Da subordinação à complementaridade?^*

Nursing Now, do State of the World’s Nursing 2020 (SWON)⁽¹⁾. Então veio o inesperado, a pandemia da Covid-19. Somente o tempo dirá o impacto desses dois eventos, mas já podemos identificar implicações para a educação e a prática dos enfermeiros, tema desta edição da Revista Latino-Americana de Enfermagem (RLAE). Em 2020, duas séries de eventos destacaram a centralidade do papel dos enfermeiros na prestação de serviços de saúde; uma foi planejada, a outra não. Primeiro, há a designação pela Assembleia Mundial da Saúde de 2020 como o Ano Internacional da Enfermagem e Obstetrícia, publicação da Organização Mundial da Saúde (OMS), com o apoio do Conselho Internacional de Enfermeiros e da campanha

O SOWN é o primeiro retrato global da profissão de enfermagem. Ele documenta e discute a disponibilidade e distribuição de enfermeiros em todo o mundo, seus papéis, suas condições de trabalho e a qualidade de sua educação. Embora a imagem geral da força de trabalho da enfermagem seja positiva, o relatório identifica deficiências que precisam da atenção da profissão e dos responsáveis políticos. Dois exemplos são a diversidade do que é denominado de “enfermeiros” e as variações na densidade de enfermeiros por população. O relatório contou com 144 títulos distintos de enfermeiros em todo o mundo, com diferenças nos requisitos de competências, conteúdos e estratégias educacionais e no escopo da prática. Na região da OMS nas Américas, foram identificados 31 títulos, sem contar assistentes ou auxiliares. Alguns países reconhecem um alto grau de autonomia, incluindo direitos de prescrição para determinadas categorias de enfermeiros, enquanto outros ainda limitam o papel dos enfermeiros à subordinação aos médicos. Um segundo exemplo são as variações extremas na densidade de enfermeiros entre regiões do mundo e entre países de diferentes níveis de desenvolvimento econômico. Entre as seis regiões da OMS, as Américas são a região com maior densidade (83,4/10.000), superior à Europa (79,3). Contudo, este valor oculta grandes diferenças entre os países, que vão desde 106 e 111/10.000 no Canadá e nos Estados Unidos da América (EUA), respectivamente, para menos de 4/10.000 no Haiti, Honduras e República Dominicana⁽²⁾.

Com relação à crise da saúde, ela revelou a falta de preparação de países, mesmo aqueles com recursos abundantes, como o Canadá, os EUA e vários países europeus, e a falta de solidariedade entre países e, às vezes, dentro do mesmo país. As advertências e orientações das autoridades internacionais de saúde, nomeadamente a OMS e as nacionais de saúde pública, nem sempre foram aceitas oportunamente pelos responsáveis políticos e foram ignoradas por alguns que negaram a importância da epidemia. Como fator positivo, a crise mostrou a dedicação dos profissionais de saúde em geral e principalmente dos enfermeiros que estão na linha de frente da resposta à epidemia, muitas vezes às custas de sua própria saúde e segurança. Destacou as competências e o papel indispensável dos enfermeiros, não apenas na terapia intensiva, que rapidamente se tornou evidente, mas em todos os níveis da prestação de serviços. Ao mesmo tempo, a crise revelou quão exigente é o trabalho dos enfermeiros e quão difíceis são suas condições de trabalho.

Esses dois eventos mostram que, embora a enfermagem tenha feito um grande progresso no passado recente, ainda existem grandes desafios para garantir que os enfermeiros contribuam plenamente para alcançar a cobertura universal de saúde. Na maioria dos países do mundo, o principal desafio é aumentar a força de trabalho de enfermagem a um nível que torne os serviços de saúde acessíveis a todos. Isso requer pelo menos três mudanças no sistema da educação: aumentar a capacidade de admissão em instituições de ensino, atrair mais jovens para a enfermagem e harmonizar programas de educação e mecanismos de garantia da qualidade. Em relação à prática, os desafios incluem proporcionar aos enfermeiros um ambiente de trabalho seguro, de apoio e motivador e desenvolver ou fortalecer o monitoramento e a promoção da qualidade do trabalho.

Para responder a esses desafios, são necessárias políticas efetivas da força de trabalho em saúde com foco na educação. Na enfermagem, isso significa investir na capacidade das instituições de ensino e no recrutamento de mais educadores; também em medidas para atrair candidatos mais adequados, incluindo homens, para estudos de enfermagem e para evitar abandonos durante os estudos, para que a maioria dos estudantes admitidos realmente se forme. No entanto, mais não significa mais do mesmo: os enfermeiros devem estar instrumentalizados de competências certas, alinhadas às necessidades dos serviços de saúde e às da população^(3-4) inclusive em áreas que tendem a ser menos valorizados, como saúde mental, geriatria ou atenção primária. Todos os enfermeiros devem ter a oportunidade de adaptar e melhorar suas competências ao longo de toda sua carreira. A harmonização de programas e de sua qualidade pode ser realizada por meio do credenciamento, por órgãos independentes, de escolas, públicas ou privadas, e de programas de educação básica, treinamento clínico e de formação contínua⁽⁵⁾. Isso facilitaria a harmonização de títulos, inclusive de especialidades, embora, no contexto de um mercado de trabalho em saúde globalizado, os países devam oferecer condições de emprego e trabalho que incentivem a retenção e limitem a emigração dos enfermeiros que treinam.

A ampliação do status dos enfermeiros permitirá que eles contribuam mais plenamente para a disponibilidade e a qualidade dos serviços de saúde, em papéis complementares aos de outros profissionais de saúde. Isso é desafiador em um ambiente no qual vários atores com interesses e objetivos concorrentes interagem. Escolas particulares com fins lucrativos podem resistir à regulamentação ou organizações médicas podem se opor à expansão do papel dos enfermeiros. O apoio e as recomendações de agências internacionais como a OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e de associações profissionais internacionais e regionais podem ajudar a mobilizar o apoio político necessário para que as mudanças aconteçam. A pesquisa também é importante para informar decisões políticas e, nesse sentido, as escolas e faculdades de enfermagem desempenham um papel crítico na produção de evidências que podem convencer os responsáveis políticos a investir no ensino da enfermagem e no desenvolvimento da profissão.

Este número temático da RLAE é, portanto, mais do que oportuno, pois estimula a divulgação de resultados de pesquisas e de ações inovadoras dentro da profissão. Mostrará que a enfermagem pode passar de papéis de subordinação para papéis de complementaridade e fazer a diferença para o benefício de todos. O próximo passo é traduzir essa mensagem para a linguagem dos responsáveis políticos e da população, que será o beneficiário final de uma força de trabalho de enfermagem mais forte e com melhor desempenho.

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  A publicação deste artigo na Série Temática “ Recursos Humanos em Saúde e Enfermagem" se insere na atividade 2.2 do Termo de Referência 2 do Plano de Trabalho do Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil.

References

• ¹
  World Health Organization. State of the World's Nursing 2020: investing in education, jobs and leadership [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2020. [cited Apr 28 2020]. Available from: https://www.who.int/publications-detail/nursing-report-2020
  » https://www.who.int/publications-detail/nursing-report-2020
• ²
  Cassiani SHB, Hoyos MC, Barreto MFC, Sives K, da Silva FAM. Distribución de la fuerza de trabajo en enfermería en la Región de las Américas. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e72. https://doi. org/10.26633/RPSP.2018.72
  » https://doi. org/10.26633/RPSP.2018.72
• ³
  Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010 Dec 4;376(9756):1923-58. doi: 10.1016/S0140-6736(10)61854-5.
  » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(10)61854-5
• ⁴
  Cassiani SHDB, Wilson LL, Mikael SSE, Morán-Peña L, Zarate-Grajales R, McCreary LL, et al. The situation of nursing education in Latin America and the Caribbean towards universal health. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2017;25:e2913. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2232.2913
  » https://doi.org/10.1590/1518-8345.2232.2913
• ⁵
  World Health Organization. Global Strategy on HRH: Workforce 2030 [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2016. [cited Apr 28 2020]. Available from: https://www.who.int/hrh/resources/globstrathrh-2030/en/
  » https://www.who.int/hrh/resources/globstrathrh-2030/en/

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  12 Ago 2020
• Data do Fascículo
  2020