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A violência no cotidiano da prostituição: invisibilidades e ambiguidades

Resumos

OBJETIVO: desvelar o sentido da violência no cotidiano da prostituição feminina. MÉTODO: utilizou-se abordagem fenomenológica de Martin Heidegger. A pesquisa foi realizada em Teresina, Piauí, Brasil, com 11 mulheres, membros da Associação das Prostitutas do Piauí. Os dados foram produzidos por meio da entrevista aberta, conduzida por um roteiro com perguntas acerca da vivência como prostituta e sua relação com a violência. RESULTADOS: os relatos evidenciaram ser a prostituição uma atividade de risco, na qual a violência de gênero é um fenômeno presente. Nesse mundo relacional, prostituição e violência se entrelaçam em face de negociações estabelecidas entre a mulher e o homem, com contratos formalizados às escuras, verbalmente, sem testemunhas e cujo objeto de contrato é a própria mulher, com a finalidade de proporcionar prazer sexual ao contratante. Por meio da análise interpretativa, foi possível compreender que o vivido da violência leva a mulher a permanecer nesse cotidiano no qual estão presentes o temor, a inautenticidade e a ambiguidade. CONCLUSÕES: o vivido da violência desvela relações de dominação e afirmação do poder masculino, manifestadas por violência física, psicológica, moral e sexual. O estudo avança no conhecimento científico, ao mostrar que a violência contra a mulher, em situação de prostituição, precisa ser compreendida como processo factual, assim como pelo sofrimento vivido por ela.

Prostituição; Violência; Mulheres; Enfermagem


OBJECTIVE: To reveal the meaning of violence in everyday female prostitution. METHOD: we used a phenomenological approach of Martin Heidegger. The survey was conducted in Teresina / Piauí / Brazil, with 11 women members of the Association of Prostitutes of Piaui. The data were produced by means of open interviews conducted by a script with questions regarding their experience as a prostitute and its relationship to violence. RESULTS: The reports indicate that it is prostitution a risky activity in which gender violence is a phenomenon present. In the relational world, prostitution and violence are intertwined in the face of negotiations established between women and men with formal contracts in the dark, verbally, without witnesses, and whose object of contract is the woman herself for the purpose of providing sexual pleasure to the contractor. Through interpretative analysis was possible to understand the lived violence leads women to remain in daily life where is this fear, inauthenticity and ambiguity. CONCLUSIONS: violence unveils lived relations of domination and assertion of male power, manifested by violence physical, psychological, moral and sexual. The study advances in scientific knowledge by showing that violence against women, in prostitution, must be understood as a process factual as well as the suffering experienced by them.

Prostitution; Violence; Women; Nursing


OBJETIVO: desvelar el sentido de la violencia en el cotidiano de la prostitución femenina. MÉTODO: Se utilizó abordaje fenomenológico de Martin Heidegger. La investigación fue realizada en Teresina/Piauí/Brasil, con 11 mujeres miembros de la Asociación de las Meretrices de Piauí. Los datos fueron producidos por medio de la entrevista abierta, acarreada por un guión con preguntas acerca de la vivencia como meretriz y su relación con la violencia. RESULTADOS: los relatos evidenciaron que la prostitución es una actividad de riesgo, en la cual la violencia de género es un fenómeno presente. En ese mundo relacional, prostitución y violencia se entrelazan en faz de negociaciones establecidas entre la mujer y el hombre, con contratos formalizados a oscuro, oralmente, sin testigos y cuyo objeto de contrato es la propia mujer con la finalidad de proporcionar placer sexual al contratante. Por medio del análisis interpretativo fue posible comprender que el vivido de la violencia lleva la mujer a permanecer en ese cotidiano en el cual está presente el temor, la inautenticidad y la ambigüedad. CONCLUSIONES:el vivido de la violencia desvela relaciones de dominación y afirmación del poder masculino, manifestada por violencia física, psicológica, moral y sexual. El estudio avanza en el conocimiento científico al mostrar que la violencia contra la mujer, en situación de prostitución, necesita ser comprendida como proceso fáctico, así como por el sufrimiento vivido por ellas.

Prostitución; Violencia; Mujer; Enfermería


ARTIGO ORIGINAL

A violência no cotidiano da prostituição: invisibilidades e ambiguidades

Isabel Cristina Cavalcante Carvalho MoreiraI; Claudete Ferreira de Souza MonteiroII

IMSc, Professor, Faculdade Integral Diferencial, PI, Brasil

IIPhD, Professor, Universidade Federal do Piauí, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Claudete Ferreira de Souza Monteiro Universidade Federal do Piauí Campus Universitário Ministro Petrônio Portela, s/n Bairro: Iningá CEP: 64049-550, Teresina, PI, Brasil E-mail: claudetefmonteiro@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: desvelar o sentido da violência no cotidiano da prostituição feminina.

MÉTODO: utilizou-se abordagem fenomenológica de Martin Heidegger. A pesquisa foi realizada em Teresina, Piauí, Brasil, com 11 mulheres, membros da Associação das Prostitutas do Piauí. Os dados foram produzidos por meio da entrevista aberta, conduzida por um roteiro com perguntas acerca da vivência como prostituta e sua relação com a violência.

RESULTADOS: os relatos evidenciaram ser a prostituição uma atividade de risco, na qual a violência de gênero é um fenômeno presente. Nesse mundo relacional, prostituição e violência se entrelaçam em face de negociações estabelecidas entre a mulher e o homem, com contratos formalizados às escuras, verbalmente, sem testemunhas e cujo objeto de contrato é a própria mulher, com a finalidade de proporcionar prazer sexual ao contratante. Por meio da análise interpretativa, foi possível compreender que o vivido da violência leva a mulher a permanecer nesse cotidiano no qual estão presentes o temor, a inautenticidade e a ambiguidade.

CONCLUSÕES: o vivido da violência desvela relações de dominação e afirmação do poder masculino, manifestadas por violência física, psicológica, moral e sexual. O estudo avança no conhecimento científico, ao mostrar que a violência contra a mulher, em situação de prostituição, precisa ser compreendida como processo factual, assim como pelo sofrimento vivido por ela.

Descritores: Prostituição; Violência; Mulheres; Enfermagem.

Introdução

A violência é um fenômeno que está presente na história da humanidade. É uma questão social que afeta a saúde das pessoas, sendo uma das principais causas de morte no mundo, na faixa etária de 15 a 44 anos. São incalculáveis os prejuízos econômicos, os dias perdidos no trabalho, os danos sobre a saúde mental, sofrimentos e a dor das vítimas e familiares(1).

A violência não exclui classes sociais, raças, etnias. É considerada como fenômeno crescente em toda sociedade, apresentando-se de forma multifacetada. Representa, ainda, uma das principais causas de morbimortalidade, especialmente na população jovem. Em relação ao cenário de ocorrência, os homens são mais atingidos na esfera pública; já as mulheres são mais agredidas no espaço privado, e o agressor é comumente alguém com quem mantém laços de afinidade, cuja relação é de submissão e de poder. Nesse sentido, incide sobre elas a violência de gênero(2-3).

Esse tipo de violência traz como elemento constituinte as relações sociais, baseadas nas diferenças entre os sexos e, de modo primordial, nas relações de poder. É considerada um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde e conceituada como qualquer ato que resulta ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade em público ou na vida privada, assim como castigos, maus-tratos, pornografia, agressão sexual e incesto(1).

Essa relação estabelecida entre homens e mulheres, tendo como mecanismo a desigualdade de poder, constitui violação dos direitos humanos e gera problemas de ordem social, de saúde pública e de saúde da mulher, colocando-a à mercê de outros tipos de violência, como a prostituição, gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis(4).

No caso da prostituição, essa pode advir da violência, mas pode ser também cenário para tal. A mulher, sendo prostituta, não foge ao contexto de violência historicamente construído. Para a sociedade, a atividade que ela exerce é ilícita e moralmente reprovável, expondo-a a violência ainda maior. O tipo de ambiente onde ela atua também a deixa mais vulnerável, pois, na rua, está sujeita às agressões arbitrárias da polícia, dos agenciadores, dos clientes, principalmente em relação ao acerto do "programa" e uso da camisinha. Essas agressões ainda não são registradas nos serviços de saúde(2).

Nessa atividade, as mulheres oferecem satisfação sexual em troca de remuneração e vão, aos poucos, perdendo seu 'corpo' e seu 'destino', pois passam a desconstruir as relações de proteção e direito individual e coletivo, surgindo, nesse cenário, os fatores de risco(5).

Entre os vários riscos, estão aqueles relacionados às agressões, pois as mulheres não escolhem os clientes e a violência nesse cenário é constante, tanto física como abusos sexuais, tráfico de mulheres, estupros, roubos, insultos, xingamentos e outros, manifestados por humilhações, ofensas verbais e morais. Outro risco pelo qual passa a prostituta diz respeito às questões de saúde pública, no que se refere à vulnerabilidade para as doenças sexualmente transmissíveis (DST), exatamente pelo sexo sem proteção. Há, ainda, o risco da quebra do sigilo de sua atividade, pois muitas prostitutas a escondem de seus familiares(6).

Pesquisa realizada com prostitutas em Leeds, na Inglaterra, Glasgow e Edimburgo, na Escócia, revelou que 30% foram esbofeteadas ou chutadas por um cliente, 11% foram estupradas e 22% sofreram tentativa de estupro, dessas, somente 34% denunciaram à polícia(1).

Na esteira desse caminho de riscos, as mulheres prostitutas continuam sendo alvo da violência pelos clientes, por esses entenderem que o pagamento lhes confere poder para o abuso físico, sexual e psicológico, como também pela interpretação da imagem da prostituta, a qual ainda sofre influências do passado.

Assim, compreende-se que a violência contra a mulher se insere na questão de gênero e que possui importantes intersecções com outros determinantes de saúde das mulheres, notadamente o uso de drogas, baixa autoestima e formas de vida e de trabalho(7).

Torna-se necessário dar visibilidade a essa violência, dar voz a esse grupo de risco, para se compreender como é o vivido da violência, o que sentem essas mulheres e como as políticas públicas e o serviço de saúde podem aproximar-se mais para desenvolver trabalhos de promoção da saúde e prevenção da violência, no cotidiano dessa atividade.

A complexidade do tema e do grupo estudado impulsionou a busca pelo fenômeno na dimensão subjetiva, a partir do vivido, e o que ele significa para quem o vive. Nessa direção, a questão norteadora foi: como é o vivido da violência no cotidiano da prostituição feminina? Partindo dessa questão, o objetivo do presente estudo foi desvelar o sentido da violência no cotidiano da prostituição feminina.

Método

Realizou-se pesquisa qualitativa, subsidiada pelo método fenomenológico(8) para apreender, descrever e analisar compreensivelmente o significado do vivido da violência e o sentido que emana dele.

O método fenomenológico foi utilizado em três etapas: a descrição, quando se interrogou o sujeito sobre o fenômeno pesquisado; a redução, momento em que se buscou afastar julgamentos acerca de concepções pré-estabelecidas sobre o tema em investigação, para dar início à leitura das descrições e selecionar partes essenciais, com o objetivo de constituir as unidades de significação. Após essa etapa, houve a análise compreensiva, cuja interpretação analítica e hermenêutica teve como base conceitos do referencial filosófico de Martin Heidegger(9).

O estudo foi realizado em Teresina, Piauí, localizada na Região Nordeste do Brasil. Foram sujeitos investigados 11 mulheres que exercem ou exerceram atividades de prostituição. O critério de inclusão era ser membro da Associação das Prostitutas do Estado do Piauí (Aprospi) e concordar em participar voluntariamente. O número de entrevistadas se deu por saturação das informações obtidas nos relatos.

Para a produção de dados, utilizou-se a entrevista aberta conduzida por um roteiro com perguntas acerca da vivência como prostituta e sua relação com a violência. Tais questões possibilitaram o conhecimento ontológico do fenômeno, naquilo que parte da consciência e do vivido em relação ao pesquisado.

O projeto e os objetivos foram apresentados aos participantes, e as entrevistas foram gravadas depois que os sujeitos leram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. As entrevistas foram realizadas no período de abril a maio de 2009.

Considerando exigências formais contidas na Resolução 196/96, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (nº 0007. 0.045.000-09).

Resultados e Discussão

Na primeira unidade de significação, foi possível agrupar termos essenciais que destacavam um cotidiano de agressões, imposição de quebra de acordos que levaram as entrevistadas a descreverem o mundo da prostituição como de risco e gerador de medo. O mundo constitui-se para além de um espaço geográfico, é todo o contexto no qual se está inserido, no qual permeiam as relações que se estabelecem entre os seres, e que se encontra imerso na cotidianidade, envolvido em situações ora previsíveis ora inusitadas(9). [...] se vai fazer programa tem três perigos: o cara matar a gente, ser estuprada, ser assaltada (D 7). Uma vez, na hora lá ele queria que eu fizesse tudo, eu não fiz ele me deu dois tapas e ainda roubou meu dinheiro (D 11). Eu estou saindo com um moço por precisão, mas ele que fazer sexo daqueles que pessoa bate no outro, dando pancadas, machucando (D 8).

Nesse mundo da prostituição, a violência ocorre em uma realidade na qual a mulher se encontra, que foi se tecendo, caracterizando o mundo próprio desse vivido. [...] tem deles que quer dar até na cara da gente, mas tem deles que pergunta qual preço para nos espancarem, só que eu nunca aceitei, mas já fui espancada de várias maneiras, de cinto, de palmadas na bunda (risos), de mordida na vagina, na perna, só não fui violentada, só não fui estuprada [...] (D 1).

Nesse cotidiano, embora não sendo aceito, mas previsível, está a mulher em situação de prostituição e violência. O mundo da prostituição é um mundo relacional, no qual, por constituir-se em troca de satisfação e fantasias sexuais, por dinheiro e sem contrato formal, é previsível que haja quebras nessa relação. Nessa quebra, a violência pode vir-junto-a(9), levando o homem à prática de atos agressivos para satisfazer seus desejos mais íntimos. [...] Tem é muito que só quer dar 10 reais, aí diz assim: ah, tô pagando, tem que fazer o que eu quero. É humilhação, tem que ter sangue na veia, e estômago para sair com esses homens [...] (D 5).

A relação prostituta/cliente é expressa como encontro permeado de humilhação, repulsa e aversão, pois, além de ser agredida, é obrigada a fazer "coisas" contra sua vontade e aceitar qualquer cliente. A gente fica pelo dinheiro, uns querem beijar na boca, agarrar, quer beijinho, eu apresso logo, eu boto é o travesseiro na cara [...] (D 2).

Nessa relação comercial, as mulheres estabelecem regras entre a atividade profissional e a vida particular. Diferenciam os relacionamentos com clientes e parceiros. Com cliente ou desconhecido, sempre usam preservativos, não é permitido gozar, beijar na boca e manter sentimentos de afetividade. A relação é constituída somente pela troca de sexo por dinheiro(10).

A relação que se estabelece entre a prostituta e o cliente é comercial. Caracteriza-se pela venda do corpo e/ou prazer por dinheiro, em que a mulher passa a ser vista como mercadoria pelos serviços prestados. Nessa negociação, constrói-se uma imagem depreciativa da prostituta, na qual ela perde o referencial de mulher, mãe, filha, cidadã, favorecendo, assim, práticas discriminatórias no seu cotidiano, expressas por violência simbólica, agressões físicas e até assassinato(11).

Na análise compreensiva, nessa relação dita comercial, surge o medo. As agressões que as prostitutas vivenciam é uma ameaça à integridade física e psicológica, de tal modo que esse medo ora se reveste de temor.

O temor está presente para essas mulheres, sob três perspectivas heideggerianas: o que se teme, o temer e o pelo que se teme. O que se teme é sempre algo que vem ao encontro dentro do mundo(9). O temor se mostra para as prostitutas como algo inesperado, por exemplo: o de ser estuprada e/ou morta. Entretanto, quando o que se teme possui o caráter não familiar, esse temer passa a constituir-se em horror(9). No caso das mulheres deste estudo, o horror está presente quando as agressões partem dos clientes; não se configuram, portanto, como familiares. As mulheres deste estudo apontam sentidos da violência nos modos de disposição do medo(9).

Compreende-se, também, que essa atividade abre possibilidades para diversas formas de com-vivência com a violência. O cliente impõe o tipo de prática sexual que deseja realizar. Nessa questão, considera-se que a prostituta foi paga para ter relações sexuais e esse modo de contrato deve ser cumprido. O ser dela não é considerado, assim, ela se torna um objeto, da imposição, submissão e exploração pelo cliente. [...] ele ficou comigo e quando terminou tomou meu dinheiro que eu já tinha recebido com outro cliente, tomou o que ele tinha me dado, me empurrou, me machucou, me chamou de vagabunda [...] (D 3).

O fato de não pagar pelos serviços prestados é considerado, em alguns estudos, como violência e desvalorização do trabalho da prostituta. O não recebimento pelos serviços é comparado a um estupro. A quebra do acordo faz com que os clientes utilizem a força física e a imposição do medo e da humilhação para que seus desejos sejam atendidos(11).

Observam-se, nesse cenário, relações desiguais, assimétricas e de desvalorização, nas quais se permeiam a superioridade masculina e discriminação à prostituta, pelo fato de ser mulher, pobre e exercer tal atividade.

No contexto dessa relação, configura-se a violência de gênero, cujos resultados afetam a integridade biopsicossocial, com manifestações que vão desde as doenças nos sistemas digestivos e circulatórios, ansiedade, depressão, uso de entorpecentes, bem como ao surgimento de lesões físicas(12).

Estudos da área da enfermagem têm demonstrado que a consulta de enfermagem e a escuta sensível e discussão de questões como sexualidade, autoimagem e outras constituem estratégias de redução da violência de gênero. Essas são ações que devem ser compartilhadas com outras áreas de cuidado à mulher, facilitando a prevenção de agravos à saúde física e mental, resultantes de atos violentos(13).

Algumas reflexões, entretanto, têm demonstrado que a compreensão das práticas em saúde, voltadas para mulheres em situação de violência, não levam em consideração uma perspectiva de gênero e, desse modo, nem sempre consideram a assimetria de poder nas relações entre homens e mulheres, oriundos de processos sociais mais amplos. Assim, para uma prática em saúde que contemple efetivamente essa realidade é necessário que os profissionais passem por um processo de compreensão da construção social da identidade de gênero e violência de gênero(14).

Na segunda unidade de significação, as mulheres relatam um cotidiano de desprezo, discriminação e acusações da sociedade, autoridades policiais e outros. A sociedade também faz violência com a gente desde o momento que ela nos discrimina. Tem muitas pessoas que passam por ali de carro, são universitários, tudo filho de "papaizim", jogando xixi na gente (D 10).

Relataram dificuldades para exercerem essa prática pelas agressões, desrespeito e humilhação de estudantes universitários, reforçando que essa escolha de vida sofre influência da construção histórica da prostituição, já presente na simbologia dos jovens.

Exercer a atividade de prostituição coloca a mulher numa posição vulnerável às agressões que advêm da sociedade como um todo. Nesse contexto, a população discrimina e desvaloriza a mulher que exerce essa prática.

Esse comportamento da sociedade parece ser reforçado pelas representações preconceituosas que o senso comum detém da imagem da prostituta e estão relacionadas aos comportamentos considerados como imorais pela sociedade, conforme mostram as depoentes. [...] todo mundo, do maior ao menor, sabe o que a gente faz, tem muitos que não gosta da gente, não fala, não encosta perto, acha que vamos roubá-los, dizem que estamos com HIV, doente [...] (D 6).

A degradação moral dessa atividade pode ser atribuída às práticas sexuais, que vêm ressaltar um tipo de 'sexualidade criminosa' e o cotidiano dessa atividade favorece a discriminação desse segmento. A opressão a que esse grupo está submetido mostra a violência contra a mulher banalizada, sob a justificativa de que essas agressões são inerentes à atividade prostituinte(15).

Nos discursos, as mulheres consideram a rua um espaço ruim e expressam que todos sabem de suas atividades. Diariamente, são chamadas de vagabundas e desocupadas, o que torna evidentes, no discurso, a discriminação e o preconceito nas relações vividas por elas na prática da prostituição. [...] os policiais são os mais preconceituosos, muitas vezes não quer transar, acha que a mulher prostituta é vagabunda [...] (D 4).

A repressão por autoridades policiais também faz parte do cotidiano delas. Em seus depoimentos, revelam agressões físicas, ameaças de detenção, xingamentos, denotando contradição: aqueles que deviam protegê-las são também perpetradores de violência.

Nesse segmento social, a violência parte dos clientes, da polícia e da própria sociedade, que visualizam essas mulheres como uma ameaça à família nuclear e, dessa forma, praticam a violência sobre o grupo, deixando marcas invisíveis através da violência psicológica e social, haja vista que esse grupo é cotidianamente alvo de preconceito, estigma e discriminação por parte da sociedade(15).

No que se refere à agressão que parte desses agentes, as prostitutas consideram como violência as ações arbitrárias, ameaças de morte por arma de fogo e o fato de serem, ainda, retiradas dos pontos de prostituição de rua onde realizam seu trabalho. A polícia também pratica violência contra a gente porque eles querem nos botar arma na cabeça para irmos embora, eles não querem que fiquemos na rua. Já fui agredida por policiais em plena luz do dia porque disse que tinha uma ocorrência ali na praça (D 9).

Essa atividade é percebida como espaço de sofrimento e verbalizada pela maioria como perigosa para exercer essa prática. Algumas deixam claro que diante das dificuldades, das agressões e do desrespeito vivenciados no mundo circundante, gostariam de exercer outra atividade, mas, por falta de qualificação, não visualizam possibilidades, sendo obrigadas a permanecer na atividade de prostituta. A gente sofre, sofre mesmo. Se eu pudesse sair dessa vida aqui eu sairia. Aqui é uma bola-de-neve. A gente não escolhe esse caminho (D 8). [...] na hora que eu arrumar um serviço, algo que saiba fazer, eu saio e não quero nem lembrar que isso existe (D 11).

Assim é que, nessa cotidianidade, a violência para a prostituta é fruto das relações que experienciam com os clientes, com a sociedade, com a polícia. Essas mulheres mostram constantes conflitos na convivência cotidiana com os outros.

Por cotidiano, compreende-se um modo de se estar imerso nas preocupações do dia a vida e lançados sem possibilidades de escolhas. Nessa compreensão, essas mulheres se esquecem de si mesmas, não se dando conta de que são os outros que determinam suas possibilidades. Surge aí a inautenticidade(9), distanciam-se delas próprias e vivenciam o medo e a ambiguidade.

A ambiguidade é sempre presente(9). Dizem que não escolheram esse caminho, mas permanecem sem buscar alternativas. Assim também acontece com a violência. Dizem que não aceitam os espancamentos, os chutes, os beliscões, as mordidas, mas não denunciam seus agressores. Está lançada a sorte. Eles voltarão ou não.

Conclusões

Neste estudo, a utilização do método fenomenológico possibilitou desvelar os sentidos da violência no cotidiano da prostituição feminina, por meio do vivido das mulheres que exercem essa atividade. O discurso transmite os sentidos da violência nos modos do temor, da inautenticidade e da ambiguidade.

A violência expressa pelas depoentes indica um movimento de encontro com um cotidiano que, onticamente, se mostra por espancamentos, xingamentos, humilhações, roubos, quebra de acordo, ameaças de morte, acusações de ser portadora de doenças sexualmente transmissíveis e outras tantas situações que retratam a presença de violência de gênero nas formas física, sexual, moral e psicológica.

Por fim, é preciso atentar para as dificuldades que as mulheres prostitutas enfrentam em seu cotidiano existencial. No estudo em questão, as mulheres eram oriundas da periferia, com baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo, o que torna o estudo limitado, necessitando ampliar pesquisas com grupos de mulheres que exercem a prostituição em outro contexto.

No que tange à questão de saúde, o estudo revela a necessidade de que programas de prevenção de violência de gênero sejam estruturados nas universidades, escolas, nas instituições de atenção básica, unidades de saúde e pelos movimentos sociais, e que, também, sejam elaborados programas voltados à desnaturalização de posturas preconceituosas.

Referências

Recebido: 31.1.2012

Aceito: 19.9.2012

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  • Endereço para correspondência:

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2012

    Histórico

    • Recebido
      31 Jan 2012
    • Aceito
      19 Set 2012
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