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Vias do planejamento na transferência do tratamento diretamente observado da tuberculose1 1 Artigo extraído da tese de doutorado “O planejamento e a execução da transferência da política do tratamento diretamente observado da tuberculose no município de Porto Alegre - RS”, apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil.

RESUMO

Objetivo:

investigar o processo de planejamento da transferência da política do Tratamento Diretamente Observado da tuberculose.

Método:

estudo qualitativo, realizado por meio de entrevistas e roteiro semiestruturado aplicado a cinco sujeitos, dentre coordenadores e gestores dos programas de controle da tuberculose e o secretário de saúde de um município do Sul do Brasil. O Planejamento Estratégico Situacional e a Análise de Discurso de matriz francesa foram os referenciais teórico e analítico utilizados, respectivamente.

Resultados:

três eixos reflexivos sobressaíram: as fragilidades no processo de planejamento da transferência do Tratamento Diretamente Observado; o antagonismo entre o planejamento e as exigências cotidianas; e a formulação do planejamento e sua execução. A assistematização do planejamento para a execução da transferência do Tratamento Diretamente Observado indica não apenas a fragilidade e incipiência dessa atividade, mas também a possibilidade de sua inexistência.

Conclusão:

é notória a premente necessidade de os gestores e coordenadores se apropriarem melhor tanto do referencial teórico da transferência de políticas públicas quanto dos próprios mecanismos de planejamento em si, incluindo, nesse sentido, uma proposta de reorganização e qualificação do processo difusor, prático-operativo e político-organizativo.

Descritores:
Planejamento em Saúde; Tuberculose; Políticas Públicas; Atenção Primária à Saúde; Saúde Pública; Gestão em Saúde

ABSTRACT

Objective:

to investigate the planning pathways in the transfer of Directly Observed Treatment of tuberculosis.

Method:

a qualitative study conducted using interviews and a semi-structured guide, administered to five subjects who were among the coordinators and managers of the tuberculosis control programs, and the secretary of health of a municipality in the south of Brazil. Situational Strategic Planning and Discourse Analysis of the French matrix were the theoretical and analytical references used, respectively.

Results:

three reflexive axes were identified: weaknesses in the process of planning the Directly Observed Treatment transfer, antagonism between planning and daily requirements and formulation of planning and execution. Lack of systematization regarding the planning and execution for transfer the Directly Observed Treatment policy, demonstrates the fragility and incipience of this activity, and the possibility of its non-existence.

Conclusion:

the urgent need for managers and coordinators to better appropriate the theoretical framework for changing public policies, and the related planning mechanisms, includes a proposal for reorganization and qualification of the diffusion process, both practical-operative and political-organization.

Descriptors:
Health Planning; Tuberculosis; Public Policies; Primary Health Care; Public Health; Health Management

RESUMEN

Objetivo:

investigar el proceso de planificación de la transferencia de la política del Tratamiento Directamente Observado de la tuberculosis.

Método:

estudio cualitativo realizado por medio de entrevistas y con guión semiestructurado, aplicado en cinco sujetos: coordinadores y gestores de los programas de control de la tuberculosis y el secretario de salud de un municipio del sur de Brasil. La Planificación Estratégica Situacional y el Análisis de Discurso de matriz francesa fueron los referenciales teóricos y analíticos utilizados, respectivamente.

Resultados:

tres ejes reflexivos se destacaron: las fragilidades en el proceso de planificación de la transferencia del Tratamiento Directamente Observado; el antagonismo entre la planificación y las exigencias cotidianas y la formulación de la planificación; y su ejecución. La falta de sistematización, de la planificación para la ejecución de la transferencia del Tratamiento Directamente Observado, nos indica no apenas la fragilidad e insipiencia de esta actividad, pero además la posibilidad de que este no exista.

Conclusión:

es notaria la urgente necesidad de los gestores y coordinadores de conocer mejor tanto el referencial teórico de la transferencia de políticas públicas como los propios mecanismos de planificación, incluyendo con ese propósito una propuesta de reorganización y calificación del proceso difusor, práctico operativo y político organizativo.

Descriptores:
Planificación de la Salud; Tuberculosis; Políticas Públicas; Atención Primaria de Salud; Salud Pública; Gestión en Salud

Introdução

Discorrer sobre a importância da atividade de planejamento na área da saúde parece redundante e pouco inovador. Contudo, pensá-la no contexto de transferência de políticas públicas constitui interessante desafio, principalmente por tratar-se de tema incipiente e pouco difundido na literatura brasileira11 Farah MFS. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. O&S. [Internet]. 2008 [Acesso 11 dez 2016]; 15(45):107-26. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-92302008000200009&lng=en&nrm=iso
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Entende-se a transferência de política como o processo em que “[...] o conhecimento sobre políticas, medidas administrativas, instituições etc. num tempo e/ou lugar é usado no desenvolvimento de políticas, medidas administrativas e instituições em outro tempo e/ou lugar”22 Dolowitz D, Marsh D. Who learns what from whom: a review of the Policy Transfer literature. Polit Stud. 1996; 54:343-57. doi: http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-9248.1996.tb00334.x
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. Há várias interfaces e níveis intercomunicantes (global, nacional, regional etc.), nos quais permeia esse conhecimento, e vários elementos que precisam ser levados em consideração no momento da sua operacionalização, tais como o tipo de conhecimento envolvido, a forma de persuasão dos atores, a rede de referência, o contexto político, econômico, social, cultural, os recursos empregados, dentre outros33 Bissell K, Lee K, Freeman R. Analysing policy transfer: perspectives for operational research. Int J Tuberc Lung Dis. 2011; 15(9):1140-8. doi: http://dx.doi.org/10.5588/ijtld.11.0170
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Ainda que tão presente nos domínios da saúde, urge ressaltar a escassez de estudos sistemáticos sobre o processo de transferência de políticas públicas nesse meio44 Freeman R. Policy transfer in the health sector. European Forum Conference paper WS/35. Florence: Robert Shuman Centre for Advanced Studies, European University Institute. [Internet]. 1999 [cited Mar 26, 2017]; 1-25. Available from: https://pdfs.semanticscholar.org/0de5/74eed7179502e0ef463d418b93f1f09d5366.pdf
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, fato que motivou a presente investigação sobre como ocorre/ocorreu o planejamento da transferência da política do Tratamento Diretamente Observado (TDO) da Tuberculose (TB), em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, considerada uma das primeiras no ranking das capitais brasileiras, em termos de incidência dessa doença em 2016 (80,4 casos/100.000 hab)55 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Indicadores prioritários para o monitoramento do Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública no Brasil. Bol Epidemiol. [Internet]. 2017 [Acesso 5 nov 2017]; 48(8):1-11. Disponível em: http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/marco/23/2017-V-48-N-8-Indicadores-priorit--rios-para-o-monitoramento-do-Plano-Nacional-pelo-Fim-da-Tuberculose-como-Problema-de-Sa--de-P--blica-no-Brasil.pdf
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O TDO pode ser compreendido como o acompanhamento, realizado por profissionais de saúde ou qualquer outra pessoa treinada ou supervisionada por um desses profissionais, da ingestão diária dos medicamentos pelos pacientes, ou seja, de segunda a sexta-feira. Contudo, para fins operativos, o TDO pode ser considerado como o acompanhamento daqueles doentes com 24 doses supervisionadas na fase 1 (de ataque) e 48 doses na fase dois (de manutenção)66 Ministério da Saúde (BR). Manual de Recomendações para o controle da Tuberculose no Brasil. [Internet]. 2011. [Acesso 31 out 2017]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil.pdf
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É sabido que o uso correto dos medicamentos viabiliza um percentual de cura de 90% dos casos de TB77 Stop TB Partnership. The Global Plan to stop TB 2011-2015: transforming the fight towards elimination of tuberculosis. [Internet]. Geneva: World Health Organization (WHO); 2011-2015 [cited Sep 21, 2016]. Available from: http://www.stoptb.org/assets/documents/global/plan/TB_GlobalPlanToStopTB2011-2015.pdf
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. Assim, o TDO configura-se como importante estratégia por assegurar a ingestão, favorecer a adesão ao tratamento e reduzir a probabilidade de eventual resistência medicamentosa. Além disso, evidências científicas demonstram que as dificuldades de operacionalização do TDO tendem a afetar de forma importante o alcance de melhorias nos índices de cura e abandono do tratamento88 Souza KMJ, Sá LD, Silva LMC, Palha PF. Nursing performance in the policy transfer of Directly Observed Treatment of Tuberculosis. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(5): 874-82. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-6234201400005000014
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Todavia, ainda assim há indícios de baixa adesão e incorporação dessa política aos serviços de Atenção Básica (AB), bem como de um déficit por parte das autoridades municipais e estaduais em relação à vinculação entre contexto demográfico, planejamento e financiamento de programas que visem a redução dos custos de acesso gerados pela TB99 Oliveira RCC, Adário KDO, Sá LD, Videres ARN, Souza SAF, Pinheiro PGOD. Managers' discourse about information and knowledge related to Directly Observed Treatment of Tuberculosis. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(2):e3210015. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016003210015
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Dessa forma, no presente trabalho partiu-se do seguinte questionamento: como tem sido elaborado o planejamento para a transferência da política do TDO na ótica dos coordenadores dos programas de TB e gestores das diferentes instâncias de governo (estadual e municipal)? O objetivo principal neste estudo, portanto, foi investigar o planejamento da transferência do TDO na capital gaúcha. Para tanto, foram utilizados o referencial teórico do Planejamento Estratégico Situacional (PES), de Carlos Matus, e a Análise de Discurso (AD) de vertente pecheuxtiana, enquanto referencial teórico-analítico.

Partiu-se da perspectiva de que este trabalho sirva não apenas para a aquisição de evidências científicas - tendo em vista que o tema em questão ainda é pouco difundido nesses domínios -, mas, sobretudo, para a reorganização das atividades e serviços vinculados à difusão do TDO nos diferentes níveis de governo, como um instrumento reflexivo e indutor da qualificação de processos tão complexos quanto complementares, tais quais o planejamento e a transferência de políticas públicas.

Método

Nesta pesquisa, de caráter qualitativo, utilizou-se o Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research1010 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007; 19(6):349-357. doi: http://dx.doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
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, um checklist recomendado para a descrição qualificada dos elementos e das etapas percorridas em pesquisas dessa natureza.

As entrevistas foram realizadas pela autora principal. Uma aproximação inicial com os sujeitos da pesquisa foi realizada por telefone e e-mail, e as informações discorriam sobre o processo, o dia e as datas agendadas para o desempenho de tal atividade. Os objetivos da pesquisa e o interesse no tópico foram esclarecidos desde a abordagem inicial até a efetivação da entrevista em si.

Adotou-se, no presente trabalho, o referencial teórico-metodológico da AD como forma de perceber os sentidos produzidos. Falar em AD francesa significa trabalhar com o atravessamento constitutivo de três domínios, quais sejam, a Linguística (não enfoca a língua enquanto um sistema abstrato, mas como forma de significar); o Marxismo, com o materialismo histórico e dialético (o sujeito afetado pela história e pela ideologia); e a Psicanálise (com o sujeito do inconsciente)1111 Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. [Internet]. 10ª ed. Campinas: Pontes; 2012 [Acesso 12 maio 2017]. Disponível em: http://ponteseditores.com.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=266.

Os participantes foram selecionados intencionalmente e abrangeram coordenadores e gestores dos programas de controle da TB e o secretário municipal de saúde de Porto Alegre, totalizando cinco sujeitos. Além de contato telefônico e via e-mail, os mesmos foram abordados pessoalmente (face a face) no momento da entrevista. Nenhum deles se recusou a participar do estudo.

As entrevistas ocorreram em seus respectivos locais de trabalho e, embora alguns compartilhassem esses ambientes com outros colegas, é possível dizer que essa atividade ocorreu em lugares mais reservados. A coleta de dados teve curso em 2014 e, na ocasião, foi utilizado um roteiro semiestruturado cuja versão preliminar foi submetida à avaliação de dois especialistas na área da AD, com vistas a seu aperfeiçoamento e qualificação.

Sua versão final contou com 10 questões, que discorreram sobre temas abrangendo desde a compreensão da atividade de planejamento e sua importância no âmbito da saúde até o entendimento das etapas operativas e ações adotadas no planejamento da transferência do TDO, dos atores e recursos envolvidos (financeiros, físicos, organizacionais etc.), dentre outros elementos.

Ressalta-se, ainda, que as entrevistas, com duração média de 45 minutos, foram audiogravadas e, posteriormente, transcritas para análise, juntamente com um diário de campo elaborado pela entrevistadora a partir de suas percepções pessoais. Esse último forneceu informações adicionais sobre as características e peculiaridades do funcionamento do local da pesquisa, do processo de trabalho e do papel desempenhado pelos participantes. Não houve necessidade de repetição da entrevista com os sujeitos.

Os dados foram analisados seguindo-se os três passos da AD. O primeiro, passagem da superfície linguística para o objeto discursivo, consistiu na realização de repetidas leituras das entrevistas transcritas, observando-se a discursividade e procurando-se identificar as enunciações indiciadoras para a interpretação, desnaturalizando, dessa forma, a palavra das coisas1111 Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. [Internet]. 10ª ed. Campinas: Pontes; 2012 [Acesso 12 maio 2017]. Disponível em: http://ponteseditores.com.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=266.

O segundo passo, do objeto discursivo para o processo discursivo, consistiu em identificar as Sequências Discursivas (SDs) e relacioná-las com as distintas formações discursivas que delineiam os sentidos circulantes nos fragmentos em análise. Finalmente, o terceiro passo, processo discursivo em si (formação ideológica), consistiu na interpretação das SDs, levando-se em consideração as condições de produção existentes e as formações discursivas em que os enunciados são ancorados1111 Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. [Internet]. 10ª ed. Campinas: Pontes; 2012 [Acesso 12 maio 2017]. Disponível em: http://ponteseditores.com.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=266, e também a mobilização de autores, tanto da AD de linha francesa como da temática em estudo (transferência de política pública e planejamento), para embasar os argumentos interpretativos.

Dos cinco sujeitos entrevistados, foram escolhidas três SDs para análise por serem representativas ideologicamente das posições-sujeito assumidas pelos entrevistados. Cabe ressaltar que, em AD, o mais relevante é a exaustividade vertical, em profundidade, do objeto empírico, em detrimento da saturação horizontal, completude em extensão do mesmo1111 Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. [Internet]. 10ª ed. Campinas: Pontes; 2012 [Acesso 12 maio 2017]. Disponível em: http://ponteseditores.com.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=266. Dessa forma, o corpus da pesquisa não se prende necessariamente à quantidade de SD selecionadas, podendo ser constituído inclusive por uma única SD, desde que a mesma supra o objetivo estabelecido. Assim, trabalharam-se os três principais eixos reflexivos provenientes da análise dos dados, a saber: fragilidades no processo de planejamento da transferência do TDO; o antagonismo entre o planejamento e as exigências cotidianas; e a formulação do planejamento e sua execução.

O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado por três Comitês de Ética em Pesquisa, sendo incluídos na mesma apenas os sujeitos que consentiram sua participação por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e que tivessem pelo menos seis meses de experiência com o TDO. Excluíram-se automaticamente aqueles em férias ou afastamento por licença-saúde, quando da coleta de dados.

Cabe ressaltar as limitações do presente estudo no que tange, por exemplo, à existência de elementos do ambiente de trabalho registrados no momento da entrevista (interrupções - colegas, telefone -, a sobrecarga de trabalho, a luta contra o tempo para o cumprimento de tarefas, além da própria disposição espacial de algumas mesas e assentos, típica de ambientes compartilhados) que, por sua vez, podem ter gerado algum tipo de inibição e influenciado as respostas dos participantes.

Resultados e discussão

No eixo reflexivo de fragilidades no processo de planejamento da transferência do TDO, é apresentada uma SD em que o sujeito, quando perguntado sobre o processo de planejamento para a transferência dessa política em sua coordenação, responde da seguinte forma: é o que a gente viu em 2008, é que um dos problemas é do programa, era a questão da adesão, né. E, e aí a gente começou a discutir: bom, como é que se faz pra que os pacientes possam, né, chegar até o final do tratamento, né, não abandonar no primeiro e segundo mês de tratamento? E, e é claro a gente já, se for pra literatura tu vê publicações e a própria Organização Mundial de Saúde fala em TDO há muitos anos, né. Então, a partir disso, a gente começou a discutir com as equipes a possibilidade de TDO e com a gerência do serviço, e aí, 2009, foi o ano que o, é, o Fundo Global tava atuando e tinha também várias discussões incentivando a implantação do Tratamento Diretamente Observado, e aí, eu digo: bom, é a oportunidade da gente, hum, conseguir recurso, que é uma coisa que a gente não consegue, pra fazer capacitação pra todo mundo [...] (Sujeito 1).

A partir do fragmento, observa-se que o sujeito parte inicialmente de um problema (momento explicativo do PES) do âmbito da operacionalização da política, qual seja a adesão do paciente ao tratamento, para, indiretamente, chegar ao problema da ordem da transferência da política do TDO: a falta de recurso para capacitação. A baixa adesão e a necessidade de reversão do quadro, o aporte teórico internacional da Organização Mundial de Saúde sobre o TDO e o incentivo, inclusive financeiro, do Fundo Global parecem compor o quadro de problemas e oportunidades, respectivamente, que impulsionaram o planejamento e, de certa forma, a execução da transferência do TDO.

Experiências em Moçambique, por exemplo, também demonstraram que o processo político e de transferência da estratégia Directly Observed Treatment Short-course de controle da TB, na qual o tratamento supervisionado é um dos componentes, foi igualmente influenciado de forma importante por dados científicos, técnicos e recursos financeiros transnacionais1212 Cliff J, Walt G, Nhatave I. What's in a Name? Policy transfer in Mozambique: DOTS for tuberculosis and Syndromic Management for Sexually Transmitted Infections. J Public Health Pol. 2004; 25(1):38-55. doi: http://dx.doi.org/10.1057/palgrave.jphp.3190003
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Contudo, ainda que haja indícios de um ponto de partida (problema) e dos atores envolvidos no processo, conforme discutir-se-á adiante, nota-se pouca clareza e detalhamento no que se refere à etapa do planejamento da transferência do TDO. Não se pode afirmar sobre a sistematização do processo e seu grau de formalização, que ainda parece incipiente e pouco aprofundado. Se a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) é considerada desatualizada, com déficits no planejamento e na avaliação dos serviços1313 Lorenzetti J, Lanzoni GMM, Assuiti LFC, Pires DEP, Ramos FRS. Health management in Brazil: dialogue with public and private managers. Texto Contexto Enferm. 2014; 23(2):417- 25. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072014000290013
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, seus reflexos naturalmente se estendem ao âmbito de proposituras outras, principalmente àquelas ainda pouco conhecidas e exploradas, tais como a transferência de uma política pública.

Nos dizeres a gente começou a discutir com as equipes a possibilidade de TDO, é possível observar pistas que indiciam os atores envolvidos no processo (coordenadores e equipe de saúde). Contudo, novamente não se pode precisar se o conteúdo dessa discussão incorpora aspectos outros que não somente a possibilidade de operacionalização da política. Parece que o significante discutir refere-se mais à implantação do TDO (discutir a possibilidade de TDO; várias discussões incentivando a implantação do Tratamento Diretamente Observado) do que ao planejamento do momento da transferência da política em si.

A viabilidade da capacitação, enquanto possível elemento do processo de transferência, parece correlacionada diretamente à existência de recursos, o que se agrava diante do fato de a TB ainda figurar como doença negligenciada, sem a qualidade estrutural e organizacional necessária para seu controle e tratamento em muitos serviços de saúde1414 Protti ST, Silva LMC, Palha PF, Villa TCS, Ruffino-Neto A, Nogueira JA, et al. Managing the basic health unit in tuberculosis control: a field of challenges. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(3):665-70. dói: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342010000300016
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. De fato, o desenvolvimento de recursos humanos com vistas ao controle da TB é tão importante que foi tido à custa de plano estratégico entre 2006-2010 para a África, América, Sudeste Asiático e regiões do Pacífico Ocidental1515 Oliveira LGD, Natal S, Chrispim PPM. Directly Observed Treatment: strategy to Tuberculosis control. Rev APS. [Internet]. 2010 [cited Mar 26, 2017]; 13(3):357-64. Available from: https://aps.ufjf.emnuvens.com.br/aps/article/view/612/348
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Em Divinópolis, Minas Gerais, os resultados de um estudo demonstraram que o Programa de Controle da Tuberculose local possui como pontos dificultadores não apenas a fragilidade da atividade de planejamento, a inexistência de um modelo padrão de difusão de informações e dados, mas também a insuficiência de capacitações e profissionais treinados que, por sua vez, demonstraram falta de conhecimento em áreas diversas como vigilância, diagnóstico da TB e a própria realização do TDO1616 Andrade HS, Oliveira VC, Gontijo TL, Pessôa MTC, Guimarães EAA. Evaluation of Tuberculosis Control Program: a case report. Saúde Debate. 2017; 41 (especial):242-58. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042017S18
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. Já em Cabedelo, Paraíba, outros fatores surgiram como barreiras na gestão e desempenho dos serviços da AB no que tange ao tratamento da TB, como a fragmentação da prática profissional, a ausência de sistematização da atenção domiciliar e a focalização da qualificação profissional1717 Silva DM, Nogueira JA, Sá LD, Wysocki AD, Scatena LM, Villa TCS. Perfomance evaluation of Primary Care services for the treatment of Tuberculosis. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(6): 1044-53. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420140000700012
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Em meio às hesitações presentificadas pelos significantes hum e bom, não se pode precisar o que de fato motivou o sujeito. Os problemas e objetivos já não mais dispõem de assentos fixos e o substantivo oportunidade passa a assumir caráter polissêmico: conseguir recursos financeiros, promover a capacitação dos profissionais, melhorar a adesão dos pacientes, implantar o TDO. Nada ou muito pouco sobre o plano de transferir a política em si é observado.

Assim, a notada assistematização do planejamento para a execução da transferência do TDO indica não apenas a fragilidade dessa atividade, mas também a possibilidade de sua inexistência. Não raro são observadas ações planejadas que nem sempre são executadas e exigências rotineiras do “apagar incêndios”, que não apenas desvirtuam e inviabilizam a prática do planejamento, mas, sobretudo, reforçam uma prática gestora pouco reflexiva e fundamentada1818 Silva BFS, Wandekoken KD, Dalbello-Araujo M, Benito GAV. The relevance of planning as management practice in health microregion of São Matheus (ES). Saúde Debate. 2015; 39(104):183-96. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0103-110420151040078
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A importância do planejamento no controle da TB é comprovada cientificamente. No Brasil, o próprio Programa Nacional de Controle da Tuberculose busca aprimorar a qualificação de processos como o de planejamento, monitoramento, avaliação das ações de controle, de prevenção, assistência, diagnóstico, vigilância epidemiológica etc.1616 Andrade HS, Oliveira VC, Gontijo TL, Pessôa MTC, Guimarães EAA. Evaluation of Tuberculosis Control Program: a case report. Saúde Debate. 2017; 41 (especial):242-58. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042017S18
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. Já em experiência realizada na província de Tak, Tailândia, ele, o planejamento, foi apontado como um dos elementos principais para o controle da doença naquele cenário, juntamente com o compartilhamento eficaz de dados e informações, a melhoria no processo de diagnóstico, do cuidado, dentre outros1919 Tschirhart N, Thi SS, Swe LL, Nosten F, Foster AM. Treating de invisible. Gaps and opportunities for enhanced TB control along the Thailand-Myanmar border. BMC Health Serv Res. 2017; 17(29): 2-11. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s12913-016-1954-9
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No que tange ao eixo do antagonismo entre o plano e as exigências cotidianas, outro sujeito responde o seguinte, ao ser questionado sobre a periodicidade de revisão, reavaliação e reformulação do plano da transferência do TDO: olha [risos], infelizmente não tem uma periodicidade fixa como a gente gostaria, ele é visto quando se vê a emergência lotada, os isolamentos lotados, muitos casos de tuberculose, aí o pessoal [...] pra mim é um telefonema assim: ah! tu és muito experiente, tu sabes de todos os fluxos, tu conhece a rede, vem nos ajudar aqui, que nós estamos preocupados com a tuberculose, aí recomeça de novo: aí a gente [...], mas a gente tem um plano pronto, olha aqui, é só aplicar. Ah! Então vamos ver o que fazemos primeiro [risos], e assim vai (Sujeito 2).

A inquietação que irrompe no princípio dessa SD - Olha [risos] - permite entrever as possibilidades de conflito e contradição do sujeito. Quando se considera a sentença olha [risos], infelizmente não tem uma periodicidade fixa como a gente gostaria, notam-se as fronteiras tênues da ambivalência que se instala no plano e na periodicidade da sua avaliação, principalmente.

A tensão, nesse caso, reside na luta semântica entre gostaria e infelizmente, entre o que o sujeito quer e o que se possui, entre o ideal e o real, entre o positivo e o negativo, ou seja, múltiplas entoações numa voz capturada ideologicamente e que se faz individual tanto quanto coletiva, singular tanto quanto plural. Embora o planejamento seja considerado atividade importante, a manutenção do sistema vigente ainda se sobrepõe à escala de valoração dos gestores. Esses, por sua vez, necessitam planejar ações que, de fato, levem em consideração as reais necessidades da população, com propostas de mudanças que consolidem os diversos serviços de saúde ofertados2020 Passos RA, Nunes SS, Silva LF. The plurality of the concept of health: the voice power of Unified Health System (SUS) users in a municipal health conference. Rev Cienc Saúde. 2015; 5(2). doi: http://dx.doi.org/10.21876/rcsfmit.v5i2.332
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A tensão dessa sentença estende-se também ao campo prático operacional do planejamento, em que o infelizmente passa a corporificar a limitação da atividade propriamente dita e, quiçá, até a passividade do sujeito para a reversão do quadro. Sabe-se da importância da avaliação periódica de um plano, que se configura como oportunidade ímpar de qualificação do processo, de direcionamento para a tomada de decisão e de adequação dos meios para o alcance das metas objetivadas. Conforme se observa, ainda existe longa distância entre o querer (a gente gostaria) e o fazer (infelizmente).

Na SD em questão, nota-se novamente que o planejamento de que trata o sujeito parece muito mais direcionado à operacionalização da política de controle da TB do que à transferência da política do TDO em si, com o agravante de ainda assim ser utilizado para fins emergenciais e, quiçá, de improvisação - ele é visto quando se vê a emergência lotada, os isolamentos lotados, muitos casos de tuberculose [...] -, reforçando a ideia de que a ausência de articulação e planejamento nos serviços de saúde pode acarretar um círculo vicioso baseado no atendimento das demandas espontâneas em detrimento das ações programadas2121 Peres AM, Freitas LJ, Calixto RC, Martinez Riera JR, Sanjuan Quiles, A. Conceptions of nurses regarding planning, organization and management of nursing in primary care: integrative review. Rev Enferm Ref. [Internet]. 2013 [cited Set 21, 2016]; Série 3(10):153–60. Available from: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-02832013000200018
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O dizer aí recomeça de novo instala novo conflito semântico no discurso do sujeito, já que não se pode precisar o que é reiniciado, se é a mobilização de um suposto plano para enfrentamento de situações cotidianas de emergência ou a conscientização dos demais atores sobre a existência do plano, ou ambos. A continuidade da ação e o caráter cíclico, sugeridos no discurso do sujeito, levam a pensar sobre o Mito de Sísifo. Segundo a mitologia grega, Sísifo recebeu como castigo de Zeus a incumbência de empurrar uma pesada pedra até o topo de uma montanha, do qual ela sempre retornava, exigindo do mesmo um contínuo recomeço2222 Rocha NMFD, Góis CWL. Trajectories of young people in the world of work from the first insertion: the case of Sisyphus Maracanaú - in Ceará, Brazil. Psicol Soc. 2010; 22 (3):466-75. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822010000300007
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Contudo, ao enunciar mas a gente tem um plano pronto, olha aqui, é só aplicar, percebe-se um ponto importante do discurso: seja qual for o propósito desse plano estatuído, persiste certo desconhecimento de outras pessoas vinculadas diretamente à sua operacionalização. Se a participação de outros atores sociais no planejamento é um dos pontos fortes do PES2323 Matus C. O plano como aposta. São Paulo Perspect. [Internet]. 1991 [Acesso 3 nov 2017]; 5(4):28-42. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v05n04/v05n04_07.pdf
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, parece que, nesse contexto, ela passa a assumir papel secundário. Tal desconhecimento pode ser ratificado pela entoação de surpresa desses outros - Ah! - e pela busca de entendimento e priorização de ações: então vamos ver o que fazemos primeiro.

E se a inquietação introduz essa SD, ela também a finaliza - [risos], e assim vai -, deixando indícios de um ciclo incerto de continuidade e configuração: não se sabe o que se perpetua, se é a falta de periodicidade da avaliação do plano ou o acionamento repetido do sujeito pelos outros atores do processo em busca de ajuda e esclarecimentos; se é a aplicação repetida desse plano, que os demais sujeitos parecem não conhecer, em situações cotidianas e emergenciais, ou ainda todos esses. O que se sabe, porém, é que o potencial de articulação e desenvolvimento do trabalho interdisciplinar em equipe sofre influência direta da existência e da garantia de espaços de discussão, cuja ausência, por sua vez, pode culminar em planejamentos individualizados, em que cada profissional acaba por definir e programar suas ações, com desarticulação do potencial de ação coletiva2424 Bazzo-Romagnolli AP, Gimenez-Carvalho B, Almeida-Nunes EFP. Management of the Basic Health Unit in small municipalities: instruments, facilities and related difficulties. Rev Gerenc Polit Salud. 2014; 13(27):168-80. doi: http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.rgyps13-27.gubs
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Já com relação ao eixo de formulação do planejamento e sua execução, o Sujeito 3, por exemplo, quando interrogado sobre estratégias, recursos financeiros, humanos, físicos e organizacionais utilizados para formular e executar o plano da transferência do TDO, responde da seguinte forma (SD extraída em dois momentos distintos - momento 1 (M1) e momento 2 (M2) - de uma mesma resposta): M1 - Hum, como nós não, não em termos financeiros pra poder executar, nós estamos executando basicamente com custo zero. Tudo que nós estamos, nós conseguimos adquirir foi ampliar a aquisição de vales-transporte até pra transporte dos próprios profissionais para a execução do TDO, ou, eventualmente, de algum paciente à Unidade de Saúde quando isso é necessário, tá [...]. M2 - material, nós estamos utilizando xerox, nós não conseguimos imprimir nenhum material específico para essa capacitação até o momento, então o custo basicamente é de alimentação para a realização da, das capacitações, tá. O planejamento todo feito com base territorial entre a, a Gerência do local e o Centro de Referência do território (Sujeito 3).

Em M1, esse sujeito, assim como os demais, parece abordar elementos voltados para a execução do TDO - aquisição de vales-transporte até pra transporte dos próprios profissionais para a execução do TDO, ou, eventualmente, de algum paciente -, o que pode ser decorrente, dentre outros fatores, do próprio desconhecimento sobre o tema da transferência de políticas públicas. Semelhante resultado foi obtido em experiência realizada em João Pessoa, Paraíba, na qual os gestores demonstraram desconhecimento sobre a referida temática, e ainda num contexto de transferência do TDO, culminando na fragilização importante no tocante ao desenvolvimento de ações de controle da TB99 Oliveira RCC, Adário KDO, Sá LD, Videres ARN, Souza SAF, Pinheiro PGOD. Managers' discourse about information and knowledge related to Directly Observed Treatment of Tuberculosis. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(2):e3210015. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016003210015
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Todavia, em M2 observa-se o redirecionamento do discurso, com incorporação de elementos alusivos ao processo de transferência da política, como, por exemplo, novamente a menção do termo capacitação. Certamente, o profissional de saúde precisa estar capacitado para a abordagem dialogada e para o empoderamento do paciente de TB, disseminando conhecimento e promovendo a conscientização do tratamento da doença. Entretanto, o grau de preparo dos profissionais nesse quesito ainda deixa a desejar, o que por si pode requerer a implementação de uma política de capacitação permanente nos serviços de saúde2525 Cecilio HPM, Marcon SS. Health personnel's views of directly observed treatment of tuberculosis. Rev Enferm UERJ. 2016; 24(1):e8425. doi: http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2016.8425
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) e, consequentemente, qualificação do processo de transferência da política.

Tanto em M1 quanto em M2, também não foram observados indícios que remetessem à formulação do planejamento da transferência do TDO. No momento 1, a própria execução da política parece não ter sido precedida por um planejamento adequado com ênfase na análise de “viabilidade” financeira, fundamental para esse tipo de atividade: nós estamos executando basicamente com custo zero.

No momento 2, não se pode precisar qual planejamento com base territorial foi realizado, ou que está por ser realizado, entre a Gerência do local e o Centro de Referência do território. Semanticamente, porém, observa-se a possibilidade de construção coletiva e de um território vivo, dinâmico, não estático, que ascende à ideia de capacitações, e da própria elaboração de um plano. Não se pode perder de vista, nesse percurso, que o sucesso na implementação de políticas públicas passa, dentre outros fatores, por estruturas institucionais que permitam negociações e debates entre a multiplicidade de atores no que tange ao respectivo processo decisório2626 Loureiro MR, Abrucio FL. Democracia e eficiência: a difícil relação entre política e economia no debate contemporâneo. Rev Econ Polit. 2012; 32(4):615-33. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31572012000400005
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Se o planejamento, por sua vez, é tido como ferramenta indispensável em qualquer nível de operacionalização de ações, propostas, serviços, estratégias e políticas na saúde e em outras áreas, parece que mais uma vez ele foi preterido pelo sujeito do discurso no que se refere à transferência do TDO. O pronome indefinido tudo e o advérbio basicamente, por exemplo, evocam complementos que limitam e atrelam a ação do sujeito à instância da execução da política (aquisição de vales-transporte e alimentação, respectivamente), sem, contudo, deixar pistas do percurso planejado para a sua transferência.

Assim, ao considerar que uma ação estratégica implica o planejamento como forma de construção de viabilidade2727 Rodrigues AL, Sarriera JC. Training of managers in a Community Violence Prevention Program. Fractal. Rev Psicol. 2015; 27(2):145-51. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/829
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, quesito também enfatizado no PES de Matus2323 Matus C. O plano como aposta. São Paulo Perspect. [Internet]. 1991 [Acesso 3 nov 2017]; 5(4):28-42. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v05n04/v05n04_07.pdf
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, conclui-se que a ausência ou incipiência dessa atividade pode acarretar consequências graves ao alcance de metas estabelecidas. Uma parca qualificação na formulação, ou a própria inexistência do planejamento na transferência de uma política, pode resultar em processo assistemático de difusão da proposta que se estende de um nível para outro na gestão, com impacto possivelmente negativo não apenas para os que a operacionalizam, mas, sobretudo, para os que dela necessitam.

Talvez seja essa uma importante lacuna na gestão e organização dos processos vinculados ao TDO e ao controle da TB na capital gaúcha, sejam esses relacionados ao planejamento ou à própria transferência e execução da política, contribuindo decisivamente, dessa forma, para o não alcance de metas e da desejada melhoria nos indicadores de saúde da população.

Conclusão

É notória a premente necessidade dos gestores e coordenadores de se apropriarem melhor tanto do referencial teórico da transferência de políticas públicas quanto dos próprios mecanismos de planejamento, se o objetivo, de fato, é o de qualificar a execução das políticas e programas pelos profissionais de saúde.

Os resultados aqui obtidos viabilizam a discussão sobre a necessidade de reorganização das atividades (planejamento/transferência) vinculadas ao TDO, o que perpassa o entendimento apropriado das diversas etapas e elementos contidos nesses diferentes processos. Isso significa uma mobilização adequada dos atores envolvidos, a melhor compreensão acerca do que fazer no tempo político e no espaço, da viabilidade financeira e operacional da proposta, bem como da importância de se ter padronização e sistematização de ações e instrumentos. O fato é que não basta a existência de políticas públicas teoricamente perfeitas, que se tornam pouco efetivas pela falta de qualificação do processo difusor, práticooperativo e político-organizativo.

Por tratar-se ainda de grave problema de saúde pública, a tuberculose exige um olhar ainda mais cauteloso para o processo de transferência de políticas que visem o seu controle, sendo o planejamento dessa etapa um alicerce operacional fundante. Tal entendimento é inclusivo e deve ser ampliado para outros setores e políticas de saúde nos diversos níveis de governo, o que qualifica a presente experiência como a primeira de muitas outras que possivelmente virão.

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    Artigo extraído da tese de doutorado “O planejamento e a execução da transferência da política do tratamento diretamente observado da tuberculose no município de Porto Alegre - RS”, apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2017
  • Aceito
    02 Abr 2018
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