Acessibilidade / Reportar erro

A participação de Conselheiros Municipais de Saúde: solução que se transformou em problema?

The Municipal Health Councilors participation: a solution that has changed into a problem?

Resumos

A proposta de controle social instituída pela constituição abriu perspectivas para uma prática democrática ímpar no setor saúde. O Sistema Único de Saúde utiliza o Conselho Municipal de Saúde (CMS) como meio de cumprimento do princípio constitucional da "participação da comunidade" para assegurar o controle social sobre as ações e serviços de saúde do município. O CMS tem competência para examinar e aprovar as diretrizes da política de saúde, para que sejam alcançados seus objetivos. Ao atuar na formulação de estratégias, o Conselho pode aperfeiçoá-las, propor meios aptos para sua execução ou mesmo indicar correções de rumos. Em Botucatu (SP), o CMS existe desde 1992 e nossa proposta foi analisar a participação dos conselheiros e sua representatividade. Para esse propósito, utilizamos uma abordagem qualitativa que permitisse uma aproximação e o conhecimento daquela realidade. Os resultados mostraram, entre vários aspectos, que, em média, metade dos conselheiros titulares e um terço dos suplentes comparecem às reuniões. Além de interessados, esses conselheiros trazem reivindicações ou sugestões do grupo que representam, considerando boa a repercussão dessas reivindicações, porém nem sempre obtêm respostas satisfatórias, pois algumas decisões são tomadas fora do âmbito do conselho; percebem dificuldade de integração entre os serviços de saúde; a própria organização das reuniões dificulta a participação e, muitas vezes, a reunião apenas aprova pacotes ministeriais que devem ser implementados. Ouvir os conselheiros permitiu levantar problemas que precisam ser enfrentados e, com isso, fazer avançar o processo democrático, ou seja, um desafio para a vida.

Participação social; Controle social; Conselheiros municipais de saúde


The Brazilian Constitution proposal of social control opened many perspectives towards a democratic practice in health area. The Brazilian Health System has the Municipal Health Council to execute the constitution principle of "community participation", which means to assure social control on actions and services in any municipality. This Council has the competence to exam and to approve the directions established by health policies to reach their objectives. It also formulates strategies and through them, it is possible to improve and suggest proper means to execute them or to correct directions. In Botucatu (Sao Paulo state) the Municipal Health Council was formed in 1992 and this study aimed to analyze the participation of its members. A qualitative approach was adopted. Results showed that half of the principal members, a third part of the substitutes and also visitors attended the meetings, they brought claims or suggestions from the social groups they represent and had good evaluation about the effect over all the members, but not always they got adequate answers. Some of the problems were: decision-making outside the Council, the difficult integration among different health services, the poor organization of the meetings like long duration, lack of objectiveness in the questions, etc. and meetings only to approve decisions already taken by federal or state government. To listen to the councilors allowed to understand the problems faced and to perceive their proposals for advancement of the democratic process which is a challenge for life.

Social Participation; Social Control; Municipal Health Councilors


ARTIGOS

A participação de Conselheiros Municipais de Saúde: solução que se transformou em problema?

The Municipal Health Councilors participation: a solution that has changed into a problem?

Ione MoritaI; Julliano Fernandes Campos GuimarãesII; Bruno Paulino Di MuzioIII

IDoutor em Ciências Sociais. Professor Assistente Doutor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu-Unesp E-mail: imorita@fmb.unesp.br

IIAcadêmico de Medicina, bolsista Proex-Unesp (processo nº. 3332/99), Faculdade de Medicina de Botucatu-Unesp. E-mail: jullianoguimaraes@bol.com.br

IIIAcadêmico de Medicina, bolsista Fundunesp-Unesp (processo nº. 3332/99), Faculdade de Medicina de Botucatu-Unesp. E-mail: bmuzio@uol.com.br

RESUMO

A proposta de controle social instituída pela constituição abriu perspectivas para uma prática democrática ímpar no setor saúde. O Sistema Único de Saúde utiliza o Conselho Municipal de Saúde (CMS) como meio de cumprimento do princípio constitucional da "participação da comunidade" para assegurar o controle social sobre as ações e serviços de saúde do município. O CMS tem competência para examinar e aprovar as diretrizes da política de saúde, para que sejam alcançados seus objetivos. Ao atuar na formulação de estratégias, o Conselho pode aperfeiçoá-las, propor meios aptos para sua execução ou mesmo indicar correções de rumos. Em Botucatu (SP), o CMS existe desde 1992 e nossa proposta foi analisar a participação dos conselheiros e sua representatividade. Para esse propósito, utilizamos uma abordagem qualitativa que permitisse uma aproximação e o conhecimento daquela realidade. Os resultados mostraram, entre vários aspectos, que, em média, metade dos conselheiros titulares e um terço dos suplentes comparecem às reuniões. Além de interessados, esses conselheiros trazem reivindicações ou sugestões do grupo que representam, considerando boa a repercussão dessas reivindicações, porém nem sempre obtêm respostas satisfatórias, pois algumas decisões são tomadas fora do âmbito do conselho; percebem dificuldade de integração entre os serviços de saúde; a própria organização das reuniões dificulta a participação e, muitas vezes, a reunião apenas aprova pacotes ministeriais que devem ser implementados. Ouvir os conselheiros permitiu levantar problemas que precisam ser enfrentados e, com isso, fazer avançar o processo democrático, ou seja, um desafio para a vida.

Palavras-chave: Participação social, Controle social, Conselheiros municipais de saúde.

ABSTRACT

The Brazilian Constitution proposal of social control opened many perspectives towards a democratic practice in health area. The Brazilian Health System has the Municipal Health Council to execute the constitution principle of "community participation", which means to assure social control on actions and services in any municipality. This Council has the competence to exam and to approve the directions established by health policies to reach their objectives. It also formulates strategies and through them, it is possible to improve and suggest proper means to execute them or to correct directions. In Botucatu (Sao Paulo state) the Municipal Health Council was formed in 1992 and this study aimed to analyze the participation of its members. A qualitative approach was adopted. Results showed that half of the principal members, a third part of the substitutes and also visitors attended the meetings, they brought claims or suggestions from the social groups they represent and had good evaluation about the effect over all the members, but not always they got adequate answers. Some of the problems were: decision-making outside the Council, the difficult integration among different health services, the poor organization of the meetings like long duration, lack of objectiveness in the questions, etc. and meetings only to approve decisions already taken by federal or state government. To listen to the councilors allowed to understand the problems faced and to perceive their proposals for advancement of the democratic process which is a challenge for life.

Keywords: Social Participation, Social Control, Municipal Health Councilors.

Introdução

A proposta de controle social instituída pela Constituição brasileira abriu perspectivas para uma prática democrática ímpar no setor saúde, considerando-a a capacidade de a sociedade civil interferir na gestão pública, seja orientando as ações do estado seja orientando os gastos estatais para atendimento dos interesses coletivos (Correia, 2000). Essa compreensão diferiu totalmente da inicialmente empregada pela Sociologia, segundo a qual os autores destacavam "(...) os processos de influência da sociedade (ou do coletivo) sobre o indivíduo" (Carvalho, 1995, p. 9) que, quando aplicada à relação estado–sociedade, se traduz em intervenções estatais em todas as esferas da sociedade. A instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), criando instâncias de controle através de Conferências e Conselhos de Saúde, como meios de cumprir o princípio constitucional da "participação da comunidade", asseguraria o controle social sobre as ações e serviços de saúde do município, estado e nação. Em todas as esferas de governo o Conselho de Saúde teria competência para examinar e aprovar as diretrizes da política de saúde, definida prioritariamente através das Conferências, a fim de que fossem alcançados seus objetivos. Ao atuar na formulação de estratégias, o Conselho poderia aperfeiçoá-las, propor meios aptos para sua execução ou mesmo indicar correções de rumos. Podemos perceber que a participação apresentou um grande apelo democrático e foi altamente valorizada, tornando-se uma "palavra de ordem" para diferentes grupos e setores sociais (Morita, 2002).

Silva (1998) destacou as primeiras análises sobre o papel dos conselhos de saúde, realizadas por pesquisadores em meados de 1990, e avaliou um conselho municipal de uma cidade de grande porte. Esses trabalhos evidenciaram os avanços e os recuos, o moderno e o arcaico (Morita, 2002), enfim, os limites e as possibilidades (Silva, 1998) que se constituem nas duas faces de uma moeda e que são, portanto, indissociáveis na participação através de conselhos de saúde.

Entendemos que a participação social significa fazer parte das decisões políticas (Morita, 2002; Soares, 2000; Cortes. 1998) e, nesse aspecto, compreendemos como pode ser difícil sua concretização, devido a inúmeros fatores, dentre os quais: as mudanças na estrutura assistencial de saúde, por causa das conjunturas políticas, da organização sindical e dos movimentos populares; o relacionamento entre trabalhadores da saúde e as lideranças populares, e destes com a autoridade constituída; a própria dinâmica das reuniões do conselho e o envolvimento da chamada "comunidade" na criação do conselho. Em uma sociedade de classe, questões relacionadas ao poder e ao conhecimento continuam presentes dificultando a participação dos desiguais. Uma série de obstáculos ainda se faz presente em função de uma história política caracterizada por regimes centralizadores e autoritários, que afastavam os trabalhadores dos processos de tomada de decisão, dando origem a gerações de brasileiros que precisarão (re)aprender a participar da nova conjuntura.

Dentro do aparelho executivo, a atual proposta de participação, de 1990, é relativamente nova no país, portanto, de suas mais diversas experiências por todo o território nacional, deve emergir um aumento da capacidade reflexiva, que permitirá o controle da sociedade sobre o estado, como proposto pelo SUS.

A partir do quadro descrito, temos como objetivo principal analisar a participação dos segmentos que compõem o Conselho Municipal de Saúde de Botucatu, e, especificamente, a representatividade dos conselheiros.

Considerações Metodológicas

Segundo Haguette (1997, p. 63): "(...) os métodos quantitativos supõem uma população de objetos de observação comparável entre si e os métodos qualitativos enfatizam as especificidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de ser (...) ". Tendo como base essa consideração, utilizamos uma abordagem qualitativa que permitisse aproximação e conhecimento da realidade de um conselho de saúde e destacamos as representações sociais sobre a participação no CMS de Botucatu, obtidas através de entrevistas com os conselheiros e a leitura das atas.

Estamos considerando representações como "(...) categorias de pensamento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a (...)" (Minayo, 1999, p. 89) e percebemos que nosso material empírico, ao passar por leitura e categorização do conteúdo, mostrou as representações dos conselheiros sobre os temas investigados. De acordo com Grize, Vergès e Salem (1987, p. 1), para que as representações ocorram, são necessárias duas condições: "(...) algo é tornado presente (...) [e] (...) uma coisa é colocada no lugar de outra (...)". Nesse sentido, os conselheiros tornaram presentes seus pensamentos a respeito da participação e, ao criar as matrizes, ou categorias analíticas, com base nos discursos dos conselheiros, nosso trabalho realizou a transposição.

Mediante a leitura das atas e das entrevistas, podemos dizer que as matrizes identificadas são categorias que reúnem um grupo de elementos sob um título genérico, com caracteres comuns (Bardin, 1977, p. 117) que, condensados, fornecem uma representação simplificada dos temas investigados. De fato, criamos representações com base em representações.

As entrevistas foram consideradas um discurso específico que, transcritas, forneceram textos que permitiram a análise de seus conteúdos, assim como as atas das reuniões. Seguindo as etapas de trabalho propostas por Maingueneau (2001, p. 80), segundo o qual "(...) um texto escrito pode também ser recopiado, arquivado, classificado (...)", interessou-nos o tema da representatividade dos segmentos Conselho Municipal de Saúde de Botucatu.

No caso das atas temos o registro de um discurso em que a fala é encenada: existe uma "cena englobante" que permite identificar o tipo de discurso, ou seja, ele é político; existe uma definição de papéis, na qual a autoridade de saúde dirige-se aos outros como aliados, seus pares, ou não, e existe uma cenografia que permite distinguir a ata dos demais textos escritos, pois ela é, de algum modo, sempre a mesma, obedece a uma rotina: informes, ordem do dia e decisões (Maingueneau, 2001, p. 86-88).

Destacamos, por fim, a observação direta das reuniões, nas quais "[o] observador participante (...) observa as pessoas que estão estudando para ver as situações com que se deparam normalmente e como se comportam diante delas. Entabula conversação com alguns ou com todos os participantes desta situação e descobre as interpretações que eles têm sobre os acontecimentos que observou" (Becker, 1999, p. 47). Na construção da postura metodológica, passamos também pelas questões éticas. Houve a divulgação dos objetivos da pesquisa e ela se tornou pauta de uma das reuniões do Conselho Municipal de Saúde de Botucatu, para aprovação dos conselheiros, e do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, por ser um trabalho vinculado a uma linha de pesquisa desenvolvida em um de seus departamentos.

Assim, a introdução de metodologia qualitativa permitiu uma abordagem complementar, no sentido de se estabelecer as relações entre o pensado e o vivido por esse grupo, em especial, diferenciando uma simples descrição das condições encontradas.

O cenário e seus atores

O município de Botucatu, na região central do estado de São Paulo, contava com 108.307 habitantes, de acordo com o censo de 2000 (Cidades, 2000). O primeiro Conselho Municipal de Saúde tomou posse em 1992, havendo mudanças em julho de 1994, janeiro de 1997, agosto de 1999 e abril de 2003. Foi com este último grupo que percorremos a trajetória proposta para esse trabalho, durante o ano de 2004, ressaltando que alguns poucos conselheiros representantes da assim chamada sociedade civil organizada participaram desde o início do movimento. Considerando que a cada dois anos deveriam ocorrer eleições para a mudança de seus representantes, alguns atrasos oconteceram por vários fatores: saída de secretário da saúde para concorrer à vaga de deputado estadual; desconhecimento generalizado do conselho e dos conselheiros, especialmente nos primeiros anos, dificultando a mobilização social; eleições municipais e redução do número de reuniões em alguns períodos.

O atual CMS de Botucatu conta com trinta e dois titulares e o mesmo número de suplentes: 69% mulheres e 31% homens. Durante o ano de 2004, a média de comparecimento em cada uma das reuniões foi 16 titulares, nove suplentes e oito visitantes, portanto, cada reunião contava com, em uma média, 33 pessoas. Do total de 64 membros, 14 foram entrevistados (21,9% dos conselheiros), dos quais 10 eram representantes dos usuários e quatro do segmento de prestadores de serviços e governo.

Como ocorreram oito reuniões ao longo de 2004, analisamos as atas correspondentes.

As Múltiplas Facetas dos Conselheiros: algumas considerações sobre gênero

É interessante observar a distribuição total dos conselheiros por sexo e as relações de gênero que se revestem de contornos especiais na área da saúde. Entendemos as relações de gênero como divisão sexual, socialmente construída, das atividades, assim, não é a quantidade que interessa, e sim o fato de homens e mulheres constituírem-se sujeitos da ação e estruturarem sua prática a partir de um ponto de vista masculino e feminino. Conforme Saffioti (1992, p. 187), "(...) as relações de gênero não resultam da existência de dois sexos, macho e fêmea (...), o vetor direciona-se, ao contrário, do social para os indivíduos que nascem. Tais indivíduos são transformados, através das relações de gênero, em homens e mulheres, cada uma destas categorias-identidades excluindo a outra".

Ressaltamos essa questão porque existe uma literatura que analisa a importância da mulher nos temas sobre saúde, e consideramos que a possibilidade de participação pública em um espaço "próprio" atrairia a atenção do público feminino. Desde meados de 1960, a política de saúde começou a dar visibilidade à mulher, porém como depositária das estratégias de controle de natalidade. Pinto (1992, p. 128) mostrou como as ciências da saúde e as ciências sociais começaram a se preocupar com "(...) um conjunto de problemas relacionados à saúde da mulher, tanto para justificar como para denunciar estas políticas".

A literatura registra que à mulher são delegadas as questões de saúde na família, e, segundo Boltanski (1979) e Fonseca (1999), as preocupações com o cuidado do corpo e as representações sobre saúdedoença são quase sempre obtidas junto às mulheres (Ferreira, 1998; Paim, 1998, Oliveira, 1998). Nesse Conselho Municipal, a presença feminina é marcante, tornando-se uma indicação da preocupação que a saúde exerce sobre as mulheres.

(...) as pessoas do Marajoara são tudo gente pobre que não sabe se virá, às veiz, um remédio caro... não têm condição de comprá, né? Então, quando eles me procura, que eles sabe que eu vô na assistente social, ela autoriza eles pegá na farmácia... às veiz, eles sabe aonde vai, mas eles não são atendido... eu tenho mais conhecimento, qualquer hora que chego lá [Secretaria Municipal de Saúde], eu sô recebida... isso que levô eu a fazê parte [do CMS], prá fica mais fácil prá atendê os pedido do pessoal (representante da sociedade civil, E1).

(...) porque eu toda vida trabaiei assim, ajudando os outros, né?. então, quando eu montei a associação aqui, a gente trabaiô muito pro bairro e o posto aqui da vila foi reivindicado pela associação e lutei muito prá esse posto de saúde(...) (representante da sociedade civil, E2).

Sobre o Peso de Algumas Representações

Os conselheiros relacionados aos sindicatos, os vinculados a associações de trabalhadores portadores de problemas decorrentes do trabalho – como LER (lesões por esforço repetitivo), DORT (distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho) – e os ligados à saúde do trabalhador são, dentro do CMS, os mais expressivos dentre os que representam a sociedade civil. A partir da observação direta das reuniões, percebemos como eles são ativos: discutem e argumentam sobre qualquer assunto, seja da pauta ou não. Ao contrário de muitos outros conselheiros, não se restringem às questões relacionadas aos grupos que representam, dão palpites, opiniões sobre qualquer problema do sistema de saúde da cidade. Esta presença constante e participativa tornou-os verdadeiras referências para os demais conselheiros, tanto que foram solicitados a opinar sobre determinados temas. Alguns deles assumiram papéis-chaves dentro do CMS, pois acabaram participando de inúmeras comissões especiais criadas. Um dos fatores que talvez explique esse destaque dentro do conselho é o fato de eles terem uma boa formação política, já que são trabalhadores vinculados a sindicatos, com uma grande experiência de luta por seus direitos. Essas características, além de serem positivas para o funcionamento adequado do CMS, coloca os participantes do conselho em vantagem, pois quaisquer discussões e votações que se referem à saúde do trabalhador são sempre favorecidas, em função da força de argumentação e da credibilidade que eles adquiriram perante os demais conselheiros. Ressaltamos que não se trata de saber formal, oriundo de escolarização, mas de um saber adquirido a partir da vivência de cada um e que foi transformado em recurso de poder. Nesse sentido, observamos que a distribuição de poder é muito desigual, e que estamos diante de uma "(...) rede social, de um grupo de pessoas que têm marca própria de distinção que, na sua visão, os diferenciam significativamente de outros" (Velho, 1986, p. 89).

(...) sou vice-presidente [de um Sindicato]... e se eu falar prá você na palavra injustiça, ela existe... se você quer alguma coisa, você pode ir lá conversar, mas a tendência de empresários bem-sucedidos e políticos brasileiros é tirar conhecimento, é deixar as pessoas impunes disso daí, quer que as pessoas fique quieta, não tenha conhecimento, não lute por seus direitos. E, o que me levou a entrar no sindicato é que sou uma pessoa muito revoltada e a melhor forma de poder ajudar era entrar numa entidade (...) (representante da sociedade civil, E4).

Sobre Burocracia e Representação

Vejamos, por outro lado, o caso dos conselheiros – em sua maioria representantes dos usuários do SUS, membros dos conselhos de unidades de saúde (conselhos locais, nos 11 centros de saúde municipais) – que, embora presentes em praticamente todas as reuniões, quase nunca se manifestaram para concordar ou discordar de algum assunto em debate, ou propor ou encaminhar alguma queixa ou sugestão da comunidade que representam. Através da observação direta, acostumamos a vê-los em todas as reuniões, porém dificilmente ouvimos suas vozes; eles simplesmente chegavam, sentavam, acompanhavam a reunião, erguiam o braço quando tinham de votar e iam embora. Na percepção de um conselheiro:

(...) tem umas pessoas que comandam, tem uma elite de pessoas que comanda, o resto tá lá só por formalidade(...) (representante da sociedade civil, E5).

É possível perceber a desigualdade na participação e na distribuição do poder, na avaliação a seguir:

(...) o conselheiro deve estar junto com os outros decidindo alguma coisa em benefício da comunidade, da assistência médica, assistência de saúde da população local, não sendo apenas convocado pra chegar lá e aprovar alguma coisa que às vezes a legislação ou as orientações que vêm, exigem a aprovação do CMS, então, se convoca simplesmente pra aprovar, mas não pra discutir, participar da elaboração da proposta (representante de instituição de saúde, E1)

Quando questionados na entrevista: "O (a) senhor(a) traz alguma proposta da comunidade a qual representa?" Não foi a resposta; "O (a) senhor(a) leva para a sua comunidade os assuntos e decisões tratadas dentro do CMS?" Não, novamente foi a resposta mais ouvida. Entra em cena o que se pode chamar de burocratização da representação quando, de um lado, temos o conselho de saúde, idealizado como importante instrumento de desenvolvimento da cidadania, e do outro, os problemas criados pela burocracia a qual impõe que da composição do conselho façam participar instituições formalmente organizadas. Muitas vezes, em nome de um processo racionalizador, fica estabelecido que a representação pode ocorre por intermédio de entidades com estatuto legal, registro em cartório, etc., sendo que alguns grupos organizados e atuantes, em termos de projetos sociais, não o são. Lógico e racional sob um ângulo, mas não-representativo em algumas situações, pois isso promove um afastamento entre o ideal e o real, que também pode ser percebido na presença/ausência dos conselheiros.

Silva (1998), ao trabalhar o papel real e ideal do CMS de Cuiabá na visão dos prestadores, dos trabalhadores da saúde e dos usuários, mostrou as diferenças de assimilação do papel do SUS, assim como as coincidências ou os afastamentos em relação aos seus princípios e diretrizes. Considerar o papel do CMS "indefinido" quando o ideal seria "definir a Política de Saúde" (Silva, 1998, p. 147) foi um dos exemplos dos descompassos que vêm se somar aos verificados nesse trabalho. Novamente destacamos as duas faces de uma mesma moeda: o ideal e o real, segundo as quais é possível articular mudanças.

Uma outra questão discutível é o papel do representante como porta-voz de um grupo, o que de fato não ocorre:

Ser representante (...) eu vou levar a necessidade daquele que eu tô representando, eu sou só porta-voz. (representante da sociedade civil, E7).

Em trabalho anterior, já havíamos mostrado a compreensão de algumas instituições sobre seu representante: o mais "qualificado" seria o melhor. Isso promoveu o surgimento de problemas como falta de opção e ocupação de um cargo de diretoria como "critérios" para se tornar representante, levando a questionamentos sobre representatividade (Morita, 2002). Dessa situação, ficou uma impressão negativa sobre algumas representações, pois elas só estariam dentro do CMS para ocupar uma vaga, sua por direito, e fazer com que o Conselho funcionasse adequadamente, conforme as diretrizes que regem o SUS. Numa classificação, ao lado dos "invisíveis", teríamos aqueles "só de nome", ou seja, os que constam como membros do CMS, mas que, na prática, nunca compareceram às reuniões.

Em um jogo de palavras redundantes, trata-se de tornar a representação representativa, o que não é uma tarefa simples, pois estamos falando em criar uma representação eficaz e não apenas formal.

Sobre o "Aparecer Social"

A composição de um conselho gestor e paritário, como o criado para a área da saúde, já carrega a heterogeneidade como princípio, pois reflete as diferenças, sejam de classe, em relação à propriedade dos meios de produção, sejam de estratos sociais, devido ao acesso diferenciado ao consumo de bens e serviços. Não há conflito de classes no conselho, e, conforme Escorel e Lucchese (2000, p. 104), "(...) nenhum segmento é dono do processo, seja do SUS, seja das conferências [ou dos conselhos] de saúde". O que pode ocorrer é a oposição de interesses de instituições sob gerência municipal e estadual, de diferentes níveis de complexidade, e de uma sociedade civil muito fragmentada, com dificuldade de articulação e com propostas muito específicas (Morita, 2002).

Nesse aspecto foi interessante observar uma disposição padronizada na localização dos conselheiros na sala onde ocorriam as reuniões (três fileiras de cadeiras em círculo). Os mais articulados sempre se agrupavam e tomavam assentos nas primeiras fileiras, enquanto os mais tímidos e menos participativos preferiam lugares mais ao fundo ou fora do eixo de discussões. Os trabalhadores ligados a sindicatos ou a questões da saúde do trabalhador sempre sentaram em posição diametralmente oposta ao presidente do CMS, de forma que ficassem frente a frente. O próprio ato de "sentar ao lado de" pareceu simbolizar a aproximação de interesses e, mais especificamente, a definição do grupo social ao qual se pertence, ou gostaria de se pertencer (médico ao lado de médico).

Por meio da leitura das atas e das entrevistas, percebemos que alguns representantes do segmento usuário trouxeram reivindicações ou sugestões relacionadas à organização da atenção médica no município (vagas de internação para usuários de drogas e álcool; implantação de serviço especializado em saúde do trabalhador; horário de funcionamento dos centros de saúde; necessidade do atendimento de emergência na cidade), e à necessidade de resposta oficial: "(...) eu gostaria que as reivindicações e recramação fosse feito umas cartas respondendo o que a população pediu" (representante da sociedade civil, E 10). Dentre os representantes institucionais, as reivindicações também se relacionavam à organização da atenção médica (falta de Raios-X, de exames para os pacientes atendidos nos centros de saúde municipais, etc.) e a problemas de funcionamento da rede básica (problemas de atendimento, de demanda, etc.).

A repercussão foi considerada positiva, pois as reivindicações foram ouvidas e registradas. Os aspectos negativos podem ser classificados em demora no atendimento às reivindicações: (...) estamos sempre aguardando retorno e soluções para esse problema [vagas de internação] crônico"; (des)organização do atendimento: (...) a demora é demais, sobre a consulta marcada, às vezes, fica 3 meses a 6 para ser atendido no posto de saúde, (representante da sociedade civil, E 8); problemas no encaminhamento, etc.; decisões tomadas fora do âmbito do CMS: (...) recebemos muito pacotes vindos das instâncias superiores e que de certa forma, tem que ser implementadas, por exemplo, campanhas, de câncer de mama e o sistema não tem condição de dar atendimento no curto prazo (representante da sociedade civil, E 9); (des)organização da reunião do CMS: (...) reuniões longas; falta de objetividade na formulação das perguntas; não inicia na hora, etc. (vários conselheiros).

Receber "pacotes prontos" vindos de estruturas superiores, tais como projetos de campanhas ou modelos de atuação, é um problema, quando, por limitação de atuação do CMS, não se efetuarem as adaptações condizentes com a realidade social e epidemiológica do município.

Através das Atas, Mais Uma Contribuição Para a Composição das Múltiplas Faces do Conselheiro

Sabemos que a ata está submetida às regras da organização, vigentes em um grupo social determinado: o plano do texto está definido e o discurso, orientado para uma finalidade, isto é, registrar as informações do que vem sendo feito no município no campo da saúde. Tendo como preocupação a participação dos conselheiros, identificamos temas que foram assim classificados:

• "os projetos universitários": nesse caso, temos como exemplo a apresentação do Promed, para continuidade a partir de 2006. Trata de um projeto de inovação no cenário de ensino na área médica que envolve a Faculdade de Medicina de Botucatu, a Prefeitura Municipal, e tem suporte financeiro do Ministério da Saúde. Esse tema deve ser destacado, pois o município tem uma faculdade de medicina pública e essa proximidade promove ações conjuntas que poderiam propiciar mudanças positivas no setor saúde;

• "os conselheiros trazem informação ou esclarecimento" que são apresentados na sessão de informes, ao início da reunião. Como os conselheiros se organizaram em comissões (da Atenção Básica, da Urgência/Emergência, da Hierarquização, da Vigilância à Saúde e da Saúde do Trabalhador), são elas que sempre têm a palavra, mostrando os avanços obtidos ou as dificuldades encontradas durante o mês;

• "os conselheiros fazem denúncia": como no caso em que um representante da sociedade civil trouxe uma senhora que relatou problema de mau atendimento no pronto socorro municipal. Nessa ocasião, ela foi orientada a formalizar a denúncia contra a instituição envolvida, com prazo de resposta, para que o Conselho Municipal de Saúde pudesse se pronunciar na próxima reunião; o relato de que, em Bofete, município da região da DIR-XI de Botucatu, é comum intoxicação por agrotóxicos e os médicos não tomam providências referentes à abertura de comunicação de acidente de trabalho (CAT). Para esse caso, ficou decidido que em futura reunião mensal, os gestores regionais abordariam esse problema, divulgando a existência do Centro de Referência da Saúde do Trabalhador, sediado em Botucatu.

• "os conselheiros, após deliberação, votam", como na elaboração de uma moção às autoridades sobre as queimadas em zona rural e urbana; a indicação de nomes para compor as comissões e representações em outros órgãos públicos; as aprovações de termos aditivos para concretizar a assistência à saúde no município, e outras questões sempre aprovadas por unanimidade.

• "as questões administrativas, financeiras, políticas (...)", como o comunicado do secretário da saúde que se licenciou do cargo para concorrer à eleição; as prestações de contas através do sistema de informação do orçamento público da saúde; o problema da implantação da gestão plena municipal e suas dificuldades; a questão da falha na atenção secundária no município, etc.

• "as questões relativas à organização da assistência", que incluem as reformas ou construções de centros de saúde, a criação de mais equipe de saúde da família, os atendimentos especializados aos idosos, adolescentes, trabalhador e outros; a greve da universidade e o atendimento do Hospital das Clínicas, etc.

Esta é uma classificação inicial e não esgota outros recortes possíveis, porém é suficiente para indicar a coerência temática interna entre as atas. Observamos que as pautas das reuniões são indicadores da dinâmica de funcionamento do Conselho Municipal de Saúde, como dizia Cortes (2000), à medida que fornecem evidências sobre o cumprimento das funções deliberativas previstas constitucionalmente. No caso de Botucatu, utiliza-se esse espaço para que diferentes segmentos façam suas colocações, mesmo que, sejam poucos os nomes que sempre têm registro nas atas.

Comentários Finais

Os conselheiros mais ativos têm consciência da importância do CMS para o município e das muitas realizações já efetuadas. Em muitas discussões sobre ações do executivo na área de saúde, os conselheiros ficaram indignados quando souberam que algumas não passaram por um debate prévio no CMS. O reconhecimento do Conselho como uma "entidade" sólida, que integra a hierarquia administrativa do SUS no município, acaba sendo um estímulo aos próprios conselheiros, para que eles continuem atuantes e tenham certeza de que estão produzindo resultados. O Conselho não é uma instância que se fecha diante da comunidade, pois o visitante é bem vindo e pode participar das reuniões, salvo o direito ao voto. Muitas vezes o visitante é levado pelo próprio conselheiro para que veja e passe a entender o funcionamento do CMS.

Como observamos, ouvir os conselheiros permitiu levantar problemas que precisam ser enfrentados e, com isso, fazer avançar o processo democrático. Como em um jogo, avanços e recuos convivem lado a lado, e identificar as limitações estipuladas pela realidade local, permitiu perceber que os conselheiros são, simultaneamente, problema e solução. Em uma relação dialética, apontam o problema e o trazem à tona. Resolver é outro desafio, e, nesse sentido, os conselheiros são uma solução que se transformaram em problema.

Recebido em: 16/06/2005

Aprovado em: 14/02/2006

  • BARDIN, L. Análise de conteúdo Lisboa: Ed. 70, 1977. 225 p.
  • BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1999. 178 p.
  • BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 191 p.
  • CARVALHO, A. I. Conselhos de saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro: FASE: IBAM, 1995. 136 p.
  • Cidades@. Site desenvolvido pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php >. Acesso em: 12 jan 2006.
  • CORREIA, M. V. C. Que controle social?: os conselhos de saúde como instrumento. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. 164 p.
  • CORTES, S. M. V. Conselhos municipais de saúde: a possibilidade dos usuários participarem e os determinantes da participação. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 5-17, 1998.
  • CORTES, S. M. V. Pautas de reuniões e participação de usuários em conselho municipal de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, p. 15, 2000. Suplemento.
  • ESCOREL, S.; LUCCHESE, P. XI Conferência Nacional de Saúde: algumas primeiras impressões. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 24, n. 56, p. 102-106, set./dez. 2000.
  • HAGUETTE, T. M. F. Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes, 1997. 224 p.
  • FERREIRA, J. Cuidados do corpo em vila de classe popular. In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 49-56.
  • FONSECA, R. M. G. S. Mulher, direito e saúde: repensando o nexo coesivo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 3-32, ago./dez. 1999.
  • GRIZE, J. B.; VERGÈS, P.; SALEM, A. Salariés face aux nouvelles technologies, vers une approche sociologique des representations socials. Tradução M. H. V. B Concone. Paris: CNRS, 1987.
  • MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação São Paulo: Cortez, 2001. 238 p.
  • MINAYO, M. C. S. O conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica. In: GUARESCHI, P.; JOVXHELOVITCH, S. (Org.). Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 89-111.
  • MORITA, I.; CONCONE, M. H. V. B. Conselho e conselheiros municipais de saúde: que trama é esta? Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, v. 38, n. 161, p. 147-167, jul./dez. 2002.
  • OLIVEIRA, F. J. A. Concepção de doença: o que os serviços de saúde têm a ver com isto? In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 81-94.
  • PAIM, H. H. S. Marcas no corpo: gravidez e maternidade em grupos populares. In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. p. 31-47.
  • PINTO, C. R. J. Movimentos sociais: espaços privilegiados da mulher enquanto sujeito político. In: COSTA, A. O.; BRUSCHINI, C. (Org.). Uma questão de gênero Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. p. 127-150.
  • SAFFIOTI, H. I. B. Reabilitando gênero e classe social. In: COSTA, A. O.; BRUSCHINI, C. (Org.). Uma questão de gênero Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. p. 183-215.
  • SILVA, I. M. F. Conselhos de saúde: construindo uma nova linguagem. Cuiabá: EduFMT, 1998. 167 p.
  • SOARES, N. R. F. A participação dos movimentos sociais nos conselhos de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, p. 53, 2000. Suplemento.
  • VELHO, G. Subjetividade e sociedade: uma experiência de gerações. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986. 172 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2006

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2005
  • Aceito
    14 Fev 2006
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br