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Saúde, cultura e democracia

Health, culture and democracy

APRESENTAÇÃO DAS MESAS REDONDAS

Saúde, cultura e democracia* * Apresentado na Mesa Redonda: Saúde, Cultura e Democracia, em 01/01/01, no VII Congresso Paulista de Saúde Pública.

Health, culture and democracy

Moacyr Scliar

Escritor e Médico Sanitarista, Rio Grande do Sul

RESUMO

O autor discute os patamares da saúde pública: técnico científico, administrativo e político e apresenta o Antigo e Novo Testamento como paradigmas para sanitarismo e assistência médica, respectivamente.

Palavras-chave: saúde pública, medicina preventiva, ações preventivas, ações curativas

ABSTRACT

The author discusses public health levels - technical-scientific, administrative and political - and presents the Old and New Testaments as paradigms to public health and curative medicine, respectively.

Keywords: public health, Preventive Medicine, preventative actions, curative actions

Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer a esse amável convite, que me dá a oportunidade de encontrar vários companheiros de saúde pública e amigos de longa data. Deixem-me dizer, em primeiro lugar, que eu sou da ponta do país, lá do Rio Grande do Sul, e fiz uma longa viagem esta manhã pra chegar até aqui, mas é uma viagem que a gente faz com prazer, como eu disse, porque em primeiro lugar, São Paulo é realmente o reduto da saúde pública brasileira, uma coisa que eu, na minha condição de médico de saúde pública, reconheço com gratidão, e segundo porque aqui temos numerosos amigos, aqui ao meu lado está o professor Gastão Wagner, com quem partilho vários ideais. Ambos estamos ligados à saúde pública, ele naturalmente num cargo mais elevado, e ambos somos escritores (eu tenho mais livros publicados do que ele, mas também sou mais velho). Vi no programa que me colocaram aqui como escritor; eu não sei se a esperança é que eu fosse contar estórias ficcionais aqui, mas se é, acho que essa esperança vai ser frustrada porque num Congresso de Saúde Pública, não podemos deixar de falar da experiência de saúde pública.

A minha própria experiência, que já é longa, quase da pré-história, envolve muitos dos temas que foram mencionados aqui nesta Mesa: saúde, democracia e cultura. Eu vivi uma fase interessante na saúde pública brasileira; tem um provérbio chinês que diz: "Ai de quem vive em tempos interessantes", mas nesse caso interessante foi realmente interessante. Minha trajetória foi até certo ponto peculiar, porque eu queria fazer medicina interna; acontece que fui trabalhar como clínico num hospital de tuberculosos lá em Porto Alegre. Lá, descobri o problema da tuberculose, e descobrindo o problema da tuberculose eu descobri a saúde pública. No meu caso foi uma trajetória irreversível, aliás, acho que isso acontece na maioria dos casos. Quem observa a trajetória de profissionais da saúde sabe que ela freqüentemente segue esse roteiro, a gente começa trabalhando com pacientes, ou seja, no micro, depois descobre o macro através da saúde pública. Dentro da saúde pública há um patamar técnico-científico, depois um patamar administrativo e finalmente um patamar político. A mudança de patamar, e disso Oswaldo Cruz é um exemplo, é irreversível. Nos meus anos de saúde pública eu nunca vi alguém que tenha chegado à área política depois voltar atrás, porque cada vez a dimensão fica mais ampla, a atuação fica cada vez mais apaixonante e depois é difícil reduzir o horizonte de ação. Em saúde pública acompanhei notáveis programas desenvolvidos pela Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, o programa de tuberculose, o programa de vacinações, o memorável programa de erradicação mundial da varíola. Alguns triunfos muito expressivos foram registrados então, e eles se expressavam nos indicadores de saúde. Foi então dado um passo crucial na trajetória da saúde pública, a criação do SUS, o que, aliás, correspondeu a uma expectativa de todos aqueles que militavam na saúde pública brasileira.

Durante várias Conferências Nacionais de Saúde, o apelo era sempre repetido no sentido de que fosse eliminada a barreira que separava as ações preventivas das ações curativas, de que se criasse um sistema abrangente que trabalhasse tanto na área preventiva como na área curativa. Isso finalmente ocorreu em 1988, com a criação do SUS, e o resultado a princípio foi de perplexidade. Constatou-se que saúde pública representava, a grosso modo, talvez 20% das atenções do pessoal que gerenciava saúde como um todo, 80% correspondia à assistência médica. Nasceu daí um inevitável conflito que até hoje não está bem resolvido. Trata-se de compatibilizar não apenas atividades diferentes, mas culturas diferentes. Agora, o hiato entre essas duas culturas é um hiato muito antigo, e agora sim, eu vou usar um pouco da minha visão de escritor pra dizer que essa história já foi escrita e foi escrita a muito tempo; talvez vocês se surpreendam com o que eu vou dizer, mas essa história já está, de certo modo, na Bíblia. Eu devo dizer, antes de mais nada, que não sou um leitor religioso da Bíblia, mas acho a Bíblia um grande texto literário e um documento fundador da nossa cultura, a cultura ocidental na qual, queiramos ou não, todos nós estamos vivendo.

Quando lemos as duas partes que compõem a Bíblia, o Antigo e o Novo Testamento, notamos diferenças fundamentais, e uma das diferenças diz respeito à maneira como a questão de saúde é encarada no Antigo Testamento e a maneira como ela é encarada no Novo Testamento, saúde e doença. No Antigo Testamento médico é uma figura que aparece muito pouco; há um rei bíblico que tem um problema de pele, em vez de orar a Deus ele resolve consultar um médico, e o resultado é que ele piora muitíssimo, como castigo por consultar médico ao invés de confiar em Deus. Mas não havia doenças, à época? Havia, sim.

Mas a doença com a qual o Antigo Testamento mais se preocupa é a lepra, objeto de uma minuciosa descrição no Levítico. Há inclusive critérios diagnósticos, e critério diagnóstico é elemento clássico nos programas de saúde pública. Mas o objetivo não é tratar o doente de lepra, o objetivo é isolá-lo, porque a lepra é uma doença impura. E por quê que a lepra é uma doença impura? Porque resulta de contato entre corpos, e esse contato entre corpos freqüentemente tem uma conotação sexual; do Oriente Médio daquela época, como até hoje, sexo é uma coisa olhada com muita restrição, se não é praticado no contexto do casamento. É claro o rótulo de lepra incluía muitas outras doenças de pele, porque eles não tinham evidentemente, maneiras de fazer um diagnóstico diferencial. Mas o que importa é isso, é que doença é usada como um critério para exclusão de determinados indivíduos que comprometem a coesão do grupo social - e não para tratar esses indivíduos. Bom, além disso existem vários outros preceitos que lembram muito a saúde pública; por exemplo, alimentos que fazem mal à saúde, e entre esses alimentos tem classicamente o porco, é citado como exemplo. Durante muito tempo se pensou que isso de fato obedecia a uma visão sanitária, mas é pouco provável que o porco fosse condenado porque ele transmitia doença; não havia maneira de correlacionar a ingestão de carne de porco com a parasitose que às vezes gera.

Provavelmente o porco era também símbolo de impureza. Mais de que isso, a criação de porco entre tribos nômades que viviam no deserto era um contra-senso, porque o porco é um animal, que necessita de uma quantidade de umidade - por isso molha-se na própria urina (e por isso que é porco). Mais: é um animal que se desloca muito lentamente, o que é inconveniente para povos nômades. Finalmente, é um animal que só dá carne - não dá leite, não serve para tração.

Enfim, para um povo nômade no deserto, criar porcos seria uma luxúria, e o legislador bíblico elimina a tentação dessa luxúria com a prescrição de que porco não pode comer, ponto, é uma determinação religiosa.

Agora vamos para o Novo Testamento, que gira em torno a uma figura exponencial. Jesus Cristo é muitas coisas: é um líder carismático, é um pregador da moral e é também um médico milagroso. Cura numerosos doentes, ressuscita um morto, inclusive. E por quê que ele faz isso? Porque ele está correspondendo a uma expectativa das pessoas, as pessoas já tinham medo de doença, como tinham medo até então, porém Jesus não responde a essa ansiedade em relação à doença de uma maneira autoritária, ele responde com compaixão. Então, ao fazer isso, ele cria um modelo, o modelo que a civilização cristã vai desenvolver ao longo de sua história. Quando o Cristianismo se torna hegemônico, nas ruínas do Império Romano, a medicina vai regredir, porque a medicina era fundamentalmente uma ... a medicina grega, que não é aceita pelo cristianismo, mas o cristianismo sabe que precisa cuidar de doentes, então cria o hospital. O hospital não é um lugar pra curar doente, o hospital é um lugar para albergar doentes, sobretudo naqueles instantes derradeiros da sua existência; para consolar os moribundos e confortá-los na passagem desta vida para uma vida supostamente melhor.

O hospital corresponde realmente aos ideais de Cristo. Curiosamente, uma pratica do Antigo Testamento vai ser preservada: o cristianismo mantém a condenação aos leprosos. São declarados mortos, tanto que, quando se diagnostica lepra numa pessoa, se reza por ela a missa dos mortos, essa pessoa está afastada do convívio. Mas de resto, o Cristianismo representa, em relação ao judaísmo antigo, uma revolução.

De certa forma, o Antigo Testamento é o paradigma para o sanitarismo, e o Novo Testamento é o paradigma para a assistência médica. Mesmo com diploma de médico, os sanitaristas – esse nome hoje em dia é um nome que provoca um certo mal-estar, mas eu ainda sou duma época que a gente se chamava sanitarista –, são muito diferentes dos médicos tais como a gente conhece. Uma vez houve um bate-boca lá no Rio Grande do Sul, entre o pessoal da Secretaria da Saúde, do qual eu fazia parte, e o presidente da Associação Médica, e ele deu uma declaração para o jornal, dizendo: "Sanitaristas não são médicos, portanto não podem opinar sobre doença". O sanitarista tem um perfil muito peculiar, do qual Oswaldo Cruz, é um exemplo muito típico. Em Oswaldo Cruz o quê que nós temos um jovem médico que vai para Paris, estuda em vários lugares, inclusive no Instituto Pasteur, e volta para o Brasil, onde assume cargo equivalente ao Ministro da Saúde hoje; ele era o Diretor de Saúde Pública. Oswaldo Cruz ele não foi bom estudante de medicina, isso é uma coisa curiosa, nem médico notável, mas ele era um excelente microbiologista - tinha uma formação científica sólida, ele estava apoiado naquilo que se chamava de revolução pasteuriana. Bom, ele sabia o quê fazer para combater as epidemias que então assolavam o Rio de Janeiro e sustentava os seus pontos de vista mesmo contra os luminares da Faculdade de Medicina, que comandavam a medicina naquela época na cidade. De outra parte, ele sabia que tinha que organizar o trabalho de saúde pública para obter resultados a curto prazo. Por causa das pestilências, o Brasil estava sendo prejudicado inclusive economicamente. Não podia exportar o café, e a dívida externa, que não é novidade, crescia vertiginosamente. Oswaldo Cruz tinha que mostrar serviço, e logo.

Organiza o seu trabalho sob a forma de campanha, em moldes militares, com o autoritarismo característico das campanhas militares; quer dizer, ele quer resultados. As pessoas têm que se vacinar, queiram ou não; as pessoas têm que acabar com os focos de mosquito nas suas casas, queiram ou não; as pessoas têm que ser hospitalizadas, quando for o caso, queiram ou não; quer dizer, o que nós temos em Oswaldo Cruz é um autoritarismo esclarecido. Como pessoa ele não era autoritário, ele até pensava em se comunicar com a população, mas ele não tinha como fazer isso numa época que não havia rádio nem TV.Os panfletos sobre doenças distribuídos pela Diretoria de Saúde Pública eram enormes e redigidos numa linguagem complicada, então a sua capacidade de comunicação, de mobilização da população era quase zero. Mas Oswaldo Cruz não estava muito interessado nisso, o que ele estava interessado era em combater doença.

O resultado disso foi, como vocês sabem, a revolta da vacina; os múltiplos mal-entendidos que surgiram acabaram eclodindo num levante, que foi o equivalente brasileiro da Comuna de Paris, e que alguns anos depois custou a cabeça do Oswaldo Cruz. Mas o paradigma estabelecido por ele continuou norteando a saúde pública brasileira. Voltando ao início: assistência médica é muito diferente de saúde pública, pelo menos a assistência médica tal como é ensinada em muitas faculdades de medicina e tal como os muitos médicos brasileiros praticam. Depende basicamente de profissionais que oferecem seus serviços para pessoas que vão a eles, muitas vezes, com a mentalidade de consumidor. Ou seja, a assistência médica é fortemente condicionada pelo mercado e por tudo que gravita em torno do mercado, aí incluídos naturalmente os meios de comunicação. Nós sabemos que boa parte da demanda aos serviços de assistência médica é comandada pelos programas de TV; se apareceu novo procedimento, um novo exame, um novo medicamento nos programas de TV, nós podemos ter certeza que as pessoas vão procurar isso. Agora, imaginem compatibilizar num Sistema Único de Saúde a saúde pública com a chamada medicina curativa. Difícil? Sim. Mas muito necessário. E muito desejável. A saúde pública clássica tem muita coisa a ensinar aos médicos; saúde pública sabe trabalhar de maneira organizada, sabe trabalhar com números, sabe avaliar os resultados daquilo que faz.

Agora, a saúde pública tem algumas dificuldades, e essa dificuldade, que a medicina curativa aprendeu a superar. Ela tem, num grau mais alto, a capacidade de se comunicar com o paciente no plano emocional. Nós precisamos nesse momento, ampliar o território comum entre as práticas preventivas e as práticas curativas, e implementar o Sistema Único de Saúde, que foi o grande objetivo da Reforma Sanitária. Ainda não dá para juntar Antigo e Novo Testamento. Mas certamente dá pra juntar ações preventivas com ações curativas.

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    Apresentado na Mesa Redonda: Saúde, Cultura e Democracia, em 01/01/01, no VII Congresso Paulista de Saúde Pública.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jul 2002
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