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A experiência vivida pelos pacientes em diálise peritoneal domiciliar: uma abordagem fenomenológica

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender a experiência da diálise peritoneal domiciliar, a partir da narrativa dos pacientes. A abordagem do estudo inspirou-se na fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur. Foram entrevistados 19 pacientes na unidade de hemodiálise de um hospital público brasileiro, de março a setembro de 2009. As entrevistas foram orientadas pela questão: descreva sua experiência na diálise peritoneal. Os resultados desvelaram a percepção dos participantes sobre o significado da doença em suas vidas e as drásticas transformações pessoais sofridas nesse processo. Sentimentos de angústia e dor física foram acompanhados por importantes limitações pessoais e sociais, impostas pelo tratamento. Eles esperam por um futuro incerto, reconhecendo sua dependência da ajuda dos familiares e dos profissionais da saúde. Os resultados desvelam as dificuldades e a falta de perspectivas vividas pelos pacientes em diálise, demonstrando o papel crucial que cabe aos profissionais que os acompanham. Ajudá-los a desenvolver o autocuidado e maximizar sua qualidade de vida é prioridade na assistência a esses pacientes.

Autocuidado; Enfermagem; Diálise Peritoneal; Pesquisa Qualitativa


The aim of this study was to highlight the meaning of home dialysis as experienced by patients with chronic renal failure. The research design was influenced by Ricoeur´s phenomenology. Nineteen patients from a Brazilian public hospital were interviewed, from May to September 2009. Interviews were guided by the question: "Tell me about your experiences lived undergoing PD". Findings unveiled the patients' perception of the drastic changes in their existence, consequent to disease and treatment; and the perception of themselves in that process. The feeling of anguish, physical pain and deprivations were part of living that condition. They foresee an uncertain future, depending on the expertise of health care providers and the demands on support of significant others. Findings suggest that individual aspects of patients' experiences must be considered if health care providers are to facilitate positive health outcomes.

Self-Care; Nursing; Peritoneal Dialysis; Qualitative Research


El objetivo de este estudio fue comprender la experiencia de la diálisis peritoneal domiciliaria, a partir de la narración de los pacientes. El abordaje del estudio se inspiró en la fenomenología hermenéutica de Paul Ricoeur. Fueron entrevistados 19 pacientes en la unidad de hemodiálisis de un hospital público brasileño, de marzo a septiembre de 2009. Las entrevistas fueron orientadas por la pregunta: describa su experiencia en la diálisis peritoneal. Los resultados revelaron la percepción de los participantes sobre el significado de la enfermedad en sus vidas y las drásticas transformaciones personales sufridas en ese proceso. Sentimientos de angustia y dolor física fueron acompañados por importantes limitaciones personales y sociales, impuestas por el tratamiento. Ellos esperan un futuro desconocido, reconociendo su dependencia de la ayuda de los familiares y de los profesionales de la salud. Los resultados revelan las dificultades y la falta de perspectivas experimentadas por los pacientes en diálisis, demostrando el papel crucial que le cabe a los profesionales que los acompañan. Ayudarlos a desarrollar el autocuidado y maximizar su calidad de vida es una prioridad en la asistencia a esos pacientes.

Autocuidado; Enfermería; Diálisis Peritoneal; Investigación Cualitativa


ARTIGO ORIGINAL

IEnfermeira, Livre Docente, Professor Associado, Departamento de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", SP, Brasil. E-mail: sadal@uol.com.br

IIEnfermeiras, Unidade de Diálise, Hospital das Clínicas de Botucatu, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", SP, Brasil. E-mail: Gabriela - gabrielabruzos@gmail.com, Estela - bestela@uol.com.br, Edwa - edwa_ki@yahoo.com.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender a experiência da diálise peritoneal domiciliar, a partir da narrativa dos pacientes. A abordagem do estudo inspirou-se na fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur. Foram entrevistados 19 pacientes na unidade de hemodiálise de um hospital público brasileiro, de março a setembro de 2009. As entrevistas foram orientadas pela questão: descreva sua experiência na diálise peritoneal. Os resultados desvelaram a percepção dos participantes sobre o significado da doença em suas vidas e as drásticas transformações pessoais sofridas nesse processo. Sentimentos de angústia e dor física foram acompanhados por importantes limitações pessoais e sociais, impostas pelo tratamento. Eles esperam por um futuro incerto, reconhecendo sua dependência da ajuda dos familiares e dos profissionais da saúde. Os resultados desvelam as dificuldades e a falta de perspectivas vividas pelos pacientes em diálise, demonstrando o papel crucial que cabe aos profissionais que os acompanham. Ajudá-los a desenvolver o autocuidado e maximizar sua qualidade de vida é prioridade na assistência a esses pacientes.

Descritores: Autocuidado; Enfermagem; Diálise Peritoneal; Pesquisa Qualitativa.

Introdução

A doença renal crônica (DRC) é um problema de saúde pública universal, frequentemente resultando na fase final da doença renal (IRC), e precisando de terapia de reposição renal (TRR). No Brasil, incidência e prevalência da falência renal estão crescendo; o prognóstico é ainda pobre e os custos de tratamento muito altos(1). A despeito das disparidades socioeconômicas, o acesso aos serviços médicos, mesmo os mais sofisticados, está ao alcance de toda a população. Atualmente, existem centros de reposição renal em todo o país, compreendendo 524 unidades de diálise e 111 centros de transplante renal. Apesar da ocorrência de raros casos fatais, a diálise é procedimento seguro no Brasil, com taxa anual de mortalidade semelhante àquelas de países desenvolvidos(2). Embora a diálise peritoneal (DP) seja indicada como modalidade que beneficia a qualidade de vida do paciente, representando custos mais baixos, tem sido subutilizada no país(2). Para reverter essa tendência, os centros e as instituições de saúde brasileiros envolvidos na reposição renal precisam investir em pesquisa e desenvolver programas educativos focados na DP(1-2).

Após a definição pela DP, a equipe médica precisa decidir entre: i) a troca manual do fluido dialisado, 4 ou 5 vezes/dia (CAPD); ii) o uso de uma cicladora, que filtra ou drena o peritônio com o fluido dialítico, durante a noite (APD).

A DP é essencialmente uma modalidade de autocuidado, que permite ao paciente controlar seu próprio tratamento e ter consciência do seu próprio cuidado. As atividades desenvolvidas por ele incluem os procedimentos da diálise, cuidar do cateter e do seu entorno

Estudos sobre DP mostraram que o tratamento dialítico transforma, de forma dramática, a vida do paciente. Além dos sintomas físicos da doença, muitos se tornam emocionalmente e/ou socialmente perturbados, devido ao isolamento social e ao curso imprevisível da doença. Estudos recentes têm enfocado a experiência vivida pelo paciente, salientando a importância de se conhecer a sua compreensão sobre a doença e o tratamento. Esses estudos esclarecem sobre as diferenças entre as concepções de saúde dos pacientes e dos profissionais, e a imposição do imperativo clínico sobre o imperativo peculiar de cada paciente(3,7,11). De acordo com essa concepção, um autor propôs um modelo de assistência de enfermagem mais próximo à perspectiva do paciente sobre sua doença, adaptando o plano de cuidado às características únicas de cada um(7). Esse modelo de cuidado apresenta similaridades com o modelo de autocuidado(12), e com a teoria de comunicação terapêutica(13), que enfoca a educação e o desenvolvimento do paciente como pessoa na experiência da doença. As teorias mencionadas ressaltam os aspectos educativos da relação enfermeiro/paciente, quando colocam, como meta do cuidado, estimular a capacidade das pessoas para assumirem, dentro de suas possibilidades, o controle do próprio tratamento.

Para atingir esse objetivo, é essencial que os enfermeiros conheçam o entendimento do paciente sobre a doença e o tratamento, assim como seus modos de enfrentar as grandes mudanças decorrentes da doença. Nesse sentido, estudos explorando a experiência subjetiva dos pacientes podem auxiliar os profissionais da saúde a se aproximarem da realidade que eles vivenciam, permitindo-lhes melhor compreensão sobre as necessidades de cada um.

Objetivo

O objetivo do estudo foi compreender os significados da DP, segundo a experiência vivida por pacientes portadores de IRC.

Design

Entrevistas foram conduzidas com pacientes em DP, obtendo-se as suas narrativas sobre como vivem essa experiência. O método fenomenológico, inspirado na fenomenologia hermenêutica de Paul Ricouer(15), foi utilizado para interpretar as narrativas, consideradas como textos. O método desenvolveu-se em três fases: a leitura ingênua, a análise estrutural e a interpretação reflexiva do texto. Esses procedimentos constituíram um movimento dialético entre o todo e as partes do texto, e entre a narrativa e a compreensão da mesma(16). O foco da análise dos textos não foi o que os textos diziam, mas aquilo que o participante disse sobre o significado essencial da sua experiência. Primeiramente, a leitura ingênua foi feita em todas as narrativas, como um todo, para se obter uma primeira visão dos participantes sobre a sua experiência. A leitura ingênua apontou a direção que a análise estrutural tomaria. No segundo momento, a análise estrutural foi desenvolvida: ela representa a instância metodológica da interpretação da experiência vivida pelos participantes. Os textos foram divididos em unidades de significado (sentença ou parte de sentenças que responderam à questão do estudo). Essas unidades de significado foram analisadas considerando-se a compreensão ingênua, para validar a análise estrutural; a seguir, buscaram-se as convergências de todas as unidades de significado das narrativas, que foram agrupadas em temas essenciais, descrevendo-se a experiência vivida. No terceiro momento, a interpretação reflexiva das narrativas foi desenvolvida, levando-se em conta a compreensão inicial dos autores, a compreensão ingênua e a análise estrutural. A interpretação reflexiva, como um todo, foi analisada no contexto da literatura existente sobre o tema em estudo.

Participantes e contexto do estudo

Os participantes foram: 8 homens e 11 mulheres, entre 22 e 77 anos (idade média de 46 anos); 14 casados, 2 solteiros e 3 viúvos; 7 independentes nos procedimentos de diálise, 12 dependentes da ajuda dos familiares. Sobre formação escolar, 2 participantes têm formação universitária, 6 escolaridade média, 2 segundo grau incompleto, 4 educação básica completa e 3 incompleta; 2 são analfabetos. Entre os participantes: 3 trabalham, 4 são aposentados, 4 são donas de casa e 8 são aposentados. O pré-requisito para a seleção dos participantes foi que estivessem em DP num tempo mínimo de 6 meses. A pesquisa foi desenvolvida na unidade de hemodiálise de um hospital público universitário brasileiro.

Os dados foram coletados durante visitas domiciliares de rotina. As entrevistas tiveram duração entre 30 e 60 minutos, foram gravadas e depois transcritas por meio de processo verbatim. Uma pergunta aberta foi utilizada para encorajar a narrativa: conte sobre a experiência que tem vivido fazendo DP.

O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa, da instituição onde se desenvolveu (Of.nº523/08-CEP). Os participantes foram informados sobre o projeto; e, tendo concordado, assinaram o termo de consentimento esclarecido.

Resultados

Compreensão ingênua

Viver a experiência da diálise peritoneal significou, para os participantes, viver sentimentos de incerteza, angústia e dificuldades, desde o início da IRC e do conhecimento sobre a necessidade da DP. Mudanças drásticas provocaram transtornos no seu modo de vida, destruindo seus projetos para o futuro. Depois de se adaptarem à nova realidade, muitos se mostram agradecidos e esperançosos, apesar do sofrimento e das dificuldades. Eles estão conscientes de que a diálise lhes dá condição de sobrevivência, mas não significa a cura da doença. Sabem que dependerão para sempre de seu autocuidado, além de dependerem da ajuda de familiares, profissionais e da instituição de saúde.

Análise estrutural

Três temas essenciais emergiram da análise estrutural: confrontando-se com o universo da falência renal e do tratamento dialítico; vivenciando as mudanças no próprio corp; e fontes de apoio. Partes das suas narrativas (identificadas pelo número atribuído ao participante) são mencionadas durante a análise, exemplificando e clarificando a interpretação dos dados.

Confrontando-se com o universo da falência renal e do tratamento dialítico

Interrogados sobre a sua experiência de DP, os participantes relembraram seu primeiro contato com o universo da IRC e da DP. Eles descreveram a sua angústia diante da possibilidade da morte e a percepção de terem mergulhado num universo desconhecido e assustador. O tratamento proposto pela equipe médica seria o único modo de sobreviver, e esse, na prática, se mostrou doloroso e agressivo, limitando drasticamente suas atividades e vida social. Além disso, dependeriam dele por longo e imprevisível período de tempo, até conseguir um transplante renal. Todos relataram as suas dificuldades para aceitar e se adaptar a essas imposições. Uma mulher jovem descreveu: ... a médica chamou minha atenção, que eu não estava levando a sério, até de eu chorar dentro da sala. Mas foi muito importante para mim, pensei: opa! Vamos melhorar, tô fazendo errado (P5).

Percebendo a eficácia da terapia, os pacientes acabaram por aderir ao tratamento: decidiram seguir a dieta rigorosa, a restrição de líquidos e as limitações impostas pela DP. Após três anos de diálise, um participante exemplifica como assimilou a necessidade de seguir o tratamento:.Fazendo o tratamento eu me sinto bem. Eu mesmo faço sozinha. Eu não gosto nem, sabe, de ficar pensando no que pode acontecer, no que não pode. Eu faço, não gosto de ficar pondo muito na cabeça (P11).

Ela se percebe levada pela situação: apenas se deixa viver na temporalidade da doença e da DP. Esse modo de viver o tempo é expresso na sua percepção de que a doença "vem rolando", em um continuum. Outro participante revela a mesma percepção. Normal, faço como se fosse fazer qualquer outro tipo de tratamento, encaro com a maior naturalidade. É uma coisa que eu preciso, então eu faço, sem reclamar. Tem que fazer não é? Então! É para o meu bem, não é? (P15).

O tempo vivido se revela como sendo constituído por mudança repentina no curso de vida. Na verdade, são imposições que reduziram o tempo dedicado a viver. Eles estão conectados à máquina, muitas horas por dia, dia após dia. Associado a isso, há o temor de deixar de existir. Todo tempo é tempo de tensão e angústia. Um paciente descreveu: ... uma vez deu uma infecção, tomei 10 dias o antibiótico e não melhorou. Aí tomei 5 injeções na veia e não melhorou. Teve que fazer a cirurgia. Depois, outra vez a máquina só apitava. A borrachinha rolou por dentro. Aí eu tomei um remédio pra ver se melhorava. Não melhorou, então teve que fazer a cirurgia de novo. Então foi três vezes (P18).

Os participantes perceberam que a doença torna-se o foco da sua vida, a DP governa a existência. Tornaram-se conscientes de que não podem mais fazer muitas coisas que valorizavam e que apreciavam no passado. As mudanças forçadas envolveram a organização total da vida: casa, trabalho, atividades sociais. Foi necessário reestruturar o espaço da casa e adaptá-lo à DP. Muitos trechos das narrativas dos participantes falam dessas mudanças, como o exemplo a seguir. Na primeira noite que nós fomos fazer diálise em casa, precisei ir no banheiro e não conseguia. O banheiro era muito longe. A minha mulher teve que carregar a máquina até chegar perto para eu poder usar banheiro. Não tinha outro jeito, não é? O banheiro tinha de ser bem próximo (P4).

Perdem-se o controle e a organização dos espaços. Outro participante descreveu a sua casa como uma prisão. Tem aqueles horários que tem pra fazer a diálise. Dai chega os horários tem que estar na casa pra fazer, não pode sair de casa. A gente quer sair um pouco e fica muito difícil. O problema é que a gente fica preso (P6).

A ideia de prisão também está presente na fala de outro participante, que se sente "amarrado" à máquina ou "escravo da máquina". O seu quarto, a sua cama, o seu espaço noturno tem, atualmente, esse significado de aprisionamento. Bom não é. Não vou falar pra você que é bom ficar a noite inteira ali amarrada, ter que fazer xixi ali no quarto (P13).

A casa, o quarto, o espaço tornaram-se espaços dos medicamentos, do quarto higienizado, dos procedimentos que previnem complicações. Por outro lado, o hospital, antes assustador e frio, transforma-se no local acolhedor, onde recebem cuidados e apoio. Assim descreve um participante:... e os profissionais que me atendem, a gente já tem uma amizade. Que todos me chamam pelo nome, todos me conhecem. Eu me sinto em casa lá (P4).

Os mais jovens esperam por um transplante de rim: sonham com o futuro, imaginando-se livres dos cateteres, das bolsas e da máquina de diálise peritoneal. Agora o que foi mais importante para mim foi quando eu entrei na fila do transplante, pra fazer transplante de cadáver. O médico pediu os exames e foi feito os exames. E eu estou esperando (P3). Os mais velhos não mencionaram essa possibilidade, provavelmente por saberem da longa demora na fila de espera por um doador.

Vivenciando as mudanças no próprio corpo

A experiência da IRC e da DP afetou profundamente o modo de os pacientes relacionarem-se com seu próprio corpo e suas funções. Relembraram, emocionados, o momento em que foi comunicado que seus rins entraram em falência. Muitos descreveram como os marcou a ideia de perderem uma parte do corpo. Um homem idoso se viu morrendo, quando admitido na unidade de emergência. Fiquei assustado. Eu achava que tinha acabado a minha vida. Falei: agora acabou. Fiquei muito mal mesmo (P3).

O curso imprevisível da doença é acompanhado de incerteza e medo. A doença e o tratamento, além da perda do órgão vital e do declínio das habilidades físicas, tiveram outros efeitos: a perda do corpo próprio, como ele sempre fora. Passaram a ter apêndices nele: estão ligados a objetos e equipamentos, como a máquina; tubo inserido no abdômen; fluido insuflado no corpo durante horas e horas; mudanças no peso e na forma do corpo; constante presença de dor e desconforto. Uma jovem revive sua última hospitalização. Esse negócio de furar o pescoço, deles ficar procurando veia em mim. Isso aí é tudo dolorido. É dolorido ter que ficar tomando injeção. Todo o processo é sofrido. A pior parte pra mim é como eu vou levantar no outro dia com o estômago. O estômago é a pior parte que se tem em uma diálise, você não sabe se vai levantar com o estomago bom, se você vai conseguir comer ou não. Começa aquele mal-estar, daqui a pouco vem aquele vômito. De 59 quilos que eu comecei, eu estou com 51 quilos (P10).

Lutando contra os efeitos deletérios da diálise no seu corpo e no seu modo de se perceber, vários participantes revelaram a sua intenção de assumir seu próprio cuidado, mesmo que dependam, de algum modo, de outros. Preocupam-se com as técnicas assépticas, empenhados em evitar a invasão do corpo por microorganismos. A única coisa no tratamento que a gente tem que ter muito cuidado é com infecção, que é difícil quando pega. Eu já peguei várias vezes. Mas fazendo o tratamento certinho eu me sinto bem (P11).

Esforços para o controle do próprio corpo e para recuperar a autonomia são relatados em outras narrativas, descrevendo a adaptação à nova realidade e a retomada da vida normal. Um jovem fala sobre suas diligências, empregando habilidades e capacidades no sentido da autossuficiência. Tudo eu sozinho que faço: a limpeza do quarto, eu faço a DP. Tem os remédios, consultas no médico. Eu mesmo cuido de tudo. Eu tenho que cuidar tanto da diálise quanto da alimentação também né, só (P1). Outra participante manifesta a intenção de tomar conta de si mesma, de conquistar a independência. Eu vejo um monte de gente fazer diálise e trabalhar. Falei pro médico: meu Deus, por que eu não consigo levantar da cama? (P10). Ela apresentou doença renal há 20 anos, fez transplante há 15 anos e voltou à diálise há 3 meses. É deficiente visual, tem diabetes e hepatite. Mas não perdeu a esperança de ser independente.

Um homem idoso mostrou resignação diante da inevitável realidade. Nem comer nada que não pode, nem beber, de jeito nenhum. A gente se acostuma com tudo. Mas pelo menos estou melhor do que antes (P17). No entanto, ele relembrou o sofrimento que o marcou quando um profissional fez várias tentativas para inserir o cateter. Da outra vez que colocaram o cateter não deu certo. Aquilo lá só me judiou, né. Picou meu braço, e saiu sangue e inchou o braço e não deu nada. Mas isso já passou, e eu estou vivo. E não foi nada demais não (P17).

Fontes de apoio

Os participantes revivem nas suas narrativas suas relações com as pessoas que compartilham a sua experiência na PD: os familiares e os profissionais da saúde. Eles têm consciência de que os familiares mais próximos viveram muitas situações de stress e angústia em relação à doença e ao tratamento dialítico: sentiram o efeito dos mesmos problemas que os afetaram. Reconhecem que o apoio familiar é essencial para eles. A maioria tem sido extremamente dependente dessa ajuda, como relatou uma jovem. Eu sou cega, não posso ver nada. Dependo de outras pessoas. Minha mãe vem, liga, ajeita um horarinho para vir, sabe? Agora tem o meu marido, né, e pra mim foi melhor a diálise em casa (10.9).

Um participante expressou gratidão pela ajuda da sua mulher, mas, ao mesmo tempo, se ressente, porque se tornou um peso para ela. Eu acho muito difícil ter uma pessoa te acompanhando sempre, para fazer a diálise. O que eu mais queria era ser capaz um dia de eu fazer isso, que eu queria fazer sozinho, entendeu? (4.3). Outro lastima a falta de sua mulher. Eu tive dificuldade no que eu comecei a fazer a diálise. A mulher minha tinha acabado de morrer, então foi muito difícil fazer.(6.6).

Numa família, várias pessoas compartilham na realização dos procedimentos da PD, como relatou um homem idoso. Pra mim é fácil porque eu tenho uma filha que é auxiliar de enfermagem e ela ajuda bastante. E tenho uma filha, outra filha, que ela cuida do meu ambiente que eu faço o tratamento. É muito bem cuidado. E eu só ligo e desligo, entendeu (P3).

Os médicos e enfermeiros têm acompanhado os participantes durante anos, desde os primeiros sintomas da DRC; esses fazem parte da sua vida. Além de descrever a dependência que têm dos profissionais, os participantes expressaram sentimentos de afeto e gratidão por eles. Essas pessoas, os profissionais da equipe, sempre tratam a gente muito bem. Eu sempre me senti bem-vindo, desde o começo do tratamento. Já faz 8 anos que eu venho aqui (P 5). Mesmo quando acontecem reprimendas sobre a adesão ao tratamento, prevalece o sentimento de que são bem-aceitos e bem cuidados. Às vezes, dá um puxãozinho de orelha: "oh, precisa melhorar aqui, precisa melhorar ali né". Mas, assim, eles cuidam da gente como se fosse da família. A gente se sente em casa (P5).

Análise compreensiva

Os adultos portadores de doença crônica, como consequência da sua doença e do tratamento exaustivo, sofrem de restrições na vida, como um todo, de isolamento social, de descrédito e se ressentem de ser um peso para as pessoas próximas. Vivenciando esse processo, as pessoas experimentam uma forma fundamental de sofrimento: a perda do seu próprio eu - como se percebiam antes, características essas descritas por vários pesquisadores(5,17). Esses autores analisaram que esses pacientes percebem a autoimagem desintegrando-se, sem que haja substituição simultânea de outra, de igual valor. Essa concepção sobre o sofrimento do paciente portador de doença crônica foi utilizada, neste estudo, para compreender e analisar as narrativas dos participantes sobre a sua experiência em DP. Os elementos responsáveis pela perda/mudança de autoimagem dos pacientes entrevistados podem ser observados na análise dos temas que emergiram das suas narrativas, apresentada a seguir.

As condições da DP impõem aos pacientes numerosas perdas, que transformam radicalmente suas vidas, qualitativa e quantitativamente: a vida se torna mais pobre, muitas coisas se tornam impossíveis; e os dias se tornam mais curtos, pois a maior parte deles é dedicada à DP. Os novos hábitos giram em torno da doença e do tratamento e, portanto, a vida social torna-se difícil; o trabalho, para a maioria, não existe, e tempo e espaço vividos são totalmente absorvidos pela DP, sempre dependendo da ajuda externa. Essas características descritas pelos participantes referem-se àquelas concepções da perda da própria imagem(17): como resultado da incapacitação provocada pela doença crônica, os pacientes vivem uma vida restrita e isolamento social, percebendo-se como um peso para a família. Consequentemente, sentem-se diminuídos como pessoas, ou seja, desacreditados. Percebem não haver mais condições para manter a vida normal, desejada por todos. No entanto, eles continuam lutando para ficar bem, para alcançar a independência, para recobrar a normalidade. Os jovens fixam seu objetivo no transplante renal; os mais velhos, em manter-se bem. Estudos recentes apontam resultados semelhantes: a DP significa um grande impacto na vida dos pacientes, que sofrem perdas significativas(5,18-18). Incertezas quanto ao futuro e o sofrimento físico e psíquico marcam esses pacientes, que encontram dificuldades para adaptar-se à realidade. Sentem-se cansados depois de muitas horas dedicadas à DP, a máquina e equipamento ocupando seus espaços de lazer; o sono é perturbado pelo desconforto dos tubos, pelo líquido entrando no abdômen, e pelos alarmes(8,11). Entretanto, aderem ao tratamento, lutando pela vida e por viver tão normalmente quanto consigam. Para eles, recuperar a própria autonomia é condição importante para que enfrentem as dificuldades e as restrições impostas à sua vida(7-8,11). Mesmo a ilusão de controle e perspectivas para o futuro pode ser a base para a esperança e o otimismo. Um modo positivo de enfrentar as dificuldades pode ser essencial para preservar os elementos fundamentais de uma vida normal, ajudando os pacientes em DP a assumir o comando de suas próprias decisões e ações(3).

Descrevendo sua autopercepção - consciência do corpo - os participantes nos falaram sobre como a perda dos rins e o tratamento dialítico os expuseram a mudanças na aparência e nos modos de se perceber e se relacionar com o próprio corpo. As perdas essenciais que eles sofreram, ao longo da doença, resultaram em diminuição da antiga autoimagem e da visão de si mesmos. Dados recentes da literatura corroboram nossos achados: a diálise altera significativamente a identidade pessoal e a imagem corporal(8,11). As mudanças corporais vividas na DP provocam a percepção de a pessoa não ser mais ela mesma; tornou-se uma pessoa lamentável(19). Junto dos efeitos deletérios da doença na autoimagem, a mais significante fonte de perda da própria imagem é a incapacidade de controlar a si mesmo e a sua vida, como supostamente deveria acontecer(4-5). Os entrevistados, aqui, também descreveram seus sentimentos de angústia e frustração diante da perda da liberdade: isso corresponderia à perda do controle do próprio corpo e à condução da sua vida. Eles têm um pensamento comum: recuperar a vida antiga e ser uma pessoa como antes. Desejam ser independentes e ser normais(4-5). Alguns estudos descreveram as necessidades que os pacientes têm de parecer e se sentir saudáveis, mais parecidos com as outras pessoas, apesar da doença e do tratamento prolongado(7-8,11,20). Mesmo desejando isso, seria importante que os pacientes se conscientizassem sobre as limitações da doença, reavaliando seus projetos de vida e propondo a si novos objetivos. Alguns autores consideram que o paciente poderia superar essas dificuldades mediante um plano contínuo de educação e apoio, promovido pelos profissionais da saúde, estimulando a sua autonomia para o autocuidado(7-8,19-20).

Falando sobre as pessoas com as quais compartilharam sua experiência, os participantes revelaram a percepção de que seus familiares, os profissionais da saúde e a instituição são fundamentais para sua sobrevivência. O envolvimento e a dependência sempre existiram e existirão; mesmo quando os participantes mostram autonomia na realização dos procedimentos dialíticos. Em relação aos profissionais da saúde, os participantes descreveram sua presença constante: cuidando, informando e supervisionando-os, mostram interesse e disponibilidade e comprometem-se com os pacientes. A visita domiciliária é valorizada como um diferencial na assistência recebida, destacando-se o papel dos enfermeiros, sempre próximos e atentos, responsáveis pelas orientações e treinamento dos procedimentos da diálise. Esses achados confirmam resultados de outros estudos, mostrando que os pacientes em DP apreciam e reconhecem o trabalho dos profissionais da saúde, principalmente dos enfermeiros(11). A despeito da cumplicidade entre profissionais e pacientes, alguns autores analisaram que, frequentemente, os pacientes interpretam as orientações recebidas dos profissionais de acordo com sua própria visão de mundo e daquilo que consideram normal para eles; algumas vezes mostrando uma concepção peculiar do tratamento(7,11).

Em relação ao apoio da família, os participantes do estudo lastimaram o fato de se tornarem um peso para seus familiares próximos, provocando mudanças e perdas também para eles. Esses dados são semelhantes àqueles encontrados na literatura, que ressaltam o impacto sofrido pelos familiares quando um parente próximo é submetido ao tratamento dialítico. Há repercussões de ordem emocional, social e financeira de tal amplitude, que necessitam de ajuda externa(17-18,21).

Implicações para a prática de enfermagem

Os resultados do estudo sugerem que ajudar os pacientes em DP a desenvolverem o autocuidado e maximizar a sua qualidade de vida constituiria prioridade para os profissionais de saúde, que deveriam privilegiar tais procedimentos ao elaborarem o plano de assistência a esses pacientes. Concepções de autocuidado e cuidado centrado no paciente seriam as melhores bases para atingir esse objetivo. Em relação a isso, os enfermeiros, devido à maior proximidade com os pacientes em DP, desempenham papel decisivo no processo educativo, visando a adaptação dos pacientes e a superação de suas dificuldades. Perguntar aos pacientes sobre a sua compreensão a respeito da doença e do tratamento, quais suas fontes de stress e insegurança, o impacto da diálise na sua vida: essas são maneiras de oferecer assistência individualizada e consistente na direção do autocuidado; visando empoderar os pacientes no sentido de recuperar a autoestima e o próprio valor como pessoa. Essas intervenções no nível individual, provavelmente, terão efeitos positivos para o paciente e poderão ser incorporadas ao plano de cuidado destinado aos portadores de DRC.

Considerações finais

A abordagem qualitativa acrescentou e aprofundou a compreensão sobre como é viver dependendo da DP, ressaltando os aspectos relativos a diversos fatores: às perdas sofridas nesse processo, aos problemas físicos que afetam a percepção de si mesmo, aos sentimentos de se perceberem como um peso para a família e, especialmente para os mais velhos, à falta de perspectivas sobre conseguir um transplante. Os resultados sugerem a possibilidade de buscar novas abordagens no cuidado de enfermagem, que estimulem os pacientes a expressar suas necessidades e dificuldades, vivenciadas na experiência da DP. Esses conhecimentos poderão ser cruciais no sentido de direcionar o foco do plano de cuidado na direção das necessidades específicas de cada paciente.

Alguns aspectos mencionados no estudo sugerem a necessidade de novas investigações, visando o desenvolvimento e a compreensão, no cuidado dos pacientes em DP, dos seguintes aspectos, a saber: a participação dos familiares, a percepção dos enfermeiros e outros profissionais a respeito de cuidar desses pacientes, e a efetividade do trabalho educativo na DP.

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  • A experiência vivida pelos pacientes em diálise peritoneal domiciliar: uma abordagem fenomenológica

    Maria Lúcia Araújo SadalaI; Gabriela Azevedo de Souza BruzosII; Estela Regina PereiraII; Edwa Maria BucuvicII
  • *
    , tomar as medicações, seguir a dieta e a limitação dos líquidos, e manter vigilância e observação atentas, prevenindo as complicações. Nesse processo, os enfermeiros têm importante papel educativo: preparam pacientes e familiares para assumir os procedimentos da diálise, encorajando o paciente a ser responsável pelo seu cuidado, com a ajuda da família
    (4-8).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Fev 2012

    Histórico

    • Recebido
      04 Mar 2011
    • Aceito
      19 Dez 2011
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