O Estado da Enfermagem Obstétrica no Brasil

No âmbito das comemorações pelo Ano Internacional da Enfermagem e Obstetrícia (2020) foram organizados dois relatórios com contribuições de representantes dos países membros da Organização Mundial da Saúde (OMS): “Estado da Enfermagem no Mundo 2020” (SoWNy 2020)(¹) e o “Estado da Obstetrícia no Mundo 2021” (SoWMy 2021)(²). O relatório SoWMy, conduzido pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), juntamente com a OMS e Confederação Internacional das Parteiras (ICM), foi lançado no contexto da designação de 2021 como Ano Internacional dos Trabalhadores da Saúde e Cuidadores, pela 73ª Assembleia Mundial da Saúde.

O relatório SoWMy 2021 documenta a força de trabalho na prestação de cuidados de Saúde Sexual, Reprodutiva, Materna, Neonatal e Adolescente (SSRMNA), incluindo o estado da enfermagem obstétrica e obstetrizes utilizando dados coletados por meio da ferramenta Contas Nacionais da Força de Trabalho em Saúde, desenvolvida pela OMS, e questionário, desenvolvido pela ICM, UNFPA e Direct Relief, aplicado em mais de 140 associações membros. Nessa perspectiva, busca contribuir para mitigar o desafio enfrentado para o planejamento da força de trabalho em saúde e avaliação da capacidade de atingir as necessidades de cuidados e serviços de saúde da população, dificultados pela deficiência dos sistemas de informação sobre recursos humanos(²). O relatório descreve a importante atuação das e dos profissionais na área de cuidados SSRMNA, visando a melhoria dos indicadores de saúde e desenvolvimento como, por exemplo, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Em continuação ao trabalho colaborativo para o estabelecimento do perfil da enfermagem no Brasil no relatório SoWNy 2020(³), a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (ABENFO), Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Centro Colaborador da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS) para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Grupo de Trabalho da Campanha Nursing Now no Brasil, UNFPA e OPAS/OMS representação Brasil (OPAS/OMS/BRA), assumiram o compromisso de contribuir para o relatório SoWMy 2021 e para a elaboração do infográfico “Fotografia da Enfermagem Obstétrica no Brasil”(⁴).

O relatório SoWMy 2021 agrupou os trabalhadores considerados como força de trabalho ampliada em SSRMNA em três subgrupos: (a) força de trabalho ampliada em obstetrícia, que inclui as obstetrizes de nível superior ou médio, obstetrizes que não foram classificadas na categoria anterior e profissionais de enfermagem com formação em obstetrícia (nível superior e médio/técnico); (b) trabalhadores de enfermagem, excluindo aqueles com formação em obstetrícia; e (c) médicos que atuam no cuidado SSRMNA, incluindo médicos generalistas (exemplo médico de família), obstetras/ginecologistas e pediatras. Também foram incluídas informações sobre outros profissionais como os agentes comunitários de saúde que desempenham um papel importante em SSRMNA.

O relatório SoWMy analisou a força de trabalho em 194 países e identificou que, apesar de as obstetrizes poderem prover 90% dos cuidados essenciais de SSRMNA, representam menos de 10% da força de trabalho. Também destaca a escassez dessas e desses profissionais, uma vez que são necessários 1.1 milhões de trabalhadores (utilizando equivalência em tempo de dedicação na área de SSRMNA), sendo destes quase um milhão de obstetrizes, principalmente em países de baixa renda(²). A presença das obstetrizes na prestação dos cuidados evitaria 67% das mortes maternas, 64% de mortes de recém-nascidos e 65% dos casos de bebês natimortos, salvando uma estimativa de 4,3 milhões de vidas por ano(²).

Enfermeiras(os) obstétricas(os) não estão apenas presentes nos partos, pois fornecem cuidados no pré e pós-natal, bem como uma variedade de serviços de saúde sexual e reprodutiva, como planejamento familiar, detecção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis e serviços de saúde sexual e reprodutiva para adolescentes. O grupo de profissionais classificados como força de trabalho ampliada em obstetrícia totaliza 1.9 milhões de profissionais, sendo na região das Américas 160 mil; globalmente, apresenta uma densidade média de 4,4 por 10.000 habitantes, sendo a maior densidade presente no Sudeste Asiático (10,4 por 10.000 habitantes)(²). Na Região das Américas, a densidade é de 1,9 por 10.000 habitantes (excluindo os Estados Unidos da América, essa densidade passa a ser 2,9), destacando que Cuba apresenta a maior densidade mundial, com 46,89. A escassez mais preocupante está na Região da África (56% da escassez total), seguida das Regiões do Mediterrâneo Oriental e Américas(²). Nos países de baixa e média renda, esses profissionais colaboram para o alcance de reduções significativas na mortalidade materna e neonatal, bem como na natimortalidade, porém é preciso que sejam treinados adequadamente para realizar essas atividades(⁵).

De acordo com dados coletados em 80 países, a formação em obstetrícia está caracterizada por programas assim distribuídos: 33 (41%) países oferecem apenas programas de entrada direta (graduação em obstetrícia), 17 (21%) oferecem apenas pós-graduação em enfermagem (enfermeira obstétrica), cinco (6%) oferecem programas de graduação em enfermagem e obstetrícia combinados e 25 (31%) oferecem entrada direta e outro tipo de programa de formação(²).

No Brasil, como todos os profissionais de enfermagem podem prestar cuidados na área de SSRMNA, desde que registrados no Conselho de Enfermagem para o exercício da profissão e com base na contextualização indicada acima sobre a formação de obstetriz, a “força de trabalho ampliada em obstetrícia” neste editorial é considerada como “força de trabalho em enfermagem obstétrica”, composta por enfermeiros, de forma geral, e aqueles com formação em obstetrícia, e auxiliares e técnicos de enfermagem (profissionais de nível médio). Nesse contexto, ressalta-se que, para além dos programas de educação - especialização em Enfermagem Obstétrica ou residência em Enfermagem Obstétrica, a ABENFO também pode certificar e titular como especialista, com base em prova de título, comprovação de atividades assistenciais, entre outros critérios. Dados indicam um total de 1.561.940 profissionais (número de profissionais com registro ativo até maio de 2020), sendo 405.961 enfermeiros com uma densidade de 19,32 por 10 mil habitantes^* (considerando enfermeiros generalistas e todas as especializações); 2.049^** enfermeiras obstétricas, com densidade de 0,10; e 1.155.979 técnicos e auxiliares de enfermagem, com densidade de 55,00(²). Estima-se que a população brasileira deve crescer 12%, totalizando 222,7 milhões até 2030. Assim, os serviços de obstetrícia devem atender 4,5 milhões de gestações por ano até 2030, para garantir o acesso universal aos cuidados de SSRMNA(⁶).

Com 99,10 % dos partos assistidos por profissionais de saúde qualificados e 91% de cobertura do atendimento pré-natal (mínimo quatro visitas), o Brasil apresenta melhorias nos indicadores sobre o resultado dos cuidados oferecidos na área e impactos gerados na saúde das mães e recém-nascidos. Como exemplos, a taxa de mortalidade neonatal de 17,98 em 2000 reduziu para 8 (mortes no prazo de 28 dias por 1.000 nascidos vivos), em 2020. Contudo, ainda persistem desafios como a mortalidade materna e a alta taxa de cesariana de 56%, especialmente considerando-se a média global de 21%(²) (a recomendação da OMS de que até 15% dos partos sejam por cesáreas).

A pandemia de COVID-19 trouxe à tona desafios a serem superados pelos sistemas de saúde, como interrupções nos serviços de SSRMNA(⁷), disponibilidade da força de trabalho e sua atuação de forma mais eficaz, especificamente para a força de trabalho em obstetrícia, que, conforme identificado no relatório SoWMy, é escassa mundialmente. Nessa perspectiva, é preciso reforçar ações para fortalecê-la, considerando as consequências do impacto da pandemia nesta força de trabalho, composta maioritariamente por mulheres (88 % da força de trabalho de enfermagem no Brasil). Estas e estes profissionais estão sofrendo de forma intensa as consequências, especialmente em termos de segurança no emprego, aumento das responsabilidades relacionadas ao cuidado e educação remota, assim como o aumento da incidência de violência de gênero(²). As demandas de assistência e qualidade dos serviços de SSRMNA, como área prioritária na saúde pública global, geram importantes desafios ao desenvolvimento complementar das diferentes profissões associadas a este processo nos campos da formação, regulação e empoderamento da prática profissional, tudo isso respondendo às particularidades de cada país.

Para estes profissionais atingirem seu potencial, são necessários investimentos em educação; planejamento da força de trabalho em saúde, gestão e regulação, com sistemas de informação que incorporem dados sobre estes profissionais; e suas condições de trabalho; pesquisa científica, produção de conhecimentos e inovação na prática; e liderança e governança(²), destacando a participação destes profissionais na construção de políticas de saúde e aprimoramento do desenvolvimento de seu potencial de liderança no enfrentamento do desafio da ampliação do acesso a cuidados seguros, de qualidade e resolutivos para as mulheres. O investimento resultará na melhoria da disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade da força de trabalho, refletindo-se em impactos positivos para a saúde das pessoas, e igualdade de gênero, podendo gerar um aumento de oferta de trabalho, e um impacto macroeconômico positivo para o país(²).

Particularmente para o Brasil, a análise dos dados destacou elementos para impulsionar a discussão no campo e auxiliar o delineamento e implementação de políticas públicas. Espera-se que essas informações possam ser utilizadas também para a projeção e sustentabilidade das agendas, permitindo a expansão do acesso e cobertura dos serviços, assim como o fortalecimento do Sistema Único de Saúde em direção à Saúde Universal.

• *
  População Brasileira em 2019 de 210.147.125. Fonte: IBGE- Estimativas de população (Estimativa para o TCU, disponível por meio do DATASUS/Tabnet).
• **
  Este número refere-se aos profissionais de enfermagem registrados no Conselho de Enfermagem com especialização em obstetrícia (utilizado o radical da palavra para a identificação dos profissionais na base).

Agradecimentos

Os autores agradecem pela participação no grupo de trabalho do estado da enfermagem no Brasil e pelas contribuições para o relatório do Estado da Obstetrícia no Mundo 2021 e Fotografia da Enfermagem Obstétrica no Brasil a Arthur de Oliveira e Oliveira, Danielle Bessler, Danielly Batista Xavier, Elisabete Pimenta Araújo Paz, Fernando Antônio Gomes Leles, Gerson Luiz Marinho, Gustavo Hoff, Jorge Ramalho, Marcelo Felipe Moreira Persegona, Marcelo Marques de Lima, Maria Alice Fortunato, Mônica Iassanã dos Reis e Valdecyr Herdy Alves.

References

• ¹
  World Health Organization. State of the world’s nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2021 Sep 9]. 16 p. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/331677
  » https://apps.who.int/iris/handle/10665/331677
• ²
  United Nations Population Fund; International Confederation of Midwives; World Health Organization. The state of the world´s midwifery [Internet]. New York, NY: UNPF; 2021 [cited 2021 Sep 9]. 80 p. Available from: https://www.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/21-038-UNFPA-SoWMy2021-Report-ENv4302_0.pdf
  » https://www.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/21-038-UNFPA-SoWMy2021-Report-ENv4302_0.pdf
• ³
  Oliveira APC, Ventura CAA, Silva FV, Angotti H Neto, Mendes IAC, Souza KV, et al. State of Nursing in Brazil. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2020;28:0-3. doi: http://doi.org/10.1590/1518-8345.0000.3404
  » http://doi.org/10.1590/1518-8345.0000.3404
• ⁴
  Organização Pan-Americana de Saúde; Associação Brasileira de Enfermagem; Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras; Conselho Federal de Enfermagem (BR); Ministério da Educação (BR); Ministério da Saúde (BR), et al. Fotografia da Enfermagem no Brasil. [Internet]. Brasília: OPAS; 2020. Available from: https://www.observatoriorh.org/sites/default/files/webfiles/images/2020/infografia_enfermagem.png
  » https://www.observatoriorh.org/sites/default/files/webfiles/images/2020/infografia_enfermagem.png
• ⁵
  Nove A, Friberg IK, de Bernis L, McConville F, Moran AC, Najjemba M, et al. Potential impact of midwives in preventing and reducing maternal and neonatal mortality and stillbirths: a Lives Saved Tool modelling study. Lancet Glob Heal. 2021 Jan;9(1):e24-32. doi: http://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30397-1
  » http://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30397-1
• ⁶
  United Nations Population Fund. The State of the World’s Midwifery 2014 - A Universal pathway. A Woman´s right to health. [Internet]. New York, NY: UNFPA; 2014 [cited 2021 Sep 9]. 237 p. Available from: https://www.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/EN_SoWMy2014_complete.pdf
  » https://www.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/EN_SoWMy2014_complete.pdf
• ⁷
  World Health Organization. Second round of the national pulse survey on continuity of essential health services during the COVID-19 pandemic: January-March 2021. [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2021. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-EHS-continuity-survey-2021.1
  » https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-EHS-continuity-survey-2021.1

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  19 Nov 2021
• Data do Fascículo
  2021