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Congressos internacionais sobre transdisciplinaridade: reflexões sobre emergências e convergências de idéias e ideais na direção de uma nova ciência moderna

International congresses on transdisciplinarity: reflections on emergences and convergences of ideas and ideals towards a new modern science

Resumos

O artigo focaliza o processo de constituição de um corpo de conhecimento recente sobre a transdisciplinaridade. Baseia-se em fontes documentais de congressos e colóquios internacionais sobre o tema e apresenta tal processo como parte do amplo movimento de crítica , na atualidade, ao paradigma dominante que preside a ciência moderna, considerado fragmentador e redutor da realidade , porque centrado em disciplinas cujo pressuposto é ignorar o que existe "entre" e "além" de suas fronteiras. Discute as possibilidades do surgimento desse novo referencial relacionadas ao poder heurístico do termo 'transdisciplinaridade', considerado capaz de congregar cientistas de diferentes áreas e humanistas em geral em torno de um conjunto de idéias passível de representar a consecução de um grande ideal: integrar o conhecimento e humanizar a ciência. Essa proposta é considerada inovadora, por não colocar a transdisciplinaridade como uma hiperdisciplina, mas considera-la, ao lado da pluri, da inter e também da disciplina, como uma das quatro flexas de um mesmo arco: o do conhecimento. Também por propor o diálogo entre as ciências, assim como com a filosofia, a arte, a literatura, a experiência humana, etc. Destaca, igualmente, a capacidade heurística desse referencial, organizado sobre três pilares - " a complexidade", " os diferentes níveis de realidade" e " a lógica do terceiro incluído" - , por possibilitar avanços em estudos que o tem empregado objetivando a construção de uma metodologia transdisciplinar. Aponta, finalmente, para a contribuição que a adoção desse referencial poderá trazer para pesquisas no campo da saúde pública e coletiva.

Transdisciplinaridade; Interdisciplinaridade; Congressos; Paradigma; Ciência Moderna; Saúde Pública


The article approaches the process of constitution of a recent body of knowledge about transdisciplinarity. It is based on documental sources of international congresses and colloquiums on the theme and presents this process as part of the current broad movement of criticism against the dominant paradigm that presides over modern science. This paradigm fragments and reduces reality, because it is centered on disciplines that ignore what exists "between" and "beyond" their borders. It discusses the possibilities of the emergence of this new body of knowledge related to the heuristic power of the term 'transdisciplinarity', considered capable of congregating scientists from different areas and humanists in general around ideas that can represent the achievement of a great ideal: integrating knowledge and humanizing science. This proposal is innovative, as it does not consider transdisciplinarity a hyperdiscipline; rather, together with pluridisciplinarity, interdisciplinarity and also the discipline, it is one of the arrows of the same bow: that of knowledge. Also because it proposes the dialog between the sciences, and also with philosophy, the arts, literature, human experience, etc. In addition, it emphasizes the heuristic capacity of this body of knowledge, organized on three pillars - "complexity", "different levels of reality" and "the logic of the included middle" -, as it enables advances in studies that have been employing it, aiming at the construction of a transdisciplinary methodology. Finally, it points to the contribution that the adoption of this body of knowledge can provide for research in the field of public and collective health.

Transdisciplinarity; Interdisciplinarity; Congresses; Paradigm; Modern Science; Public Health


TEMA EM DISCUSSÃO

Congressos internacionais sobre transdisciplinaridade: reflexões sobre emergências e convergências de idéias e ideais na direção de uma nova ciência moderna

International congresses on transdisciplinarity: reflections on emergences and convergences of ideas and ideals towards a new modern science

Augusta Thereza de AlvarengaI; Américo SommermanII; Aparecida Magali de Souza AlvarezIII

ISocióloga, Doutora em Saúde Pública; Professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. E-mail: atal@usp.br

IIMestre em Ciências da Educação pela Universidade de Lisboa, Portugal; Doutorando em Ciências da Educação na Universidade François Rabelais de Tours, França; Coordenador Adjunto de publicação do Centro de Educação Transdisciplinar CETRANS. E-mail: americo@cetrans.com.br

IIIPsicóloga, Doutora em Saúde Pública; Pós-doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, pela FAPESP. E-mail: apmagali@terra.com.br

RESUMO

O artigo focaliza o processo de constituição de um corpo de conhecimento recente sobre a transdisciplinaridade. Baseia-se em fontes documentais de congressos e colóquios internacionais sobre o tema e apresenta tal processo como parte do amplo movimento de crítica , na atualidade, ao paradigma dominante que preside a ciência moderna, considerado fragmentador e redutor da realidade , porque centrado em disciplinas cujo pressuposto é ignorar o que existe "entre" e "além" de suas fronteiras. Discute as possibilidades do surgimento desse novo referencial relacionadas ao poder heurístico do termo 'transdisciplinaridade', considerado capaz de congregar cientistas de diferentes áreas e humanistas em geral em torno de um conjunto de idéias passível de representar a consecução de um grande ideal: integrar o conhecimento e humanizar a ciência. Essa proposta é considerada inovadora, por não colocar a transdisciplinaridade como uma hiperdisciplina, mas considera-la, ao lado da pluri, da inter e também da disciplina, como uma das quatro flexas de um mesmo arco: o do conhecimento. Também por propor o diálogo entre as ciências, assim como com a filosofia, a arte, a literatura, a experiência humana, etc. Destaca, igualmente, a capacidade heurística desse referencial, organizado sobre três pilares - " a complexidade", " os diferentes níveis de realidade" e " a lógica do terceiro incluído" – , por possibilitar avanços em estudos que o tem empregado objetivando a construção de uma metodologia transdisciplinar. Aponta, finalmente, para a contribuição que a adoção desse referencial poderá trazer para pesquisas no campo da saúde pública e coletiva.

Palavras-chave: Transdisciplinaridade; Interdisciplinaridade; Congressos; Paradigma; Ciência Moderna; Saúde Pública

ABSTRACT

The article approaches the process of constitution of a recent body of knowledge about transdisciplinarity. It is based on documental sources of international congresses and colloquiums on the theme and presents this process as part of the current broad movement of criticism against the dominant paradigm that presides over modern science. This paradigm fragments and reduces reality, because it is centered on disciplines that ignore what exists "between" and "beyond" their borders. It discusses the possibilities of the emergence of this new body of knowledge related to the heuristic power of the term 'transdisciplinarity', considered capable of congregating scientists from different areas and humanists in general around ideas that can represent the achievement of a great ideal: integrating knowledge and humanizing science. This proposal is innovative, as it does not consider transdisciplinarity a hyperdiscipline; rather, together with pluridisciplinarity, interdisciplinarity and also the discipline, it is one of the arrows of the same bow: that of knowledge. Also because it proposes the dialog between the sciences, and also with philosophy, the arts, literature, human experience, etc. In addition, it emphasizes the heuristic capacity of this body of knowledge, organized on three pillars – "complexity", "different levels of reality" and "the logic of the included middle" –, as it enables advances in studies that have been employing it, aiming at the construction of a transdisciplinary methodology. Finally, it points to the contribution that the adoption of this body of knowledge can provide for research in the field of public and collective health.

Keywords: Transdisciplinarity; Interdisciplinarity; Congresses; Paradigm; Modern Science; Public Health.

Introdução

Ao indagar se o avanço dos conhecimentos científicos – que aumentaram em trinta anos mais do que se fez durante o último milênio – beneficiou a humanidade, Patrick Paul (2003) coloca-nos diante da questão central que tem mobilizado a reflexão filosófica crítica, representado por renomados pensadores como Jürgen Habermas, Cornelius Castoriadis, Boaventura de Sousa Santos, Edgard Morin, para citar alguns, sobre o sentido, significado, objetivos, finalidades, valores, da produção gerada pela ciência moderna fundada em uma estreita concepção de racionalidade.

Paul aproxima-nos mais da discussão ao responder "não", citando como exemplos dois domínios que a ele e a nós são familiares, a saúde e o meio ambiente.

Uma pequena incursão sobre a forma como a ciência moderna se constitui, se fundamenta e se organiza permite, por um lado, melhor subsidiar o entendimento da questão e resposta enunciadas por Paul e, por outro, refletir sobre o significado assumido pelas propostas da inter e da transdisciplinaridade como formas de fazer avançar o conhecimento científico, norteados por uma concepção de racionalidade mais ampla, que contempla homem e natureza como uma unidade e não de maneira dissociada.

Focando a história da ciência, Kneller (1980, p.54) afirma que "A ciência evolui através de atos de homens e mulheres – atos como inventar hipóteses, realizar experimentos, ponderar provas e publicar resultados. A finalidade desses atos é produzir um conhecimento verificado – conhecimento que mereça aceitação pela comunidade científica. Para produzir tal conhecimento, a Ciência deve ser racional, pois, se as alegações do conhecimento não forem racionalmente baseadas, faltarão argumentos para que elas sejam preferidas à pretensão de gurus e adivinhos, e a investigação científica não terá qualquer significado. Portanto, se quisermos entender o empreendimento científico devemos apurar não só como a ciência evolui, mas também até que ponto o faz racionalmente".

Com essa asserção Kneller delineia o quadro onde a produção da ciência moderna se inscreve tendo a racionalidade como elemento definidor. E, segundo Boaventura de Sousa Santos (1995, p.18), racionalidade que é, por sua vez, fundada na "consciência filosófica da ciência moderna" que teve no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, que se condensam no positivismo oitocentista que concebe somente a existência de duas formas de conhecimento científico, ou seja, as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais.

Tal modelo de racionalidade que preside a ciência moderna constitui-se, segundo Santos (1995), o paradigma dominante, a partir do século XIX, quando além do domínio nas ciências naturais se estende, igualmente, a parcela das ciências sociais emergentes.

Afirma, esse mesmo autor, que "a partir de então pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite variedade interna, mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas 'humanidades' ou estudos humanistas (em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos" (Santos 1995,p.10). É assim que esse novo modelo global, considerado por Santos totalitário, passa a negar o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautaram pelos seus princípios epistemológicos e pelas regras metodológicas convencionais, por si só tomadas como garantia de critério de verdade.

Com essa proposta que enclausura o processo de conhecimento em compartimentos, a ciência moderna rompe radicalmente com a tradição do pensamento clássico e enciclopedista dissociando saberes e práticas, indivíduo e sociedade, local e global, sujeito e objeto, objetivo e subjetivo, passando a trabalhar, sobretudo, por temas e problemas circunscritos e especializados e a caracterizar-se por uma fragmentação sempre crescente do saber, que encontra no isolado espaço disciplinar seu principal sentido e finalidade, o caráter científico.

Uma constatação alarmante dessa progressiva pulverização do saber disciplinar foram os dados apresentados por J. Thompson Klein, em artigo de 1998, citado por Paul (2003, p. 134), da explosão de especialidades ocorridas na segunda metade do século passado. O referido autor assinala que, de 7 a 54 disciplinas identificadas de 1.300 a 1.950, pode constatar que em 1987 havia 8.530 campos de conhecimento definíveis. E não se contabiliza aqui os domínios que caracterizariam os conhecimentos outros que aqueles da ciência.

Tal fato encontra explicação nas grandes transformações políticas no período pós II Guerra Mundial quando se observa a chamada "Guerra Fria" e a marcante hegemonia econômica dos Estados Unidos da América. Isto porque, neste contexto, a grande expansão da capacidade produtiva do sistema capitalista passa a exigir cada vez mais o conhecimento especializado, o que leva igualmente à grande ampliação, em nível mundial, do sistema educacional e da presença de financiamentos público e privado para pesquisas científicas e tecnológicas especialmente norteadas pelos pressupostos de tal modelo hegemônico da ciência. (Comissão Gulbenkian, 1996)

Vale mencionar que, nesse processo, a distinção corrente entre as chamadas "duas culturas", que contrapõem ciência e humanidades, se acentua se considerarmos que, nesse período, as possibilidades de recursos financeiros à pesquisa advindos dos Estados Unidos e de outros países desenvolvidos, mas também de fundações (na sua maioria sediada nos Estados Unidos), passam a incentivar uma ainda maior e mais profunda cientificação das Ciências Sociais. Esse fato passa a identificar a Sociologia, a Ciência Política e a Economia como disciplinas marcadamente nomotéticas por tomarem, em grande parte, o paradigma das Ciências Naturais como modelo cientificamente legítimo, desenvolvido sob a bandeira da universalidade da ciência. (Comissão Gulbenkian, 1996)

Pela adesão inconteste, acrítica e ideológica da grande maioria de membros da comunidade científica, o referido modelo de ciência, conforme já observado, firma-se como paradigma dominante a partir do século XIX (Santos, 1995), passa a gerenciar o que, na terminologia de Kuhn (1978) poderíamos denominar de "ciência normal" da modernidade, e, vale lembrar, hegemônica sobretudo por atender plenamente aos interesses da moderna sociedade industrial, tecnológica e informacional que a sustenta e lhe atribui valores. (Habermas, 1986)

Nessa linha de interpretação podemos entender, como paradigma dominante, a definição que consideramos mais corrente, dada pelo próprio Kuhn (1975, p.13), que emprega esse termo na sua abordagem da história da ciência: "Considero paradigmas as experiências científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes [comunidade científica] de uma ciência."

Paradigmas são, para esse autor, espécies de "modelos" aceitos como dominantes por dada comunidade científica, cuja função é direcionar toda a pesquisa em sua área. A idéia básica presente é a de que é a "teoria" dominante que determina os fatos que serão procurados, investigados, e não o contrário. Portanto, os problemas de investigação são sugeridos pelo paradigma e por ele solucionados.

Nessa perspectiva, é a comunidade científica, com base na "teoria" dominante, quem define que questões podem ser legitimamente formuladas a respeito das entidades existentes no mundo e que técnicas podem ser empregadas na busca de solução.

Desse modo, para Kuhn (1975), antes da aceitação de um paradigma tudo é mais complicado para uma ciência porque há diversas teorias dirigidas à atividade científica, como é o caso das Ciências Sociais. Daí considerar estas últimas como pré-paradigmáticas. Portanto, a idéia de adoção de paradigma relaciona-se estreitamente com a idéia de "maturidade" de determinada ciência e de "pesquisa eficaz" porque fornece respostas "seguras" e "coerentes" a dadas perguntas.

Como decorrência, toda produção científica inscrita no âmbito da "ciência normal" freqüentemente suprime novidades fundamentais por subverterem necessariamente seus compromissos básicos, sobretudo a manutenção do sucesso da "teoria". Daí tais novidades serem tratadas como "anomalias" e a ciência normal não se colocar frente às novidades práticas ou teóricas.

Tais características paradigmáticas assumidas pelo modelo de ciência moderna encontram-se presentes, com especificidades em diferentes áreas do conhecimento, e ganham no campo da saúde grande expressão, conforme demonstram vários trabalhos publicados na área como, por exemplo, os de Naomar de Almeida Filho ( 1989, 1992) e José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres (1994, 1995, 1997). Pelo fato deste modelo ter assumido, segundo Santos (2004ª, p.18), "a sua inserção no mundo mais profundamente do que qualquer outra forma de conhecimento anterior ou contemporânea" é que podemos melhor entender a natureza e relevância do debate que se trava, em torno da questão da racionalidade científica, notadamente a partir dos anos 1960, acentuado nas últimas décadas do século passado e continuamente ampliado nos dias de hoje.

Sobre a Emergência dos Pensamentos Inter e Transdiciplinar e suas relações

Se retomarmos a resposta negativa de Patrick Paul (2003), com a qual iniciamos o presente artigo, à sua própria indagação, de se o grande avanço do conhecimento científico da modernidade beneficiou o "progresso" da humanidade, poderemos melhor entender sua posição ao observarmos, por um lado, que sua reflexão se inscreve no interior do movimento conhecido como transdiciplinaridade, cujas raízes foram lançadas pela preocupação primeira de incorporação, na ciência moderna, do pensamento interdisciplinar, como resposta à mencionada progressiva fragmentação e limites do saber disciplinar. Por outro, ao considerarmos que esse pensamento interdisciplinar, emergente nos anos de 1960, centra-se na crítica ao positivismo notadamente por esse desconsiderar qualquer reflexão sobre o lugar que o homem ocupa no mundo e no processo de conhecimento.

Na referência à gênese do movimento pela defesa do pensamento interdisciplinar na ciência moderna, não se pode ignorar o pensamento do filósofo francês Georges Gusdorf, cujo nome é, segundo Siebeneichler (1989), um dos mais citados nos textos contemporâneos que abordam de maneira específica esse tipo de pensamento. Considerado, por muitos, humanista radical, Gusdorf passa a defender em sua obra o projeto da interdisciplinaridade como busca da totalidade do conhecimento por considerar, segundo Minayo (1991, p. 72), que a ciência moderna, pela fragmentação do saber, ignora "o ser humano como ponto de partida e de chegada", "desnaturaliza a natureza" e "desumaniza a humanidade" porque promove, segundo Japiassu (1976) – que introduziu o pensamento desse autor no Brasil – a ruptura entre o conhecimento da natureza e do mundo social. Assim, para Gusdorf, em prefácio de livro de Japiassu (1976), a grande perda de significado para a humanidade dos produtos da ciência moderna – idéia que se aproxima ao pensamento de Patrick Paul antes mencionado – encontra-se no fato de que, ao romper radicalmente com a tradição dos pensamentos, clássico e enciclopedista, essa passa a descartar qualquer tipo de inteligibilidade universal do pensamento humano calcado em mitos e cosmogonias, em nome de seu modelo característico de racionalidade científica que reduz a percepção da realidade no processo de conhecimento.

Na crítica ao modelo positivista da ciência moderna – que marca a emergência da especialização do saber disciplinar e fragmentado – Gusdorf o contrapõe, em seu trabalho intitulado "Passado, presente e futuro da pesquisa interdisciplinar", (Gusdorf, 1997), ao caráter enciclopédico e caracteristicamente interdisciplinar que marca toda a tradição grega – o enkuklio paidéia –, programa milenar que avança até o Renascimento passando pela Idade Média, quando na segunda metade do século XVIII é interrompido.

A despeito de tentativas para a reintrodução de uma formação integral representada por uma "pedagogia da totalidade", a proposta cientificista e positivista que caracteriza o paradigma da ciência moderna se firma progressivamente, fazendo recuar a "esperança interdisciplinar". (Gusdorf, 1977)

Segundo Sommerman (2003), embora frustrada, a idéia não foi abandonada, mas somente as novas condições históricas a partir da segunda metade do século XX possibilitaram tal emergência.

Isto porque, no contexto das grandes transformações do pós II Guerra Mundial, pode-se observar, notadamente a partir dos anos 1960, desenvolvimentos notórios nas próprias estruturas do saber que vieram por em causa, sobretudo, a realidade e validade da reiterada distinção entre "duas culturas", ou seja, entre ciências e humanidades, marca característica da ciência moderna. (Comissão Golbenkian, 1996)

Nesse particular, fato a destacar é a incapacidade demonstrada pelas teorias científicas mais tradicionais para fornecer soluções plausíveis para as dificuldades encontradas pelos cientistas na abordagem de problemas relacionados com fenômenos cada vez mais complexos.

Considerados como conhecimentos de ponta da ciência moderna, os avanços epistemológicos verificados nas áreas das ciências naturais e da matemática tiveram grandes desdobramentos e propiciaram não somente o aprofundamento, sob novas bases, da polêmica em torno da mencionada racionalidade científica vigente, mas contribuíram igualmente para reduzir a rígida distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais como campos totalmente separados.

Assim, no caso das ciências naturais, tais avanços no conhecimento dos fenômenos da natureza acentuaram a concepção de não linearidade, em detrimento à de linearidade, a de complexidade, em detrimento à de simplificação, além de constatar a impossibilidade de separar o medidor (no caso o sujeito do conhecimento) da medição (objeto de estudo). Até no caso de algumas matemáticas, a superioridade da dimensão interpretativa e qualitativa sobre a precisão quantitativa de rigor mais limitado passou a ser reconhecida. (Comissão Golbenkian, 1996)

Na medida em que a diminuição das contradições entre Ciências Sociais e Ciências Naturais não implicou, segundo documento da Comissão Golbekian (1996, p. 92), "conceber a humanidade como algo de mecânico, mas antes o conceber a natureza como algo de ativo e criativo", tal fato passa a descortinar novos espaços onde não somente a crítica ao modelo redutor, positivista da ciência moderna tenha lugar, mas igualmente ganhe expressão a colocação de propostas alternativas à superação do referido modelo ou, o que parece mais provável, a emergência de epistemologias que possibilitem alargar a estreita concepção de racionalidade da ciência moderna e sejam capazes de articular o conhecimento existente, além de produzir novos.

Nessa perspectiva é que reflexões, como a empreendida por Gusdorf, ganha, nesse cenário pós anos 1960, grande expressão. A despeito das críticas sofridas, o pensamento desse autor passa a ser considerado referência para a discussão da interdisciplinaridade pela força heurística presente no reiterado discurso acerca do lugar que o homem deve ocupar na ciência.

Nesse sentido, vale destacar que dentro dos pressupostos da ciência moderna somente o projeto de uma Enciclopédia de Ciência Unificada em moldes reducionista à linguagem lógico-matemática, como a apresentada por filósofos do Circulo de Viena na década dos anos 1920 – como Otto Neurath, Rudolf Carnap, Charles Morris – poderia emergir, dada sua proposta de pensar uma "unidade da ciência" fundada de maneira exclusiva na linguagem da física, considerada a matriz cientifica por excelência à qual todas as demais linguagens deveriam ser reduzidas.

As dificuldades presentes para a elaboração de uma proposta alternativa de síntese àquela preconizada pelo Círculo de Viena, acima mencionada, a partir do modelo de racionalidade que preside a chamada "ciência normal" (Kuhn, 1975) típica do mundo moderno, residem nos próprios limites do modelo e podem ser apreendidas, em linhas gerais, a partir da descrição que Morin faz de como o mesmo – que denomina paradigma da simplificação – opera pela fragmentação e redução do objeto de estudo no processo de construção do conhecimento científico. Com tal descrição, Morin pode demonstrar-nos, ainda, como fenômenos complexos com que nos deparamos, como é o caso da saúde, não podem ser analisados a partir de tal modelo fragmentador e redutor.

Para Morin (1983, p. 31) o paradigma da simplificação característico da ciência moderna "determina um tipo de pensamento que separa o objeto de seu meio, separa o físico do biológico, separa o biológico do humano, separa as categorias, as disciplinas, etc. A alternativa à disjunção é a redução: este tipo de pensamento reduz o humano ao biológico, reduz o biológico ao físico-químico, reduz o complexo ao simples, unifica o diverso. Por isso, as operações comandadas por este paradigma são principalmente disjuntivas, principalmente redutoras e fundamentalmente unidimensionais. Se, se obedece apenas ao princípio de disjunção, chega-se a um puro catálogo de elementos não ligados; se, se obedece ao princípio de redução, chega-se a uma unificação abstrata que anula a diversidade. Por outras palavras, o paradigma da simplificação não permite pensar a unidade na diversidade ou a diversidade na unidade, a imitas multiplex, só permite ver unidades abstratas ou diversidades também abstratas, porque não coordenadas".

Muito embora a questão dos limites colocados pelas fronteiras do conhecimento disciplinar possa ser resolvida, muitas vezes, conforme assinala Sommerman (2003), nos limites do próprio paradigma da ciência moderna com a criação de verdadeiras novas disciplinas - diríamos de interfaces–s como é o caso da bioquímica, da biofísica, dentre outras, o que pretendemos aqui destacar, com a menção ao pensamento de Gusdorf, é que a interdisciplinaridade por ele preconizada difere deste tipo de solução. Isso, pela sua proposta pressupor uma outra perspectiva epistemológica e ontológica para a geração do conhecimento científico, o que a inscreve , conforme já observamos, na ampla polêmica que passa a se travar não só em relação à crítica ao paradigma simplificador, fragmentador e redutor da realidade, característico da ciência moderna, mas à busca de superação ou ampliação do mesmo, sendo a interdisciplinaridade uma estratégia.

Daí, segundo Siebeneichler (1989, p. 160), o primeiro ponto básico a transparecer da proposta de interdisciplinaridade de Gusdorf ser a "atitude decidida em prol de uma racionalidade traçada em dimensões mais amplas do que as da matemática, englobando não somente o rigor e a exatidão científica, mas também as significações do mundo vivido, que superam o âmbito do friccionável e do mensurável".

Acrescenta ainda Siebeneichler que, por isso, Gusdorf "se opõe ao enciclopedismo do Círculo de Viena, o qual consegue, no seu entender, constituir realmente o universo unitário do discurso, mas somente ao preço da renuncia a todas as significações vividas, características do espaço vital existencial. Tal visão interdisciplinar não é admissível, segundo ele, porque celebra apenas os triunfos da inteligibilidade lógico-matemática, que é sempre formal e vazia. Ou seja: o universo aberto pelo tratamento matemático simplesmente é evacuado de tudo aquilo que pode dar um sentido às vidas reais dos seres humanos." (Siebeneichler, 1989, p. 160)

Neste tipo de crítica, o que é importante reter do pensamento de Gusdorf (1977) é a idéia, por um lado, de que "é absurdo e vão pretender constituir uma Ciência do Homem se essa ciência não encontra na existência humana seu ponto de partida e seu ponto de chegada" (p. 646). Por outro, de que a interdisciplinaridade assim abstraída, não somente "se encontra... localizada em nível da comunidade das formas, da analogia das expressões" (Gusdorf, 1977:639), mas também é apresentada como atividade reservada "a alguns iniciados e seus raros discípulos, amadores da especulação pura...". (p. 646)

Para esse autor, a interdisciplinaridade deve inscrever-se na prática científica "evocando um horizonte global, mas não totalitário, do conhecimento universal" (p. 647). Deve responder "à exigência de um conhecimento mútuo do homem, sob a forma de um humanismo da pluralidade e da convergência". (p. 647).

Entende, assim, Gusdorf, que o conhecimento interdisciplinar deve ser acolhido no interior de cada ciência, se constituir numa verdadeira "lógica da descoberta", consistir de uma abertura recíproca entre pesquisadores, uma comunicação entre os domínios do saber, uma fecundação mútua e não um formalismo que neutralize "todas as significações fechando todas as suas saídas" (p. 643). Acredita que com essa atitude interdisciplinar o pesquisador possa se libertar de uma forma de inteligibilidade que o circunscreve a determinadas possibilidades de conhecimento, na qual " sua reflexão se estenda pelas corrediças cuidadosamente lubrificadas de uma rede pré-fabricada"(p. 643). Em suma, que incorpore um pensamento interdisciplinar onde o código dos procedimentos lógico-matemáticos perca seu prestígio e a interdição do princípio da contradição cesse de prevalecer.

O tema da interdisciplinaridade versa sobre" um conhecimento dos limites ou de um conhecimento aos limites, instituindo entre os diversos ocupantes do espaço mental um regime de co-propriedade, que funda a possibilidade de um diálogo entre os interessados. Essa noção nada mais faz que retomar a idéia do universitas scientiarum, constitutiva da universidade tradicional". (Gusdorf, 1977, p. 635)

A idéia presente é a de que cabe ao próprio pesquisador – diríamos novo pesquisador imbuído de uma atitude interdisciplinar – aproximar-se das bordas disciplinares e identificar que entre as fronteiras disciplinares não existe "um espaço vazio" como, segundo Kuhn (1987, p. 340), pressupõe o paradigma da moderna ciência disciplinar, e, vale lembrarmos , em nome da garantia de uma convencionada cientificidade. Cabe, assim, ao novo pesquisador descobrir as interrelações possíveis existentes entre disciplinas próximas e disciplinas mais distantes, tendo em vista instituir práticas interdisciplinares – que signifiquem um chamado à ordem do humano – e alarguem o processo de conhecimento, nas diferentes áreas do saber. Para tanto se apresenta como fundamental a incorporação do pensamento interdisciplinar, o que implica para o pesquisador repensar sua própria formação científica e, para a universidade, a responsabilidade uma nova perspectiva de ensino onde a interdisciplinaridade encontre espaço a partir de uma pedagogia que contemple a totalidade do conhecimento articulado.

Se as possibilidades de emergência do pensamento transdisciplinar, nas últimas décadas do século XX, como novo espaço do conhecimento, se beneficiam com a discussão da interdisciplinaridade que o precede, isso também ocorre devido ao avanço teórico realizado por pesquisadores, nos diferentes campos do saber, igualmente preocupados com a fragmentação do conhecimento.

Vale observar, no entanto, a cautela com que essa idéia é recebida por autores como Gusdorf, conforme seu discurso abaixo descrito. Nele podemos notar sua preocupação pelo risco que essa noção poderia representar à instauração de uma hiperdisciplina, a exemplo dos ideais do Círculo de Viena, amplamente criticados por ele, conforme discutimos anteriormente: "Mais nova, mais fascinante, ao menos na ordem lingüística, é a noção de transdisciplinaridade; ela enuncia a idéia de uma instância científica capaz de impor sua autoridade às disciplinas particulares. Ela designa talvez um espaço de convergência, uma perspectiva de olhar que juntaria ao horizonte do saber, conforme uma dimensão horizontal ou vertical, as intenções e preocupações das diversas epistemologias. Pode se tratar de uma metalinguagem ou de uma metaciência mas, na estratégia do saber, a ordem transdisciplinar define uma posição chave, da qual sonharão se apropriar todos aqueles que são atormentados pelas ambições do imperialismo intelectual. O matemático está inclinado a pensar que a matemática é a ciência das ciências; o historiador reclama a mesma prerrogativa para sua própria disciplina, no entanto outros podem renvindicar essa prioridade para o conhecimento biológico (para a história natural, a biologia, a psicologia, a medicina). A transdisciplinaridade tal como é praticada é uma poltrona vazia, na qual todos ambicionam se sentar. Ela corresponde a um dos principais desafios da feira de vaidades intelectuais". (Gusdorf, 1977, p. 635-636)

No entanto, embora esse tipo de preocupação de Gusdorf seja pertinente, historicamente essa idéia emergente de transdisciplinaridade não se afastará do nível de crítica aos limites do conhecimento disciplinar, por ele realizado, em defesa da interdisciplinaridade. Assim, nesse cenário das primeiras décadas da segunda metade do século XX, podemos observar relatos, em fontes documentais, sobre a tendência a se buscar identificar as especificidades, complementaridade e interrelações existentes entre transdisciplinaridade e interdisciplinaridade, assim como em relação à multidiciplinaridade e pluridisciplinaridade, tendo como contraponto o tipo de conhecimento unidisciplinar, fragmentador e redutor, típico da "ciência normal" da modernidade.

Tal fato pode ser explicado porque, ao lado do tipo de discussão empreendida por Gusdorf sobre a interdisciplinaridade, avanços teóricos e metodológicos ampliam as condições para a emergência do pensamento transdisciplinar, sob novas perspectivas, com base em pesquisas desenvolvidas por investigadores como Claude Levi-Strauss, Jean Piaget, Edgard Morin, Cornelius Castoriadis, Miklas Luhmann, Ilya Prigogine , Humberto Maturana, Francisco Varela, Henri Atlan, Jurgen Habermas, dentre outros.

É a partir de obras como as desses autores que se pode falar hoje em dia, segundo Ciurana (2003, p. 58), em "conceitos transdisciplinares, como o são aqueles conceitos sugeridos de saberes bem pouco localizáveis se tivermos o sentido de que estes não são saberes facilmente apresáveis e redutíveis a simples disciplinas: a teoria de sistemas; a teoria da auto-organização; a cibernética; certas partes da termodinâmica (sobretudo da termodinâmica prigoginiana): a teoria da informação; conceitos da lingüística saussureana como o conceito de código, mensagem, etc."

Apontando para a importância da emergência desse tipo pensamento no mundo moderno, mas igualmente para os riscos – a exemplo da precupação de Gusdorf já mencionada – e desafios epistemológicos que seu tratamento encerra, Ciurana afirma que "o transdisciplinar é hoje um problema e uma necessidade. O problema é como fazer o transdisciplinar sem totalizar ou homogeneizar. Isto é, como mostrar que o transdisciplinar não nos leva, se temos o sentido da complexidade, a nenhum tipo de unidade ou metaunidade rígida ou imóvel" (Ciurana, 2003, p. 57)

A partir de tal colocação esse autor apresenta alguns pressupostos básicos do pensamento transdisciplinar que advoga, ou seja: "a perspectiva de trabalho transdisciplinar implica a necessidade da adoção do pensar dialógico, porque a unificação transdisciplinar pressupõe operar na interação e na tensão. Nesse sentido, não se trata de homogeneizar o diferente, mas assumir a diferença e fazer essa diferença dialogar. (p. 57)

Isto porque "pensar de forma dialógica [no sentido empregado por Edgard Morin] é estar subordinado aos imperativos de outro paradigma. É fazer dialogar num mesmo espaço intelectual o complementar, o concorrente, o antagônico. É intercomunicar lógicas diferentes na ocasião de explicar fenômenos complexos." (Ciurana, 2003, p. 48)

Com essas considerações Ciurana aponta para alguns pressupostos que permitem identificar uma dada perspectiva teórico-metodológica do pensar transdisciplinar e coloca no tratamento dos fenômenos complexos, em sua dinâmica, o objetivo central da abordagem transdisciplinar.

Assim, se o objeto encontra-se em movimento, igualmente em movimento deve colocar-se o pensamento do sujeito no processo de conhecimento. A transdisciplinaridade não pode ser vista fora de uma relação dialógica entre sujeito-objeto. Portanto, requer um método ele também transdisciplinar e necessariamente dialógico.

Tal exigência de um método dialógico prende-se ao fato de que na abordagem transdisciplinar o desafio presente é o de estabelecer inter-relações das diversas complexidades, dos diferentes níveis de realidade e contextos. Igualmente, o de fazer emergir novas figuras de saber ou um metasaber por relação aos saberes particulares, disciplinares.

Nesse propósito, Ciurana (2003) entende que "as novas perspectivas sistêmicas que tenham o sentido da impossibilidade do fechamento num grande sistema" são as que oferecem melhores aportes, ou condições, porque surgem da "organização". Isto por considerar que "organizar é dispor as distintas disciplinas em interações que, em sua complementaridade e também antagonismo, façam surgir um saber diferente, desde o ponto de vista qualitativo. Gerar um saber que ao organizar a diferença, sem anulá-la possa permitir, a partir desta última, criar uma nova perspectiva da qual possamos contemplar texto e contexto" (p. 60-61).

Nessa perspectiva, a transdisciplinaridade não nega o disciplinar uma vez que parte do disciplinar, mas o relativiza, constituindo-se num saber que organiza diferentes saberes necessita e propõe o encontro entre o teórico e o prático, entre o filosófico e o científico, apresentando-se, assim, como um saber que é da ordem do saber complexo.

A partir de tais concepções é possível considerar que a busca dos fundamentos para uma abordagem transdisciplinar passe, necessariamente, pelo reconhecimento de que o eixo da ciência contemporânea seja, de acordo com Morin (1996), o da complexidade. Na medida em que os desafios para a investigação de fenômenos complexos remetem a questão dos fundamentos dos processos de conhecimento para as esferas ontológica, epistemológica e lógica, é nosso propósito, no presente texto, procurar descrever e refletir como, no espaço de congressos e reuniões internacionais, historicamente vai se delineando e se constituindo, a partir de consensos sucessivos e progressivos, um corpo de conhecimentos acerca da transdisciplinaridade, fundamentado a partir da definição do que passa a ser caracterizado como pilares da transdisciplinaridade, considerados essenciais para a construção de uma metodologia transdisciplinar. Nossa concepção básica é a de que tal corpo de conhecimentos se constitui especialmente pela heurística desse termo possibilitar, nesses encontros internacionais, emergências e convergências de idéias na direção de um novo modo de pensar a ciência , capaz de congregar os ideais de cientistas de diferentes áreas, filósofos, humanistas, teólogos, artistas, poetas, no sentido da busca de superação dos limites impostos ao conhecimento pelo paradigma simplificado da ciência moderna.

O Caminho do Pensamento Transdisciplinar no Contexto de Congressos Internacionais

Sobre a emergência do conceito de transdisciplinaridade

Se o impulso dado ao avanço do pensamento interdisciplinar (na ciência e na educação) teve, segundo Santomé (1998), como um dos momentos marcantes o I Seminário internacional sobre pluri e interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice (França), de 7 a 12 de setembro de 1970, ele marca igualmente o momento de surgimento do termo 'transdiciplinaridade' que passará, juntamente com o de interdisciplinaridade, a representar um novo horizonte de possibilidades à superação dos limites do conhecimento centrado, de maneira exclusiva, no unidisciplinar. A expressão que ganhou esse seminário reside não somente no seu objetivo, que era o de aprofundar os conceitos de pluri e interdisciplinaridade, assim como analisar sua adequação no desenvolvimento do conhecimento e da sociedade da época, mas também na importância das instituições envolvidas. Organizado pelo Centro de Pesquisa e Inovação do Ensino (CERI), foi patrocinado pelo Ministério da Educação da França e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Sua relevância se manifesta igualmente no número de participantes, que representavam vinte e um paises e eram, ainda segundo Santomé, na grande maioria adeptos das perspectivas sistêmicas e estruturalistas.

Segundo Nicolescu (2005), nesse Seminário1 1 No artigo de Nicolescu (2005), o referido seminário internacional é intitulado "Interdisciplinaridade – Problemas de Ensino e Pesquisa em Universidades". a palavra 'transdisciplinaridade' aparece nas falas de Jean Piaget, Erich Jantsch e André Lichnerowic. Afirma igualmente que é atribuída à Piaget, em sua comunicação, a referência à proposta de uma primeira descrição, (ou definição, para outros autores) do significado da palavra transdiciplinaridade. A proposta é assim transcrita por Sommerman (2003, p. 100) "... à etapa das relações interdisciplinares, podemos esperar ver sucedê-la uma etapa superior que seria 'transdisciplinar', que não se contentaria em encontrar interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas ligações no interior de um sistema total, sem fronteira estável entre essas disciplinas." Segundo Sommerman, foi essa definição que serviu de base para a que foi adotada pela conferência.

Embora na discussão de Piaget possa estar presente a idéia de que a emergência do transdiciplinar superaria o interdisciplinar, o que se observa, nos desdobramentos futuros, é um movimento diferente.

Isso ocorre, segundo Sommerman (2003), como resultado do amplo processo de discussão travado em várias reuniões e congressos internacionais relativos ao tema, notadamente a partir da segunda metade da década de 1980. Nos vários documentos oficiais, a idéia básica presente é a de que a inter e a transdisciplinaridade, estreitamente relacionadas, não excluem e não excluirá, no novo processo de desenvolvimento da ciência, uma à outra, e, nem ambas, excluirão a disciplinaridade, a multi e a pluridisciplinaridade. Isto porque, estas, no seu conjunto, representam diferentes graus de possibilidades de tratamento da realidade, tendo em vista o reconhecimento da existência de seus diferentes níveis. Serão, na linguagem de Basarab Nicolescu ( 2001, p. 53), "flechas do mesmo arco do conhecimento".

Muito embora Santomé (1998) assinale que pouco avanço tenha ocorrido, em relação ao objetivo de aprofundamento da discussão e das definições sobre a pluri e a inderdisciplinaridade, no referido seminário, o que se pode observar é que tal encontro passou a representar um marco para a ampliação da discussão, em nível internacional, dos pensamentos inter e transdisciplinar. Muito embora considerados relacionados puderam, ao que parece, manter certa identidade, com reflexões específicas.

As possibilidades de ampliação dessa discussão devem-se, em grande parte, segundo Santomé (1998), à firme constatação de que a crescente complexidade dos problemas enfrentados pelas sociedades modernas, assim como a grande velocidade das mudanças passaram a exigir "políticas científicas" capazes de fomentar o trabalho e a pesquisa interdisciplinar. Isso porque, tal constatação fez com que, a partir de então, a UNESCO e a OCDE passassem a apoiar e a promover debates, seminários e colóquios de caráter internacional que divulgaram cada vez mais a pluri, a inter e a transdisciplinaridade como novas possibilidades de fazer ciência e promover um ensino que contemplasse as humanidades na ciência.

Nesse contexto, vale destacar a constatação de Nicolescu (2005) sobre a contribuição da proposta de um pensamento transdiciplinar, trazida por Jean Piaget, no referido seminário. Para esse autor, a descrição de transdisciplinaridade, embora vaga, teve o mérito de apontar um novo espaço de conhecimento sem fronteiras estáveis, fixas, entre as disciplinas. Tal fato assinalado por Nicolescu parece-nos relevante porque, a partir de então, na tendência às caracterizações e definições dos conceitos multi, pluri e interdisciplinar, embora se mantenha como referência básica o (uni)disciplinar, autores passaram igualmente a considerar o (trans)disciplinar e as possíveis mediações entre esses diferentes níveis de abordagem do conhecimento.

A despeito de a literatura especializada registrar uma gama variada de classificações (Sommerman, 2003), matriz clássica da diferenciação entre esses níveis ainda permanece a proposta de Erich Jantsch, divulgada pela publicação temática da OCDE/CERI, em 1972, com as principais contribuições do referido seminário sobre interdisciplinaridade, de 1970, cuja relação completa de autores pode ser observada no livro de Japiassu (1976, p 220), em sua "Bibliografia Sumária".

Nessa proposta, Jantsch procura não somente destacar, em linhas gerais, no que consiste a multi, a pluri, a inter e a transdiciplinaridade mas, igualmente, caracterizar o tipo de sistema, relacionado ao nível de simplicidade ou de complexidade a que pertencem, apresentando suas respectivas configurações, em função dos níveis que representam. Esse modelo de classificação, bastante divulgado pela literatura especializada, encontra-se em detalhes em obra de Japiassu (1976, p 73 - 74), sendo discutido e ampliado em artigo de Almeida Filho (1997). O importante a sinalizar em relação a essa e outras propostas similares é que, em linhas gerais, dada a perspectiva sistêmica adotada pelo autor e a consideração dos objetos complexos, os conceitos de multi, pluri, inter e transdisciplinaridade são caracterizados a partir dos graus sucessivos de cooperação e de coordenação crescente de disciplinas que possam apresentar, estando tal coordenação prevista somente nos casos de inter e de transdisciplinaridade, sendo, nas duas primeiras, consideradas tão somente o grau de cooperação teórico-metodológica existente.

É, assim, nesse cenário onde se apresentam múltiplas possibilidades de gerar diferentes conhecimentos e promover diferentes formações, muito além do modelo unidisciplinar, típico da ciência moderna, que eventos internacionais, a maioria promovida pela UNESCO, ampliaram os espaços de discussão e de interlocução sobre a idéia de transdisciplinaridade possibilitando, segundo Sommerman (2003), uma definição cada vez mais clara desse conceito e de sua fundamentação.

Marcantes, nesse sentido, foram: o colóquio sobre "A ciência diante das fronteiras do conhecimento", em 1986; o Congresso "Ciência e Tradição: perspectivas transdisciplinares para o século XXI", em 1991; o "I Congresso Mundial da Transdiciplinaridade", em 1994; o Congresso Internacional de Transdisciplinaridade "Que Universidade para amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade", em 1997; e, finalmente, o "II Congresso Mundial da Transdisciplinaridade", em 2005, todos eles organizados pela UNESCO ou apoiados por essa instituição.

O desenvolvimento do conceito de transdisciplinaridade em congressos internacionais

A ampla discussão que se trava sobre as ciências nas últimas décadas do século XX acentua a crítica da ciência enquanto única modalidade válida de apreensão do real. Nesse sentido, a reivindicação da pluralidade de modalidades de apreensão do real vai de par com a crítica do dualismo sujeito/objeto impregnado na modernidade ocidental muito para além da ciência. Tal tipo de colocação, que Boaventura de Souza Santos identifica na discussão que Carlos Plastino e Hugo Zemelman fazem, de tal dualismo e dos limites da estreita concepção de racionalidade que preside a ciência moderna, é parte da ampla discussão que vários outros autores, pertencentes a diferentes campos e áreas de conhecimento, realizam na ampla coletânea coordenada por esse autor (Santos, 2004), a qual revisita sua obra publicada em 1980, intitulada "Um Discurso sobre as Ciências" (Santos, 1995), cujas idéias foram apresentadas no início desse trabalho para caracterizar o referido paradigma.

A importância da mesma consiste na demonstração, pelos vários autores, e também por Santos, da pertinência de suas colocações na obra de 1980 e de como tal discussão vem se apresentando e se aprofundando não somente no campo das Ciências Sociais, mas igualmente nas áreas da Física e da Biologia, o que explica a busca de criação de novos conceitos, novas teorias, como o avanço da reflexão em torno das concepções de complexidade, de sistema, de auto-organização, de cibernética, dentre outras, que, conforme já mencionamos, abrem perspectivas para a emergência e aprofundamento do pensamento interdisciplinar, assim como do pensamento transdiciplinar.

Nesse contexto de efervescência intelectual, os referidos encontros, como colóquios e congressos internacionais, permitem identificar, a partir de 1986, algumas das características que apontam para o avanço do pensamento transdisciplinar secundados por esses novos conceitos e novas teorias.

Embora, se considere que a "história oficial da Transdisciplinaridade" comece de fato no colóquio de Veneza, ocorrido em 1986, na análise dos documentos gerados pelos vários encontros ganha destaque, primeiramente, o congresso "Ciência e Tradição: perspectivas transdisciplinares para o século XXI", em 1991, no qual foram explicitados os fundamentos teóricos e epistemológicos norteadores das reflexões sobre transdisciplinaridade nos congressos posteriores.

No entanto, consideramos importante mencionar que a relevância do documento final desse colóquio, intitulado "Declaração de Veneza"2 2 Este documento encontra-se, na íntegra, como Anexo 1, sob o título " Declaração de Veneza", em coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.187-190). , encontra-se não somente no registro da posição critica ao paradigma simplificado e reducionista da ciência moderna, mas sobretudo à importância de seus signatários, representantes de renome internacional, de diferentes áreas do saber – ciências e humanidades – representando diferentes países. Nessa Declaração, esses explicitam a recusa a qualquer "projeto globalizante", a qualquer "sistema fechado de pensamento" e reconhecem, ao mesmo tempo, a "urgência de uma procura verdadeiramente transdisciplinar, de uma troca dinâmica entre as ciências 'exatas' e as ciências 'humanas', a arte e a tradição". Apontam, assim, para a negação da ruptura existente entre ciência e humanidades, que passam a ser caracterizadas como "duas culturas", assim como à separação operada na ciência entre homem e natureza.

A seguir, apresentamos um balanço das principais idéias trazidas pelos documentos finais gerados no congresso "Ciência e Tradição", de 1991, e em outros eventos similares, que passam a conformar um corpo de idéias sobre a transdisciplinaridade, no interior do qual ganha expressão a definição de determinados pressupostos considerados fundamentais para a construção de uma metodologia transdisciplinar.

O documento final desse congresso, intitulado Ciência e Tradição, aponta para o lugar onde se inscreverão as reflexões sobre transdisciplinaridade, nesses eventos, ao fazer referência às revoluções conceituais que ocorreram na ciência no início do século XX e que geraram rupturas epistemológicas importantes capazes de permitir um novo diálogo entre a ciência e a tradição e recompor a unidade da cultura, conforme pode ser observado no excerto, a seguir, composto por alguns artigos do referido documento3 3 Este documento encontra-se, na íntegra, como Anexo 2, sob o título "Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o Século XXI – Comunicado Final" , em coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.191-192) :

"3. Uma das revoluções conceituais deste século veio, paradoxalmente, da ciência, mais particularmente da física quântica, que fez com que a antiga visão da realidade, com seus conceitos clássicos de determinismo, que ainda predominam no pensamento político e econômico, fosse explodida. Ela deu à luz a uma nova lógica, correspondente, em muitos aspectos, a antigas lógicas esquecidas. Um diálogo capital, cada vez mais rigoroso e profundo, entre a ciência e a tradição pode então ser estabelecido a fim de construir uma nova abordagem científica e cultural: a transdisciplinaridade. 4. A transdisciplinaridade não procura construir sincretismo algum entre a ciência e a tradição: a metodologia da ciência moderna é radicalmente diferente das práticas da tradição. A transdisciplinaridade procura pontos de vista a partir dos quais seja possível torná-las interativas, procura espaços de pensamento que as façam sair de sua unidade, respeitando as diferenças, apoiando-se especialmente numa nova concepção da natureza. 5. Uma especialização sempre crescente levou a uma separação entre a ciência e a cultura, separação que é a própria característica do que podemos chamar de "modernidade" e que só fez concretizar a separação sujeito-objeto que se encontra na origem da ciência moderna. Reconhecendo o valor da especialização, a transdisciplinaridade procura ultrapassá-la recompondo a unidade da cultura e encontrando o sentido inerente à vida. 6. Por definição, não pode haver especialistas transdisciplinares, mas apenas pesquisadores animados por uma atitude transdisciplinar. Os pesquisadores transdisciplinares imbuídos desse espírito só podem se apoiar nas diversas atividades da arte, da poesia, da filosofia, do pensamento simbólico, da ciência e da tradição, elas próprias inseridas em sua própria multiplicidade e diversidade. Eles podem desaguar em novas liberdades do espírito graças a estudos trans-históricos ou transreligiosos, graças a novos conceitos como transnacionalidade ou novas práticas transpolíticas, inaugurando uma educação e uma ecologia transdisciplinares. 7. O desafio da transdisciplinaridade é gerar uma civilização, em escala planetária que, por força do diálogo intercultural, se abra para a singularidade de cada um e para a inteireza do ser."

A partir de então, os demais congressos sobre transdisciplinaridade passaram a ser organizados pelo CIRET (Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares), em colaboração com a UNESCO e outras organizações. A importância desse fato reside em que esse Centro, fundado por Basarab Nicolescu no ano de 1987 e sediado em Paris, passou a congregar vários membros – cientistas, filósofos e humanistas de vários países – que passaram a constituir o que, numa aproximação à linguagem de Kuhn (1975) poderíamos designar como comunidade de pensadores com "atitude transdisciplinar". Dele, segundo Sommerman (2003), faziam parte, em 2003, 167 membros, representando vinte e quatro países, dentre os quais, além do próprio Nicolescu, pensadores como Edgard Morin, Gilbert Durand, Michel Cazenave, Geoffrey F. Chew, Nicolò Dallaporta, Giuseppe Del Re, Patrick Paul, Gaston Pineau, Ubiratan D´Ambrosio, dentre outros.

Em 1994, o I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, realizado em Portugal e organizado pelo CIRET, com a parceria da UNESCO, gerou um documento final intitulado Carta da Transdisciplinaridade4 4 Este documento encontra-se, na íntegra, sob o mesmo título, como Anexo 3 da coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.193-197). assinado por 62 participantes, de 14 países. Pela análise do documento, podemos observar que alguns de seus artigos fornecem evidências quanto ao avanço de alguns passos a mais na definição do referido conceito assim como das bases teórico-epistemológicas, fornecendo mais subsídios para a definição de uma metodologia transdisciplinar. Mais uma vez podemos observar o cuidado dos signatários desse e demais documentos em explicitar o pressuposto básico que passa a nortear a busca por um pensamento transdisciplinar nesses eventos, conforme reza o primeiro artigo dessa Carta: "Qualquer tentativa de reduzir o humano a uma mera definição e de dissolvê-lo nas estruturas, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar", o que nos permite considerar esses encontros internacionais como um espaço de encontro não somente para a comunhão de idéias acerca da construção do conhecimento, fundado em uma racionalidade mais ampla, mas sobretudo para a comunhão de ideais acerca da natureza desse conhecimento. Isso porque, em seu pressuposto básico, acima descrito, ocupa papel nuclear a idéia já defendida pelo próprio Gusdorf, da construção de uma "Ciência do Homem .... que encontre na existência humana seu ponto de partida e seu ponto de chegada" (Gusdorf, 1997, p.646).

Quanto à definição do conceito, podemos destacar os artigos 3, 5, 6 e 7 da referida Carta:

"Artigo 3: (...) A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa. (...) Artigo 5: A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o campo das ciências exatas devido ao seu diálogo e sua reconciliação não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual. Artigo 6: Com a relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade é multirreferencial e multidimensional."

Os artigos, dessa Carta, que versam sobre a atitude do pesquisador e do ator transdisciplinar, apontam, conforme abaixo descritos, para a importância de aquisição pelo mesmo de uma nova visão de mundo sinalizando como a questão da relação sujeito-objeto no processo de conhecimento se contrapõe, em sua concepção, à postura positivista, que norteia o paradigma da ciência moderna:

"Artigo 9: A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta em relação aos mitos, às religiões e àqueles que os respeitam num espírito transdisciplinar. Artigo 10: Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. A abordagem transdisciplinar é ela própria transcultural. Artigo 14: Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a melhor barreira contra possíveis desvios. A abertura comporta a aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às idéias e verdades contrárias às nossas."

Mas será no artigo 2 da Carta da Transdisciplinaridade que poderemos observar o grande avanço no sentido de uma metodologia transdisciplinar, a partir de alguns enunciados que se apresentam como fundamentais para um novo processo de conhecimento: "O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas e leis diferentes, é inerente à atitude transdisciplinar". Vemos, nesse enunciado, emergirem dois dos três pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar atualmente considerados – os diferentes níveis de realidade e as diferentes lógicas – que foram explicitados no documento do congresso realizado três anos mais tarde e, a partir de então, passaram a integrar o núcleo desse novo corpo de conhecimento que se configura.

Em 1997, organizado pelo CIRET, com a parceria da UNESCO, ocorreu em Locarno (Suíça) o congresso intitulado "Que Universidade para o Amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade", para o qual foi elaborado e apresentado um "documento síntese"5 5 Este documento encontra-se disponível, na integra, sob o título "Congresso Internacional de Locarno – Projeto CIRET-UNESCO [síntese do documento],15p., no site do Centro de Educação Transdisciplinar – CETRANS – http://www.cetrans.com.br , contendo como título o mesmo nome do congresso, a partir dos resultados de amplo projeto realizado em parceria, Projeto CIRET - UNESCO, cuja primeira fase teve início em outubro de 1995 e contou com a coordenação de Basarab Nicolescu, pelo CIRET, e de Madeleine Gobeil, pela UNESCO. Pelo documento, podemos observar o grande número de pesquisadores envolvidos no referido projeto, pertencentes a diferentes áreas do conhecimento e oriundos de diferentes países, e constatar o cuidado com que esse congresso foi preparado atestando sua relevância.

A importância desse documento, que segundo Sommerman ( 2003) foi aprovado e passou a ser conhecido como A Síntese do Congresso de Locarno, reside sobretudo no fato de que nele são propostos três pilares metodológicos para a pesquisa transdisciplinar: 1) a "Complexidade", 2) a "Lógica do Terceiro Incluído" e 3) os "Diferentes Níveis de Realidade". Isso porque, na definição dessa tríade que podemos observar o que passou a ser considerado, pelos membros do CIRET e outros pensadores, participantes desses encontros internacionais, o "paradigma transdisciplinar" capaz de nortear avanços teórico-metodológicos na produção do conhecimento transdisciplinar, fato que tem sido observado pela própria contribuição intelectual de Basarab Nicolescu, além de outros pesquisadores que o adotam como esquema básico de referência.

Esse documento avançou igualmente ao propor uma definição para o que considerou três diferentes níveis de relações disciplinares – pluri, inter e transdisciplinaridade –, e o fez de uma maneira que, de algum modo, sintetiza as diferentes acepções dadas pelos diversos autores, que escreveram sobre cada um deles, com a exceção do conceito de interdisciplinaridade que se apresenta, ainda bastante plural, dada a própria complexidade que o trabalho interdisciplinaridar encerra, pela diversidade de possibilidades e desafios epistemológicos presentes, conforme pode ser observado, nos excertos apresentados a seguir:

"O crescimento sem precedentes dos saberes, em nossa época, torna legítima a questão da adaptação das mentalidades a esses saberes. O desafio é de grande porte, pois a contínua expansão da civilização de tipo ocidental para todo o planeta tornaria sua queda equivalente a uma catástrofe planetária de proporções muito maiores do que as das duas primeiras guerras mundiais. (...) A necessidade indispensável de vínculos entre as diferentes disciplinas se traduz pelo surgimento, na metade do século XX, da pluridisciplinaridade e da interdisciplinaridade."

"A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma única disciplina por diversas disciplinas ao mesmo tempo. Por exemplo, um quadro de Giotto pode ser estudado pelo enfoque da história da arte cruzado com o da física, da química, da história das religiões, da história da Europa e da geometria. Ou a filosofia marxista pode ser estudada pelo enfoque da filosofia entrecruzada com a física, a economia, a psicanálise ou a literatura. O objeto em questão sairá, assim, enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua própria disciplina é aprofundado por um fecundo aporte pluridisciplinar. A pesquisa pluridisciplinar enriquece a disciplina em questão (a história da arte ou a filosofia, em nossos exemplos), porém esse enriquecimento está a serviço apenas dessa disciplina. Em outras palavras, a abordagem pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade permanece inscrita no quadro da pesquisa disciplinar."

"A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da pluridisciplinaridade. Ela diz respeito à transferência dos métodos de uma disciplina à outra. É possível distinguir três graus de interdisciplinaridade:

a) um grau de aplicação. Por exemplo, os métodos da física nuclear transferidos à medicina conduzem à aparição de novos tratamentos de câncer;

b) um grau epistemológico. Por exemplo, a transferência dos métodos da lógica formal ao campo do direito gera análises interessantes na epistemologia do direito;

c) um grau de geração de novas disciplinas. Por exemplo, a transferência dos métodos da matemática ao campo da física gerou a física-matemática; da física de partículas à astrofísica, a cosmologia-quântica; da matemática aos fenômenos meteorológicos ou aos da bolsa, a teoria do caos; da informática à arte, a arte-informática. Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar. Seu terceiro grau inclusive contribui para o big-bang disciplinar."

"A transdisciplinaridade, como o prefixo 'trans' o indica, diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos imperativos para isso é a unidade do conhecimento."

Ao colocar como preocupação identificar as especificidades e níveis de relações entre essas diferentes modalidades de conhecimento, incluindo o conhecimento unidisciplinar que lhe serve de contraponto, a concepção básica que norteia essa perspectiva que vem sendo construída por esse grupo para o tratamento da transdisciplinaridade é a de que, embora o trabalho transdisciplinar não deva ser confundido com o das demais, dada a ampla finalidade a que se propõe, todas essas modalidades juntas fazem parte de um mesmo complexo, o complexo do conhecimento, daí se apresentarem, emprestando um termo do próprio Basarab Nicolescu (2001, p.53), como "quatro flechas de um mesmo arco: o do conhecimento". Por isso declarar que embora "reconhecendo o caráter radicalmente distinto da transdisciplinaridade com relação à disciplinaridade, à pluridisciplinaridade e à interdisciplinaridade, seria muito perigoso considerar essa distinção como absoluta, pois com isso a transdisciplinaridade seria esvaziada de todo o seu conteúdo e a eficácia de sua ação seria reduzida a nada."

A preocupação em discutir e caracterizar essas modalidades de conhecimento decorre dos próprios desafios teórico-epistemológicos presentes nos três pilares tomados como "determinantes de uma metodologia da pesquisa transdisciplinar", assim como da necessidade de melhor caracterizar seu objeto de trabalho. Daí a colocação seguinte:

"A estrutura descontínua dos níveis de Realidade determina a estrutura do espaço transdisciplinar que, por sua vez, explica porque a pesquisa transdisciplinar é radicalmente distinta da pesquisa disciplinar, embora sendo complementar a ela. A pesquisa disciplinar diz respeito, no máximo, a um único nível de Realidade. Na maioria dos casos ela diz respeito aos fragmentos de um só nível da Realidade. Por outro lado, a transdisciplinaridade interessa-se pela dinâmica gerada pela ação de diversos níveis de realidade ao mesmo tempo. A descoberta dessa dinâmica passa necessariamente pelo conhecimento disciplinar. A transdisciplinaridade, embora não sendo uma nova disciplina ou uma nova hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar que, por sua vez, é clareada de uma maneira nova e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Nesse sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas complementares. ......como também o são em relação às pesquisas pluri e interdisciplinares".

Com base em tais colocações, podemos considerar que esse congresso de Locarno, de 1997, passa a representar um marco de referência para esse grupo de pesquisadores e humanistas que direta ou indiretamente participaram de um longo processo de construção de um pensamento para o conhecimento transdisciplinar. Nesse sentido, a síntese contida em seu documento final, cujas idéias principais foram aqui descritas, passa a representar o ponto de partida, a matriz básica de um pensamento transdisciplinar que se estrutura a partir dos vários colóquios e congressos internacionais já mencionados, capaz de representar, pelo poder heurístico que encerra, uma ampla fertilização cruzada de saberes.

No entanto, essa proposta, defendida por esse grupo de intelectuais, fruto de um entendimento mútuo, não pode pensar-se única, como puderam constatar muitos de seus membros por ocasião de um novo encontro voltado à discussão do tema. Isso porque, segundo Sommerman (2003), o ano de 2000 marca a ocorrência de outro grande evento transdisciplinar: a International Transdisciplinarity Conference: Transdisciplinarity: Joint Problem-Solving among Science, Technology and Society, realizada pela Fundação Nacional de Ciência da Suíça e pelo Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, em Zurique, com a parceria da UNESCO, contando com cerca de 700 participantes, de vários países, sendo a grande maioria desses de nacionalidade suíça e alemã. Essa conferência ganha especificidade e, podemos dizer, autonomia, por não fazer referência aos eventos interdisciplinares e transdisciplinares anteriores, assim como aos avanços teórico-epistemológicos amplamente documentados por essas. Ao contrário, colocou seu foco de maneira exclusiva na questão proposta pelo título da conferência: a resolução de problemas atuais envolvendo a participação cruzada da ciência, da tecnologia e da sociedade, imprimindo uma perspectiva quase que puramente pragmática à noção de transdisciplinaridade. Ao tomar esse conceito de forma reduzida, acaba igualmente reduzindo as próprias possibilidades de um tratamento adequado do tema da conferência, considerando a complexidade de que se reveste as relações entre ciência, tecnologia e sociedade, como pudemos sinalizar em discussão no início desse trabalho. Tal fato gerou, por parte de um grupo de participantes, forte reação levando seus membros à formulação de uma declaração intitulada "Uma visão mais ampla de transdisciplinaridade"6 6 Este documento encontra-se, sob o mesmo título, como Anexo 4 da coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.198-202) , que foi distribuída aos participantes e anexada, segundo Sommerman (2003), às atas da Conferência, na qual os signatários fazem referência ao I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, de 1994, e ao Congresso Internacional de Transdisciplinaridade realizado em Locarno, em 1997, e destacam os pontos principais contidos nos respectivos documentos finais capazes de enunciar os pressupostos básicos do pensamento transdisciplinar que estamos abordando no presente trabalho.

Nesse sentido, tal evento deve ser visto de maneira descolada do processo de avanço do pensamento transdisciplinar que vimos discorrendo, o qual continua sua trajetória no II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade ocorrido no Brasil, Vila Velha/Vitória (ES), em 2005. Realizado pelo Governo do Estado do Espírito Santo, pelo CIRET, pelo CETRANS, pela Universidade Federal do Espírito Santo e pela Unesco, contou com o apoio, na organização e patrocínio, de vários institutos, associações, universidades e fundações, além de uma editora. Contou com 370 participantes, pelo número limitado de vagas, que representaram 17 países, 50 universidades brasileiras e 10 universidades estrangeiras.

Em seu documento final intitulado "Mensagem de Vila Velha/Vitória"7 7 O referido documento encontra-se, sob o mesmo título, 8p., no site do Centro de Estudos Transdisciplinares – CETRANS – http://www.cetrans.com.br , reafirma a importância da "Carta da Transdisciplinaridade", gerada no I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, enfatizando a necessidade de "recordar, valorizar, ampliar e contextualizar" os preceitos ali contidos. Nas várias conferências e palestras programadas, os autores procuraram aprofundar a discussão em torno dos três pilares definidos no Congresso de Locarno, de 1997, ampliando a reflexão sobre os mesmos e, em alguns casos, sugerindo a introdução de novos pilares.

No registro das "conclusões dos trabalhos" busca reafirmar a finalidade da transdisciplinaridade definida nos encontros anteriores e a importância de sua não institucionalização "como um campo epistemológico rígido, a fim de preservar sua capacidade de investigação aberta, autocrítica". Cabe destacar a proposição, em uma dessas conclusões, de que a atitude, a pesquisa e ação transdisciplinar contemplem a promoção da "saúde individual e coletiva e o bem-estar do ser humano na sua multidimensionalidade, articulando seus níveis físico, emocional, mental e espiritual."

Vale igualmente frisar, dentre as recomendações presentes no referido documento, a criação de "cátedras transdisciplinares internacionais itinerantes; universidades transdisciplinares virtuais; programas universitários de graduação, especialização, mestrado e doutorado para o estudo da transdisciplinaridade [ assim como] redes virtuais e núcleos de estudo, pesquisa e ação transdisciplinares."

Sobre Emergências e Convergências de Idéias e Ideais na Construção de um Pensamento Transdisciplinar

A trajetória percorrida por pensadores de diferentes áreas do conhecimento em busca de um pensamento transdisciplinar, por nós apresentada no capítulo anterior, permite evidenciar a força de sua emergência e progressiva estruturação pela identificação de idéias e ideais capazes de convergir, num sentido comum, e congregar cientistas de diferentes áreas do saber, filósofos, humanistas, teólogos, poetas, artistas numa verdadeira ação de resgate do sentido humano e social de que deve se revestir a produção de todo conhecimento, notadamente o científico.

Norteado por uma concepção mais ampla de racionalidade, esse movimento relatado se soma aos esforços empreendidos por muitos pesquisadores, da atualidade, não somente na crítica ao paradigma simplificado e fragmentador que orienta a ciência disciplinar moderna, mas igualmente na busca de novas formas de conhecimento mais inclusivas.

Tais possibilidades têm sido evidenciadas pelo avanço que esse pensamento transdisciplinar tem apresentado a partir do trabalho de alguns pesquisadores que tem tomado, como esquema de referência, os três pilares e seus pressupostos como norteadores de suas reflexões, quer no campo da pesquisa, quer no campo da educação/formação, adquirindo nesse último peculiaridades.

No propósito de aprofundamento desse pensamento transdisciplinar, destaque cabe aos esforços empreendidos por Basarab Nicolescu, que desde sua obra "O Manisfesto da Transdisciplinaridade" (Nicolescu, 2001), publicada na França em 1996, e já considerada clássica pelo seu pioneirismo, tem tomado como objeto de estudo os três pilares da transdisciplinaridade, definidos no Congresso de Locarno, em 1997, abordando-os em suas especificidades e relações, e como constitutivos de uma metodologia transdisciplinar. Em seus trabalhos os mesmos são apresentados de maneira ordenada como: "diferentes níveis de realidade", "lógica do terceiro incluído" e "complexidade".

Em trabalhos mais recentes podemos observar que, em suas reflexões, Basarab Nicolescu passa a apresenta-los, primeiramente como postulados (Nicolescu, 2002) e atualmente como axiomas (Nicolescu, 2005). Neste último trabalho, apresentado no II Congresso Mundial da transdisciplinaridade, realizado no Brasil, tais axiomas são assim apresentados:

"1- O axioma ontológico: Há, na Natureza e no nosso conhecimento da Natureza, diferentes níveis de Realidade8 8 Vale mencionar que em seus trabalhos Basarab Nicolescu apresenta o termo composto "níveis de Realidade" sempre com " R" maiúsculo. e, correspondentes a eles, diferentes níveis de percepção.

2- O axioma lógico: A passagem de um nível de Realidade a outro se dá pela lógica do terceiro incluído.

3- O axioma da complexidade: A estrutura da totalidade dos níveis de Realidade ou de percepção é uma estrutura complexa: cada nível é o que é porque todos os níveis existem ao mesmo tempo." (Nicolescu, 2005,p.9)

Vale observar que ao anunciá-los como axiomas a idéia implícita de Basarab parece ser, por um lado, a de procurar garantir a manutenção desses três pilares como sendo os únicos capazes de se apresentarem como fundamentais para uma metodologia transdisciplinar. Ao referir-se às bases históricas desses três axiomas menciona que os dois primeiros tiram sua evidência experimental da física quântica, enquanto o último tem sua fundamentação não só no campo da física quântica, mas também em uma variedade de ciências exatas e humanas. Por outro lado, a idéia implícita de Basarab Nicolescu parece ser a de igualmente apresentar algumas evidências de que muitas das propostas que emergem, de inclusão de novos pilares, são, na realidade, derivações desses três, conforme pode ser observado na seguinte afirmação que faz:

"O caráter axiomático da metodologia da transdisciplinaridade é um importante aspecto. Isso significa que ela tem que limitar o número de axiomas (ou princípios ou pilares) a um número mínimo. Qualquer axioma que possa ser derivado de algum de seus três postulados deve ser rejeitado". (Nicolescu, 2005, p.8)

Muito embora Nicolescu possa demonstrar a força heurística desses três postulados ou axiomas que defende como únicos, pelas amplas possibilidades de avanço teórico-metodológico que seu próprio trabalho intelectual tem gerado, das quais seu artigo "Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso" (Nicolescu, 2002) é um bom exemplo, vale ressaltar que essa sua posição não é compartilhada por alguns pensadores que lhe são próximos e inclusive membros do CIRET, como é o caso de Patrick Paul, além de outros.

A posição geral que defendem, e que vale aqui sinalizar, é a de que a definição dos pilares, postulados ou axiomas não precisam se circunscrever necessariamente a um número mínimo, a exemplo dos estabelecidos pela física, como argumenta Nicolescu ( 2002, 2005). Esses pesquisadores consideram possível acrescentar-se um ou mais pilares aos três já definidos, caso se evidenciem necessidades específicas a dado campo de pesquisa ou a problemas próprios de determinadas áreas.

Nessa linha de pensamento Amâncio Friaça (2005) propõe, por exemplo, o conceito de vácuo como um quarto pilar da transdisciplinaridade. Nessa perspectiva, Patrick Paul (2003) não somente argumenta que o segundo "axioma" não se esgota com a chamada "lógica do terceiro incluído", uma vez que na passagem de cada nível de realidade, para o nível que lhe é contíguo, há uma lógica que lhe é própria, mas, a exemplo de Friaça, propõe igualmente um quarto pilar da transdisciplinaridade, no caso, o "paradoxo" (Paul, 2003; 2005). Também Paulo Roberto Margutti Pinto (2005, p.160) considera que a "lógica do terceiro incluído" não é a única maneira de se tratar as contradições argumentando que a "lógica contemporânea oferece inúmeras alternativas não clássicas, como a adoção de um sistema trivalente, um paraconsistente ou um impreciso (fuzzy)."

Com isso, esses autores não negam o poder heurístico desses três pilares como importante ponto de partida para se pensar uma metodologia da transdisciplinaridade, mas procuram se aproximar da posição bastante flexível defendida pelos signatários da "Carta da Transdisciplinaridade", de 1994, e fortemente reiterada na "Mensagem de Vila Velha/Vitória", de 2005, notadamente em relação ao seu artigo 2 onde afirma que "O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas e leis diferentes, é inerente à atitude transdisciplinar". Com isso deixam explícito que a centralidade na "lógica do terceiro incluído" representa uma redução do enunciado original do referido pilar decorrente, ao que parece, da força assumida pelo "documento síntese" elaborado com base nos resultados do projeto CIRET-UNESCO, desenvolvido sob a coordenação de Basarab Nicolescu, pelo CIRET, e por Madeleine Gobeil, pela UNESCO, que norteou as discussões e que foi adotado e aprovado como documento final do Congresso de Locarno, de 1997,conforme descrevemos anteriormente. A flexibilização da Carta da Transdisciplinaridade, de 1994, pode ser igualmente observada quando se considera que neste último congresso de 1997, foi introduzido um terceiro pilar, "a complexidade", apontando para a grande abertura a que se propunham os signatários da mesma.

Tal tipo de discussão, que poderia ser amplamente desdobrada, mas foge ao âmbito desse trabalho, permite-nos, no entanto, nos limites do presente texto, colocar como relevante a indagação acerca do que poderia, de fato, significar, para partidários dessa nova proposta de um pensar transdisciplinar, a adoção da "complexidade", dos "níveis de realidade" e da " lógica do terceiro incluído", como ponto de partida para suas reflexões? Consistiria, essa nova proposta, nos germes de um novo "paradigma", na acepção de Kuhn (1975), anteriormente descrita por nós para caracterizar o paradigma simplificado que norteia o modelo de pesquisa, de "ciência normal", que caracteriza a produção da ciência moderna e que deve ser necessariamente ser compartilhado pela comunidade científica, ou, consistiria, então, em uma "matriz transdisciplinar"? Esta, para utilizarmos uma adaptação ao conceito de "matriz disciplinar" que Kuhn (1978) desenvolve no sentido de responder as críticas que recebeu, pela ambigüidade que o termo 'paradigma' apresenta em sua obra "A estrutura das revoluções científicas" (Kuhn, 1975), pelas várias definições explícitas, ou por vezes implícitas, que emprega.

Dessa primeira aproximação à análise de conteúdo do conjunto dos documentos firmados nos diferentes encontros internacionais, que tomou a transdisciplinaridade como tema, parece-nos que, muito embora o termo 'paradigma' seja empregado por muitos autores partidários desse pensamento, na maioria dos casos a presença do termo representa tão somente uma simples menção, ou ainda assume um outro sentido usualmente não explicitado, como, por exemplo, o do conceito de "modelo" ou de "teoria". Assim, seu significado "real" permanece ambíguo e mesmo vago, na maioria dos casos, sugerindo outros sentidos que aqueles atribuídos por Kuhn, em seus trabalhos. No entanto, tal indagação parece-nos instigante na abordagem do significado dessa proposta de um pensamento transdisciplinar, para seus membros, pela freqüência com que o termo é referido.

Se tomarmos a interessante análise comparativa e crítica que Kneller (1980) faz das propostas de Karl Popper, Thomaz S. Kuhn, Imre Lakatos, Paul Feyerabend, Nicholas Maxwell e Gary Gutting para explicar diferentes perspectivas na abordagem da história das ciências, assim como suas possibilidades e limites, podemos supor, numa primeira reflexão sobre a questão, que a proposição dos referidos pilares, como fundamentais para uma metodologia transdisciplinar, se aproximaria, dentre os autores mencionados por Kneller, muito mais das concepções de "programa de pesquisa", de Lakatos, ou de "esquema básico" de Maxwell, por exemplo, do que da concepção clássica de "paradigma" ou de "matriz disciplinar" de Kuhn, dada a maior flexibilização que as caracterizam.

Muito embora possa parecer precoce considerar o movimento, engendrado por esse grupo diferenciado de pensadores, na direção da definição de um novo pensamento, como passível de estar inscrito em uma nova história da ciência moderna, a hipótese presente é a de que esse movimento, como bem o descreve Basarab Nicolescu (2005) em sua apresentação no II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade em Vila Velha/Vitória, no texto intitulado "Transdisciplinaridade Passado, presente e futuro", permite enunciar que a busca por um pensamento transdisciplinar já tem sua própria história.

As perspectivas futuras para o avanço desse e de outros pensamentos transdisciplinares similares, que possam emergir enriquecendo essa história são, ao que parece, amplas, considerando que, independentemente da diferença de perspectivas teóricas, a busca de articulação do campo científico com outros ramos do conhecimento, como, por exemplo, o da filosofia, das humanidades, da arte, da literatura, ganhará expressão num contexto onde os novos traços que caracterizam o conhecimento são designados, segundo Paul (2003, p.134), como "complexidade, hibridez, não linearidade, reflexividade, heterogeneidade e transdisciplinaridade".

E nesse processo de avanço que áreas como a saúde, sobretudo em sua dimensão coletiva e pública, podem se beneficiar de maneira substantiva.

Isso tendo em vista, por um lado, que a despeito desta ser considerada, na reflexão de muitos pesquisadores, como campo caracteristicamente interdisciplinar (Minayo, 1991, 1994; Alvarenga, 1994; Gomes e Deslandes, 1994, Nunes, 1995), a questão do reducionismo e fragmentação do conhecimento encontra-se presente e coloca-se como grande desafio a ser enfrentado, dada a predominância do modelo biomédico que norteia suas práticas (Ayres, 1994, 1995, 1997: Almeida Filho, 1989, 1992; Castiel, 1994). Por outro lado, pela constatação de que novas possibilidades de abertura se apresentam ao campo, a partir de trabalhos que procuram contribuir para a emergência de novas formas de pensar a saúde em sua complexidade, dentre os quais ganha relevo alguns com propostas de metodologias transdisciplinares, como é o caso das formuladas por Naomar de Almeida Filho (1997), Mário Chaves (1998) e Juan Samaja (2004).

È nesse contexto que consideramos que as reflexões sobre transdisciplinaridade desenvolvidas por esse grupo de pensadores de diferentes formações, ao longo dos vários congressos internacionais que versaram sobre o tema, voltadas para a identificação dos fundamentos de uma metodologia transdisciplinar, aqui analisadas, possam vir a se somar aos esforços empreendidos na área, quer no campo da pesquisa, quer no campo da educação e da formação em saúde.

Uma pequena menção em relação à contribuição de alguns autores, no campo da educação, a partir dessa concepção de transdisciplinaridade aqui esboçada, permite apontar igualmente para a capacidade heurística desse esquema básico de referência e o avanço que pode representar sua incorporação na área da educação/formação em saúde. Nesse sentido ganha destaque contribuições específicas de autores como Gaston Pineau, Pascal Galvani e Patrick Paul, que buscam articular essa perspectiva de transdisciplinaridade com a teoria tripolar da formação proposta por Gaston Pineau , designada como auto, hetero e ecoformação e concebida como uma ferramenta pedagógica para uma educação/formação transdisciplinar. Tais contribuições podem ser observadas, em seu conjunto, em recente compilação sobre o tema, em coletânea intitulada "Transdisciplinaridade e formação", organizada por Paul e Pineau (2005).Referência cabe igualmente a trabalho de Galvani (2000), intitulado "A autoformação: uma perspectiva transpessoal transdisciplinar e transcultural, onde aborda as questões da transculturalidade com vistas ao aprofundamento das concepções de autoformação e ontoformação. Do mesmo modo vale mencionar que em seus últimos trabalhos, Pineau se propõe ao desafio teórico- metodológico de buscar articular a transdisciplinaridade, a teoria tripolar da formação, a pesquisa formação-ação e a metodologia das histórias de vida, cuja experiência é relatada em artigo recentemente publicado. (Pineau, 2004)

Finalizando, parece-nos importante considerar que notadamente para o campo da saúde pública e coletiva, independentemente das perspectivas teórico-metodológicas que seus pesquisadores adotem, quer na área da pesquisa, quer na área da educação/formação, assumir em seus trabalhos uma "atitude" pluri, inter ou transdisciplinar, que se aproxime de uma reflexão crítica frente ao paradigma da simplificação e da fragmentação que nela opera, passa a representar um avanço. Isso por entendermos que a adoção de um novo olhar, nessa área caracteristicamente pluri, inter e transdisciplinar, possa abrir perspectivas para caminharmos na direção de uma 'linguagem científica' mais ampla, que se aproxime cada vez mais e mais da natureza e da complexidade de que se reveste nosso objeto de trabalho.

E oxalá essa nova "atitude" possa ser incorporada, a partir de um novo tipo de formação, igualmente pelos profissionais da área biomédica, o que certamente reorientaria, retomando a preocupação de Paul (2003) colocada em nível da introdução desse trabalho, o avanço do conhecimento científico numa nova direção, no sentido de construção de uma nova ciência moderna que coloque os benefícios de seu conhecimento realmente a serviço do homem.

Recebido em: 10/10/2005

Aprovado em: 08/11/2005

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  • 1
    No artigo de Nicolescu (2005), o referido seminário internacional é intitulado "Interdisciplinaridade – Problemas de Ensino e Pesquisa em Universidades".
  • 2
    Este documento encontra-se, na íntegra, como Anexo 1, sob o título " Declaração de Veneza", em coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.187-190).
  • 3
    Este documento encontra-se, na íntegra, como Anexo 2, sob o título "Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o Século XXI – Comunicado Final" , em coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.191-192)
  • 4
    Este documento encontra-se, na íntegra, sob o mesmo título, como Anexo 3 da coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.193-197).
  • 5
    Este documento encontra-se disponível, na integra, sob o título "Congresso Internacional de Locarno – Projeto CIRET-UNESCO [síntese do documento],15p., no site do Centro de Educação Transdisciplinar – CETRANS –
  • 6
    Este documento encontra-se, sob o mesmo título, como Anexo 4 da coletânea organizada por Sommerman e cols (2002, p.198-202)
  • 7
    O referido documento encontra-se, sob o mesmo título, 8p., no site do Centro de Estudos Transdisciplinares – CETRANS –
  • 8
    Vale mencionar que em seus trabalhos Basarab Nicolescu apresenta o termo composto "níveis de Realidade" sempre com " R" maiúsculo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Recebido
      10 Out 2005
    • Aceito
      08 Nov 2005
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