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O município e a saúde

RESENHAS

O município e a saúde, por Heimann, L.S.; Carvalheiro, J.R.; Donato, A.; Ibanhes, L.C.; Lobo, E.F.; Pessoto, U.C. - Editora HUCITEC, São Paulo, 1992.

A publicação de "O Município e a Saúde" reforça-nos a percepção de que uma nova linha temática vem se constituindo no interior da recente, e intensa, produção intelectual em Saúde Coletiva. Vinda de autores inseridos em distintas instituições de produção de conhecimento, aderida a diversas modalidades de desenho investigatório e múltiplas variantes interpretativas - postas, assim, em franco diálogo - esta nova natureza de reflexão mostra-nos os sinais indubitáveis de sua conformação.

Tal linha encontra sua síntese em uma questão colocada já às primeiras páginas deste livro: diante da trajetória identificada por seus autores na Política Pública (das AIS ao SUDS, desembocando na Municipalização) à medida que esta política busca realizar a Reforma Sanitária, surpreende-nos a singela indagação:"... e a Epidemiología, o que tem a ver com isso?"

Não se engane, porém, o leitor. A modéstia da dúvida não representa simplificação de resposta, muito menos simplicidade da pergunta! Aliás, este agradável texto está repleto dessas "armadilhas". Sua marcação "teatral" (com "prólogo, dramaturgia - dramas e comédias, com três atos e um entreato - epílogo") ou o descontraído modo de nomear suas partes ("A Câmara dos vereadores: espelho, município meu, existe alguém no mundo mais parecido contigo do que eu?"; "os Municípios Médios: hoje não haverá ensaio: toca em frente que a apresentação vai ser ao vivo, mesmo!") demarcam caminhos reflexivos cuja relevância não se deixa surpreender numa leitura desatenta.

A leveza da linguagem deste trabalho, que nos remete à rica simbologia dos bons textos literários, esconde grandes pretensões. Pretensões que localizamos justamente naquela indagação-trilha, que tomamos do texto pela voz de seus autores, nosso "coro", arautos do "drama".

Sua origem deriva de profundos questionamentos no plano epistemológico, tornados ainda mais complexos quando examinados no plano das práticas e da reorganização dos serviços. Daí a legitimidade das perguntas que o "coro" porta: é possível investigar os serviços? De quais referenciais dispomos, de quais carecemos? A que campo-síntese do conhecimento pertencerá um objeto a eles referido?

A resposta ensaiada nos coloca, sem dúvida, frente a frente com a questão da interação entre política e técnica, no caso, com as possibilidades de intercomunicação da política pública com a tecnologia de reorganização dos serviços, a propósito da municipalização. Ou seja, examina-se a municipalização enquanto estratégia política daquela reorganização.

Essa estratégia, segundo os autores, ao pretender aderir à Reforma Sanitária em seus postulados substantivos, requer, como contrapartida da descentralização decisoria, urna reorientação das ações constituidoras dos serviços, com o que "...a municipalização deixará de ser tática convenial, de repasse de recursos...", para significar algo no plano técnico, isto é, a assunção de necessidades que, em nova espacialização (o município), podem ser, então, detectadas. Requer, portanto, a requalificação da tradicionalmente reduzida tradução dessas necessidades: "Até o final da década de 70, era responsabilidade do município atender às "urgências clínicas". Os municípios respondiam distribuindo medicamentos, oferecendo serviço de transporte (...) dando passagens ou dinheiro (...) Do início da década de 80 em diante, na perspectiva da consolidação das AIS, passando pela municipalização, (....) respondiam construindo Postos de Saúde e/ou ampliando os já existentes Postos de Atendimento Médico".

O leitor encontrará nas páginas deste livro um rico material empírico, coletado sobre os diferentes processos de municipalização, e uma não menos rica exploração metodológica de sua investigação. Combinando o estudo do poder local com o estudo da estruturação assistencial, o texto nos faz circular pelo dia a dia do exercício decisorio, nas CIMS (Comissões interinstitucionais municipais de saúde) e outros organismos gerenciais, pelas concepções que trazem seus agentes-sujeitos e lhes informam a decisão, tanto quanto pelas tentativas municipais de consolidar sistemas de interação interinstitucional, de inovar a dimensão gerencial ou de articular práticas no interior dos serviços.

Tudo isto nos é relatado com a sensibilidade muito própria de pesquisadores que se valem do estudo qualitativo, modalidade de pesquisa científica que quase sempre nos suscita a necessidade de uma dupla socialização: o relato não só dos "resultados", dados objetivos que pouco traduzem de sua fecundidade investigatória, mas também do depoimento sobre sua vivida experimentação. E assim o fazem estes autores, expondo-se/expondo-nos o instigante e pedagógico cotidiano da pesquisa.

Cabe apontar, por fim, um outro tipo de riqueza do texto, cuja natureza metodológica a revela como o cerne d'"o que a Epidemiología tem a ver com isso?". Tomando da Epidemiología menos a sua dimensão de ciência, abstração teórica do real, e mais sua dimensão de conhecimento operante da ação transformadora deste mesmo real, os autores buscam, também aí, a interação política-técnica. Desse modo veremos articular-se à municipalização (e municipalização como o esquadrinhamento político-administrativo de um espaço humanamente geográfico), uma tentativa de tradução dessas repartições para o plano das práticas e do trabalho em saúde. Lançam mão, então, do conceito de território, tal como definido por Carvalho, C.A.J, e inspirado em H.Lefèvre (La Production d'Espace). Com o apoio dos postulados epidemiológicos, enquanto instrumental que permitiria esta apreensão do humano-geográfico, o território pode vir a ser, tanto para a pesquisa quanto para os serviços, uma produtiva espacialização social do município, espaciaiização ético-política de seus sujeitos e simultaneamente espaciaiização tecnológica de suas ações em saúde. Caminho lançado, resta-nos enquanto campo de saber, a Saúde Coletiva, participar de seu desenvolvimento.

Lilia Blima Schraiber

Professora do Depto. de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP . Abril 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    1993
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