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Avanços e desafios do SUS: o papel do município e da academia

Developments and challenges of SUS: the role of municipality and academia

APRESENTAÇÃO DAS MESAS REDONDAS

Avanços e desafios do SUS: o papel do município e da academia* * Apresentado na Mesa Redonda Gestão da Saúde para a Eqüidade, em 02/10/01, VII Congresso Paulista de Saúde Pública.

Developments and challenges of SUS: the role of municipality and academia

José Enio Sevilha Duarte

Secretário Municipal de Saúde de Marília e Presidente do Conselho de Secretários de Saúde do Estado de São Paulo (COSEMS)

RESUMO

Ressalta-se que do ponto de vista de concepção, conseguimos um sistema de saúde bastante avançado, contrapondo-se inclusive ao modelo hegemônico colocado para a área econômica, um modelo público, e que está se impondo a cada dia. Diz que apesar de todas as dificuldades, este modelo se consolidou do ponto de vista legal, através da Constituição, das Leis Orgânicas, das NOBs, etc. e que se está procurando tornar realidade os princípios e diretrizes de universalidade, eqüidade, integralidade e de participação da comunidade. O expositor afirma que isso é um norte importante para quem está nos Serviços. Chama atenção para os desafios do financiamento e para o horizonte que se apresenta com a edição da NOAS/2001 e com o Programa de Saúde da Família.

Palavras-Chave: SUS, descentralização, financiamento, NOAS, Programa de Saúde da Família

ABSTRACT

From a conceptual standpoint it is worthwhile to mention that we have a quite advanced healthcare system, which also opposes to the hegemonic model established by the economic thought. It is a public model and increasingly imposes itself. Despite all difficulties, this model has been consolidated in legal terms, through the Constitution, Organic Laws, Basic Operational Standards (NOBs), etc., and is trying to make the principles and guidelines concerning universality, equity, integrality and community participation actual. The author states it is an important reference for those who work in healthcare delivery. He draws attention to financing challenges and to the horizon presented by the Healthcare Operational Standard (NOAS) (edition 2001) and the Family Health Program.

Keywords: SUS, decentralization, financing, NOAS, Family Health Program

INTRODUÇÃO

Gostaria de agradecer o convite feito pelo Paulo Capucci e Marco Akerman para o COSEMS participar desse importante evento. Pelas pessoas que eu já encontrei aqui, vejo que temos gestores, pessoal das universidades, trabalhadores de saúde, técnicos, usuários do sistema de saúde. Então, acho que não é apenas um evento de gestores ou um evento da academia, fato que considero muito importante.

Gostaria ainda de fazer uma ressalva inicial, dizendo que eu não sou professor, que eu sou gestor de saúde. Há muito tempo saí da Academia e fiquei somente na área de serviço. Mas acho muito importante a Academia, e que tem um papel importante no nosso sistema de saúde. Inclusive, ontem, li um trecho do trabalho da Amélia COHN e aí fiquei preocupado com o que a gente está fazendo como gestor, fico preocupado com a nossa prática. Então acho realmente muito importante o papel da Academia, ao analisar o que a gente está fazendo, de acompanhar e criticar, porque às vezes a gente está achando que está fazendo bastante e tomamos consciência que estamos ainda muito longe do necessário a ser feito.

Vou contar um episódio da minha fase ainda acadêmica, que me levou de certa forma a deixar a Academia. Não foi, claro, só esse fator. Houve o seguinte: eu peguei uma fase muito complicada, na década de 70, no começo dos anos 70, na época do AI-5. O sistema de saúde era totalmente hospitalocêntrico e curativo. Não existiam muito outros tipos de serviços. O INAMPS era hegemônico no processo, e nós estávamos na Academia, tentando mudar um pouco isso, mas estávamos muito ainda longe da realidade. E o quê que aconteceu naquela época?

A Academia começou a fazer grandes elucubrações; eu me lembro das discussões sobre "epistemologia e tal", que você demorava para entender. Uma das coisas que se criticava muito na época, aqui no Brasil, era o modelo de Leavell e Clark, nem se podia muito falar. Mas eu aprendi esse modelo quando fazia a faculdade, e achava o tal modelo um negócio interessante. Ficava entusiasmado. Então, fui abominado. Na década de 70, se você falasse em Leavell e Clark você era abominado.

Aí eu peguei um livro cubano, em 72. O pessoal que foi clandestino para Cuba via Alemanha Oriental, Leste europeu e tal, quando voltou clandestino, trouxe um livro de administração sanitária cubana. Eu peguei o livro, que passavam pra gente escondido, porque era proibido, e aí eu fui ler o prefácio, que era do Comandante. O primeiro capítulo, tratava-se dos fundamentos da saúde pública cubana, baseado no modelo de Leavell e Clark, já no primeiro capítulo de um livro cubano, entendeu?

Aí eu descobri o seguinte, que quando você não tem condições de fazer, você passa então a elucubrar muito. Como Cuba tinha condições de fazer e fazia, porque o modelo de saúde cubano àquela altura já estava já bastante avançado, o modelo de Leavell e Clark dava conta pra eles tranqüilamente. Foi aí que eu resolvi realmente ir para a prática, ir para os serviços. Isto porque também acho que o meu perfil está mais próximo dos serviços.

Mas, acho que a integração entre serviços e academia é realmente muito importante. Nós precisamos ter cuidado para não fazer uma separação, porque na prática essa separação não ocorre. Tem gente que está aí na frente para implantar o sistema de saúde junto com a Academia. Acho que a Academia teve um papel importante no processo da concepção do SUS. Na verdade, durante todo o período após a década de 70, trabalhou-se e pensou-se muito, que acabou desembocando na 8ª Conferência e depois na Constituição de 88.

O SUS: UM IMPORTANTE NORTE PARA O GESTOR

Hoje nós podemos dizer que, do ponto de vista de concepção, conseguimos um sistema de saúde bastante avançado, contrapondo-se inclusive - isso já vi algumas pessoas colocarem e achei interessante - ao modelo hegemônico colocado para a área econômica.

Nós temos um modelo na área econômica chamado de neoliberal ou liberal ou de mercado, qualquer que seja, e nós temos como proposta na área de saúde um modelo que vai contra isso, que é um modelo público, e que está se impondo a cada dia.

Eu acho que apesar de todas as dificuldades, ele se impôs do ponto de vista legal, através da Constituição, das Leis Orgânicas, das NOBs, etc. De qualquer maneira, nós podemos dizer que nós temos um sistema que de alguma maneira está procurando tornar realidade os princípios e diretrizes de universalidade, eqüidade, integralidade e de participação da comunidade.

E isso é um norte importante para estar trabalhando. Eu acho que para nós que estamos nos serviços é importante de se ter um norte e uma proposta clara para a organização do sistema de saúde, e nós temos uma proposta, e certamente muito avançada.

Eu li recentemente uma frase que eu achei interessante. A frase dizia: pior do que a desigualdade social é você não ter uma proposta para mudar esta realidade. Mas, eu acho que nós temos uma proposta na área de saúde para estar, pelo menos, diminuindo a desigualdade social. A eqüidade é uma proposta muito forte no projeto de implantação do SUS, fortalecida pela estratégia de descentralização e pela municipalização.

E acho que a nossa experiência com a municipalização, aqui em São Paulo, tem sido a mais evidente. Nós começamos na década de 80, no Governo Montoro. Eu acho que a marca que nós temos no sistema de saúde de São Paulo foi escrita no período de 83 a 86, quando nós começamos com o projeto de municípios carentes, que era para os municípios de pequeno porte e que depois se estendeu para muitos municípios do Estado, porque se concluiu que os municípios grandes também tinham áreas periféricas que eram carentes, então foi um momento muito importante.

Começamos, então, incluindo novos atores no processo de implantação do projeto de municipalização - os Prefeitos e os Secretários Municipais de Saúde. Os chefes de Centros de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde foram substituídos - eu inclusive fui chefe de Centro de Saúde de Botucatu e de Marília. Aquela figura do chefe de Centro de Saúde, que era a autoridade local, mas que tinha vínculo com o Estado e não propriamente vínculo com a realidade local, foi sendo substituído pelo Secretário Municipal de Saúde. Quando havia um problema no município, não aparecia mais um chefe de Centro de Saúde para responder pelo problema, mas sim o Secretário Municipal de Saúde.

Então isso começou a acontecer em São Paulo, já em 1983. E foi importante, apesar de ser um processo realizado através de convênios. O Prefeito podia optar ou não por esse processo. E grande parte dos prefeitos optou, mesmo não sendo obrigatório. Naquela época, pela legislação em vigor, o município não era o gestor do sistema, mas foi um processo que começou naquela época e foi se fortalecendo.

E aí eu coloco o seguinte: eu era do Estado e sentia a necessidade de se ter um gestor local mais atuante. Mesmo assim, ainda existiam resistências à descentralização. Muitos argumentos contra a descentralização eram expressados na época. Falava-se o seguinte: "Nós somos a favor da municipalização, mas somos contra a prefeituralização". E eu na época já falava assim: "Olha, eu sou favorável inclusive a prefeiturização, porque é melhor do que estadualização".

Mesmo na ausência de condições ideais, era importante estar abrindo espaço para colocar novos atores no processo de mudança do modelo de atenção à saúde no Brasil. Esse processo avançou bastante, quando aconteceu a Constituição de 88. E aí eu falo para os prefeitos o seguinte: "Olha...agora, a partir de 88...", porque de vez em quando a gente pega um Prefeito que diz o seguinte: "Olha, esse negócio (a saúde) é muito complicado, eu vou devolver para Estado" Então eu falo assim: "Olha, devolver você até pode. Você pode devolver o prédio do Centro de Saúde que foi passado para município, você pode devolver funcionário do Estado que eventualmente esteja à disposição do município. Agora, devolver a responsabilidade pelo sistema de saúde local, você não pode de jeito nenhum, porque a responsabilidade pela gestão da saúde é do município, e isso está na Constituição desde 88".

E na verdade, isso acontece muito...é uma coisa interessante. Esse preceito constitucional não está claro ainda. Sempre encontro pessoas falando isso, inclusive em fóruns de prefeitos. Está lá no artigo 30, se não me engano, da Constituição, que o município é responsável pelo sistema local de saúde, com o apoio técnico e financeiro do Estado e União. E esse apoio é o que os municípios estão precisando.

Então, desde 88, esse processo vem ocorrendo, agora não mais por convênio. A saúde tornou-se também uma competência do município, que na verdade começou a acontecer só em 93, até que toda a legislação estivesse vigorando. Foram cinco anos até consolidar a figura do gestor municipal, a partir da NOB 93, quando o lema era a ousadia de fazer cumprir a Lei. Mas, ainda foram poucos os municípios que realmente conseguiram entrar nesse processo, em São Paulo. Se não me engano, foram 20 e poucos municípios, que foram enquadrados na Gestão Semi-Plena do Sistema, passaram então a receber dinheiro fundo a fundo e começaram a montar seus Conselhos Municipais de Saúde e fazer o planejamento de saúde local. Foram poucos os municípios, mas de qualquer maneira eu acho que foi um marco importante para o processo de descentralização e da municipalização.

E tivemos em 96, na verdade em 98, dez anos depois da Constituição, a condição de fato de o município ser o responsável pela saúde, através da NOB 96, uma vez que ela apresentou um aspecto muito importante: ela permitiu que grande parte dos municípios passasse para gestores do sistema municipal de saúde.

Praticamente, no Estado de São Paulo, temos apenas dois municípios que não são gestores; eles são responsáveis pela saúde de seus munícipes, só que eles não recebem o recurso federal para isto, a única diferença é essa. Eu até tentei convencer um dos Prefeitos para o seu município se tornar gestor do sistema. Então, falei: "Olha, a única coisa que você não está conseguindo é dinheiro federal, o resto você é responsável por tudo", mas ele retrucou dizendo que era teimoso, que ele ia ser o último.

E ainda tínhamos um problema muito sério no Estado, que era o Município de São Paulo. Tínhamos três municípios que não assumiram a gestão, só que um era São Paulo, que representa 1/3 da população do Estado. Felizmente, a partir de janeiro desse ano, o Eduardo Jorge - Secretário de Saúde do Município de São Paulo, de uma maneira ousada, assumiu a gestão básica, que era o que ele podia fazer naquele momento. Com isto, praticamente todo o Estado está enquadrado em alguma modalidade de gestão.

Bom, isso eu acho que foi uma coisa importante, e quando participo das reuniões de Secretários Municipais de Saúde, fico muito entusiasmado, porque temos secretários de vários perfis, de várias formações, temos médicos de várias especialidades, médicos sanitarista; médico anestesista, temos enfermeiros, assistente social, professor. Nessa semana, tivemos uma reunião do COSEMS, e compareceu uma professora, que é Secretária Municipal de Saúde de um município. É professora mesmo, educadora e Secretária Municipal de Saúde, com uma fala muito interessante, com uma outra visão. Então eu acho que esse é um processo muito rico, com profissionais responsáveis em todos os municípios, com secretários de várias formações. Isso enriquece o nosso processo e começa a permitir que novos profissionais possam estar discutindo coisas que nós médicos, pela nossa formação, temos mais dificuldades de estar abordando.

UMA NOVA FASE: A NOAS 2001

Então estamos nessa fase agora. Avançamos bastante. Mas, quando a gente realmente observa a tarefa que temos pela frente, acho que estamos no começo de um caminho. E o caminho ainda é muito longo. Por isso, quando eu leio alguns textos, e acho bom a gente ler esses textos. Para saber que, apesar de estarmos fazendo muito, estamos ainda longe de estar fazendo realmente aquilo que o SUS preconiza e que a sociedade precisa em termos de saúde, e não só saúde como também outras políticas sociais.

Bom, entramos numa nova fase agora, eu vou falar um pouquinho sobre a fase que nós estamos. É uma fase importante, que têm muitos questionamentos sobre ela. É a fase da Norma Operacional de Assistência à Saúde, a fase da NOAS/2001. Está claro pra nós gestores, que é preciso avançar em algumas coisas. Eu acho que a NOB 96 continua válida. A NOB 96 não foi revogada, eu acho que ela foi uma norma importante pra nós gestores municipais, não só porque ela permitiu que os municípios se tornassem gestores, se habilitassem, como também pelas diretrizes que deu ao sistema, em consonância com a Constituição, como acho também que foi uma norma que deixou mais claro para os municípios os princípios do SUS.

No entanto, ela está esgotada pelo fato de que muita coisa que estava previsto por ela não foi possível realizar. Então, acredito que NOAS vem complementar a NOB 96, ela detalha, ela avança em alguns pontos que já faziam parte da NOB/96. Esta é a fase que nós estamos.

Vale então comentar algumas coisas: primeiro, acredito na importância da NOAS, porque ela passa muito pela questão da eqüidade. O Ministério avaliou que, em função desse processo todo anterior de implantação do SUS, os recursos estão sendo distribuídos de maneira desigual entre as regiões do país, os avanços da gestão não são homogêneos, mas isso é uma coisa que realmente era esperado, não se deve esperar um avanço de maneira igual em todo País e nem em todo o Estado. Nós, em São Paulo, temos diferenças grandes em relação ao avanço do sistema de saúde, quando se compara a Grande São Paulo com o Interior, e mesmo entre regiões do Interior.

OS DESAFIOS DO FINANCIAMENTO

Gostaria de passar só uma transparência, só para mostrar uma coisa que eu achei interessante. Quando se trata da eqüidade em saúde, o problema do financiamento é um problema fundamental para nós dos municípios. Eu acho... nem sei se nesse... nesse Congresso se está discutindo muito a questão do financiamento, parece que não. Com a Emenda Constitucional 29, parece que a discussão deu uma acalmada. A Emenda Constitucional deu uma certa estabilizada no processo de discussão do financiamento. Mostro, através dessa projeção, um trabalho do Ministério da Saúde, de um grupo de técnicos, do Ministério que produziu esses dados.

Aqui é o ano de 98, em se gastava 30 bilhões em saúde, recursos federal, estadual e municipal, e se vê que o governo municipal já gastava mais do que os estaduais em relação à saúde. O governo federal é o que gasta mais e tem que gastar mesmo, inclusive porque é nessa esfera que se arrecada o dinheiro específico para a saúde. Então isso é realmente um problema que nós temos hoje, quando o recurso está centralizado. Nós temos toda uma proposta de descentralização, só que o recurso está centralizado, isso é um grande problema que nós temos no sistema de saúde que vamos ter que rever isso mais pra frente.

Mas, sabemos que para alterar essa situação temos que passar por uma reforma tributária. Tem-se realmente um processo ainda de centralização e é por isso que hoje, uma crítica que se faz muito, são as portarias que saem do Ministério, para o controle do recurso, porque o recurso está centralizado.

Como a Emenda Constitucional vai até 2004 para a sua total implantação, então se fez uma estimativa, em dois cenários: um cenário melhor, em que teremos 42 milhões, se os Estados e Municípios aumentarem 2% ao ano as suas receitas vinculáveis à saúde. O outro cenário, se essas esfera de governo não aumentar 2%, e se o país tiver um PIB aumentando regularmente durante todo esse período. Espera-se que o governo estadual aumente mais a sua participação, ele vai pular de 18% para 21%, ele vai sair de 5,7 para 9,4%; os municípios devem sair de 8 bilhões para 10 bilhões, e cai a sua participação relativamente para 23%. O Estado deve aumentar, considerando que os Estados são os que gastam menos em saúde, e deverá aumentar a sua participação porque ele deve passar para 12%, enquanto que os municípios devem passar para 15%, mas grande parte dos municípios já está próxima dos 15%. Então, prevê-se que a Emenda Constitucional terá pouco impacto em relação aos municípios, e terá muito mais impacto em relação aos Estados, que devem estar hoje em torno de 4% de gasto e devem subir para 12%.

E eu coloco isso por quê? Porque mesmo que a gente aumente os recursos, nós vamos continuar com pouco recurso para a saúde. Mas, os recursos podem ainda aumentar? Pode, depende de mudanças políticas, nós podemos ter mudanças políticas e nada impede que o Governo Federal gaste mais do que isso, que o estado passe dos 12% e os municípios passem dos 15%. Aí será toda uma discussão, pois significa uma mudança de ordem política.

Então a primeira coisa que eu quero colocar é o seguinte, mesmo que sejam aumentados os recursos nos próximos 4 anos, nós vamos continuar com os recursos aquém do que nós precisamos. Nós calculamos hoje, que em 99 foram gastos em torno de 200 e poucos reais per capita/ano. Acho que foram 17 reais per capita/mês, segundo um documento do Conselho Nacional de Saúde. Então o SUS é um grande plano de saúde dos trabalhadores brasileiros, a produção dele é muito grande e gasta apenas 17 reais per capita/mês; quer dizer, nenhum plano de saúde gasta isso, sendo que o SUS não tem carência, faz cirurgia cardíaca, faz hemodiálise, faz transplante com 17 reais/mês, e nessa projeção aí, eu imagino que vamos para uns 20, ou 25 reais per capita/mês, o que é pouco ainda.

Por outro lado, se produz muito no SUS, até precisa ser investigado um pouco a razão disso. Bom, esse é um quadro que temos presente. Nós vamos ter que fazer eqüidade nesses limites financeiros nos próximos 3 ou 4 anos no mínimo. Não quer dizer que não vamos batalhar para conseguir mais recursos, mas o quê eu digo, aí já é uma batalha política e não técnica. A nova mudança que se propõe agora, devo falar sobre ela rapidamente. Faltam ainda uns dez minutos para terminar, e gostaria de ressaltar algumas questões.

O quê está se propondo agora com NOAS? Primeiro, qualificar melhor a assistência básica; até houve uma avaliação, no período da NOB/96, mas ninguém se preocupava muito com as condições do município. A importância naquele momento era que o município se habilitasse para a gestão. Nós estamos agora fazendo uma revisão, e a assistência básica que está sendo colocada hoje na Norma Operacional de Assistência à Saúde não depende nada de equipamentos, nada disso, ela depende de pessoal capacitado. O município deve se comprometer a fazer o Programa de Saúde da Mulher, da Criança, da tuberculose, hanseníase, hipertensão, diabetes, etc.

O equipamento que o município precisa ter é um eletrocardiógrafo, fora isso eu acho que precisa de pessoal e capacitação desse pessoal, então eu acho que aí entra o papel do Estado, que eu já coloquei, de apoio técnico. Então nós temos que ter um Estado muito ágil para estar apoiando os municípios, porque a idéia dessas mudanças não é desabilitar os municípios.

Porque hoje se coloca assim, nesses termos: "Vamos desabilitar o município que não tem condições de prestar a assistência"; mas se esquece que desabilitar o município, significa não passar apenas recurso federal para o município, porque o município continua responsável pela saúde de seus munícipes. Acho até que em algumas situações, naquelas muito críticas, e no Estado de São Paulo existem algumas situações muito críticas, eu acho que a solução não é desabilitar o município, nem de intervir no município, porque hoje a intervenção no município só está prevista quando ele não paga as dívidas, quando não paga precatório, aí então se tem a ameaça de intervenção, mas não tem intervenção se ele não cumpre com suas atividades fundamentais na área de educação, na área de saúde. E nós tivemos municípios, e tivemos municípios na Grande São Paulo, que foi um desastre do ponto de vista da saúde. Devem ter sido em outras áreas também. A saúde é que nós acompanhamos, e aconteceu o município foi desabilitado, e ele continuou responsável pela saúde dos seus munícipes, e ainda bem que estava no final de mandato, e o prefeito não se reelegeu. Então acho que nós precisamos, com essas mudanças, para os municípios que têm dificuldades no processo de gestão, estar apoiando, e esse deve ser o grande papel do Ministério e da Secretaria de Saúde do Estado, e ainda mais do Estado que está mais próximo desse processo.

Então a NOAS hoje, entendida a partir da qualificação da assistência básica, está correta. No entanto, o mais complicado para nós gestores é que o recurso que está se propondo para isso é pouco; nós tínhamos pensado no mínimo em R$ 1,00 a mais para o PAB, e a proposta hoje é de R$ 0,50.

MAIS ASPECTOS IMPORTANTES DA NOAS

Outro aspecto importante que eu acho, que está sendo proposto, que eu acho que aí vai muito na direção da eqüidade, é a revisão de todo o sistema de referência e contra-referência. Hoje estamos reforçando um modelo baseado na oferta, com base na série histórica.

Então eu acho que é fundamental uma revisão desse processo, e aí tem uma estratégia que está desgastada, porque ela não conseguiu avançar muito com a NOB/96, quando esse instrumento aparece de modo muito evidente, que é a PPI - Programação Pactuada Integrada. Acho a PPI um instrumento fundamental para nós. É um instrumento que permite a pactuação entre os municípios por região. Eles vão estabelecer suas referências pactuadas com a intermediação do Estado.

A NOAS também tem um outro aspecto importante, aí eu coloco um pouco o papel do Estado, na medida em que o Estado ficou meio perdido nesse processo da mudança, da descentralização. O Estado até tinha um papel forte na execução dos serviços e hoje a cada dia o município vem assumindo esse papel, sem que se fizesse uma reflexão sobre isso.

A NOB/96 tentou definir o papel do gestor estadual, como sendo o de coordenador, o responsável pela política de saúde do Estado, através de coordenações regionais, junto com os municípios. Eu acho que o Estado está demorando um pouco para entender isso, e a NOAS contribui para essa definição. Algumas pessoas criticaram, achando que isso aponta para uma recentralização.

Eu não fiz essa leitura da NOAS. Eu fiz uma leitura do Estado realmente assumindo seu papel, que está na NOB/96 e na Lei Orgânica de Saúde 8080, como sendo o coordenador da política de saúde do Estado. Junto com os municípios, o cumprimento desse papel pelo Estado é muito importante para a regionalização, ou seja, de coordenação do processo de regionalização.

A NOAS apresenta duas propostas interessantes, que é o Plano Diretor de Regionalização, que deve ser coordenado pelo Estado junto com os municípios. Acho que o município tem que participar desse processo ativamente, porque se pressupõe um pacto, e nesse pacto vai ter que ter uma esfera de governo que coordene e acompanhe os compromissos assumidos pelos municípios. A NOAS também tem outro instrumento importante que é o Plano Diretor de Investimentos, na linha da regionalização, que deve ser respeitado pelos municípios e pelo Estado.

Esse Plano, pode até servir de subsídio para as decisões políticas, as emendas parlamentares, como um fundamento técnico que nós não temos ainda. Hoje os investimentos caminham na contramão das propostas de regionalização, então eu acho que a NOAS também aponta muito para a revisão disso. Agora, uma coisa muito importante e precisa ser colocada aqui nesse fórum e que não é uma coisa tranqüila de ser explicitada. Eu acho que há uma resistência muito grande no processo de descentralização, por parte dos Estados, quer dizer, existe ainda uma proposta que não aparece claramente, mas de vez em quando ela vem a tona: é a proposta de que o município deve ficar com a assistência básica, de o Estado ficar com a assistência de média complexidade e o Governo federal de ficar com a de alta complexidade.

Os argumentos são: a alta complexidade é uma área que tem muito recurso, uma área muito complicada, que tem muitos interesses, então essa deve ficar com o nível federal; a média complexidade, que envolve muito a questão das referências e contra-referências, deve ficar com o Estado e os municípios devem ficar com a assistência básica. Essa é uma proposta que não é a proposta que está na Constituição, nem nas Leis Orgânicas, e não está na NOAS, mas ela ainda está muito presente, quer dizer, você percebe isso nas discussões.

Os governos estaduais têm alguns aliados que eu gostaria de apontar aqui. Hoje, os Hospitais Universitários são um grande aliado dessa proposta, os Hospitais Universitários, para mim, são instituições que estão resistindo ao processo de descentralização; quando a gente defende que um hospital universitário deva ficar sob a gestão do município torna-se um escândalo. É a proposta que nós temos hoje aí é: o Hospital Universitário vai ter que entrar no processo de gestão do SUS. Acho que está acontecendo um fato interessante. O Hospital Universitário que na década de 70 foi importante e contribuiu com as propostas de reforma para o setor, no meu ponto de vista, está resistindo às mudanças para o setor, querendo ficar fora da gestão do SUS.

Então qual que é a proposta que está sendo colocada hoje? O município, um município maior, que seria o município pleno do sistema, ficaria com a assistência básica e a atenção mais complexa do munícipe dele. As referências intermunicipais ficariam sob a gestão do Estado. Isso é uma proposta que inclusive foi colocada, quase que oficialmente, pelo CONASS, e nós do município não aceitamos isso e o Ministério também não aceita. O Ministério hoje tem uma proposta muito clara de comando único do sistema. Os prestadores, os demais prestadores além do Hospital Universitário, têm também muita resistência. Os prestadores de maneira geral, os filantrópicos e tal, têm um pouco de receio da municipalização, e acho que, do meu ponto de vista, é um receio infundado, porque a experiência que nós estamos tendo, o hospital acaba tendo muito mais apoio dos Conselhos Municipais de Saúde e do gestor municipal do que ele estar sob um outro tipo de gestão.

E A PARTICIPAÇÃO SOCIAL?

Eu acho que um outro fator, colocando rapidamente aqui, para terminar, é quanto à participação da comunidade, que tem um aspecto importante também na promoção da eqüidade. Isto está também em todas as nossas leis; agora, é preciso ter paciência, nós não temos experiência de participação, eu acho que o setor saúde, nesse aspecto, está na frente.

Como nós não temos experiência de participação da comunidade, eu acho que as críticas que se fazem à atuação dos Conselhos Municipais de Saúde, das Conferências, dos Conselhos Municipais de Saúde são válidas, mas nós estamos num processo em que não temos experiência, a população não tem experiência de participar também, mas o que eu tenho acompanhado nesse período todo é que está avançando.

Eu acho que nós temos Conselhos Municipais já bastante atuantes, eu acho que aquilo que foi colocado, sobre o papel deliberativo do Conselho é preciso ser mais bem explicitado, quê papel deliberativo é esse? Esse papel dos Conselhos Municipais é importante, agora, como eu coloquei, isso tem sido heterogêneo; temos municípios que estão realmente com os Conselhos Municipais funcionando, e temos as Conferências acontecendo.

Por acaso eu participei recentemente, da 1ª Conferência Municipal de Saúde promovida por um município, como representante do COSEMS e numa outra Conferência de outro município que já está na sexta conferência. Isto mostra que nós não estamos avançando de maneira uniforme, e o que realmente era esperado.

Alguns secretários municipais e prefeitos que não gostam de Conselho Municipal, é uma cultura que nós temos. Acho que eles precisam perder esse medo do Conselho, porque eu acho que os Conselhos são os grandes aliados, inclusive dos Secretários Municipais de Saúde, mas é preciso entender o papel do Conselho, respeitar o papel do Conselho, e também precisamos ter claro que em algumas situações o Conselho passa a ser um palco de 2º ou 3º turno nas discussões e encaminhamento das propostas. No entanto, eu já vi acontecer, em alguns municípios, casos em que o Conselho passa a ser um local de revanche política e isso complica muito mais a situação, mas eu acho que a participação da comunidade é uma proposta importante do SUS, do Sistema Único de Saúde, dando exemplo até para outras áreas sociais, como no caso dos serviços sociais, na educação e tal.

E o que tenho visto em outras áreas em comparação com a saúde, é na saúde que a experiência de participação está mais bem estruturada. Mas, volto a dizer: estamos longe ainda do que a gente imaginaria que seria uma participação realmente da comunidade. E nesse sentido eu gostaria de retornar a falar sobre a assistência básica.

UM POUCO SOBRE PSF

Na assistência básica nós temos uma grande novidade em termos do que está sendo feito, que é o Programa de Saúde da Família (PSF) e os Programas de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). A experiência que nós estamos vendo é que esses programas estão tendo um impacto grande na assistência básica. É uma pena que no Estado de São Paulo, ainda estamos com uma baixa cobertura do PSF e PACS, com uma cobertura em torno de 10% da população. Mas, nas áreas em que os programas estão implantados, temos sentido mudanças importantes, mudanças que a gente vem sonhando há muito tempo. Ou seja, a população tem participado mais dos serviços de saúde, os serviços chegam mais perto da população. Há possibilidade de se cumprir com as diretrizes que não são de hoje, que são de Alma-Ata, em 1975.

A intersetorialidade que é uma coisa que se fala muito também, e se consegue fazer pouco, você vê acontecer com o Programa de Saúde da Família e o PACS. Quanto às unidades básicas de saúde, e sobre isso eu posso falar tranqüilamente, porque fui um dos grandes incentivadores da criação de UBSs, durante a década de 80, batalhei muito e criamos muitas unidades básicas na época do governo Montoro. Nos anos mais recentes verificamos o esgotamento do seu papel, por não conseguirmos fazer cumprir o que esperávamos dela. Eu acho que o PSF questiona um pouco o modelo de UBS, mas não acredito que se deva ao fato de ser uma UBS, porque realmente nós vamos ter que ter esses dois modelos, mas acho que o PSF dá um parâmetro para acompanhar o desempenho das UBSs.

Estamos também tendo uma experiência com o Agente Comunitário de Saúde, que está interferindo no modo de funcionamento das UBSs. O Agente Comunitário de Saúde é um profissional da saúde, novo no nosso sistema, e que tem apresentado resultados fantásticos para a assistência à saúde, em termos de mudar a maneira de se trabalhar com a população, pois sai do modelo curativo, ao ter contato com a população. Nesse sentido, eu acho interessante a participação da população, toda unidade de PSF deve ter um Conselho Gestor, com ata e tal.

Aquilo que a gente fala e não consegue fazer, e a UBS nunca permitiu que acontecesse de fato, no que se refere à participação, nas unidades de PSF a participação acontece. Não sei porque, você vê que quando se tem o Programa de Saúde da Família a população acaba se tornando a "dona" do programa, e realmente participando, sentindo que o serviço é dela. Não existe tanto uma preocupação com o horário dos médicos, que é um dos grandes conflitos que se tem no Conselho Gestor da Unidade Básica de Saúde. Nos conselhos do PSF não se discute o horário do médico, isso é uma coisa que não aparece, porque a inserção do médico na equipe, nessa área, é totalmente diferente.

Então, acho que é uma experiência muito interessante que nós estamos tendo, não só em Marília, mas no Estado como um todo. Nós precisamos acompanhar esse processo, é uma coisa para a Academia inclusive estar acompanhando.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Para terminar, digo o que nós gestores esperamos da Academia, para o avanço da gestão na saúde e consequentemente para conquistarmos a eqüidade na saúde. Esperamos que a Academia analise e acompanhe aquilo que estamos fazendo. Para nós isso é fundamental. Além disso, é importante que se contribua com a capacitação de gestores e profissionais da área da saúde. Estamos tendo uma experiência concreta atualmente, que é a capacitação dos gestores. Foi desencadeado um processo agora, com várias universidades aqui em São Paulo, um processo descentralizado, em que se discutiu muito um processo de capacitação, desde o começo. Como princípio adotamos que o processo deveria ser descentralizado. Não pegamos uma só instituição para fazer um treinamento na capital. Foram envolvidas instituições do Estado inteiro que queriam participar. Felizmente, a maioria delas se propuseram a participar, e acho que vai ser um processo rico para nós gestores e para a Academia. Ambos vão ganhar nesse processo, e as experiências que já começaram em alguns lugares, estão demonstrando isso. É um primeiro projeto, e não podemos encerrar esse processo de parceria nesse projeto. Os processos de capacitação não podem se esgotar neles mesmos. Terminando essas capacitações precisamos pensar em outras capacitações, pensar em capacitações que envolvam outros profissionais da saúde, para além dos gestores, ou seja, para as equipes das Unidades Básicas de Saúde dos municípios, que são as que permanecem, porque o Secretário de Saúde muda e as equipes continuam. Precisamos voltar a pensar em cursos, que não sejam apenas os cursos tradicionais de saúde pública, ou de saúde coletiva. Mas pensar em outras necessidades que demandam cursos específicos voltados para a gestão, também descentralizados, com o objetivo de formar novos quadros que vão depois participar da gestão nos municípios.

E quanto ao papel das universidades no processo de avaliação dos nossos serviços, considero também fundamental. È o que vai balizar uma análise sobre os avanços ou não do sistema, nos oferecendo instrumentos à reflexão.

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    Apresentado na Mesa Redonda Gestão da Saúde para a Eqüidade, em 02/10/01, VII Congresso Paulista de Saúde Pública.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jul 2002
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