência de um distrito de saúde, por entender que esse pode ser representativo do município como um todo.

Embora o foco central fosse a saúde bucal de crianças, o substrato empírico foi obtido a partir de entrevistas com seus cuidadores familiares. Optou-se por estudar crianças ao término da primeira infância, entre cinco e cinco anos e 11 meses. Considerando a demanda de atendimento, obteve-se, a partir do Sistema de Informações da Secretaria Municipal de Saúde, relação com todas as crianças dessa faixa etária, atendidas em dois meses do ano 2007, nas seis Unidades de Saúde do Distrito Leste, totalizando 198 crianças. Foram selecionadas duas crianças de cada unidade de saúde com condição distinta de saúde bucal, isto é, uma que tivesse somente atendimentos odontológicos preventivos e outra com atendimentos odontológicos por razões curativas. Iniciou-se a seleção pela última criança da lista e, a partir dela, buscou-se o cuidador familiar, como mães, pais e avós, perfazendo o total de 12 pessoas, os sujeitos da pesquisa. Esse número de participantes foi definido, a princípio, com possibilidade de ser ampliado caso houvesse necessidade. Contudo, no transcorrer da pesquisa, mostrou-se suficiente, uma vez que o material empírico obtido permitiu traçar um quadro compreensivo da questão investigada(8).

Coleta do material empírico

Utilizou-se a entrevista semiestruturada e, para tanto, elaborou-se um roteiro visando a identificação de aspectos individuais (cognição, conhecimento, comportamento, atitudes, valores, desejos, interesses, habilidade e crenças), sociais (acesso a redes sociais, à educação e à cultura; participação política e status socioeconômico) e programáticos (acesso, tipo de cuidado, ações programáticas, qualificação profissional, intersetorialidade e integralidade), a fim de darem suporte à análise da vulnerabilidade das crianças quando da ocorrência de agravos bucais.

A coleta do material empírico foi realizada no domicílio do cuidador, após a assinatura do termo de consentimento livre esclarecido. As entrevistas aconteceram em um encontro único, com duração média de duas horas, sendo gravadas em fita cassete e, posteriormente, transcritas na íntegra. O roteiro da entrevista foi percorrido subordinadamente à dinâmica que o próprio entrevistado deu à narrativa, oferecendo, dessa forma, a possibilidade de que eles discorressem livremente sobre o tema proposto.

Os resultados estão apresentados sob a forma de recortes das falas dos cuidadores. No início dos recortes, está especificado, entre parênteses, o grau de parentesco com a criança e, no final, o sobrenome fictício do cuidador. A apresentação das falas transcritas respeitou a variedade linguística utilizada pelos participantes. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP (Protocolo n°0152/2005).

Resultados

A partir da análise de vulnerabilidades, foram identificadas três categorias empíricas: os significados do cuidado com a saúde bucal, em busca das causas e da prevenção de agravos bucais e a realidade dos serviços de saúde bucal.

O significado do cuidado com a saúde bucal

A representação que os indivíduos possuem sobre a saúde bucal é determinante para as ações que praticam no dia a dia e configuram suas práticas. A compreensão sobre o que os cuidadores consideram como cuidado e como cuidado com a saúde bucal está evidenciado nos depoimentos a seguir.

(mãe) Eu tô cuidando, eu não quero que fique doente, a hora que dá uma tossinha que eu vejo que tá encatarrada, eu falo: vou dar uma inalação [...] E quantas vezes eu dou medicamento de mato mesmo, em casa, porque eu sei que é ruim, mas é melhor que a injeção (Família Figueiredo).

(mãe) [ ..]. minha mãe, ela sempre fazia essas coisa, algodão com remédio, não sei o quê no dente, alho com óleo quente, ela fazia também um cuejo com mato, ela fazia muita coisa da horta, ela amassava um negócio verde punha dentro e resolvia, parece que não, mas eu e meus irmãos, a gente conseguia dormir (Família Santana).

A boa saúde bucal apareceu idealizada na boa aparência estética, sobrepondo-se às questões funcionais, conforme ilustram os relatos a seguir.

(mãe) [...] tô com um dente, tratei faz pouco tempo, mas esse dente estragou [...] em mim, eu queria fazer um clareamento pros meus dentes ficar branquinho, que com o tempo tá amarelando, falta de cuidado, que eu sei. E neles (filhos) a mesma coisa também (Família Vetorazo).

(mãe) [...] o N (filho) eu preciso ver se ele precisa usar aparelho na boca (Família Nogueira).

(avô) [...] com certeza, a primeira coisa que eu ia fazer é implante de dente (Família Reparate).

Em busca das causas e da prevenção de agravos bucais

Diversos fatores são determinantes para o desenvolvimento de doenças bucais, particularmente, da cárie dentária. No presente estudo, observou-se que os cuidadores associam as doenças bucais, frequentemente, à dimensão biológica, o que induz o entendimento de que as pessoas adoecem por descuido próprio, desencadeando nelas sentimentos de culpa. Para exemplificar:

(mãe) [...] doce, porque doce acaba com o dente, nossa que barbaridade! Chiclete, bala [...] eu acho que também pode ser da minha parte, entendeu? Se eu pegasse mais no pé dela (filha), de ficar em cima, porque ela é terrível pra escovar dente (Família Galante).

(mãe) [...] de não tá escovando os dentes após as refeições, porque eu também, às vezes, naquela correria ... então eu acho que o que levou um pouco foi isso (Família Figueiredo).

A prevenção de doenças bucais foi, frequentemente, associada às práticas de cuidado, em especial àquelas relacionadas à alimentação (controle do açúcar), à higiene bucal (prática da escovação e uso de fio dental) e a visitas periódicas ao cirurgião-dentista, conforme os relatos a seguir.

(mãe) Ah! Sim, eu mudei muito a parte de alimentação, a reeducação alimentar, os hábitos que a gente tá tendo mais com a saúde agora, a parte de boca, melhorou muito (Família Figueiredo).

(mãe) [...] procurando escovar mais vezes, porque antes não, o que a gente entendia quando eu morava no interior é que escovasse o dente só de manhãzinha ao levantar [...] Era assim que a gente sabia (Família Mendonça).

(avô) [...] vocês profissionais (dentistas) têm toda aparelhagem, vocês enxergam as coisas nos mínimos detalhes, nós a olho nu é muito difícil, então se a criança fosse muito mais vezes no dentista, com certeza ajudaria mais (Família Reparate).

A realidade dos serviços de saúde bucal

O cuidado com a saúde bucal foi visto como intrinsecamente ligado ao sistema de serviços de saúde públicos e privados. Para os cuidadores, a condição de saúde bucal dos indivíduos depende diretamente da acessibilidade aos serviços de saúde e da disponibilidade de tratamento. A dificuldade de acesso ao serviço odontológico, a ausência de retornos para acompanhamento, a falta de resolubilidade das ações, a dificuldade de acesso aos serviços de maior complexidade e a ausência de cuidado multiprofissional foram situações referidas pelos cuidadores como potencialmente prejudiciais, podendo comprometer a integralidade da atenção, conforme mostrado abaixo.

(pai) [...] aí no posto tem uma lista de espera imensa que leva mais de ano (Família Pereira).

(mãe) [...] agora, sobre encaminhamento eu acho demorado, porque faz mais de um ano que eu tô esperando (Família Martins).

(mãe) [...] a pediatra já devia olhar a boca quando olha a garganta e comentar: olha mãe, agora você tem que começar cuidar e tal porque o dentinho é assim, assado. Não, nunca, nunca uma médica falou isso pra mim (Família Santana).

(pai) [...] a enfermeira poderia tá fazendo esse papel, ensinar como escovar o dente, mas ela não faz (Família Pereira).

(mãe) [...] eu acho que toda escola, pelo menos no pré, as professoras deveriam ter uma orientação dentro da escola, começar dali (Família Vetorazo).

Discussão

O olhar sobre a criança expõe sua dependência em relação aos cuidados de saúde, assim como sua inserção em um contexto familiar e social. Criança, cuidador e grupo familiar, geralmente, vivem no mesmo ambiente e seguem a mesma tradição e costumes relacionados aos cuidados de saúde. Assim, um projeto terapêutico deve incorporar ações de cuidado à saúde que transcenda a clínica limitada à cura de doença e valorize o contexto, os determinantes sociais, a subjetividade do processo saúde/doença, bem como a inserção dos usuários como seres ativos, autônomos e participativos(10).

Dessa forma, compreender, aceitar e refletir sobre a sabedoria prática permite tomar o cuidado da criança no contexto da família, em suas relações com os serviços de saúde, comunidade, escola e outros setores sociais. A atenção voltada aos interesses e singularidades das crianças e suas famílias traz elementos essenciais para a construção de espaços de cuidado e ampliação de horizontes(11).

Ratificando-se essa concepção, nos discursos dos cuidadores, o cuidado com a saúde apareceu alicerçado tanto no conhecimento científico (inalação/injeção), como no empírico (medicamento de mato). Nesse sentido, entende-se a necessidade de prática odontológica apoiada na composição de saberes, pois somente assim é que se alcança uma clínica que fala da vida real, com capacidade terapêutica(12).

Os projetos educativos em saúde, no Brasil, contudo, ainda hoje, seguem majoritariamente inscritos na perspectiva de transmissão de conhecimento científico e especializado, para uma população leiga, cujo saber viver é pouco valorizado e/ou ignorado(13).

Estudo realizado em comunidade rural no Estado de Minas Gerais, utilizando as representações sociais do processo saúde/doença bucal de mães de escolares, identificou o uso de recursos caseiros na tentativa de solucionar problemas de saúde bucal, prática comum entre a população rural(14). Assim como esse autor, também as condutas aqui relatadas podem ser relacionadas a valores culturais construídos historicamente, bem como à falta de acesso ao sistema de saúde, como verificado em seus relatos.

A representação da saúde bucal apareceu idealizada na boa aparência estética, refletindo o comportamento da sociedade atual. A aparência estética tem forte influência na formação da autoestima dos indivíduos e é determinante para o desenvolvimento de relações interpessoais positivas e para impressão de uma imagem profissional de sucesso e competência(15).

Os cuidadores referiram que a boa saúde bucal é obtida, principalmente, por meio de atendimento no nível de alta complexidade, o que expõe o poder de sedução da tecnologia, levando as pessoas a acreditarem que a saúde bucal se dá a partir dela. Nesse sentido, os cuidadores entendem que eles e as crianças necessitam, primariamente, de clareamento dental, aparelho ortodôntico e implantes. O aumento da comercialização dos serviços de saúde e a veiculação de propagandas, pelos meios de comunicação, que oferecem a emergente odontologia cosmética para os que podem pagar, têm obscurecido a distinção entre saúde e estética(2).

Quanto aos determinantes da ocorrência de agravos bucais, os cuidadores apontaram que esses se relacionam, particularmente, a fatores biológicos e à responsabilização individual. Eles mencionaram a ingestão de doces como uma das principais causas para o desenvolvimento da cárie dentária.

As práticas de higiene, também, foram relacionadas à cárie dentária, e o foco foi o seu descuido. Assim, o reconhecimento, pelos cuidadores, da associação entre higiene bucal deficiente e cárie dentária desencadeou neles um misto de constrangimento e de culpa. Práticas moralistas ainda são comuns no campo da saúde e, particularmente, na odontologia. Assim, a pessoa que apresenta algum problema de saúde evitável, como é o caso da cárie dentária, passa a ser vista como se tivesse feito algo errado para ficar assim. E esse fazer algo errado é julgado tanto do ponto de vista biológico como moral(16). Contudo, quando se exime o julgamento moral de determinadas práticas de saúde, ampliam-se as possibilidades de cuidado.

Ao se conceituarem, porém, os fenômenos de saúde-doença-cuidado como processos socio-históricos, complexos e incertos, os modelos causais, significando estruturas de determinação efeito específicas, mostram não serem os dispositivos heurísticos mais adequados para referenciar tais fenômenos. Por outro lado, a multicausalidade, como é reconhecida a etiologia da cárie dentária por muitos, também não indica qualquer aumento substancial do nível de complexidade. Multiplicar causas e/ou efeitos de modelos explanatórios não resolve as limitações fundamentais da causalidade; tal abordagem acaba se referindo, particularmente, à complicação e não à complexidade do fenômeno(17).

As falas dos cuidadores quanto à prevenção de agravos bucais, particularmente da cárie dentária, foram, frequentemente, associadas às práticas de cuidado, em especial àquelas relacionadas à alimentação (controle do açúcar), à higiene bucal (prática diária de escovação e uso de fio dental) e a visitas periódicas ao cirurgião-dentista.

Nesse sentido, o discurso dominante entre os cuidadores relacionou a prevenção às normas dietéticas e de higiene, ou seja, a saúde bucal para eles se resumiu à atividade de cuidar do corpo, não reconhecendo a influência de questões psicossociais, socioeconômicas e culturais tanto na gênese como na possibilidade de resposta aos agravos bucais. Uma das maiores barreiras em assegurar o cuidado de saúde bucal a toda criança é a tendência em estruturar os problemas de saúde em termos de responsabilidade dos pais e não de políticas sociais(2).

Houve referência de que a atuação do cirurgião-dentista é fundamental para a boa saúde bucal. A relação entre as condições de saúde bucal e o contato com o profissional, seja com objetivos informativos, preventivos ou curativos, revela a dependência que os cuidadores identificaram entre condição de saúde bucal e a consulta ao cirurgião-dentista. É provável que a busca pela assistência seja fruto do que é preconizado pelo senso comum, uma vez que o modelo biomédico tem enfatizado, ao longo dos anos, essa necessidade. Porém, essa não condiz com o que a literatura tem postulado. Sabe-se que a assistência odontológica tem contribuído muito pouco para a melhoria das condições de saúde bucal das populações. Pesquisa que analisou dados de 18 países industrializados revelou que a contribuição dos serviços odontológicos, para a redução de cárie dentária em crianças de 12 anos, foi de apenas 3%, enquanto os aspectos socioeconômicos contribuíram entre 35 e 50%(18).

Para ampliar e aprimorar as ações de prevenção, é preciso ir além dos aspectos biológicos e individuais, identificados pelos cuidadores como únicos fatores associados à ocorrência de problemas bucais e caminhar em direção às questões coletivas, relacionando esses determinantes à dimensão programática e social que, inter-relacionados, condicionam a vulnerabilidade da criança à ocorrência de agravos bucais.

Em relação à situação dos serviços de saúde bucal, as falas dos cuidadores apontaram que a vulnerabilidade programática das crianças à ocorrência de agravos bucais apareceu refletida na dificuldade de acesso ao serviço odontológico, na fragmentação da atenção à saúde e na ausência de cuidado multiprofissional.

Quanto ao acesso, os parâmetros de cobertura assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS), utilizados pelo Ministério da Saúde para o planejamento de recursos odontológicos, são de uma consulta a cada dois anos e até duas consultas odontológicas ao ano(19); sendo que o ingresso no sistema de saúde deve se dar, no máximo, a partir do sexto mês de idade(20). Porém, aproximadamente 15% da população brasileira nunca teve acesso ao tratamento odontológico; apenas 33,2% dos brasileiros consultaram o cirurgião-dentista no último ano e, entre menores de cinco anos, 81,8% das crianças nunca consultaram um cirurgião-dentista(21). Assim, os resultados do presente estudo, quanto ao acesso das crianças e familiares ao serviço odontológico no município, estão em concordância com os dados brasileiros.

A saúde bucal no Brasil, historicamente, não tem sido contemplada a contento. Entretanto, no momento se aponta a nova política de saúde bucal nacional, o Brasil Sorridente, como iniciativa que pode modificar essa realidade, com injeção de recursos específicos para essa área. É a primeira vez que o governo federal propõe o desenvolvimento de política nacional de saúde bucal, ou seja, um conjunto de ações que vão além de apenas incentivos isolados a essa área. Além do atendimento básico, tal política preconiza que a população tenha acesso, também, a tratamento especializado na rede pública, por meio de centros de especialidades odontológicas(22).

Os cuidadores referiram que são vários os espaços e os profissionais que podem compartilhar, com o dentista, o cuidado com a saúde bucal. Eles reconheceram a importância do médico pediatra, dos profissionais da enfermagem e dos professores como coadjuvantes do cuidado com a saúde bucal da criança.

Conceitualmente, a abordagem de questões relativas à saúde bucal constitui um campo de saberes e responsabilidades comuns ou confluentes a várias profissões ou especialidades. Assim, os diversos profissionais envolvidos no cuidado com a criança, ao observarem a presença de lesões de cárie ou nos tecidos moles bucais, durante os exames, devem fazer o encaminhamento formal para o serviço odontológico, viabilizando o atendimento específico do cirurgião-dentista - núcleo de competência(23). Contudo, alguns estudos apontam deficiências no conhecimento dos profissionais de diferentes áreas em relação à saúde bucal, o que limita suas atuações na promoção da saúde integral às crianças(24). É necessário que haja maior integração entre os profissionais, da saúde e da educação e cirurgiões-dentistas, assim como entre suas áreas de conhecimento.

Considerações finais

Os relatos dos cuidadores retratam a complexidade que é o cuidado relacionado à saúde bucal e, ao mesmo tempo, permitiram a identificação de inúmeros elementos que interferem nesse.

Quando centrado apenas na saúde bucal da criança, o cuidado mostra-se limitado, uma vez que a saúde da criança está imbricada à do cuidador e à de outros familiares. Essa situação remete à necessidade de se atuar junto à família, com vistas a diminuir sua vulnerabilidade, mediante intervenções que promovam o seu fortalecimento, e a Estratégia Saúde da Família aponta nessa direção.

Com vistas a expandir as possibilidades de cuidado com a saúde bucal da criança, é preciso que as ações preventivas extrapolem o risco biológico, contextualizando-o em perspectiva mais abrangente e complexa. Como questão vital está o reconhecimento do outro na sua singularidade, respeitando suas experiências, crenças e valores e buscando, por meio de escolhas compartilhadas e responsáveis, o verdadeiro encontro que é a base do cuidado. Para tanto, é fundamental a qualificação profissional para a viabilização de práticas fundamentadas nesses pressupostos.

Por outro lado, entende-se que o cuidado com a saúde bucal da criança, compartilhado por diferentes profissionais - médicos pediatras, enfermeiros, professores, agentes comunitários de saúde e atendentes de creche -, favorece a atenção integral à sua saúde nas diferentes fases de seu desenvolvimento. Assim, a integração de ações e conhecimentos entre os diversos profissionais deve ser uma diretriz firmada nos serviços de saúde e de educação, de forma que cada profissional assuma sua responsabilidade no cuidado com a saúde da criança. Acredita-se que, com a instituição dessas parcerias, abram-se novas possibilidades de atuação para os profissionais e de ampliação do cuidado infantil.

Por fim, considera-se que a vulnerabilidade da criança a agravos bucais segue como resultado de um conjunto de características dos contextos político, econômico e sociocultural, que ampliam ou diminuem seu risco individual. Dessa forma, ao se trabalhar a vulnerabilidade social, permanece o desafio de se investir em programas de promoção, prevenção e assistência, abrindo espaços para o diálogo e a compreensão sobre obstáculos estruturais. Tal desafio contempla a superação da vulnerabilidade programática, com a busca da universalidade do acesso ao serviço de saúde bucal, a superação da fragmentação da atenção em saúde, o investimento no trabalho multiprofissional e interdisciplinar e a capacitação profissional, para que, no plano das práticas pessoais, crenças e valores possam, de fato, proteger a criança dos agravos bucais.

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  • Corresponding Author:
    Pedro Fredemir Palha
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Fev 2011

    Histórico

    • Recebido
      26 Ago 2009
    • Aceito
      27 Abr 2010
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