Acessibilidade / Reportar erro

Pobreza e desnutrição: uma análise do Programa Fome Zero sob uma perspectiva epidemiológica

Poverty and malnutrition: an analysis of the Fome Zero Programme under an epidemiological view

Resumos

O Programa Fome Zero é um dos itens mais importantes da agenda social do governo atual. Apesar da enorme atenção que ele tem obtido na mídia e seu conteúdo ser de interesse dos profissionais de saúde pública, poucos sanitaristas têm-se manifestado a seu respeito. O objetivo deste artigo é rever os conceitos do Programa, sob a perspectiva dos epidemiologistas, observando o uso dos conceitos pobreza, fome e desnutrição na literatura biomédica. Ainda, através do estudo da distribuição da mortalidade por desnutrição, procura-se identificar as populações vulneráveis à desnutrição, quanto a: idade, alfabetização e localização geográfica. Apresenta-se, também, um quadro de referência para o entendimento das relações entre a pobreza e a desnutrição. Na literatura consultada, as palavras desigualdade socioeconômica (socioeconomic inequality) e desnutrição (malnutrition) são as mais usadas para definirem a condição desvantajosa da população quanto às condições socioeconômicas e alimentares. Quanto à mortalidade por desnutrição, observa-se uma polarização quanto ao padrão etário. No Norte e Nordeste, há uma maior ocorrência de óbito por esta causa em menores de um ano. No Sudeste e Sul, óbitos por esta causa são mais freqüentes em maiores ou igual a 65 anos. Os estados de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco apresentam maiores números de municípios com altas taxas de mortalidade por desnutrição em idosos. A polarização quanto ao padrão etário parece indicar duas condições distintas de desnutrição: carencial (infantes) e de abandono (idosos). O quadro de referência indica que pobreza é uma variável distal entre os determinantes da desnutrição. A compreensão desta estrutura é importante para que se desenhem políticas efetivas de redução da desnutrição entre populações vulneráveis.

Fome Zero; mortalidade; pobreza; fome; desnutrição


The Fome Zero Program is one of the most important items of the current government agenda. Despite attracting enormous media attention and bearing relevant contents for public health professionals, very few have presented themselves for the debate. The objective of this article is to review the concepts of the Program in an epidemiological perspective, through the observation of the use of the concepts of poverty, hunger and malnutrition on biomedical literature. In addition, this article aims at identifying vulnerable populations according to age, literacy, and geographical variables, considering the distribution of mortality due to malnutrition. In addition, an analytical framework for studying the relationship between poverty and malnutrition is presented. In the studied literature, the words socioeconomic inequality and malnutrition are the most used terms to express the unfavourable condition in relation to socioeconomic and nutritional statuses. In relation to mortality due to malnutrition, a polarised age pattern is observed. North and Northeast regions present highest indicators for infants. Southeast and Southern regions present highest death indicators for those from 65 on. The States of São Paulo, Minas Gerais and Pernambuco present highest concentrations of municipalities with high malnutrition mortality rates for elderly people. The polarized age pattern suggests two different conditions for malnutrition: deprived (infants) and neglected (elderly). The framework suggests that poverty is a distal variable among the determinants of malnutrition. The knowledge of this causal structure is important for the design of the abatement of effective policies for malnutrition within vulnerable populations.

Fome Zero; mortality; poverty; hunger; malnutrition


ARTIGOS

Pobreza e desnutrição: uma análise do Programa Fome Zero sob uma perspectiva epidemiológica

Poverty and malnutrition: an analysis of the Fome Zero Programme under an epidemiological view

Rômulo Paes-SousaI; Walter Massa RamalhoII; Beatriz Meireles FortalezaIII

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Avenida Dom Gaspar, 500 – Prédio 40 – 2º Andar, CEP: 30535-60, Belo Horizonte, MG. Fone: (31) 3319.4961, Fax: (31) 3319.4966 E-mail: romulo_sousa@uol.com.br IICentro Nacional de Epidemiologia, Setor de Autarquias Sul – Quadra 4 – Bloco N – 6º Andar, CEP: 70070-040, Brasília, DF. Fone: (61) 225 9026, Fax: (61) 321 3216 E-mail: walter.ramalho@funasa.gov.br IIISecretaria de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde, Centro Nacional de Epidemiologia, Setor de Autarquias Sul – Quadra 4 – Bloco N – 6º Andar, CEP: 70070-040, Brasília, DF. Fone: (61) 226 4002 E-mail: beatriz.fortaleza@funasa.gov.br

RESUMO

O Programa Fome Zero é um dos itens mais importantes da agenda social do governo atual. Apesar da enorme atenção que ele tem obtido na mídia e seu conteúdo ser de interesse dos profissionais de saúde pública, poucos sanitaristas têm-se manifestado a seu respeito. O objetivo deste artigo é rever os conceitos do Programa, sob a perspectiva dos epidemiologistas, observando o uso dos conceitos pobreza, fome e desnutrição na literatura biomédica. Ainda, através do estudo da distribuição da mortalidade por desnutrição, procura-se identificar as populações vulneráveis à desnutrição, quanto a: idade, alfabetização e localização geográfica. Apresenta-se, também, um quadro de referência para o entendimento das relações entre a pobreza e a desnutrição. Na literatura consultada, as palavras desigualdade socioeconômica (socioeconomic inequality) e desnutrição (malnutrition) são as mais usadas para definirem a condição desvantajosa da população quanto às condições socioeconômicas e alimentares. Quanto à mortalidade por desnutrição, observa-se uma polarização quanto ao padrão etário. No Norte e Nordeste, há uma maior ocorrência de óbito por esta causa em menores de um ano. No Sudeste e Sul, óbitos por esta causa são mais freqüentes em maiores ou igual a 65 anos. Os estados de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco apresentam maiores números de municípios com altas taxas de mortalidade por desnutrição em idosos. A polarização quanto ao padrão etário parece indicar duas condições distintas de desnutrição: carencial (infantes) e de abandono (idosos). O quadro de referência indica que pobreza é uma variável distal entre os determinantes da desnutrição. A compreensão desta estrutura é importante para que se desenhem políticas efetivas de redução da desnutrição entre populações vulneráveis.

Palavras-chave: Fome Zero, mortalidade, pobreza, fome, desnutrição

ABSTRACT

The Fome Zero Program is one of the most important items of the current government agenda. Despite attracting enormous media attention and bearing relevant contents for public health professionals, very few have presented themselves for the debate. The objective of this article is to review the concepts of the Program in an epidemiological perspective, through the observation of the use of the concepts of poverty, hunger and malnutrition on biomedical literature. In addition, this article aims at identifying vulnerable populations according to age, literacy, and geographical variables, considering the distribution of mortality due to malnutrition. In addition, an analytical framework for studying the relationship between poverty and malnutrition is presented. In the studied literature, the words socioeconomic inequality and malnutrition are the most used terms to express the unfavourable condition in relation to socioeconomic and nutritional statuses. In relation to mortality due to malnutrition, a polarised age pattern is observed. North and Northeast regions present highest indicators for infants. Southeast and Southern regions present highest death indicators for those from 65 on. The States of São Paulo, Minas Gerais and Pernambuco present highest concentrations of municipalities with high malnutrition mortality rates for elderly people. The polarized age pattern suggests two different conditions for malnutrition: deprived (infants) and neglected (elderly). The framework suggests that poverty is a distal variable among the determinants of malnutrition. The knowledge of this causal structure is important for the design of the abatement of effective policies for malnutrition within vulnerable populations.

Key words: Fome Zero, mortality, poverty, hunger, malnutrition

Introdução

O Programa Fome Zero é um dos itens mais importantes da agenda social do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Ele alinhava uma proposta ambiciosa destinada a combater a fome e seus determinantes estruturais, visando à segurança alimentar da população brasileira.

O Programa busca articular os três níveis governamentais em torno de uma política emergencial de combate à fome, da construção de uma política integrada de segurança alimentar e da implementação de um conjunto de políticas públicas dirigidas (MESA, 2003). Quanto a este último conjunto de iniciativas, as políticas públicas são assim classificadas: estruturais, referentes aos determinantes socioeconômicos da fome; especificas, referentes à ampliação do acesso aos alimentos e locais, referentes a políticas dirigidas de segurança alimentar, sob a responsabilidade de governos estaduais e municipais. Como ilustração do sistema de classificação anterior, temos os seguintes exemplos que se relacionam respectivamente a cada um dos grupos citados: reforma agrária, cartão alimentação e restaurantes populares.

Apesar da enorme atenção que o Programa Fome Zero tem obtido nas mídias nacional e internacional e seu conteúdo ser de interesse dos profissionais de saúde pública, poucos sanitaristas têm se manifestado publicamente quanto ao programa. Víctora (Folha de S. Paulo, 2003), em uma das raras manifestações entre estes profissionais, indica três ordens de problemas: i) ausência de distinção clara entre os conceitos de pobreza, fome e desnutrição; ii) imprecisão quanto à população alvo devido à falta de precisão conceitual e iii) ausência de articulação com as políticas de saúde, especialmente, aquelas voltadas aos infantes.

O objetivo deste artigo é rever os conceitos do Programa Fome Zero a partir de seus documentos básicos, sob uma perspectiva epidemiológica. Neste exercício, será observada a utilização dos conceitos pobreza, fome e desnutrição na literatura biomédica. Através do estudo da distribuição da mortalidade por desnutrição, procurar-se-á identificar as populações vulneráveis à desnutrição, quanto ao grupo etário, grau de alfabetização dos residentes do município e localização geográfica. Por fim, apresenta-se um quadro de referência para o entendimento das relações entre a pobreza e a desnutrição.

Metodologia

A freqüência dos vocábulos, em língua inglesa, referentes à pobreza, fome e desnutrição em revistas cientificas biomédicas foi pesquisada através de busca automatizada de palavras, observando-se o conteúdo dos artigos selecionados no Medline (PubMed, 2003). Somente a língua inglesa foi considerada, na medida em que ela é a língua dominante nas publicações científicas internacionais. Além do que, a totalidade dos artigos listados no PubMed apresenta título em língua inglesa e a maioria destes também apresenta resumo nesta língua. Dessa forma, obtém-se um quadro que não se restringe aos textos em língua inglesa.

A abrangência da busca automatizada de palavras compreendeu a seguinte ordem: os artigos publicados em língua inglesa foram analisados em todo o seu conteúdo; os publicados em outras línguas tiveram analisados os componentes apresentados em língua inglesa, i.e., título e resumo ou somente o título do artigo. Portanto, muitos artigos analisados continham somente o título ou o título e o resumo em inglês, sendo o conteúdo restante em outra língua.

Os vocábulos em inglês considerados enquanto associados à pobreza foram: deprivation, poverty e socioeconomic inequality. Os associados à fome foram: famine, hunger e starvation. Já os associados à desnutrição foram: malnutrition e undernutrition. Considerou-se o perído de 1998 a 2002. Somente artigos referentes às populações humanas foram considerados. Cada palavra computada corresponde a um artigo científico. Contudo, um único artigo pode conter mais de uma palavra pesquisada, sendo computado em mais de uma categoria. Por exemplo, um artigo que utilizasse as palavras poverty e deprivation assinalaria um artigo para cada uma das palavras em questão.

Na produção de taxas e mapa de distribuição espacial de óbitos por desnutrição, utilizaram-se as seguintes referências: óbitos e população residente em municípios brasileiros, no período de 1996 a 2000. Consideraram-se os óbitos classificados segundo a Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (OMS, 2000), enquanto desnutrição (códigos E40-E46), que possuiam indicação da idade do falecido. Os grupos etários considerados na produção das taxas especificas por idade e proporcional foram: menores de um ano, de 1 a 4 anos, de 5 a 14 anos, de 15 a 24 anos, de 25 a 34 anos, de 35 a 44 anos, de 45 a 54 anos, de 55 a 64 anos, de 65 a 74 anos e igual ou maior que 75 anos.

No período de 1996 a 2000, 31.768 declarações de óbito cujas causas básicas foram classificadas enquanto desnutrição (E40-E46). Contudo, 782 declarações foram desprezadas, neste estudo, por não apresentarem a idade ao morrer dos casos. Dessa forma, o universo de casos estudados é de 30.986.

Com relação à população alfabetizada acima de 10 anos de idade, na Figura 2B, é apresentada uma escala referente aos municípios referenciada no Censo Populacional de 2000 (IBGE, 2002). Os municípios foram categorizados em quintís de acordo com os seguintes pontos de corte: 1º quintil > 90,8; 2º quintil 86,4 – 90,8; 3º quintil 79,6 – 86,3; 4º quintil 68 – 79,5 e 5º quintil < 68.





Para a identificação das áreas que concentram as populações de idosos (idade igual ou superior a 65 anos) observou-se a distribuição espacial das taxas de mortalidade deste grupo etário por desnutrição, no período de 1996 a 2000 . Utilizou-se o método de exploração espacial não paramétrico de Kernel (Bailey & Gastrell, 1995), considerando as coordenadas das sedes municipais para a interpolação e suavização dos dados. Este método produz uma "superfície de risco", isto é, uma grade regular de intensidade para cada local da área estuda, por meio de uma estimativa da variável suavizada espacialmente (Bailey & Gastrell, 1995). A grade é formada pela média ponderada dos valores das taxas de mortalidade das áreas vizinhas. A ponderação considera os pesos atribuídos que são oriundos de uma função de distribuição de probabilidades das taxas de mortalidade.

Foram classificados seis níveis de intensidade e áreas sem casos. Esta classificação foi obtida utilizando o método de intervalos iguais do software ArcView 3.2, onde os sinais "-" e "+" direcionam os níveis de menor e maior intensidade. Os valores subjacentes à escala utilizada são: sem casos; 0,00-0,04; 0,04-0,09; 0,09-0,13; 0,13-0,17; 0,17-0,21 e 0,21-0,30.

Resultados

O Quadro 1 apresenta o resultado de uma consulta sobre a presença dos vocábulos pobreza, fome e desnutrição em populações humanas em revistas cientificas biomédicas, na base eletrônica de dados Medline (PubMed, 2003), referentes aos anos de 1998 a 2002.


A consulta indica que na literatura biomédica, dentre os conceitos utilizados para representar as variáveis socioeconômicas relacionadas à saúde, pobreza (poverty) e privação (deprivation) são menos freqüentes que desigualdade socioeconômica. Este último conceito refere-se à distribuição desigual do acesso a bens e serviços entre os diversos grupos sociais.

Sob os mesmos parâmetros de consulta do Quadro 1, as palavras "health inequality" estiveram freqüentes em 19.397 artigos. Há inúmeras definições para desigualdade em saúde. Uma delas, que é bastante freqüente embora não seja a de nossa preferência, refere-se às diferenças dos níveis de saúde em distintos grupos socioeconômicos (Kunst e Mackenbach, 1994). Na prática, indicariam os estudos relacionando desigualdade socioeconômica com saúde. Contudo, outras definições privilegiam os diferenciais de saúde sobre os diferenciais quanto à exposição aos fatores ligados às doenças, ocorrência de casos e acesso aos meios de saúde (Stephens, 1996, Paes-Sousa, 2000). Dessa forma, optamos por não inseri-la entre as palavras associadas à pobreza.

Entre as palavras que representam fome e desnutrição, nota-se que somente a desnutrição (malnutrition) possui uma freqüência expressiva nos artigos científicos biomédicos. As demais apresentaram baixas freqüências no período.

A Figura 1 indica que os menores de 5 anos responderam por 32% dos óbitos, enquanto os maiores de 65 anos contribuíram com 47% do total de óbitos. As taxas de mortalidade por 10 mil indicam um padrão acentuado de mortalidade nos grupos etários extremos em relação aos demais grupos etários, nos menores de 1 ano e maiores de 75 anos.

A Figura 2A indica a prevalência de dois padrões distintos de mortalidade por desnutrição em relação à idade. Enquanto que, no Norte e no Nordeste, predominam aqueles que acometem os menores de 1 ano; no Sudeste e Sul, a predominância se dá entre os que possuem 75 ou mais anos. A Figura 2B evidencia um padrão semelhante quanto ao grau de alfabetização de maiores de 10 anos, nos municípios brasileiros. Neste sentido, a maior concentração de óbitos dentre os municípios com menor grau de alfabetização ocorre entre os infantes. O oposto ocorre entre as populações com maior grau de alfabetização.

A Figura 2C indica as áreas geográficas de maior intensidade de taxas de mortalidade por desnutrição em idosos. As microrregiões de maior intensidade estão situadas nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco, compreendendo um total de 145 municípios. As microrregiões de maior risco, de acordo com cada estado, são respectivamente: em São Paulo, Metropolitana de São Paulo, Macro- Metropolitana Paulista e Vale do Paraíba; em Minas Gerais, Sul/Sudoeste de Minas e Zona da Mata; Pernambuco, Metropolitana de Recife, Zona da Mata e Agreste.

Discussão e Recomendações

Os conceitos

Pobreza refere-se à falta de recursos por parte de um individuo ou população. Em termos de indicadores, embora muitos incluam as variáveis: educação, saúde, habitação e salário, é esta última a mais utilizada na mensuração do fenômeno (Pieterse, 2002). Em estudos de saúde, pode atuar enquanto uma variável independente ligada à determinação da morbimortalidade.

Fome é um estado de desconforto físico relacionado à carência de alimentos. A fome não é um conceito clínico. Não está presente na Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (OMS, 2000), nem como patologia, nem como sinal ou sintoma. Não obstante, há inúmeros estudos clínicos e epidemiológicos do efeito da fome sobre populações humanas (Quadro 1). Monteiro (1995), por exemplo, estudou a distribuição da fome no Brasil através distribuição do Índice de Massa Corporal da população adulta.

Contudo, muito mais que a pobreza que também pode ser generalizada, a fome adquire na literatura não científica a dimensão de uma carência generalizada com forte conteúdo moral que a associa às injustiças sociais.

Desnutrição, segundo Monteiro (1995), é manifestação clínica decorrente da adoção de dieta inadequada ou de patologias que impedem o aproveitamento biológico adequado da alimentação ingerida. Na Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (OMS, 2000), a desnutrição pode ser assim especificada: Kwashiorkor (E40), marasmo nutricional (E41), Kwashiorkor marasmático (E42), desnutrição proteico-calórica grave não especificada (E43), desnutrição proteico-calórica de graus moderado e leve (E44), atraso do desenvolvimento devido à desnutrição proteico-calórica (E45) e desnutrição proteico-calórica não especificada (E46).

Muitos autores destacam a associação existente entre desnutrição e infecção, a qual compromete a precisão na definição dos casos. Mendonça e cols (1994) identificaram grandes problemas relativos aos erros de codificação de causas básicas de óbito infantil no ano de 1989, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Efeitos sinérgicos da infecção e desnutrição dificultam a definição dos médicos ao atestarem a causa básica de óbito no infante. Dessa forma, foram encontradas associações consistentes entre desnutrição, pneumonia e diarréia, em menores de um ano. Carvalho e cols (1990) encontraram semelhante padrão para os óbitos de infantes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Mosley e Chen (1984) definem esse fenômeno como o produto dos efeitos sinérgicos da infecção e o desenvolvimento permeado pela deficiência nutricional, que acometeria muitas crianças de países em desenvolvimento. Dessa forma, o circuito pobreza-desnutrição–infecção se completaria, provocando mortes precoces e evitáveis. Nos estudos de saúde, fome e desnutrição podem atuar como variáveis dependentes ou independentes.

Quanto mais ampla e muldimensional é a observação de um fenômeno, mais complexo tende a ser a sua conceituação e a forma de aferi-lo, dificultando o diálogo entre as corporações técnico-científicas. Neste sentido, a pobreza comporta definições e mensurações menos objetivas que a desnutrição. Outro aspecto que dificulta este diálogo é a preferência vocabular na representação de um fenômeno observado em distintas corporações técnico-científicas. Os conceitos fome e pobreza que dão a vertebralidade do programa Fome Zero soam pouco precisos e são pouco familiares à literatura científica biomédica.

Óbitos e populações vulneráveis

Nos estudos epidemiológicos, as populações estudadas necessitam de parâmetros precisos, isto é, as populações classificadas como vulneráveis, alvo ou de referência, demandam características que as singularizam frente a outras populações. Estas podem se referir: a condições socio-demográficas; ao patrimônio genético e à exposição a fatores biológicos, geográficos e comportamentais. A precisão e a individualização são condições sine qua non para o sistema classificatório.

A população alvo do Programa Fome Zero é estimada em 44 milhões de pessoas (Projeto Fome Zero, 2001). Este parâmetro é bastante sensível na seleção das populações com o mais alto grau de vulnerabilidade quanto à pobreza, fome e desnutrição. Contudo, as imprecisões conceituais aliadas ao baixo grau de especificidade na seleção da população alvo podem impedir o desenho adequado de políticas de segurança alimentar. Na prática, se poderá ter um programa amplo de combate à pobreza e seus riscos imediatos. Contudo, não se poderá estimar o impacto destas políticas no combate à desnutrição.

Monteiro (1995) estimou, para o ano de 1989, em 5% da população brasileira acima de 25 anos de idade, a proporção de afetados pela fome. As regiões Norte e Nordeste, especialmente as áreas rurais, seriam as mais comprometidas e as populações com idades iguais ou superiores a 65 anos seriam as mais afetadas.

Monteiro (1995) estimou, também, a proporção de desnutridos entre os brasileiros menores de cinco anos de idade, estimando em 15,4% para o ano de 1989. Novamente, a área rural do Nordeste respondia pela maior proporção de desnutridos nesta faixa etária.

No presente estudo, os resultados apresentados na Figura 1 tendem a subestimar os efeitos da desnutrição por não incorporarem os óbitos decorrentes de infecções que, como indicamos anteriormente, podem atuar sinergicamente na determinação da mortalidade. Embora o efeito da desnutrição seja muito maior na morbidade do que na mortalidade, os estudos de mortalidade podem nos indicar: quais e onde estão os grupos populacionais que estão mais vulneráveis a formas mais graves da doença.

Na Figura 2A, observam-se que em municípios do Norte e do Nordeste, o óbito por desnutrição tende acometer os menores em primeiro lugar e secundariamente os mais idosos. O oposto tende a ocorrer nos municípios mais afluentes. É um achado consistente com estudos sobre as desigualdades em saúde na mortalidade infantil (Duarte et al, 2002). Por conseguinte, são também coerentes com os achados apresentados na Figura 2B, já que estas regiões possuem os municípios com menor grau de escolaridade.

Para grande parte dos idosos de grandes centros urbanos, a questão central não é a garantia de acesso aos alimentos, mas a execução de políticas especificas de provisão de alimentos. Os idosos que vivem apartados da família podem ter sua alimentação comprometida pela ausência de dentes (Marcenes et al, 2003), falta de disposição física para comprar e preparar os alimentos (Caldas, 2003) e doenças. São antes vítimas do abandono social do que da falta de acesso aos alimentos (Guerra e cols, 2000 e Tierney, 1996). Otero et al (2002), em estudo sobre a mortalidade de idosos por desnutrição no sudeste brasileiro, especula que a renda destes em famílias mais pobres passa a ser rateada entre os membros do grupo familiar. Dessa forma, os idosos estariam submetidos a um acesso restrito aos alimentos adequados ao seu padrão etário.

A estrutura etária polarizada encontrada parece indicar dois padrões distintos de desnutrição: desnutrição carencial e desnutrição de abandono. O primeiro caso estaria associado às populações empobrecidas que apresentam dificuldades quanto ao acesso aos alimentos, tanto no tocante à quantidade, quanto à qualidade. O segundo caso, nos remeteria às populações de idosos que, embora tenham condições financeiras para aquisição de alimentos, não os obtém devido a outros fatores.

Na Figura 3C, a utilização dos métodos de superfície sugere a idéia de continuidade do território (Santos et al, 2001), onde as áreas de maior intensidade ou "superfície de risco", sugerem tendências em larga escala da distribuição das taxas. O processo de suavização espacial, inerente à estatística kernel, tende a valorizar a agregação de municípios com taxas elevadas. Dessa forma, os municípios isolados com altas taxas perdem relevância neste método. As microrregiões destacadas neste estudo indicam um adensamento de municípios com altas taxas que demanda estudos com maior robustez metodológica. Contudo, pode-se especular que os efeitos da estrutura etária associados a problemas na hospitalização dos idosos podem estar influenciando o padrão geográfico apresentado.


No país, há várias fontes de dados disponíveis para estudos de morbimortalidade de desnutrição. São elas: hospitais, ambulatórios, Programa Saúde da Família e similares, SIM e SINASC, escolas e creches, levantamentos específicos, exames médicos ocupacionais, forças armadas e prisões. Estudos apoiados nestas fontes, que articulem a academia e as instituições públicas prestadoras de serviços de saúde, poderão agregar ao debate mais evidências sobre o quadro atual da desnutrição no Brasil e suas conseqüências funcionais.

Um quadro de referência para pobreza e desnutrição

A Figura 3 apresenta um quadro de referência para o entendimento da relação dos determinantes do ambiente físico, socioeconômicos e proximais da desnutrição e suas conseqüências funcionais. Este quadro foi adaptado a partir do modelo desenvolvido por Steckel e Floud (1997) para o estudo dos relacionamentos da altura dos indivíduos e com os padrões de vida adotados. Este quadro também sofre influência do modelo desenvolvido por Mosley e Chen (1984) para o estudo da sobrevivência das crianças em países subdesenvolvidos.

Os determinantes do ambiente físico operam, tanto na determinação das doenças que comprometem o estado nutricional, quanto na oferta de alimentos. Os determinantes do ambiente físico se articulam, tanto com os determinantes socioeconômicos, quanto com os determinantes proximais. Neste texto, optou-se por dar menos ênfase a estes grupos de determinantes para concentrar o foco na relação da pobreza com desnutrição. Dessa forma, não listaram-se as variáveis ligadas a este grupo de determinantes. Entretanto, serão assinaladas nos parágrafos seguintes duas questões: as rotas ambientais dos processos infecciosos e o aumento da produtividade agrícola em função de condições favoráveis e sua repercussão no estado nutricional das populações.

Cairncross e cols (1996), ao analisarem as rotas de transmissão das doenças infecciosas, identificaram um vasto território de oportunidades para ocorrência de infecções, que compreende os ambientes: público, peri-domiciliar e domiciliar. Dessa forma, em ambientes com condições sanitárias precárias, aumentam as chances da intercorrência de infecções que podem disparar o circuito infecção/desnutrição (Catapreta e Heller, 1999).

Limitações do ambiente físico podem determinar a redução na oferta alimentos. Contudo, Sen (1984) adverte-nos para o fato de que a produtividade rural em condições ambientais favoráveis não está necessariamente relacionada à maior oferta de alimentos no mercado local. Modelos econômicos excludentes podem, mesmo no advento de produtividades agrícolas crescentes, permitir que parcelas expressivas da população experimentem estados severos de desnutrição.

Os determinantes socioeconômicos estão relacionados à capacidade de obtenção dos meios de saúde, isto é, compreendem a capacidade econômica e cognitiva de se apreender bens e serviços de saúde e incorporar práticas de higiene pessoal e ambiental que favoreçam a obtenção e manutenção de boas condições de saúde. Entre os bens de saúde, relacionamos os alimentos. Dessa forma, estes determinantes elencam um conjunto de variáveis que nos remetem, por um lado, para a dimensão individual relacionada ao poder de compra, empregabilidade e escolaridade e, por outro lado, para dimensão pública centrada na capacidade do Estado e outros entes da vida pública em prover as condições essenciais de saúde aos indivíduos. É importante destacar que, na ausência de coesão social, os grupos sociais mais empobrecidos vêem aumentar os obstáculos para obtenção/manutenção de condições de saúde favoráveis (Kawachi e cols, 1997). Dessa forma, incluímos as redes de suporte social como determinante socioeconômico no quadro de referência.

Os determinantes proximais estão ligados à dieta e à higidez necessária à absorção adequada dos alimentos. A dieta implica reposição protéico-calórica do que é consumido nas atividades diárias, sobretudo as laborais. As condições de saúde necessárias à absorção dos alimentos estão relacionadas às condições de saúde e estado imunológico dos indivíduos e ao patrimônio genético individual (Steckel, 2001). Desde os estudos de Caldwell (1979) reconhece-se a importância da escolaridade materna enquanto variável ligada à mortalidade infantil. Dessa forma, assim como Mosley e Chen (1984), optou-se, neste trabalho, por valorizar sua importância no quadro de referência posicionando-a no subgrupo dos determinantes proximais da desnutrição.

As variáveis que expressam a desnutrição são as etiologias classificadas na CID-10 (OMS, 2000). As conseqüências na saúde dos indivíduos compreendem a inversão temporal do que se busca quanto à mortalidade e a morbidade, isto é, mortalidade tardia e estados mórbidos breves. As doenças da desnutrição implicam a redução da capacidade dos indivíduos em experimentarem mais plenamente as atividades humanas essenciais: o trabalho, o saber, o lazer e o convívio – e toda as suas repercussões na esfera da afetividade humana.

Recebido em: 5/03/2003

Aprovado em: 12/05/2003

  • BAILEY, T. C. & GATRELL, A. C. Interactive Spatial Analysis Primeira Edição. Essex: Longman. 436 p. 1995.
  • CAIRNCROSS, S. ET AL. The public and domestic domains in the transmission of disease. Tropical Medicine and International Health, v. 1, n. 1, p. 27-34, 1996.
  • CALDAS, C.P. Envelhecimento com dependência: responsabilidade e demandas da família. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 773-781, 2003.
  • CALDWELL, J.C. Education as a factor in mortality decline: an examination of Nigerian data. Proceedings of the Meeting on Socioeconomic Determinants and Consequences of Mortality. Cidade do México, 19-25 de junho. Nova York e Genebra, Nações Unidas e Organização Mundial de Saúde. 1979.
  • CATAPRETA, CA. E HELLER, L. Associação entre coleta de resíduos sólidos domiciliares e saúde, Belo Horizonte (MG), Brasil. Pan American Journal of Public Health, v. 5, n. 2, p. 88-96, 1999.
  • CARVALHO, M., NIOBEY, F., MIRANDA, N. AND SABROZA, P. Concordância na determinação da causa básica de óbito em menores de um ano na região metropolitana do Rio de Janeiro. Revista de Saúde Pública, n. 24, p. 20-27, 1990.
  • DUARTE e cols. Epidemiologia das desigualdades em saúde no Brasil: um estudo exploratório. Edição Revisada. OPAS, Brasília, 2002.
  • FOLHA DE S. PAULO. João Batista Natali. Morrer de fome é raro no país, diz especialista: entrevista com Cezar G. Victora 4 de março de 2003.
  • GUERRA HL, BARRETO SM, UCHÔA E, FIRMO JOA. A morte de idosos na Clínica Santa Genoveva, Rio de Janeiro: um excesso de mortalidade que o sistema público de saúde poderia ter evitado. Cad Saúde Pública, v. 16, n. 2, p. 545-51, 2000.
  • IBGE. Disponível na Internet: www.ibge.gov.br/ibge/estatistica/populacao/censo2000/ default.shtm acessado em 2 de agosto de 2002.
    » link
  • KAWACHI, I, KENNEDY, BP., LOCHNER, K. E PROTHROW-STITH, D. Social capital, income inequality, and mortality. American Journal of Public Health, v. 87, n. 9, p. 1491-1498, 1997.
  • KUNST, AE AND MACKENBACH JP. Measuring socioeconomic inequalities in health Copenhagen: WHO-Regional office for Europe. 1994.
  • MARCENES, W., STEELE, J.G., SHEIHAM, A., WALLS, A.W. The relationship between dental status, food selection, nutrient intake, nutritional status, and body mass index in older people. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 809-816, 2003.
  • MENDONÇA, E., GOULART, E. AND MACHADO, J. Confiabilidade da declaração da causa básica de mortes infantis em regiao metropolitana do sudeste do Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 28, n. 5, p. 385-391, 1994.
  • MESA (Ministério de Estado Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome). Programa Fome Zero – Abril/2003: Principais ações dos primeiros três meses Brasília: Assessoria Parlamentar do MESA. 2003.
  • MONTEIRO, C.A. A dimensão da pobreza, da fome e da desnutrição no Brasil. Estudos Avançados, v. 9, n. 24, p. 195-207, 1995.
  • MOSLEY, W. E CHEN, L. An analytical framework for the study of child survival in developing countries. Population and Development Review, v. 10 (Supplement), p. 25-45, 1984.
  • OMS (Organização Mundial de Saúde). Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10ª Revisão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2000.
  • OTERO, UB., ROZENFELD, S., GADELHA, AMJ E CARVALHO, MS. Mortalidade por desnutrição em idosos, região Sudeste do Brasil, 1980-1997 Rev Saúde Pública, v. 36, n. 2, p. 141-8, 2002.
  • PAES-SOUSA, R.,. Socio-economic and environmental differentials, and mortality in a developing urban area (Belo Horizonte - Brazil) PhD Thesis, Londres: London School of Hygiene and Tropical Medicine, University of London. 2000.
  • PIETERSE, J.N. Global inequality: bringing politics back in. Third World Quarterly, 23(6): 1023-1046. 2002.
  • PROJETO FOME ZERO. Uma proposta política de segurança alimentar para o Brasil São Paulo: Instituto Cidadania. 2001.
  • PubMed. Disponível na Internet: www.ncbi.nlm.gov/entrez/query.fcgi (acessado em 15 de maio de 2003). 2003.
    » link
  • SANTOS, S.M., BARCELLOS, C., CARVALHO, M.S. & FLORES, R. Detecção de aglomerados espaciais de óbitos por causas violentas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 1996. Cadernos de Saúde Pública, v. 17, n. 5, p. 1141-1151, 2001.
  • SEN, A. Poverty and famines: an essay on entitlement and deprivation Oxford, Oxford University Press. 1984.
  • SOUZA-SANTOS,R E CARVALHO, M.S. Análise de distribuição espacial de larvas de Aedes aegypti na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de saúde Pública, v. 16, n. 1, p. 31-42, 2000.
  • STECKEL, R. H. E FLOUD, R. Health and welfare during industrialization Chicago: University of Chicago Press. 1997.
  • STECKEL, R. H. Industrialization and health in historical perspective. In: LEON, D. E WALT, G. Poverty, inequality and health: an international perspective. Oxford: Oxford University Press. p. 37-57. 2001.
  • STEPHENS, C. Healthy cities or unhealthy islands? The health and social implications of urban inequality. Environment and Urbanization, v. 8, n. 2, p. 9-30, 1996.
  • TIERNEY JA. Undernutrition and elderly hospital patients: a review. J Adv Nurs, n. 23, p. 228-36, 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2003

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2003
  • Aceito
    12 Maio 2003
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br