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O conflito no exercício gerencial do enfermeiro no âmbito hospitalar

Resumos

Este é um estudo qualitativo, cujo objetivo foi analisar como os conflitos se manifestam nas relações interpessoais e a magnitude que assumem no exercício gerencial do enfermeiro, em hospitais. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada com 13 enfermeiras gerentes de hospitais, do interior do Rio Grande do Sul. Para a interpretação dos resultados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo. Entre os resultados, destacaram-se: a) 11 das 13 enfermeiras estão na função de gerente há mais de 80% do período após a graduação e expressaram que não tinham ideia sobre o papel gerencial antes de assumir a função; b) as enfermeiras compreendem que os conflitos são imanentes à organização, sendo necessário conviver e interagir com eles e c) os conflitos internos revelaram-se como os mais marcantes para as gerentes. É preciso compreender a origem dos conflitos, os fatores que favorecem sua instalação e reconhecer a importância de abordá-los interdisciplinarmente.

Enfermagem; Conflito; Gerência; Supervisão de Enfermagem; Administração Hospitalar


This qualitative study aimed to analyze how conflicts manifest in interpersonal relations and the dimensions they assume in nursing management in hospitals. Data were collected through semi-structured interviews with 13 nurse managers from hospitals in the interior of Rio Grande do Sul, Brazil. Content analysis was used to interpret the results. Among the results, it was highlighted that: a) 11 of the 13 nurses have been managers for more than 80% of their time since graduation and expressed that they had no idea about the management role before taking up this function; b) the nurses consider that conflicts are immanent in the organization, entailing the need to live and interact with them; c) internal conflicts showed to be the most determining for the managers. There is a need to understand the origin of conflicts and factors favoring their establishment, as well as to acknowledge the importance of an interdisciplinary response.

Nursing; Conflict; Management; Nursing, Supervisory; Hospital Administration


Estudio cualitativo cuyo objetivo fue analizar como los conflictos se manifiestan en las relaciones interpersonales y la magnitud que asumen en el ejercicio gerencial del enfermero en hospitales. Los datos fueron recolectados por medio de entrevista semiestructurada con 13 enfermeras gerentes de hospitales del interior del estado de Rio Grande del Sur. Para la interpretación de los resultados se utilizó la técnica de análisis de contenido. Entre los resultados, se destacó: a) 11 de las 13 enfermeras estaban en la función de gerente hace más de 80% del período de graduadas y expresaron que no tenían idea sobre el papel gerencial antes de asumir la función; b) las enfermeras comprenden que los conflictos son inmanentes a la organización, siendo necesario convivir e interactuar con ellos; c) los conflictos internos se revelaron como los más sobresalientes para las gerentes. Es preciso comprender el origen de los conflictos, los factores que favorecen su instalación y reconocer la importancia de abordarlos interdisciplinarmente.

Enfermería; Conflicto; Gerencia; Supervisión de Enfermería; Administración Hospitalaria


ARTIGO ORIGINAL

O conflito no exercício gerencial do enfermeiro no âmbito hospitalar1

Soeli Teresinha GuerraI; Adelina Giacomelli ProchnowII; Maria Auxiliadora TrevizanIII; Laura de Azevedo GuidoIV

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Hospital Universitário de Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: soeliguerra@uol.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto, Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: agp.sma@terra.com.br

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: trevizan@eerp.usp.br

IVEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto, Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Maria , RS, Brasil. E-mail: lguido@terra.com.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Este é um estudo qualitativo, cujo objetivo foi analisar como os conflitos se manifestam nas relações interpessoais e a magnitude que assumem no exercício gerencial do enfermeiro, em hospitais. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada com 13 enfermeiras gerentes de hospitais, do interior do Rio Grande do Sul. Para a interpretação dos resultados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo. Entre os resultados, destacaram-se: a) 11 das 13 enfermeiras estão na função de gerente há mais de 80% do período após a graduação e expressaram que não tinham ideia sobre o papel gerencial antes de assumir a função; b) as enfermeiras compreendem que os conflitos são imanentes à organização, sendo necessário conviver e interagir com eles e c) os conflitos internos revelaram-se como os mais marcantes para as gerentes. É preciso compreender a origem dos conflitos, os fatores que favorecem sua instalação e reconhecer a importância de abordá-los interdisciplinarmente.

Descritores: Enfermagem; Conflito (Psicologia); Gerência; Supervisão de Enfermagem; Administração Hospitalar.

Introdução

Os conflitos relacionam-se às inquietações que fazem parte da natureza do homem, dentre elas a defesa dos seus propósitos, o qual, para alcançá-los, se utiliza de mecanismos que possibilitam o controle do ambiente físico e das relações que o envolvem, mesmo presumindo que isso possa resultar no inesperado. Entretanto, o tratamento dado a esse tema está longe de alcançar a frequência com que o mesmo ocorre. Não raro, o conflito ainda é tratado como vilão, presença indesejada, uma situação a ser evitada a qualquer custo, ainda que se denote tendência declarada, após a metade do século XX, em assumi-lo como fator favorável a mudanças institucionais(1-5).

Na Enfermagem, as preocupações com o fenômeno conflito e a possibilidade de vê-lo como fator de mudança são percebidas a partir da década de 80, período em que, no contexto organizacional, a atuação do enfermeiro passa a se deslocar da área operacional para a área estratégica: uma interpretação que se dá a esse fenômeno é a de que os elementos característicos desse universo passam a fazer parte do cotidiano de trabalho dos enfermeiros(6).

Os profissionais da área de enfermagem representam a maioria da força de trabalho das instituições hospitalares(7), e exercem, de fato, atividades que vão desde o cuidado direto ao paciente até aquelas passíveis de eco no núcleo de decisão (ação indireta), quando informam à direção central sobre todos os eventos que ocorrem nos espaços da instituição. Essa peculiaridade confere especialmente ao enfermeiro uma concessão singular, permitindo-lhe agir, com mais autonomia, junto ao paciente, de forma direta e indireta, assim como interferir, subliminarmente, na tomada de decisões, por parte da direção central, e tornam os conflitos fenômenos inerentes ao fazer profissional do enfermeiro.

Neste estudo, os conflitos são entendidos como "(...) os fenômenos, os fatos, os comportamentos que, na vida organizacional, constituem-se em ‘ruídos’ e são reconhecidos como tais pelos trabalhadores e pela gerência"(3). São cinco os estágios que compreendem o processo do conflito: 1) conflito latente ou de oposição potencial ou incompatibilidade; 2) conflito percebido ou de cognição e personalização; 3) conflito sentido ou de intenções; 4) conflito manifesto ou de comportamento e 5) consequências do conflito para ambos. É importante que os dirigentes conheçam, de forma clara, essas fases para que possam tentar interferir em um conflito no estágio considerado mais apropriado para os fins que se espera(5,8).

Nessa perspectiva, o exercício da gerência do enfermeiro é permeado por conflitos. Na relação do profissional enfermeiro com as organizações do tipo hospitalar, observa-se a incorporação de elementos ideológicos na forma de organização do trabalho, e remetem à ideia de lealdade às organizações, de aptidão, de reconhecimento, de valores relacionados à questão moral. Entre os principais, destacam-se: engajamento, responsabilidade, disciplina, harmonia, valorização do ser humano, comprometimento, que resultam em um sentimento que demonstra tenacidade com o caráter religioso e militar, o que aproxima mitos e símbolos, que servem de base à sua prática(9).

Além disso, a atividade gerencial dos enfermeiros baseia-se, muitas vezes, nos princípios da teoria administrativa clássica a qual se encontra centrada na produtividade e na racionalidade do trabalho que, em certa medida, expõe os fatores intervenientes e desencadeantes de conflito nas relações de poder(10). Nesse sentido, estudo sobre as expectativas oriundas do cenário das práticas gerenciais, face ao Projeto Pedagógico e às estratégias que favoreçam, ou não, a práxis transformadora na enfermagem, constatou que os enfermeiros procuram adequar o trabalho aos modelos assistenciais e gerenciais coexistentes, mas ainda não conseguem alcançar a práxis transformadora, tendo em vista a resistência encontrada na organização dos serviços de saúde ao modelo neoliberal hegemônico, que sustenta a práxis reiterativa(11).

Para superação desse modelo, é importante a construção de novas formas de gerenciar em enfermagem que abarquem o conhecimento das políticas de saúde e sua operacionalização no âmbito do país e dos hospitais, bem como o desenvolvimento de competências e habilidades de liderança e gestão para práticas mais interativas e dialógicas, nas quais os conflitos não podem ser negados. Desse modo, a gerência poderá, de fato, configurar-se como possibilidade de instituir o novo no cotidiano das organizações de saúde(11-13).

A partir do panorama exposto, desenvolveu-se este estudo com o objetivo de analisar como o conflito se manifesta nas relações interpessoais e a magnitude que assume no âmbito do exercício gerencial do enfermeiro, diante do universo de organização de saúde do tipo hospitalar.

Método

Trata-se de estudo do tipo exploratório descritivo, que percorreu a trajetória metodológica qualitativa interpretativa.

A pesquisa teve como cenário cinco instituições hospitalares, com mais de cinquenta leitos, de uma cidade de médio porte no interior do Rio Grande do Sul.

Os participantes da pesquisa foram enfermeiras que exercem ou exerceram o cargo de Gerente de Enfermagem ou funções afins, por período mínimo de quatro anos, contínuos ou não, nos últimos dez anos, nos hospitais selecionados. Os critérios de seleção para composição da mostra obedeceram à seguinte ordem: 1) o aceite livre e voluntário em participar do grupo; 2) o mais antigo de cada instituição na função; 3) escolha de, no mínimo, um enfermeiro gerente por instituição; 4º) inclusão progressiva dos listados nas instituições, até contemplar, no mínimo, 50% dos enfermeiros gerentes de dois ou mais serviços que compõem o quadro funcional da instituição. Do total de quinze enfermeiras selecionadas, treze concederam a entrevista e duas não foram efetivadas devido aos cancelamentos sucessivos. O número de participantes da pesquisa foi estabelecido com base no critério de saturação dos dados.

Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada com questões norteadoras, a saber: 1) fale sobre o que você considera relevante em sua atividade gerencial; 2) antes de assumir a função gerencial, qual ideia você tinha sobre o papel do enfermeiro gerente? Corresponde ao que você pensava?; 3) como você se percebe diante de situações que considera como conflito?; 4) conte alguma situação que você lembra sobre algo marcante no exercício gerencial, envolvendo conflitos, e como lidou com a mesma; 5) você planeja, antecipadamente, formas de abordagens para situações que considera passiveis de conflito? e 6) para você, a maneira de lidar com o conflito depende ou não do contexto onde ele acontece?

Todas as entrevistas foram gravadas em um dispositivo eletrônico de áudio, transcritas na íntegra e ordenadas com destaques em diferentes cores, originando blocos, os quais foram organizados com base no foco de abordagem ao qual se referia, a fim de comporem a síntese para a interpretação a partir dos pressupostos teóricos previamente definidos. A análise dos dados foi realizada com base nos preceitos do método qualitativo: ordenação, classificação em estruturas de relevância, síntese e interpretação(14).

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética (CAAE nº0006.0.243.000-08). Os participantes do estudo receberam informações a respeito do objeto investigado e assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, formalizando sua anuência em integrar a pesquisa, conforme determina a Resolução nº196/96, do Conselho Nacional de Saúde(15). O sigilo dos sujeitos do estudo foi preservado por meio da adoção de códigos para identificação dos seus depoimentos, de acordo com a ordem com que foram realizadas as entrevistas.

Resultados

As enfermeiras gerentes e sua prática

As enfermeiras que participaram do estudo tinham idade superior a 30 anos, tempo de graduação em enfermagem entre sete e 36 anos e estavam na função de gerente entre seis e 30 anos. Todas deram sequência à qualificação formal após a graduação, cursando especialização ou mestrado, sendo que, com exceção de duas, as demais recorreram a capacitações especificas para a função, concomitantemente, ao seu exercício. Oito, das treze enfermeiras entrevistadas, estiveram, ou estão, na função de gerente, mais de 70% do período de graduadas e uma já exercia a gerência antes mesmo de graduar-se.

Quando inquiridas sobre o que consideram relevante no exercício da atividade gerencial, as enfermeiras destacaram, prioritariamente, as questões concernentes às relações interpessoais com ênfase para a capacidade de diálogo; a estabilidade emocional, com realce para habilidade de equacionar as diferenças entre os profissionais, sejam eles da própria equipe ou do conjunto dos demais trabalhadores da organização, e, também a luta em defesa das expectativas do grupo, que podem ser relativas à escala de trabalho, preferências por atuar em determinada especialidade ou de cunho particular, na tentativa de ajustar obrigações familiares e atividade laboral.

[...] a diversidade de pessoas que tu trabalhas [...] organizar essas diferenças [...] a melhor estratégia é conversar (enfermeira 1). A estabilidade emocional para tu lidar com muitos tipos de pessoas no trabalho porque antes da profissão vem a pessoa (enfermeira 6).

Pode-se apreender dessas falas a preocupação central que é a de identificar, tornar claro, elucidar as características, expectativas e sentimentos que compõem o conjunto de elementos subjetivos do campo de atuação de cada enfermeira gerente. O que pode diferenciá-los entre si é a ordem em que se encontram dispostos esses elementos.

Desse modo, parece oportuno destacar a questão relacional, pois "se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relações com o todo"(16). Na sequência, as falas são reveladoras.

O gerente tem que ter uma grande capacidade de compreensão das coisas, ele tem que tentar conhecer a questão da instituição e das pessoas com quem ele trabalha [...] cada um é diferente, um serviço do outro, e as pessoas dos serviços também são diferentes [...] Então, a gente é quase um camaleão [...] um camaleão porque você precisa estar se moldando a todas aquelas situações daquelas, daquelas equipes, daqueles fregueses que é diferente (enfermeira 8).

Ao analisar o enfermeiro no exercício da atividade gerencial, deve-se considerar, entre outras questões, a percepção que o mesmo tem acerca desse papel. Nesta pesquisa, evidenciou-se que a ampla maioria das enfermeiras tornou-se gerente, uma vez que foram nomeadas independentemente de sua vontade, sem sequer ter noção do que representava sê-lo, dos fatores intervenientes e das competências que envolvem o exercício da função.

A questão da gerência para mim era muito distante e por força das circunstâncias tu assumes [...] (enfermeira 8). Foi uma parte assim bem difícil; uma porque tu não tens ideia [...] tem várias coisas na hora que a gente assume um cargo desses, tem várias cobranças e realmente não tinha ideia, não tinha preparo (enfermeira 10).

Os depoimentos confirmam o que foi dito sobre o incógnito a que as enfermeiras se submetiam e são submetidas no interior das organizações hospitalares. A opressão manifesta cega e nega até mesmo a possibilidade de questionar ou se questionar sobre quais são e se possuem as competências necessárias para executar a tarefa.

Percepção das enfermeiras gerentes sobre o conflito: limites e possibilidades de superação

Para o grupo de enfermeiras entrevistadas, superação é a palavra que melhor define o propósito de suas lutas ao se julgarem bem-sucedidas nessa empreitada, considerada desconhecida e desafiadora que é a gerência.

A gente que tem uma base muito pequena, então eu não sabia o que era gerência... superação... queria vencer aquele obstáculo (enfermeira 5). Foi uma coisa que na verdade foi conquistada, nunca foi buscada, entendeu, comecei assim, não no empirismo, eu tinha uma formação, mas assim... eu fui indo e eu vi que eu tinha jeito para coisa (enfermeira 11).

Outra observação necessária, ao se refletir sobre os dilemas da enfermagem, é apresentada por um estudo que assinala que "é impossível desconhecer a existência de um descompasso que provoca tensões, desmotivações e conflitos – descompasso esse que surge da dicotomia entre a teoria e a prática"(17). Cabe refletir quais razões efetivamente conduzem a perpetuação dessa dicotomia. Será que se deve à consolidação de um habitus, conforme a construção teórica bourdieusiana das práticas, ou dar-se-á pela reprodução do conhecimento nas instituições formadoras, como preferem insistir algumas enfermeiras? As falas que seguem são instigantes e reveladoras nesse sentido.

Fui aprendendo, aprendendo com o tempo, fazendo e aprendendo (enfermeira 1). Eu também não sabia o que era chefia, mas fui aprendendo, a gente aprende muito com as pessoas [...] eu sou um pouco de cada enfermeira boa do hospital, tentei pegar o melhor de todo mundo (enfermeira 5).

Sabe-se que "a escola é um campo que mais do que qualquer outro, está orientado para a sua própria reprodução, pelo fato de que, entre outras razões, os agentes têm o domínio de sua própria reprodução"(18). Dito isso, fica o alerta sobre as consequências que as mudanças podem provocar nas relações entre o campo social e o campo escolar. Ora, se a imagem social do enfermeiro, enquanto gerente, pode assumir e se reconhecer de diferentes formas, considerando-se a real e a possível, implica dizer que o aparelhamento acadêmico necessita não apenas se mostrar e sim estar próximo, interagindo no e com o mundo onde a prática acontece. Assim como as organizações necessitam preparar-se para a inserção dos profissionais no mercado de trabalho de forma integrada.

As manifestações, a seguir, expressam o sentimento que as enfermeiras gerentes têm quanto à formação recebida e o que as espera de fato na gerência hospitalar.

A gente nunca foi preparada para gerência, as escolas não preparavam pra gerência, no máximo que tu conseguias fazer é a gerência do teu paciente, a gerência assim de serviços, de vários serviços como o que a gente faz hoje a gente não se prepara para isso (enfermeira 8). Eu não sabia nada de gerência, eu tinha aquela administração da faculdade, aquela fórmula necessidade vezes número de gente, local de trabalho vezes a carga horária [...] que não nos dava subsídios para realmente encarar uma chefia, em recursos humanos (enfermeira 11).

Se por um lado as enfermeiras assistenciais que exercem a gerência nos hospitais se consideram, em certa medida, lesadas, tolhidas, alijadas do acesso ao conhecimento necessário para o que julgam satisfatório ao exercício da atividade gerencial, por outro, é preciso trazer à superfície, expor de forma clara e sem rodeios, quais razões, verdadeiramente, justificam essa privação, se é que ela de fato existe.

Quanto à percepção dos conflitos, aferiu-se, por meio das falas das enfermeiras entrevistadas, que a maioria delas percebe o fenômeno como elemento incorporado e constante no exercício da função gerencial. Essa compreensão de que os conflitos estão presentes no cotidiano, como fenômenos percebidos e parte integrante do conjunto de fatores intervenientes com os quais o enfermeiro necessita conviver e interagir no seu trabalho de todos os dias, permite situar as declarações no período histórico da visão das relações humanas.

A gente vive constantemente conflito [...] (enfermeira 1). Conflitos são vários e dependem das situações (enfermeira 5). Os conflitos, eles são quase que diários e quando tu gerencias muitos serviços, eles se repetem muito e se assemelham muito também de um setor para outro (enfermeira 8).

Constatou-se, entretanto, que ainda existe, na percepção de algumas enfermeiras, a antiga visão sobre o conflito. A chamada visão tradicional, aquela que percebe o conflito como algo ruim, danoso, aquilo que deve ser evitado.

Conflitos, infelizmente, estão sempre presentes; e o problema maior realmente é quando se instala um conflito (enfermeira 3). Eu, nesses oito anos que eu tive, pode-se dizer que eu não tive problemas de conflito (enfermeira 9).

No relato sobre as experiências marcantes, decorrentes de situações de conflitos, a maioria das enfermeiras expressou que os conflitos interpessoais, envolvendo relações de caráter emotivo, ou relacionado às mais distintas manifestações de incompatibilidades que perpassam a convivência entre pessoas, são mencionados como as mais difíceis de gerenciar.

Eu não imaginava que na gerência a gente ia ter tanto problema de envolvimento de equipes dentro do hospital em questões afetivas, amorosas. É uma coisa assim que chama muita atenção (enfermeira 4). Eu acho que no momento deu para sentir que eu nunca fui muito benquista pelo pessoal mesmo. Na época, eu tinha uma chefe que ficava muito mais perto dos demais (técnicos/auxiliares) do que perto da coordenação em função disso acabava dividindo esse grupo (enfermeira 10). Deu problema lá com a [...]. Aquilo não tinha solução então a direção achou melhor eu sair e ficou cada uma para o seu lado [...] Com enfermeiro dá mais conflito, eu acho (enfermeira 12).

Discussão

As falas das entrevistadas revelam que conflitos internos entre os profissionais da equipe de enfermagem são os mais marcantes, para a maioria das enfermeiras gerentes. Sobram evidências de que essas se debatem entre o legalismo e as necessidades prementes, a emoção e a aplicação da regra, os dilemas éticos e a sobrevivência na função. Percebe-se que os principais movimentos das enfermeiras gerentes converteram-se em tentativas de acomodar os membros do grupo nas suas respectivas funções, evitando, com isso, o acirramento das disputas.

Para melhor interpretar o que, porque e quais fins encerram os acontecimentos que tencionam as relações no ambiente hospitalar, auxiliaria ter em mente a precaução compreensível do conceito de campo(19). Da mesma forma que o autor assinala as semelhanças existentes entre diferentes campos, deduz-se que o espaço hospitalar iguala-se aos outros por ser "um universo social como os outros, onde se trata com alhures, de poder de capital, de relações de força, de lutas para conservar ou transformar essas relações de força, de estratégias de manutenção ou subversão, de interesses etc.".

Infere-se que, possivelmente, as enfermeiras gerentes necessitam aprofundar o seu conhecimento sobre o universo organizacional, seus meandros, suas relações com os agentes internos e externos, quais valores se refletem na visão e missão institucional, a fim de profissionalizar a função que exercem.

Estudo sobre a gerência do cuidado de enfermagem sugere que a reflexão sobre o contexto social e organizacional, no qual o enfermeiro está imerso, conduz esse profissional à possibilidade de se tornar crítico em relação à organização institucional e à própria organização dos trabalhadores de enfermagem. Embora, o enfermeiro atue em instituições que fragmentam o saber e tentam anular a noção de humano, a partir da interpretação do instituído ele pode deixar aflorar as aptidões humanas próprias do homem(20).

O conjunto de competências, associadas a um corpo de conhecimento, compõe a formação, um dos aspectos da concepção de postos de trabalho de uma organização. Nesse sentido, se um trabalho exige conhecimentos e competências complexos, não racionalizados e que necessitam que o trabalhador dedique tempo na sua aprendizagem, é o tipo de trabalho definido como um ofício. Mas, quando os conhecimentos e as competências necessários para o trabalho foram identificadas antes de o indivíduo começar a trabalhar, diz-se que é o tipo de trabalho profissional(21). A partir da conceituação do autor, parece fundamental a interrogação: a função gerencial exercida por enfermeiro, no interior das organizações hospitalares, enquadra-se na definição de ofício ou trabalho profissional?

Pesquisa sobre a construção do saber gerencial e a conformação de competências do enfermeiro, para assumir e conduzir o processo de trabalho gerencial em saúde e na enfermagem, assinala que a formação e a práxis do enfermeiro devem transitar entre os processos de trabalho nas dimensões cuidadora, gerencial, educadora e de investigação científica. Desse modo, o enfermeiro pode assumir seu papel de articulador no sistema, nos serviços e na assistência à saúde, na ótica da integralidade, da integração ensino e serviço, atendendo as demandas da população e construindo caminhos para a operacionalização do sistema de saúde(11).

Diante das situações de conflito que marcam o exercício gerencial das enfermeiras, vários questionamentos podem ser levantados. O fato de não se ter respostas objetivas aos que estão evidentes, e a tantos outros que poderão advir, não significa que o enfermeiro gerente deva se intimidar diante de situações perniciosas ao serviço ou estrutura sob seu comando. Talvez, diante de tais circunstâncias, o melhor a fazer seja ponderar, observar temporariamente os movimentos dos agentes, articular sustentação às providências planejadas ou, simplesmente, ter ciência de que os questionamentos são coerentes e se preparar para não ser surpreendido. Por vezes, precaver-se do inesperado é o melhor a fazer em momentos de pouca certeza.

Propor transformações, iniciando-se por exigências de intervenção externa ao ambiente, poderá desencadear, minimamente, dois desdobramentos: primeiro investimento em ações, estrategicamente vulneráveis para a consolidação da mudança pretendida; segundo, comprometimento da expectativa da equipe no caso de empreenderem-se ações equivocadas.

A sensação de passividade institucionalizada, refletida pelas enfermeiras pode se transformar em detonador de uma ação que, ao ser desencadeada, redunda em efeito positivo para todos. Ela, a passividade, em determinadas circunstâncias exemplificadoras descritas pelas entrevistadas, constituiu-se no elemento central para a mudança de um habitus questionável para a equipe de enfermagem. A neutralidade do grupo possibilitou a incursão sobre os seus comportamentos, o que potencializou a atuação da enfermeira gerente a favor da ruptura evidenciada no desequilíbrio das forças entre os agentes do campo.

O processo da mudança é descrito como resultado das lutas entre os agentes que, em função de sua posição no campo, associada a seu capital peculiar, têm interesse em conservar, isto é, em rotinizar, ou em subverter, o que, frequentemente, assume a forma de uma volta ao começo, de pureza original e de crítica ingênua(19)..

Considera-se que as enfermeiras gerentes apresentam, mesmo que de forma inconsciente, intencionalidade favorável à ruptura. Entretanto, subsiste um questionamento essencial: em que medida o enfermeiro gerente percebe as intenções contidas na hierarquia ascendente ou descendente na ocorrência/evidência de um conflito?

Considerações finais

O esforço empreendido nesta investigação buscou analisar a concepção das enfermeiras gerentes sobre o conflito, no interior das organizações hospitalares, as principais ações empreendidas no gerenciamento do fenômeno, bem como refletir sobre o tema, associando-o ao exercício da ação gerencial de dois ou mais serviços nos hospitais em que atuam.

Historicamente, as reflexões sobre temas que permeiam as relações organizacionais, como é o caso do conflito, são contemplados nos diferentes ramos do conhecimento com tratamento ainda incipiente. Contudo, buscou-se construir uma abordagem, à luz da interseção teórica entre três áreas do conhecimento, com enfoque análogo sobre as relações, de um modo geral, na administração, sociologia e enfermagem, particularmente, e entre elas.

A dificuldade das enfermeiras gerentes para visualizarem alternativas, dentro de uma conjuntura estrutural complexa e congesta, a sujeição a situações no limite da eclosão, a opressão permanente sofrida, fruto dos fatores internos e externos à estrutura pela qual se sentem responsáveis, revela a manutenção da prática reiterativa, consolidada pelos agentes de enfermagem que exercem o papel de comando, mesmo quando esse transcende a hierarquia da categoria e respondem por vários serviços no interior das organizações hospitalares. É nos pequenos atos do cotidiano que se consolida um modelo de sistema de saúde e as gerentes de enfermagem, por meio de suas ações, a maioria delas mais reprodutivas do que reflexivas, ajudam a fortalecer o modelo vigente.

A incorporação de novos habitus requer enfrentamento e disposição para sensibilizar os agentes institucionais, sejam eles enfermeiros ou não, a volver um novo olhar sobre a sua prática. É preciso reflexão madura e visceral sobre a origem dos conflitos, dos fatores que favorecem a sua instalação e o reconhecimento da importância de abordagem interdisciplinar no tratamento desse fenômeno organizacional, para se iniciar a luta por reclassificação dos agentes dentro de um campo.

Denota-se que as perspectivas positivas para o futuro da profissão estão intimamente associadas à busca por qualificação científica, tanto teórica quanto prática, e não apenas pela admiração que se pode conquistar das outras categorias ou da sociedade em geral. É preciso transformar esse sentimento em respeito, para que se alcance preencher os chamados vazios administrativos nas organizações hospitalares, pelos quais os enfermeiros gerentes já transitam de maneira solitária e invisível.

Ademais, é preciso descortinar as atividades do enfermeiro gerente para que a equipe sinta-se coparticipante dos processos, mesmo que, em alguns momentos, como espectador apenas, só assim ela poderá prestar solidariedade e sustentar a atuação do gerente.

Uma alternativa apontada como factível, considerando-se as evidências deste estudo, centra-se no desenvolvimento da capacidade de compor equipes de serviço, levando-se em conta as diferenças contextuais. Manter nas equipes representantes de interesses divergentes, distribuindo, em proporção equânime, os poderes, contribui para equilibrar as forças internas, administrar movimentos capazes de dificultar ou comprometer o desempenho da gerência, além de incentivar o crescimento coletivo.

O gerente ao conhecer, intimamente, a sua equipe, seus membros, individualmente, deve buscar organizar os grupos de forma que, ao se ausentar, sentir-se-á presente, permanentemente, em todos os momentos na figura daqueles agentes que considera a sua própria extensão, ou seja, na sólida relação de confiança estabelecida em torno de propósitos comuns.

Pensar a interseção teórica entre a enfermagem, a administração e a sociologia no que tange às relações de trabalho, possibilitou olhar para o espaço social onde elas acontecem e considerar a relevância de contextualizá-las e, parece não haver dúvida sobre o entrelaçamento existente entre o núcleo essencial que compõe essas três áreas do conhecimento. É como se, no final, a combinação de diferentes cores, mesclando-se, buscassem conceber um matiz cada vez mais harmonioso.

A ousadia em abordar, interdisciplinarmente, o conflito assim como ele se apresenta na estrutura hospitalar, materializado nos princípios da administração, fortemente representados pela ação da enfermagem e a procura por desvelar suas imbricações na sociologia, a partir dos conceitos de habitus e campo de Pierre Bourdieu, foi, no limite das análises e discussões possíveis, a principal contribuição deste estudo.

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  • Corresponding Author:
    Soeli Teresinha Guerra
    Hospital Universitário de Santa Maria
    Avenida Roraima, Prédio 22
    Bairro: Camobi
    CEP: 97105-900 Santa Maria, RS, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Paper extracted from Master’s Thesis "O conflito no exercício gerencial do enfermeiro no contexto hospitalar", presented to Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brazil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Aceito
      19 Jul 2010
    • Recebido
      12 Dez 2009
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