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Construção e transformação das representações sociais da aids e implicações para os cuidados de saúde

Resumos

OBJETIVOS: analisar o processo de constituição e evolução das representações e das práticas sociais relativas à aids, a partir de estudos desenvolvidos nos últimos onze anos, entre profissionais de saúde. MÉTODO: uma comparação de estruturas representacionais da aids em diferentes décadas, acompanhada de um estudo de zona muda foram realizados, envolvendo profissionais de saúde. A coleta e análise de dados englobaram as técnicas de evocações livres, análise estrutural e de estudo da zona muda. RESULTADOS: observou-se a existência de um processo de mudança nas representações sociais da aids, com a introdução da possibilidade de convivência com a doença e a diminuição da importância da morte. CONCLUSÕES: esse processo apresenta-se como fruto de um complexo processo de construções simbólicas, oriundas das interações humanas, contribuindo para o conhecimento dos modos de pensar associados à síndrome e para as práticas profissionais em saúde.

Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Percepção Social; Assistência à Saúde; Mudança Social


OBJECTIVES: to analyze the process of the constitution and evolution of social representations and practices referent to aids, based on studies carried out in the last eleven years among health professionals. METHOD: a comparison of representational structures of aids in different decades was undertaken, accompanied by a study of the silent zone, involving health professionals. Data collection and analysis included techniques of free association, structural analysis, and study of the silent zone. RESULTS: the existence of a process of change was observed in the social representations of aids, with the introduction of the possibility of co-existence with the disease and the reduction of the importance of death. CONCLUSIONS: this process is presented as the result of a complex movement of symbolic constructions arising from human interactions, contributing to knowledge of ways of thinking associated with the syndrome and to professional practices in healthcare.

Acquired Immunodeficiency Syndrome; Social Perception; Delivery of Health Care; Social Change


OBJETIVOS: Discutir la constitución y evolución de las representaciones y de las prácticas sociales relativas al sida, a partir de los estudios desarrollados en los últimos once años, entre profesionales de la salud. MÉTODOS: Fue realizada una comparación de las estructuras representacionales del sida en diferentes décadas, acompañada de un estudio de zona muda, envolviendo profesionales de la salud. La recolecta y el análisis de los datos abarcó las técnicas de evocación libre, análisis estructural y estudio de zona muda. RESULTADOS: Se observó la existencia de un proceso de cambio en las representaciones sociales del sida, con la introducción de la posibilidad de convivencia con la enfermedad y la disminución de la importancia de la muerte. CONCLUSIONES: Este proceso se muestra como resultado de un proceso complejo de construcciones simbólicas que surgen de las interacciones humanas, lo que contribuye al conocimiento de las formas de pensamiento asociadas con el síndrome y las prácticas de los profesionales de la salud.

Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; Percepción Social; Prestación de Atención de Salud; Cambio Social


ARTIGO DE REVISÃO

Construção e transformação das representações sociais da aids e implicações para os cuidados de saúde

Construcción y transformación de las representaciones sociales del sida e implicaciones para los cuidados en salud

Denize Cristina de Oliveira

PhD, Professor Titular, Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

OBJETIVOS: analisar o processo de constituição e evolução das representações e das práticas sociais relativas à aids, a partir de estudos desenvolvidos nos últimos onze anos, entre profissionais de saúde.

MÉTODO: uma comparação de estruturas representacionais da aids em diferentes décadas, acompanhada de um estudo de zona muda foram realizados, envolvendo profissionais de saúde. A coleta e análise de dados englobaram as técnicas de evocações livres, análise estrutural e de estudo da zona muda.

RESULTADOS: observou-se a existência de um processo de mudança nas representações sociais da aids, com a introdução da possibilidade de convivência com a doença e a diminuição da importância da morte.

CONCLUSÕES: esse processo apresenta-se como fruto de um complexo processo de construções simbólicas, oriundas das interações humanas, contribuindo para o conhecimento dos modos de pensar associados à síndrome e para as práticas profissionais em saúde.

Descritores: Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Percepção Social; Assistência à Saúde; Mudança Social.

RESUMEN

OBJETIVOS: Discutir la constitución y evolución de las representaciones y de las prácticas sociales relativas al sida, a partir de los estudios desarrollados en los últimos once años, entre profesionales de la salud.

MÉTODOS: Fue realizada una comparación de las estructuras representacionales del sida en diferentes décadas, acompañada de un estudio de zona muda, envolviendo profesionales de la salud. La recolecta y el análisis de los datos abarcó las técnicas de evocación libre, análisis estructural y estudio de zona muda.

RESULTADOS: Se observó la existencia de un proceso de cambio en las representaciones sociales del sida, con la introducción de la posibilidad de convivencia con la enfermedad y la disminución de la importancia de la muerte.

CONCLUSIONES: Este proceso se muestra como resultado de un proceso complejo de construcciones simbólicas que surgen de las interacciones humanas, lo que contribuye al conocimiento de las formas de pensamiento asociadas con el síndrome y las prácticas de los profesionales de la salud.

Descriptores: Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; Percepción Social; Prestación de Atención de Salud; Cambio Social.

Introdução

A síndrome da imunodeficiência adquirida (aids

Desde a sua identificação em 1981, nos Estados Unidos da América(1), foram relatados casos semelhantes da nova doença, sem um conceito clínico específico e com várias denominações carregadas de aspectos morais, como pneumonia gay, câncer gay, síndrome gay ou, mesmo, Gay Related Immune Deficiency (GRID)(2).

A magreza da cólera, a periculosidade da peste, a propagação do câncer e a sua relação com a transmissão sexual, assemelhando-se à sífilis estimulou, por um lado, a ancoragem em classificações consideradas científicas nas patologias conhecidas e, por outro, permitiu a ativação de simbolismos disponíveis na memória coletiva do senso comum.

Desde os seus primórdios, a síndrome apresentou-se como objeto representacional sensível, ou seja, fortemente marcado por normas sociais e valores morais, fazendo surgir diversas metáforas associadas à nova doença como morte, horror, crime, punição, guerra, vergonha e poluição(3-4).

A aids configurou-se como a primeira entidade mórbida na qual a construção biomédica, simbólica e social aconteceram de forma conjunta, colocando em evidência a problemática das relações estabelecidas entre o processo de simbolização e a adoção de práticas e comportamentos cotidianos. Mais especificamente, no âmbito da teoria das representações sociais, entre a construção e o processo histórico-social de transformação de representações em um determinado período de tempo e grupo social, e as práticas sociais adotadas na cotidianidade desse mesmo grupo, em face dos objetos representados(5-6).

De forma dinâmica, ao longo das duas últimas décadas, a epidemia no mundo e, mais especificamente no Brasil, tem apresentado transformações epidemiológicas e sociais que lhe conferiram características distintas daquelas do início. De uma doença metropolitana passou a ser interiorana; de origem nas classes médias e altas, migrou para as populares; dos meios artísticos e culturais localizou-se no cotidiano das pessoas comuns e, de restrita a grupos excluídos – como homossexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas –, difundiu-se para pessoas socialmente consideradas não vulneráveis à síndrome, como heterossexuais, mulheres monogâmicas, idosos e crianças.

Em paralelo, o surgimento e a dinâmica de evolução da aids repercutiram sobre as instituições e os profissionais de saúde, fazendo-se presente no cotidiano dos serviços de saúde no Brasil, com importantes implicações para as políticas públicas e para a constituição de práticas profissionais de cuidado.

Neste estudo, será desenvolvida a hipótese de existência de uma precedência de práticas, determinando a formação de representações, no contexto da aids no Brasil, as quais foram se moldando às transformações históricas, ao desenvolvimento do conhecimento científico e aos fatos novos, objetivados em novos modos de fazer e de cuidar dos doentes e dos expostos.

A importância deste estudo situa-se na constatação empírica de transformação das representações sociais da aids e na análise inferencial das consequências dessa transformação para a mudança das práticas de cuidado em saúde.

Considerando o cenário exposto, apresentou-se como objetivo deste texto analisar o processo de constituição, evolução e transformação das representações e das práticas relativas ao HIV/aids entre profissionais de saúde no Rio de Janeiro.

Método

Este estudo é resultante de uma linha de investigação no campo do HIV/aids, desenvolvida por um grupo de pesquisa, coordenado pela autora, desde 1999. Os dados analisados foram produzidos em duas dissertações de mestrado e um projeto multicêntrico, realizados nesse contexto.

Adotou-se a orientação da Teoria de Representações Sociais(7-8), a partir da abordagem estrutural ou Teoria do Núcleo Central. Essa abordagem complementar considera que a representação social apresenta uma característica específica, a de ser organizada em torno de um núcleo central, constituindo-se em um ou mais elementos que dão significado à representação, fornecendo o sentido fundamental e inflexível à mesma(5). Uma função atribuída ao núcleo central é a de assegurar a permanência da representação, permitindo, nesse nível, identificar as mudanças representacionais. A premissa da abordagem estrutural assenta-se sobre a assertiva de que o núcleo central será o elemento que mais vai resistir à mudança, portanto, toda modificação do núcleo central conduzirá a uma transformação completa da representação. Afirma-se, assim, que é o levantamento desse núcleo que permitirá o estudo comparativo das representações. Para que duas representações sejam diferentes, elas devem ser organizadas em torno de dois núcleos centrais diferentes(5).

Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de dados secundários de três estudos(9-11) desenvolvidos no contexto do grupo de pesquisa anteriormente citado, a partir dos quais se realizou a comparação das estruturas representacionais da aids identificadas. Esses estudos foram produzidos nas décadas de 90, 2000 e 2010. A escolha dos três estudos foi pautada pelos seguintes critérios: utilização de populações semelhantes – profissionais de saúde, uso de orientações teórica e metodológica iguais - abordagem estrutural das representações sociais e desenvolvimento das coletas de dados nas décadas abarcadas por esse texto.

Os estudos analisados envolveram 866 profissionais, respectivamente 366 profissionais da equipe de saúde no estudo 1, 150 enfermeiros no estudo 2 e 350 profissionais da equipe de saúde no estudo 3; distribuídos em 22 campos de pesquisa localizados no Rio de Janeiro, sendo um hospital universitário no estudo 1, um hospital universitário no estudo 2 e vinte unidades básicas e ambulatórios no estudo 3.

Os procedimentos metodológicos de coleta e de análise de dados (dos estudos referidos) foram orientados pelos pressupostos da análise estrutural das representações sociais e utilizada a técnica de evocações livres ao termo indutor "HIV/aids". A coleta de dados buscou apreender a percepção da realidade a partir de uma composição semântica preexistente, composição essa não só concreta, mas também imagética, organizada ao redor de alguns elementos simbólicos simples. A aplicação prática da técnica consiste em pedir aos sujeitos que associem, livre e rapidamente, a partir da audição ou visualização de palavras indutoras (estímulos), outras palavras ou expressões(12).

As análises foram realizadas utilizando o software EVOC (Ensemble de Programmes Permettant L´Analyse des Évocations), versão 2003, que possibilita efetuar a organização das palavras produzidas em função da hierarquia expressa pela frequência e pela ordem natural de evocação. A técnica de análise consiste na construção de um quadro de quatro casas, no qual são distribuídas as palavras evocadas, considerando os critérios de maiores frequências e ordem média de evocação (OME)(13).

Nos quatro quadros de quatro casas o quadrante superior esquerdo, denominado núcleo central, comporta as palavras que apresentaram maior frequência e foram mais prontamente evocadas, constituindo-se na parte mais estável e permanente de uma representação, conferindo-lhe sentido. O quadrante inferior esquerdo, denominado zona de contraste, abarca as palavras que apresentaram menores frequências e foram também prontamente evocadas, podendo demonstrar variações da centralidade da representação para grupos específicos. Os dois quadrantes à direita (superior e inferior) comportam palavras que apresentaram menor prontidão de evocação e maiores ou menores frequências, sendo denominadas de primeira e segunda periferia. A zona periférica expressa os elementos representacionais associados ao contexto imediato de vida, à realidade cotidiana e às práticas sociais, sendo, portanto, instáveis, permitindo a variabilidade interindividual da representação(12-14).

Trabalhos experimentais desenvolvidos no campo da Psicologia Social(15-16) apontam para a existência de uma região não explicitada – denominada zona muda – nas pesquisas envolvendo objetos sensíveis, como o é a aids. Os estudos relacionam esses objetos sensíveis às pressões normativas presentes nos grupos sociais, gerando um discurso politicamente correto. A sua utilização neste estudo objetivou demonstrar que as relações entre práticas e representações não são diretas, passando por modulações variadas, dentre elas a existência de uma zona muda.

As técnicas descritas foram ampliadas em um dos estudos(10) com a análise da zona muda das representações, a partir da Técnica de Substituição, que consiste em uma estratégia metodológica para reduzir as pressões normativas sobre a produção discursiva dos sujeitos, de modo a possibilitar a expressão de elementos contranormativos. A aplicação implica demandar, após a coleta convencional de evocações (situação normal), que os entrevistados respondam em nome de outro grupo, nesse caso, as pessoas em geral (situação de substituição). Objetiva, dessa forma, reduzir a sua implicação com o discurso produzido, não comprometendo, assim, sua autoapresentação no processo de gestão de impressões e a sua aceitação nos grupos sociais de origem(15-16). Os dados foram analisados através da técnica do Quadro de Quatro Casas, construídos para a situação normal e para a de substituição, com o auxílio do software EVOC 2003.

Todos os estudos analisados foram aprovados pelos Comitês de Ética envolvidos, assegurando o cumprimento da Lei de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Resultados

Serão apresentados os quadros de quatro casas obtidos nos três estudos, dos quais serão destacados os resultados observados nos núcleos centrais das respectivas representações da aids, uma vez que, considerando os pressupostos comparativos, é nesse nível que se podem identificar as mudanças representacionais.

Observa-se, nos resultados apresentados na Figura 1(9), a configuração prototípica da constituição da representação social da aids, característica dos anos 80 e início dos de 90. Ela reflete a resultante simbólica da construção da representação da aids, caracterizada pela associação "aids/morte", "aids/práticas sexuais desviantes", "aids/sangue", "aids/doença do outro" e "aids/contágio". Essas configurações simbólicas são expressas nos léxicos: morte, medo e prevenção (presentes no núcleo central) e reafirmadas em camisinha, sexo, doença, doença incurável (zona de contraste); discriminação, drogas, promiscuidade, perigo, sangue, contaminação e vergonha (elementos periféricos).


Os dados reforçam a proposição segundo a qual, com a ausência de referências médicas, houve favorecimento a uma qualificação social da doença e, antes que as pesquisas biológicas trouxessem esclarecimentos sobre a natureza da aids, as pessoas elaboraram teorias apoiadas nos dados que dispunham sobre os atingidos e os vetores(7).

Observa-se, nos resultados do estudo apresentado na Figura 2(10), a configuração prototípica da representação social da aids nos anos 90 e início de 2000, em situação normal de coleta de dados. Ela reflete o primeiro movimento de mudança da representação da aids refletido na zona do núcleo central, caracterizado pelo desenvolvimento de medidas de enfrentamento da doença (educação em saúde e tratamento), mas também pela identificação da necessidade de prevenção do contágio profissional (precaução profissional). Essas construções simbólicas são reafirmadas na zona de contraste pelos elementos medicações, controle da doença e prevenção. Na primeira periferia nos léxicos preconceito, medo, discriminação e efeitos da aids, e na segunda periferia nos componentes morte e doença, revelando a manutenção de significados construídos na década anterior.


A implantação de políticas públicas e a reorientação dos serviços de saúde para o atendimento das pessoas acometidas pelo agravo determinaram novas práticas profissionais, caracterizadas pelo uso seletivo de técnicas de autoproteção profissional e pela maior aproximação do relacionamento interpessoal na realização das práticas de cuidado, observadas nos léxicos educação em saúde, precaução profissional e tratamento, presentes no núcleo central. Considerando os pressupostos da abordagem estrutural, observou-se um núcleo central com aspecto mais funcional afeito ao enfrentamento da doença e não mais à sua submissão, conferindo significado e organização às demais cognições da representação estudada.

Essa representação se caracteriza como resultante da mudança do perfil epidemiológico da doença, com o aparecimento da síndrome entre mulheres e crianças, determinando uma primeira mudança de significados associados à aids. Esse processo de mudança implicou na transposição das significações de "doença do outro" para "doença do meu grupo" e identificação de gênero entre enfermeiras e mulheres. A década de 90 foi, ainda, caracterizada pelo acesso universal aos medicamentos antirretrovirais (ARV), determinando o aumento da sobrevida dos doentes e gerando, no plano simbólico, a transformação das representações com o deslocamento do significado "aids/morte" para o sistema periférico.

Observa-se, nos resultados do estudo apresentado na Figura 3(10), a configuração da representação social da aids na situação de substituição, como demonstração dos elementos que caracterizam a existência de uma zona muda. O núcleo central do quadro de quatro casas, construído para a situação contranormativa ou de substituição, foi composto por elementos mais relacionados ao julgamento moral, apontando para cognições negativas e afetivamente destacadas na representação da aids.


Ao comparar os léxicos presentes nos dois núcleos centrais, na situação normal e na situação de substituição, observa-se que a primeira representação é estruturada por elementos positivos associados às ações de enfrentamento do HIV e da aids, expressos em tratamento, precaução profissional e educação em saúde. Enquanto na segunda, os elementos estruturantes são negativos, associados à ameaça de destruição, ao isolamento social e às causas ou "culpados" pela transmissão do HIV, expressos por medo, preconceito e homossexualidade.A posição do elemento morte também apresenta variação nessa comparação, deslocando-se da segunda para a primeira periferia, assumindo papel mais destacado na situação de substituição.

Ao longo da década de 2000, a partir das mudanças representacionais observadas entre as décadas de 80 e 90, nota-se a constituição de uma zona não explicitada na representação social da aids, com o fortalecimento de um discurso politicamente correto e a manutenção de velamentos discursivos, conforme demonstrado nas Figuras 2 e 3.

Figura 4


Observa-se na Figura 3(11) a configuração prototípica da representação social da aids da segunda metade dos anos 2000 e início de 2010. Essa representação é caracterizada pela construção da "aids como doença crônica", passando a abarcar, no núcleo central, significados positivos e elementos normativos de enfrentamento da doença (tratamento, prevenção e cuidado). Esses conteúdos simbólicos são reafirmados no sistema periférico pelos léxicos: adesão tratamento, ajuda, medicamento, camisinha, conhecimento e aconselhamento. Destaca-se, ainda, o deslocamento consolidado da simbolização "aids/morte" para a segunda periferia da representação, com a incorporação gradativa de elementos referidos à sobrevivência, como renascimento, esperança e luta.

O período foi marcado pela centralidade dos medicamentos antirretrovirais no enfrentamento da doença, assegurando a sobrevivência dos sujeitos acometidos, presente no léxico tratamento e reafirmado em adesão ao tratamento e medicamento. Mas, também, pelo aparecimento dos efeitos indesejáveis associados ao uso prolongado dos medicamentos, determinando o aparecimento de elementos negativos na zona de contraste da representação (sofrimento e tristeza).

Esse momento histórico de construção simbólica da aids ainda se manifesta pela permanência dos léxicos preconceito e medo como significados incorporados ao núcleo central desde os primórdios da constituição psicossocial da doença, aparecendo como traço distintivo e uma das permanências da representação original.

Discussão

A análise apresentada demonstra a presença de um processo de mudança representacional em duplo sentido. Primeiramente observa-se um processo circular de mudança, referindo-se à mobilização dos elementos simbólicos do núcleo central no sentido da periferia da representação, com a exclusão gradativa de elementos não mais partilhados pelo grupo social. O segundo, no sentido dos elementos de contraste para o núcleo central, incorporando a variabilidade interindividual da representação ao pensamento socialmente partilhado.

Essa mudança representacional no grupo de profissionais de saúde é caracterizada pela transição de significados negativos para positivos associados à aids, com a introdução da possibilidade de convivência com a doença e de diminuição da importância da morte, associada à existência de um sistema normativo específico. Por outro lado, evidenciou-se a possível existência de permanências cognitivas, as quais se expressaram nos elementos integrantes da zona muda das representações estudadas. Essa análise demonstrou a vinculação da aids a práticas homossexuais, ao uso de drogas e à morte, bem como a atitudes de preconceito e ao sentimento de medo, com impactos sobre as práticas profissionais de saúde.

O perfil representacional caracterizado pela morte e pelo medo se associou, nas décadas de 80 e 90, a práticas profissionais de cuidado, caracterizadas pela imposição de distanciamento físico e pelo uso de técnicas de autoproteção profissional exacerbadas. Mas, também, pelo distanciamento psicossocial, observado nas relações interpessoais com os pacientes durante o desenvolvimento das práticas de cuidado. As relações estabelecidas entre práticas e representações caracterizaram-se, nesse momento de desenvolvimento da síndrome, por um processo de precedência de práticas profissionais determinando as formas de pensar a aids. As representações foram se constituindo e moldando as características concretas da doença e às práticas de autoproteção impostas pela insuficiência de conhecimentos científicos, pela alta mortalidade observada e pelo medo da contaminação.

Pode-se destacar a ancoragem dessas práticas profissionais localizada nas memórias sociais das grandes epidemias das doenças infectocontagiosas, enfrentadas pela sociedade ocidental, em diferentes momentos da história. A peste negra, a gripe espanhola, a sífilis e a cólera, por exemplo, parecem ter sustentado essas práticas, dotando-as de prudência, diante de uma entidade mórbida desconhecida. Simultaneamente, deve-se ressaltar a presença do modus operandi norte-americano na abordagem inicial da síndrome, caracterizado pelo isolamento completo e pela quarentena, tanto como um fator cultural/simbólico, associado à tecnologia, quanto pelo fato de os primeiros casos seriados terem sido descritos nos Estados Unidos da América.

Considerando a continuidade da construção simbólica da aids nos anos 90 e início de 2000, observou-se, no plano das relações entre práticas e representações, a manutenção da precedência de práticas profissionais, determinando as representações da aids, agora mais estruturadas. Esse tipo de relação condicionou um processo de transformação progressiva da representação(5), a qual foi se moldando gradativamente às novas descobertas científicas e aos novos modos de cuidar em saúde. Essa mudança gradativa teve como substrato as permanências, observadas na zona muda, ainda fortemente marcadas pela morte e pela exclusão das pessoas acometidas pelo vírus.

Um elemento importante no processo de mudança representacional e das relações entre práticas e representações foi a incorporação da terapia antirretroviral em associação à prevenção (presente na representação desde o início da epidemia), como tecnologias de enfrentamento da aids. Percebe-se que esse processo estabelece relações com o conhecimento das tecnologias disponíveis para o tratamento e para o cuidado profissional, assegurando a vida e reforçando o sentimento de proteção nos profissionais(17).

Em estudo realizado com enfermeiros que cuidavam de pessoas acometidas pelo HIV/aids(18), verificou-se relação entre os cuidados prestados e a representação dos pacientes como vítimas ou culpados pela contaminação. No primeiro grupo de sujeitos representados como vítimas, o cuidado prestado foi descrito como igual aos demais, enquanto no segundo grupo, aqueles culpabilizados pela contaminação de outros, eram discretamente isolados, mantidos à distância dos profissionais. Esse processo cognitivo de classificação e julgamento é típico de um processo de gestão de impressões e desiderabilidade social, que pode ser definido como um dicionário acessível, no qual os grupos podem se apoiar quando se torna socialmente necessário o que se aplica, particularmente, às situações de expressão do preconceito na sociedade(19).

Na segunda metade dos anos 2000 e início de 2010 observa-se mudança no processo de determinação das relações entre pensamento e ação. As representações passam a determinar as práticas sociais e profissionais, já que os modos de cuidar em saúde foram se moldando aos novos conteúdos psicossociais da aids e da pessoa com aids, agora mais estruturadas.

No que tange às práticas de saúde, as representações assumiram dimensão importante, pois possibilitaram a apreensão dos processos e mecanismos pelos quais o sentido do objeto de trabalho é construído pelos profissionais nas suas relações cotidianas. Isso porque, ao se desejar transformar as práticas de saúde, é necessário pensá-las em sua expressão objetiva e subjetiva, uma vez que as estratégias de intervenção em saúde são efetivadas por pessoas, que agem segundo suas representações do real e suas representações do possível(20).

Configura-se, na atualidade, forte influência do processo implicado no tratamento farmacológico e das diretrizes do Programa Nacional de HIV/aids do Brasil, nas representações e nas práticas profissionais. Em função disso, a positividade explícita pela alusão à vida e à esperança encontra-se em paralelo com a negatividade, especialmente expressa pelo medo e pelo preconceito. Pode-se observar um processo de naturalização da síndrome, no conjunto das doenças crônicas, como resultado de sua ancoragem recente em patologias como diabetes mellitus e hipertensão arterial, em substituição àquelas iniciais no câncer e na peste(21-22). Esse processo se associa, por um lado, às características tecnológicas imputadas pelo tratamento medicamentoso e à dependência constante dos serviços e profissionais de saúde, e, por outro, ao trabalho da mídia ao dar visibilidade à sobrevida dos sujeitos no presente momento.

Finalmente, não se pode esquecer que a continuidade dos elementos de uma zona muda na representação da aids, na atualidade, pode ser considerada como um elemento que influencia as práticas de cuidado de saúde. No cotidiano profissional duas cognições centrais atuam tensionando as práticas, especialmente na sua faceta relacional: de um lado, as classificações de vítimas e culpados, certo e errado, e, de outro, as noções de doença crônica e de igualdade de cuidados. Essas cognições são contraditórias e, enquanto tal, imprimem uma característica própria às práticas de cuidado, qual seja a de serem ambivalentes e determinadas, em grande medida, por valores pessoais e pela necessidade percebida de autoproteção profissional(17).

Conclusões

O estudo demonstra a existência de um processo de mudança sendo operado nas representações sociais da aids, com a introdução da possibilidade de convivência com a doença e a diminuição da importância da morte. Esse processo de mudança foi demonstrado empiricamente neste texto através da análise de estruturas representacionais, colocando-se como contribuição ao estado da arte do conhecimento sobre o tema dos modos de pensar associados ao HIV e à aids, bem como das relações estabelecidas entre representações e práticas profissionais.

Evidenciou-se a existência de significativas permanências simbólicas, objetivando a aids na homossexualidade, no preconceito, no uso de drogas, no medo e na morte, os quais consistiram os elementos da zona muda das representações sociais estudadas.

Constatou-se, ainda, a vital importância das representações sociais para a abordagem profissional do HIV/aids, uma vez que essa possibilita a apreensão dos processos e mecanismos pelos quais o significado social do objeto é construído pelos sujeitos nas suas relações cotidianas, formando a base simbólica sobre a qual se assentam as práticas de cuidado em saúde.

O processo de transformação das representações sociais dos profissionais de saúde, em relação ao agravo em questão, vem permitindo a elaboração de um saber prático aderente aos valores, normas, crenças e memórias partilhadas pelos grupos, mas, também, pelo próprio conhecimento científico que é incorporado por esses agentes na constituição de uma forma particular de simbolização, qual seja, as representações socioprofissionais.

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  • 1
    ) e o vírus da imunodeficiência humana (HIV) apresentaram-se, no início da década de 80 nos Estados Unidos e em 82 no Brasil, como fenômeno misterioso e aterrorizador, dadas as suas características de rápida letalidade e desfiguração corporal extrema. Esse fato tornou-se ainda mais impactante em função de sua ocorrência no momento em que se considerava ganha a guerra contra as doenças infectoparasitárias, morbidades que, no imaginário social, estariam destinadas aos países ou regiões empobrecidas ou aos livros de história que abarcassem as distintas epidemias do mundo ocidental.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013

    Histórico

    • Recebido
      09 Ago 2012
    • Aceito
      05 Nov 2012
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