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Cólera no Brasil

EDITORIAIS

Cólera no Brasil* * Documento elaborado pelo grupo de trabalho designado pela Diretora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em 13 de abril de 1993, com a seguinte composição: Lygia Busch Iversson, José da Rocha Carvalheiro, Eliseu Alves Waldman, Beatriz A. Perrenoud, José Araújo de Oliveira Santos, Glavur Rogério Matté e Álvaro Escrivão Júnior.

A Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e a Associação Paulista de Saúde Pública, tendo em vista a situação atual da cólera no país, julgaram oportuno manifestar-se no que se refere às seguintes questões:

I - O que foi feito para evitar a ocorrência de uma epidemia de cólera no país desde que se caracterizou, em 1961, o início da pandemia dessa doença causada pela cepa El Tor.

Desde os estudos pioneiros sobre a epidemiología de cólera, há mais de um século, que se associa a sua propagação à falta de saneamento básico, que costuma atingir os extratos pobres da população.

Analisando-se a pobreza urbana em 1986 nas 9 regiões metropolitanas no Brasil (1), observaram-se valores sempre superiores a 10% de famílias vivendo abaixo da linha de pobreza, entre 10,5% (Curitiba-PR) e 45,9% (Belém, PA)(1). Assinala-se um quadro desolador para o saneamento básico: a parcela da população pobre vivendo em domicílios com abastecimento inadequado de água atinge de 12,0% (São Paulo, SP) a 69,8% (Fortaleza, CE). Ainda mais dramático é o quadro que se refere à parcela da população pobre vivendo em domicílios com rede de esgotos inadequada: 35,6% (São Paulo/SP) a 90,7% (Recife/PE).

A partir de 1970, a política de saneamento foi orientada no sentido do Plano Nacional de Saneamento - PLANASA, excessivamente centralizado na esfera federal(2). Entre 1970 e 1984, o PLANASA conseguiu ampliar de 54,4% para 76,0% o percentual de domicílios urbanos com abastecimento de água. Tal ampliação, todavia, foi extremamente desigual: a Região Sudeste, com 44% da população total, recebeu 62,3% dos investimentos, enquanto ao Nordeste, que abrigava 29,0% da população total, destinaram-se apenas 21,3% dos recursos (2). O PLANASA marginalizou quase 1200 municípios, os quais tiveram impedido seu acesso ao financiamento, o que determinou rápidas obsolescência e deterioração dos sistemas sanitários por eles operados. As pequenas comunidades urbanas e rurais não foram sequer cogitadas pelo PLANASA.

Frustaram-se, assim, ações de prevenção primária (promoção de saúde e proteção específica) representadas pelo saneamento do meio.

Apesar de ter sido verificada no país a presença de V. cholerae pelo isolamento em Santos, SP (1978 e 1983) e em São Sebastião, SP (1980) de cepas desse agente em amostras de esgotos e terem sido tomadas algumas medidas profiláticas, não se conseguiu despertar na população a consciência sanitária no que se refere ao direito ao saneamento básico e a condições mínimas de habitação salubre e aos riscos ligados a transmissão da doença.

Restaria dar atenção ao nível secundário de prevenção, providenciando uma rede pública ágil, capaz de detectar rapidamente o surgimento de casos autóctones, tratando-os oportunamente. A deterioração da rede pública de atendimento constitui uma grave ameaça ao sucesso dessa medida que restou como prioridade forçada.

II - Informação à população relativa a doença, considerando que desde abril de 1991 vêm ocorrendo no país casos autóctones.

É inadiável que se informe a sociedade sobre as ações desenvolvidas pelos três níveis de governo, com os objetivos tanto de evitar a difusão da infecção pelo Vibrio Cholerae quanto de prevenir óbitos. Sabe-se que o primeiro objetivo está relacionado à existência de extenso e adequado saneamento básico (particularmente o isolamento dos dejetos humanos e o acesso à água potável e ao alimento sanitariamente controlado) e de eficazes e efetivas ações de educação sanitária das populações envolvidas, enquanto que o segundo condiciona-se a existência e modo de organização da assistência médica.

A tais informações vinculam-se outras, complementares, que busquem esclarecer os segmentos mais protegidos da sociedade sobre como não se expor desnecessariamente e capacitar os desprotegidos a avaliar sua exposição à doença e a viabilidade de contornar esta situação dentro da sua condição de vida, através de ações comunitárias e/ou individuais.

Quando do início da transmissão autóctone, cabe também às autoridades de saúde pública de nível local e regional identificar especificamente em cada local as prováveis fontes de infecção e modos de transmissão da cólera e preconizar as ações de controle que possam interromper a cadeia do processo infeccioso nesta específica estrutura epidemiológica, informando amplamente a população. A cólera, como as demais doenças de transmissão fecal-oral, é desigualmente distribuída na sociedade e é isto que justifica que as orientações de controle devam ser, também, desigualmente desenvolvidas, priorizando os grupos populacionais de maior risco. Hábitos culturais e áreas de migração não devem ser desprezados. É indiscutível também que não há medida educativa que possa ser adotada por pessoas vivendo em grau extremo de miséria. Esta realidade, em que as ações de controle da coléra escapam à responsabilidade do setor saúde, aponta decisões político-econômicas urgentes e prioritárias para integrar esse componente populacional, apreciável em nosso país, a uma condição de vida que pressuponha acesso a alimento, moradia e educação/assistência à saúde.

III - Perspectivas relativas à permanência da doença no país

O comportamento da cepa El Tor, responsável pela 7ª pandemia é diferente do da cepa clássica. Ao término das pandemias anteriores a cepa clássica voltava a circunscrever sua circulação às regiões endêmicas da doença, na índia e Paquistão. A cepa El Tor tende a se disseminar e se fixar nas novas regiões atingidas. Convém, portanto, que se esteja preparado para aceitar a hipótese de que a cólera veio para ficar, e redobrar os esforços para evitá-la e combatê-la.

A inexistência de vacina eficaz para seu controle nos deixa, como única alteranativa para manter em níveis toleráveis a nova endemia, a implementação de políticas públicas integradas visando, a médio e longo prazos, a elevação do nível de educação da população, a melhor distribuição de renda, a universalização do saneamento básico e o fortalecimento do Sistema Nacional de Saúde que deverá ter condições efetivas de oferecer assistência-integral à saúde do povo brasileiro. Para esse último objetivo é fundamental o fortalecimento de programas de formação de sanitaristas e o apoio governamental ao desempenho das atividades que lhes são inerentes nos Serviços de Saúde.

  • 1. Rocha, S. e Villela, R. Caracterização da sub-população pobre metropolitana nos anos 80. Rev. bras, econom., 44(1):35-52, 1990.
  • 2. Costa, N.R. Política pública, ambiente e qualidade de vida: revisitando o PLANASA. Rev. adm. púbL, 25(2):31-39, 1991.
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    Documento elaborado pelo grupo de trabalho designado pela Diretora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em 13 de abril de 1993, com a seguinte composição: Lygia Busch Iversson, José da Rocha Carvalheiro, Eliseu Alves Waldman, Beatriz A. Perrenoud, José Araújo de Oliveira Santos, Glavur Rogério Matté e Álvaro Escrivão Júnior.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      1993
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