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Cargas de trabalho da enfermagem na saúde da família: implicações no acesso universal1 1 Apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil, processos nº 470441/2011-9 e 303726/2010-5.

Resumos

Objetivo

identificar as cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem da Estratégia Saúde da Família, analisando suas implicações na efetividade do acesso universal.

Método

estudo qualitativo com profissionais de enfermagem da Estratégia Saúde da Família das Regiões Sul, Centro-Oeste e Norte do Brasil, utilizando triangulação metodológica. Na análise dos dados articularam-se recursos do software Atlas.ti e da Análise Temática de Conteúdo, interpretando-os com base nos referenciais de processo de trabalho e cargas de trabalho.

Resultados

o modo de trabalhar na Estratégia Saúde da Família tem, predominantemente, gerado aumento das cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem, destacando-se a sobrecarga de trabalho, o excesso de demanda, problemas na estrutura física das unidades e falhas na rede de atenção, o que dificulta a sua efetividade enquanto estratégia privilegiada para atingir o acesso universal em saúde. Por outro lado, trabalho em equipe, afinidade com o trabalho, vínculo com o usuário e resolubilidade da assistência contribuíram para a redução das mesmas.

Conclusões

investimento nos elementos que reduzem as cargas de trabalho da enfermagem, como mudanças nas condições de trabalho e na gestão, poderá contribuir para a efetividade da Estratégia Saúde da Família e para atingir o objetivo de acesso universal em saúde.


Objective

to identify the workloads of nursing professionals of the Family Health Strategy, considering its implications for the effectiveness of universal access.

Method

qualitative study with nursing professionals of the Family Health Strategy of the South, Central West and North regions of Brazil, using methodological triangulation. For the analysis, resources of the Atlas.ti software and Thematic Content Analysis were associated; and the data were interpreted based on the labor process and workloads as theorical approaches.

Results

the way of working in the Family Health Strategy has predominantly resulted in an increase in the workloads of the nursing professionals, with emphasis on the work overload, excess of demand, problems in the physical infrastructure of the units and failures in the care network, which hinders its effectiveness as a preferred strategy to achieve universal access to health. On the other hand, teamwork, affinity for the work performed, bond with the user, and effectiveness of the assistance contributed to reduce their workloads.

Conclusions

investments on elements that reduce the nursing workloads, such as changes in working conditions and management, can contribute to the effectiveness of the Family Health Strategy and achieving the goal of universal access to health.

Primary Health Care; Unified Health System; Nursing; Quality Assurance; Health Care; Health Services Accessibility


Objetivo

identificar las cargas de trabajo de los profesionales de enfermería de la Estrategia Salud de la Familia, analizando sus implicaciones para la efectividad del acceso universal.

Método

estudio cualitativo con profesionales de enfermería de la Estrategia Salud de la Familia de las Regiones Sur, Centro Oeste y Norte de Brasil, utilizando triangulación metodológica. Para el análisis, recursos del software Atlas.ti y del Análisis Temático de Contenido se asociaron y los datos fueron interpretados con suporte de las teorías del proceso de trabajo y de las cargas de trabajo.

Resultados

la forma de trabajar en la Estrategia Salud de la Familia ha, predominantemente, generado un aumento de las cargas de trabajo de los profesionales de enfermería, destacándose la sobrecarga de trabajo, el exceso de demanda, los problemas en la estructura física de las unidades y fallas en la red de atención, lo que dificulta su eficacia como estrategia privilegiada para lograr el acceso universal en salud. Por otro lado, trabajo en equipo, afinidad con el trabajo, vínculo con el usuario y eficacia de la asistencia han contribuido a la reducción de las mismas.

Conclusiones

inversión en elementos que reducen las cargas de trabajo de enfermería, como los cambios en las condiciones de trabajo y en la gestión, podrá contribuir a la eficacia de la Estrategia Salud de la Familia y a lograr el objetivo del acceso universal en salud.

Atención Primaria de Salud; Sistema Único de Salud; Enfermería; Garantía de la Calidad de Atención de Salud; Accesibilidad a los Servicios de Salud


Introdução

O acesso universal tem sido um dos principais desafios dos sistemas de saúde em todo mundo e vem assumindo papel tão significativo que está em debate a sua inclusão como um dos objetivos do milênio pós-2015(11. World Health Organization. Global Health Workforce Alliance [Internet] 2013 [acesso 22 jan 2015]. Disponível em: http://www.who.int/workforcealliance/en/
http://www.who.int/workforcealliance/en/...

2. Buss P. Health in the post-2015 United Nations. Development Agenda. Cad Saúde Pública. 2014;30(12):2555-70.

3. Frenk J. Leading the way towards universal health coverage: a call to action. Lancet. 2015 Apr 4;385(9975):1352-8.
-44. Cassiani SHB. Strategy for universal access to health and universal health coverage and the contribution of the International Nursing Networks. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2014;22(6):891-2.). A garantia do acesso universal é de extrema relevância para a vida humana e significa um grande desafio para os países e para os profissionais desse campo(22. Buss P. Health in the post-2015 United Nations. Development Agenda. Cad Saúde Pública. 2014;30(12):2555-70.-33. Frenk J. Leading the way towards universal health coverage: a call to action. Lancet. 2015 Apr 4;385(9975):1352-8.,55. Heredia N, Laurell AC, Feo O, Noronha J, González-Guzmán R, Torres-Tovar M. The right to health: what model for Latin America? Lancet. 2015 Apr 4;385(9975):e34-7.).

O sentido de acesso às ações e serviços de saúde que as pessoas necessitam envolve valores como justiça e equidade, o que pode não estar incorporado na ideia de cobertura. A expressão cobertura universal muitas vezes refere-se ao quantitativo populacional coberto por serviços de saúde, o que não significa que o referido número de indivíduos utilize o serviço ou que o mesmo seja capaz de atender a múltiplas e complexas necessidades em saúde(66. Noronha JC. Universal health coverage: how to mix concepts, confuse objectives, and abandon principles. Cad Saúde Pública. 2013;29(5):847-9.).

O trabalho dos profissionais de saúde situa-se no setor de serviços e envolve uma relação entre sujeitos da mesma natureza, um trabalho em que o resultado depende da colaboração entre quem realiza e quem é cuidado. Além disso, como os trabalhos desenvolvidos em outros setores da economia, é fortemente influenciado pelas condições concretas em que se realiza, como se faz e em que condições e relações de trabalho(77. Marx K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. 30 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2012.).

As características especiais do trabalho em saúde e a centralidade da força de trabalho na sua realização são reconhecidas pela Global Health Workforce Alliance e World Health Organization (WHO). No debate sobre cobertura e acesso universal, essas organizações elaboraram um relatório em que explicitam que "não pode haver saúde sem a participação da força de trabalho"(11. World Health Organization. Global Health Workforce Alliance [Internet] 2013 [acesso 22 jan 2015]. Disponível em: http://www.who.int/workforcealliance/en/
http://www.who.int/workforcealliance/en/...
).

Para atingir o objetivo de acesso universal em saúde, portanto, é necessário olhar para quem realiza o trabalho, como o realiza e em que condições, nos diferentes cenários histórico-sociais. Nesse sentido, a análise das cargas de trabalho presentes no modo de trabalhar é um caminho promissor para orientar a prestação de cuidados aos usuários e, consequentemente, melhorar a qualidade do acesso aos serviços de saúde.

Cargas de trabalho são elementos encontrados no processo de trabalho que sintetizam a mediação entre o trabalho e o desgaste do trabalhador. As cargas interatuam entre si e com o corpo de quem realiza o trabalho, elas não atuam isoladamente, mas em combinação umas com as outras, e determinam a condição na qual o trabalhador enfrenta a lógica global do processo de trabalho(88. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.).

No Brasil, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o princípio da universalidade foi reforçado ao se definir, na Constituição Federal, que saúde é um direito de todos e um dever do Estado e um dos componentes da qualidade de vida. Saúde passa a ser assumida como direito de cidadania e dever das três esferas de governo. Esse sistema tem a universalidade, equidade e integralidade como princípios doutrinários e, a partir dos anos 1990, visa promover mudanças no modelo assistencial hegemônico baseado nos postulados da biomedicina. A Estratégia Saúde da Família (ESF) tem papel de destaque nesse cenário.

A ESF integra a Política Nacional da Atenção Básica e adota princípios da Atenção Primária à Saúde (APS), formulados na Conferência da Organização Mundial da Saúde, realizada em Alma Ata, em 1978. A APS tem sido reafirmada como estratégica para o acesso universal aos serviços de saúde(99. Rohde J, Cousens S, Chopra M, Tangcharoensathien V, Black R, Bhutta ZA. 30 years after Alma-Ata: has primary health care worked in countries? Lancet. 2008 Sep 13;372(9642):950-61.).

A ESF vem crescendo no Brasil de modo que, em março de 2015, já haviam sido implantadas 37.944 equipes de saúde da família, em 5.319 munícipios, com cobertura de 60,56% da população, o que corresponde a quase 118 milhões de pessoas(1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Assistência à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Teto, credenciamento e implantação das estratégias de Agentes Comunitários de Saúde, Saúde da Família e Saúde Bucal. [Internet]. Unidade Geográfica: Brasil. Competência: janeiro de 2015 [acesso 29 abr 2015]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php
http://dab.saude.gov.br/dab/historico_co...
).

A ESF ampliou o acesso aos serviços de saúde e reforçou o princípio da universalidade. Contudo, o país enfrenta, ainda, complexas dificuldades para garantir o acesso universal, equânime e integral a todos os indivíduos(1111. Santos NR. SUS, política pública de Estado: seu desenvolvimento instituído e instituinte e a busca de saídas. Ciênc Saúde Coletiva. [Internet]. 2013;18(1):273-80. Disponível em: www.scielo.br/pdf/csc/v.18n1/28.pdf
www.scielo.br/pdf/csc/v.18n1/28.pdf...
).

O modo de realizar o trabalho, assim como a complexidade dos ambientes de trabalho e as condições disponíveis para a sua realização, interfere na qualidade e segurança do resultado assistencial, em todos os níveis de atenção(1212. Monteiro C, Avelar AFM, Pedreira MLG. Interruptions of nurses' activities and patient safety: an integrative literature review. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2015;23(1):169-79.

13. Aiken L, Sloane DM, Bruyneel L, Van den Heede K, Griffiths P, Busse R, et al. Nurse staffing and education and hospital mortality in nine European countries: a retrospective observational study. Lancet. 2014 May 24;383(9931):1824-30.
-1414. Trindade LL, Pires DEP. Implicações dos modelos assistenciais da atenção básica nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde. Texto Contexto Enferm. [Internet]. 2013 [acesso 8 mai 2015]; 22(1):36-42. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05...
). A equipe de enfermagem corresponde à maior categoria dentre os profissionais da área e exerce função central nos serviços de saúde e na garantia da segurança dos usuários(1515. Pires DEP. Transformações necessárias para o avanço da Enfermagem como ciência do cuidar. Rev Bras Enferm. [Internet]. 2013;66(n.spe):39-44. Disponível em: www.scielo.br/pdf/reben/v66nspea05.pdf
www.scielo.br/pdf/reben/v66nspea05.pdf...

16. Mello JF, Barbosa SFF. Cultura de segurança do paciente em terapia intensiva: recomendações da enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2013 Dez; 22(4):1124-33.
-1717. Unruh LY, Zhang NJ. Nurse Staffing and patient safety in hospitals: new variable and longitudinal approaches. Nurs Res. 2012;61(1):3-12.).

Na ESF, os profissionais de enfermagem estão presentes em todas as equipes e seu trabalho impacta a qualidade dos cuidados prestados. Portanto, identificar as cargas de trabalho presentes no seu fazer contribui para orientar gestores na potencialização de fatores positivos e na busca de medidas para reduzi-las, contribuindo para a viabilização do acesso universal.

Embora a enfermagem seja imprescindível para o acesso e funcionamento dos serviços de saúde, ainda persistem profundos desequilíbrios e lacunas na disponibilidade, distribuição, composição, qualificação e produtividade desses profissionais, o que tem implicações em termos de qualidade e segurança dos serviços prestados. As diversas cargas de trabalho no cotidiano dos serviços, potencializadas pelas precárias condições de trabalho, interferem, negativamente, no desfecho do resultado e na satisfação e saúde desses profissionais(1414. Trindade LL, Pires DEP. Implicações dos modelos assistenciais da atenção básica nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde. Texto Contexto Enferm. [Internet]. 2013 [acesso 8 mai 2015]; 22(1):36-42. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05...
). A literatura sinaliza complexos desafios internos e externos à profissão, históricos, culturais, de gênero, de campo de conhecimentos e de luta pela valorização do importante papel que a enfermagem desempenha no sistema de saúde(44. Cassiani SHB. Strategy for universal access to health and universal health coverage and the contribution of the International Nursing Networks. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2014;22(6):891-2.).

Este estudo foi inspirado na constatação de que a força de trabalho em saúde é fundamental para o alcance do acesso universal e que a ESF é uma política privilegiada para o alcance dessa meta e, nesse contexto, a enfermagem desempenha papel relevante no setor saúde e na ESF. Por isso, objetivou-se, aqui, identificar as cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem da Estratégia Saúde da Família, analisando suas implicações na efetividade do acesso universal.

Para a análise dos resultados da pesquisa, associou-se a teorização do processo de trabalho(77. Marx K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. 30 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2012.) com a de cargas de trabalho(88. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.).

Método

Trata-se de estudo do tipo qualitativo, no qual se utilizou o recurso da triangulação metodológica, com dados obtidos mediante entrevistas semiestruturadas, análise documental e observação.

A escolha dos participantes foi guiada pelos seguintes critérios de inclusão: profissionais de enfermagem que atuam em equipes de ESF que se destacaram por desenvolver um trabalho de boa qualidade, considerando informações de gestores; no mínimo um município por região; e somente equipes de ESF que contavam, no mínimo, com a equipe mínima prescrita pelo Ministério da Saúde. Foram excluídos os profissionais que atuavam junto às unidades assistenciais do tipo mistas, ou seja, nas quais atuavam equipes da Saúde da Família e equipes do modelo tradicional.

Os dados foram coletados de novembro de 2010 a fevereiro de 2013, junto a equipes de ESF de três regiões do Brasil: Sul - em três municípios do sudoeste do Paraná; Centro-Oeste - no Distrito Federal e Norte - no município de Belém, no Pará.

Em relação à coleta de dados, consta da Tabela 1 a descrição do quantitativo e da distribuição das entrevistas realizadas, das notas de observação e dos documentos analisados.

Tabela 1
- Distribuição dos instrumentos de coleta de dados, segundo número, tipo e região geográfica. Florianópolis, SC, Brasil, 2015

Participaram do estudo 23 profissionais de enfermagem, sendo nove enfermeiros, 13 técnicos de enfermagem e um auxiliar de enfermagem, os quais atuavam, no total, em dez equipes de saúde de cinco municípios. O quantitativo de participantes foi considerado suficiente pelo critério de saturação de dados, ou seja, quando não foram mais encontradas novas explicações, interpretações ou descrições do fenômeno estudado a inclusão de novos participantes e equipes foi suspensa.

Dentre os participantes, identificou-se a presença majoritária de mulheres (87%; n=20); na faixa etária entre 30 e 49 anos (61%; n=14); com experiência profissional maior que 5 anos (70%; n=16) e experiência na ESF de um a cinco anos (61%; n=14). Quanto ao regime de trabalho, houve forte predomínio de profissionais concursados (70%; n=16) e com jornada contratual de 40 horas semanais (87%; n=20).

As entrevistas semiestruturadas seguiram um roteiro que foi testado e composto por perguntas fechadas e abertas. As perguntas objetivaram, principalmente, a caracterização do perfil dos participantes, e identificar as fontes e implicações das cargas de trabalho nos profissionais que compõem as ESFs. As observações do contexto de trabalho e a análise documental seguiram também um roteiro e as primeiras foram descritas em diários de campo. Os roteiros incluíram o levantamento de informações sobre as fontes de aumentos das cargas de trabalho visualizadas pelos pesquisadores, detalhes sobre o processo e instrumentos de trabalho, modo de assistir os usuários e documentos que informassem sobre rotinas, estrutura física e fluxo de atendimento das unidades.

Para a análise, foram utilizados os recursos do software Atlas.ti 7.0 e os preceitos da Análise Temática de Conteúdo. Na pré-análise foi criado, no software Atlas.ti, um arquivo de armazenamento [Hermeneutic Unit], no qual foram inseridos os dados da pesquisa, obtidos nas entrevistas e na observação [Primary Documents]. A cada entrevista [document] foi atribuída uma numeração exclusiva. A exploração do material foi materializada pela seleção/recorte das unidades de significado [quotations], criação e atribuição dos códigos [codes], os quais foram agrupados em categorias [families]. Por fim, na interpretação, foram feitas as articulações entre quotations, codes e families, gerando redes de visualização [networks], as quais foram extraídas do software e apresentadas nos resultados. É importante destacar, ainda, que o processo de análise em todas as suas fases se alicerçou em uma tríade cíclica, a saber: os dados empíricos, o alicerce teórico e a percepção dos pesquisadores sobre o fenômeno estudado.

Foram respeitados os preceitos éticos recomendados internacionalmente para pesquisa com seres humanos. O projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, sob nº971, aprovado em 25 outubro de 2010.

A realização da pesquisa foi autorizada pelas instituições envolvidas e solicitou-se assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por todos os participantes. A esses foi garantido o direito à informação, retirar-se do estudo em qualquer etapa e o anonimato, sendo as falas identificadas pelas iniciais da categoria profissional (E e Te para enfermeiro(a) e técnico(a) de enfermagem, respectivamente), seguida da inicial da região de coleta de dados (S, C e N para designar as Regiões Sul, Centro-Oeste e Norte) e do número de ordem. A nota de observação está identificada, seguida da inicial da região.

Resultados

Os resultados foram organizados em duas categorias analíticas: modo de trabalhar na ESF e aumento das cargas de trabalho e modo de trabalhar na ESF e redução das cargas de trabalho.

Modo de trabalhar na ESF e aumento das cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem

No que diz respeito ao aumento das cargas de trabalho, nas três regiões do país, os principais elementos identificados estão apresentados na Figura 1, gerada no software Atlas.ti.

Figura 1
- Principais elementos que aumentam as cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem

Dentre os principais elementos que aumentam as cargas estão problemas relacionados às condições de trabalho, os quais têm forte relação com a dimensão de gestão. Dentre eles se destacam: sobrecarga de trabalho; excesso de demanda; déficits na estrutura física; falhas no funcionamento da rede de atenção do SUS; insatisfação com salário considerado insuficiente e com a jornada de trabalho percebida como excessiva; escassez de recursos humanos e a sobrecarga causada pela realização de atividades administrativas.

Nas três regiões do país, a sobrecarga de trabalho associada ao excesso de demanda e território superestimado foram os elementos mais significativos para o aumento das cargas dos profissionais de enfermagem, como ilustram os relatos a seguir.

A sobrecarga fica imensa, muito serviço para ser desenvolvido ao mesmo tempo, muitas vezes a gente sai tão cansada e ainda com a impressão que não realizou tudo que estava sob sua responsabilidade. Você tem que fazer visita, você tem que fazer triagem, tem que realizar procedimentos técnicos dentro da unidade, não pode deixar o médico sozinho, ele sempre precisa de você por perto e somos apenas dois técnicos. Se você sai para fazer os curativos no domicílio, seu colega fica sozinho na unidade para resolver aquilo que já era impossível resolver com dois profissionais. É desumano deixar o colega sozinho, a gente sai com a consciência pesada (TeC2).

E a gente continua com a mesma equipe para atender as famílias das nossas áreas e as outras que estão descobertas (EN1).

[...] a minha equipe está incompleta, falta uma técnica, eu estou com um enfermeiro e um médico e eu estou sozinha, então isso dificulta um pouco. Dobra o trabalho, a gente não consegue fazer um trabalho como a gente quer por falta de um técnico (TeS2).

Falhas na rede de atenção e na estrutura organizacional e física também foram muito significativas, produzindo aumento das cargas de trabalho, conforme demonstrado nos relatos, a seguir.

Às vezes para resolver o problema do paciente depende de outras instâncias e aí fica emperrado. Essa situação frustra a gente. Você recebe o problema do paciente, tenta ajudar, busca meios, e sabe que o que você poderia fazer já foi feito [...]. Se depender das referências, a gente sabe que tem, mas procura e ninguém sabe onde tem. [...] e que esses setores não se empenham em resolver (TeC5).

[...] a falta de contrarreferência [...] um acompanhamento daquele usuário. Encaminha para um especialista, uma especialidade, e não retorna a contrarreferência, e eu não sei o que fazer (tenso). Eu sei que ele foi ao médico, mas não sei como ele deve proceder [...] não tenho feedback. Isto me deixa muito cansada, muito irritada... é como se fosse uma ponte inacabada [...]. Isso para mim é péssimo [...]. Nossa estrutura é uma das melhores do município, e é completamente inadequada, no inverno é um frio insuportável e no verão um calor horrível. Esta insatisfação me levou aos medicamentos, hoje eu estou bem, pois buscava respostas para questionamentos que eu não conseguia entender, faço terapia (ES2).

Existe uma sala sem condições mínimas, mas onde funciona a sala de patologia, com uma técnica de patologia responsável pela coleta de material dos exames solicitados pelas equipes. Não tem pia dentro dessa sala, não tem descartex para dispensação adequada de material perfurocortante, foi improvisado uma lata de "leite em pó" para descarte das agulhas (NOTA DE OBSERVAÇÃO, C).

Os baixos salários e a jornada de trabalho excessiva foram mencionados pelos profissionais de enfermagem como fonte de aumento das cargas de trabalho, sendo que na Região Centro-Oeste o salário não foi mencionado.

Salário baixo. Para o nível de estresse e a quantidade de trabalho desenvolvido pelo profissional (EN1).

O salário não é o ideal... ele ainda é baixo, mas se ainda formos comparar com outras colegas de outras instituições o nosso salário é bom (ES2).

O salário eu estou insatisfeita, não tem plano de carreira para a enfermagem, tu ganhas um pouco mais porque oito horas, mas não tem diferença porque é ESF, tu trabalhas duas, quatro, seis horas a mais no final da semana e tu não ganha nada mais... e assim a carga horária de oito horas que insatisfaz, seria melhor 6 horas, isso também para o usuário, [...] muitas famílias deixam de ser acompanhadas, que é a intenção da ESF, por causa do horário (TeS1).

Também foram significativos os problemas relativos ao objeto de trabalho, ou seja, aos usuários dos serviços. Identificou-se descontentamento dos usuários com o atendimento recebido e com as dificuldades de acesso, especialmente aos serviços de maior complexidade. Outro elemento gerador de aumento das cargas de trabalho foi a exposição dos profissionais à violência urbana. Muitas vezes as unidades assistenciais estão localizadas em cenários de violência.

Modo de trabalhar na ESF e redução das cargas de trabalho

No que diz respeito ao modo de trabalhar na ESF, implicando em redução das cargas de trabalho, verifica-se que o trabalho em equipe foi o mais significativo, conforme mostrado na Figura 2, gerada no software Atlas.ti e apresentada a seguir.

Figura 2
- Principais elementos que reduzem as cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem

Os relatos dos profissionais mostram que o trabalho em equipe, o vínculo com o usuário, a presença dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e a afinidade com o trabalho contribuem para reduzir as cargas de trabalho. Os três primeiros elementos integram o prescrito na ESF e estão associados ao code "afinidade com o trabalho", sugerindo que a identidade dos profissionais de saúde com o modelo assistencial da ESF contribui para reduzir as cargas de trabalho. Também contribuíram para redução das cargas: a organização do trabalho; o respeito à autonomia profissional no âmbito do trabalho coletivo; a obtenção de resultados satisfatórios; o reconhecimento dos usuários, colegas e gerência pelo trabalho realizado, além de boas relações de trabalho.

O principal elemento para a redução das cargas de trabalho foi o trabalho em equipe. Esse aspecto protetor do trabalho em equipe está ilustrado nos relatos que seguem.

Nossa equipe tem uma afinidade muito grande, entre todos os profissionais [...] um segura o outro, a gente tem essa integração, amizade, coleguismo. Parceria de trabalho. Todos defendendo um mesmo sentido [...]. Minha colega também, a outra técnica, é muito parceira no trabalho. Não me sobrecarrega, não ficamos um empurrando trabalho para outro. Temos muita sintonia (TeC3).

O trabalho em equipe é único. Bom relacionamento com a médica, técnica de enfermagem, com os ACSs, o poder da comunicação, do diálogo, não somente da equipe que faz parte, mas também da outra equipe, então a gente consegue fazer um trabalho, pois a gente se une, um ajuda o outro (EN2).

É positivo, assim nós conseguimos trabalhar em parceria, todos os profissionais [...] nós realizamos reuniões toda sexta-feira a partir das 3 horas, a gente discute bastante com a equipe o que está sendo realizado [...], na visão da comunidade o que está legal, o que não está, o que que a gente interpreta disso, o que é viável, muda. Então tem uma interação, uma integração muito grande entre a equipe (ES1).

Além do trabalho em equipe, o vínculo com o usuário e a presença do Agente Comunitário de Saúde são elementos que contribuíram para a redução das cargas, sinalizando identidade/afinidade dos profissionais de enfermagem com o modelo da ESF.

Discussão

Neste estudo, os resultados mostraram predomínio de situações que aumentam as cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem. Dentre os elementos que contribuíram para o aumento das cargas de trabalho estão diversos elementos relacionados a condições de trabalho e à gestão do sistema de saúde do qual a ESF é parte.

O problema das condições de trabalho tem sido reiteradamente reconhecido como um problema grave no campo da saúde no Brasil e em especial na enfermagem, incluindo déficit na quantidade e qualidade na força de trabalho, jornada excessiva, déficits salariais e problemas no ambiente de trabalho(1414. Trindade LL, Pires DEP. Implicações dos modelos assistenciais da atenção básica nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde. Texto Contexto Enferm. [Internet]. 2013 [acesso 8 mai 2015]; 22(1):36-42. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05...
-1515. Pires DEP. Transformações necessárias para o avanço da Enfermagem como ciência do cuidar. Rev Bras Enferm. [Internet]. 2013;66(n.spe):39-44. Disponível em: www.scielo.br/pdf/reben/v66nspea05.pdf
www.scielo.br/pdf/reben/v66nspea05.pdf...
). Déficits nas condições de trabalho impactam negativamente a saúde dos profissionais de enfermagem e o resultado da assistência prestada por esses profissonais(1313. Aiken L, Sloane DM, Bruyneel L, Van den Heede K, Griffiths P, Busse R, et al. Nurse staffing and education and hospital mortality in nine European countries: a retrospective observational study. Lancet. 2014 May 24;383(9931):1824-30.

14. Trindade LL, Pires DEP. Implicações dos modelos assistenciais da atenção básica nas cargas de trabalho dos profissionais de saúde. Texto Contexto Enferm. [Internet]. 2013 [acesso 8 mai 2015]; 22(1):36-42. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/pt_05...

15. Pires DEP. Transformações necessárias para o avanço da Enfermagem como ciência do cuidar. Rev Bras Enferm. [Internet]. 2013;66(n.spe):39-44. Disponível em: www.scielo.br/pdf/reben/v66nspea05.pdf
www.scielo.br/pdf/reben/v66nspea05.pdf...

16. Mello JF, Barbosa SFF. Cultura de segurança do paciente em terapia intensiva: recomendações da enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2013 Dez; 22(4):1124-33.

17. Unruh LY, Zhang NJ. Nurse Staffing and patient safety in hospitals: new variable and longitudinal approaches. Nurs Res. 2012;61(1):3-12.
-1818. Santana LL, Miranda FMD, Karino ME, Baptista PCP, Felli VEA, Sarquis LMM. Description of workloads and fatigue experienced among health workers in a teaching hospital. Rev Gaúcha Enferm. 2013;34(1):64-70.).

No que diz respeito à sobrecarga de trabalho, mesmo considerando o envolvimento de aspectos subjetivos, identificou-se que existe um descompasso entre a demanda e a capacidade da equipe. Os demais aspectos relacionados a condições de trabalho, identificados na pesquisa, sinalizam que existem condições objetivas insatisfatórias as quais interatuam entre si potencializando o aumento das cargas de trabalho.

Profissionais de enfermagem sobrecarregados e, ainda, desenvolvendo trabalho em condições adversas tendem a sofrer danos na sua saúde e a aumentarem as faltas ao trabalho, o que gera mais sobrecarga naqueles que ficam, dificultando a eficácia e qualidade dos resultados. O serviço pode estar disponível e até representar que formalmente existe cobertura, no entanto, a população usuária do serviço se defronta com entraves e atenção limitada ou pouco resolutiva.

Outro aspecto que contribuiu para o aumento das cargas foram problemas nas relações dos profissionais de enfermagem com os usuários, em especial por suas necessidades não atendidas e pela insegurança desses profissionais ao atuarem em áreas de violência.

O aumento das cargas de trabalho provoca insatisfação, desgaste e até adoecimento em quem realiza o trabalho, além de dificultar a realização de um trabalho criativo e efetivo, o que interfere nas possibilidades de garantir o acesso na perspectiva da integralidade da atenção.

Acesso universal está relacionado a prover assistência a toda a população, em todos os níveis do sistema(66. Noronha JC. Universal health coverage: how to mix concepts, confuse objectives, and abandon principles. Cad Saúde Pública. 2013;29(5):847-9.

7. Marx K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. 30 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2012.

8. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.

9. Rohde J, Cousens S, Chopra M, Tangcharoensathien V, Black R, Bhutta ZA. 30 years after Alma-Ata: has primary health care worked in countries? Lancet. 2008 Sep 13;372(9642):950-61.

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), portanto, qualquer iniciativa nesse campo requer olhar para quem realiza o trabalho.

A ausência de barreiras geográficas, econômicas, socioculturais, de organização ou de gênero têm sido reconhecidas como requeridas para o acesso universal(44. Cassiani SHB. Strategy for universal access to health and universal health coverage and the contribution of the International Nursing Networks. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2014;22(6):891-2.). Neste estudo, identificaram-se barreiras econômicas, socioculturais e de organização no cenário da APS no país, o que tem gerado aumento das cargas de trabalho dos profissionais de enfermagem e dificultado a efetividade da ESF como política potencializadora do acesso universal.

Por outro lado, os elementos que contribuem para a redução das cargas de trabalho, encontrados no estudo, mostram que existe uma afinidade dos profissionais de enfermagem com esse modelo assistencial. Dentre esses aspectos, estão o trabalho em equipe, o estabelecimento de vínculo entre profissionais e usuários e a presença do ACS, os quais são fundantes da ESF.

Os fatores que contribuem para reduzir as cargas de trabalho podem colaborar para a permanência dos profissionais nesse modelo assistencial, assim como são positivos para maior aproximação com o modo de fazer prescrito na ESF. A ESF se inspira na APS, reconhecida internacionalmente como estratégica para o alcance do acesso universal(2020. Chan M. Return to Alma-Ata. Lancet. 2008 Sep 13;372(9642):865-6.).

A identidade com o trabalho e a busca pelo reconhecimento e valorização do trabalho reforçam a capacidade de agir dos coletivos, abrindo perspectivas de enfrentamento do lado adverso dos contextos de trabalho. Acreditar que está realizando o seu trabalho do "modo certo" provoca satisfação e, mesmo em situações inadequadas, contribui para reduzir as cargas de trabalho.

No caso do Brasil, a definição do direito universal à saúde e acesso aos serviços de saúde ocorreu em um cenário de valorização dos direitos de cidadania, no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. O desafio atual diz respeito ao enfrentamento de problemas complexos, decorrentes da transição demográfica e epidemiológica e da insuficiência do investimento público em saúde(33. Frenk J. Leading the way towards universal health coverage: a call to action. Lancet. 2015 Apr 4;385(9975):1352-8.). Maior investimento público em saúde pode contribuir para melhorar as condições de trabalho, o funcionamento da rede e, consequentemente, o acesso universal. A ESF integra o SUS como estratégia privilegiada para a sua efetivação, no entanto, o cotidiano dos serviços tem causado aumento das cargas de trabalho das equipes, o que dificulta o trabalho das mesmas, assim como a resolutividade dos problemas dos usuários.

Conclusão

A ESF adota os preceitos da APS reconhecidos internacionalmente como centrais na busca da equidade e da universalização do acesso. Nesta pesquisa, esses preceitos foram reconhecidos como positivos pelos profissionais de enfermagem. No entanto, déficits nas condições de trabalho e na gestão influenciaram negativamente as cargas de trabalho, o que dificulta a efetividade da ESF. O aumento das cargas de trabalho, em especial a sobrecarga dos profissionais de enfermagem, repercute na eficácia e qualidade dos cuidados prestados, na forma como o usuário é acolhido e atendido nos serviços de saúde e, consequentemente, na qualidade do acesso.

Nos cenários onde a pesquisa foi realizada, os aspectos que aumentam as cargas de trabalho concorrem para dificultar o acesso aos serviços de saúde na perspectiva da universalidade, equidade e resolutividade, uma vez que o papel prescrito para as equipes de saúde da família é extremamente abrangente, requerendo longitudinalidade do cuidado, um saber polivalente e capacitação para intervenção intersetorial.

Os resultados da pesquisa mostraram que investir em estratégias que fortaleçam o trabalho em equipe, a autonomia profissional da enfermagem e a incorporação de tecnologias que contribuam para a resolubilidade da assistência e redução da sobrecarga de trabalho podem empoderar esses profissionais para o agir cotidiano, assim como para participarem politicamente na gestão dos serviços de saúde e nas instâncias de controle social, buscando a implementação de medidas que fortaleçam a profissão e potencializem o acesso universal.

Os resultados desta pesquisa também contribuem para o desenvolvimento da enfermagem como profissão da saúde e disciplina do conhecimento científico ao prover conhecimentos sobre o trabalho desses profissionais no âmbito de uma das políticas públicas mais significativas vigentes no Brasil e que corresponde à estratégia prioritária da OMS, para o acesso universal.

Cabe considerar que este estudo foi realizado com uma amostra intencional, o que limita a possibilidade de generalização. No entanto, é importante registrar que, mesmo incluindo intencionalmente equipes consideradas de boa qualidade, os déficits nas condições de trabalho e relacionados à gestão do sistema foram significativos. Esses achados sugerem que mais estudos nessa perspectiva podem ser promissores para o investimento em saúde e para o avanço do conhecimento em enfermagem e saúde.

Agradecimentos

A todas as instituições participantes e pessoas que possibilitaram a realização desta pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2015
  • Aceito
    27 Ago 2015
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